CASO JULGADO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
RESPONSABILIDADE CIVIL
ERRO NOTÓRIO
PREJUÍZO
ILICITUDE
CULPA
Sumário

I.–Decorrência do princípio da adesão consagrado no art. 71º do Código de Processo Penal, tendo o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal que se fundar na prática de um crime e, portanto, na responsabilidade civil, terá necessariamente por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado;

II.–Em caso de extinção do procedimento criminal ou prolação de decisão criminal absolutória, prosseguindo os autos para apreciação do pedido de indemnização civil, subsiste a vinculação temática deste aos factos da acusação ou da pronúncia.

III.–A interdependência entre a ação penal, destinada a aplicar as reações criminais adequadas à infração, e a ação civil, destinada à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infração tenha dado causa, significa independência substantiva e dependência («adesão») processual da ação cível relativamente ao processo penal.

IV.–Substantivamente, verificados que estejam os pressupostos determinativos da responsabilidade civil previstos pelo art. 483º do Código Civil - (1) a existência de um facto voluntário, (2) a ilicitude da conduta, (3) a imputação subjetiva do facto ao agente (4) a existência de um dano, (5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano -, nasce a obrigação de indemnização a cargo do lesante nos termos dos arts. 562º, 564º/1 e 566º, todos do Código Civil.

V.–Processualmente, terá que existir um processo penal, no qual seja deduzida acusação ou proferida pronúncia contra o arguido pela prática de um crime, para que a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, o lesado, possa formular naquele processo penal e em momento próprio, o respetivo pedido de indemnização civil – arts. 71º a 74º e 77º, do Código de Processo Penal.

VI.–Em comum, as ações penal e cível, têm a definição dos factos integradores e definidores do facto ilícito; específica da instância cível enxertada no processo penal será a factualidade atinente à definição do dano reparável, assim como do nexo causal entre esse dano e o facto ilícito.

VII.–Nada impede que se conheça do recurso de sentença absolutória crime e cível apenas quanto à parte cível tendo por base os factos provados no processo penal, com abertura para discussão da matéria de facto especificamente atinente à parte cível, relativa ao prejuízo e ao nexo causal entre o facto ilícito e esse prejuízo.

VIII.–Todavia, a coincidência da base factual da ação penal e da ação cível, quando a primeira seja julgada improcedente, coloca questões que se prendem com o caso julgado formado pela decisão na parte penal absolutória e com a presunção de inocência do arguido, simultaneamente demandado civil, assim mantida intacta; não pode a decisão que recair sobre o pedido de indemnização civil ferir o caso julgado que se formou em relação à responsabilidade criminal, ou, noutra perspetiva, pôr em causa a presunção de inocência do arguido absolvido do crime.

IX.–Dando o Tribunal como provado que o demandado, na qualidade de AI, se apropriou da quantia de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) disponível na conta bancária da massa insolvente por si administrada e a esta pertencente, transferindo-a para uma sua conta bancária pessoal, e que desse modo quis e logrou fazer sua tal quantia, ciente de que não lhe pertencia, evidente se torna que constituiu consequência direta de tal conduta a privação da massa insolvente de um bem que lhe pertencia, causando-lhe o prejuízo correspondente.

X.–Assim, ao dar como não provada a existência de um prejuízo para a massa insolvente com base numa argumentação ilógica e errada à luz das normas aplicáveis, incorreu, pois, em erro notório na apreciação da prova.

XI.–Atua com negligência, incorrendo em responsabilidade civil, o Administrador da Insolvência absolvido do crime de peculato por se haver considerado não provados os factos atinentes ao dolo e consciência da ilicitude penal, que, em violação do direito absoluto de propriedade e contrariando ainda o disposto nos arts. 12º/1 e 29º/1,5, 9 e 10 do Estatuto do Administrador da Insolvência, transfere a quantia de € 6.016,88 depositada na conta bancária da massa insolvente por si administrada para a sua conta bancária pessoal, fazendo-a sua apesar de saber que lhe não pertencia, e assim causando àquela massa insolvente prejuízo de valor equivalente.

XII.–Admitindo uma normal capacidade do demandado para o exercício do cargo de AI (nada em contrário se provou) e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia o mesmo ter agido de outro modo.

XIII.–Invocando o demandado em juízo acreditar com base num acórdão da Relação que a quantia transferida lhe era devida por se tratar do auto-pagamento da remuneração variável, e tendo-se dado esse facto como provado, não pode deixar de se considerar o mesmo irrelevante para qualquer efeito, pois que tendo-se apropriado e feito sua a referida quantia, sabendo que a mesma lhe não pertencia, sendo antes pertença da massa insolvente por si administrada, irreleva o que o demandado civil então acreditava ou deixava de acreditar, mais a mais quando o referido acórdão não autorizava essa interpretação.

XIV.–O AI médio, colocado na situação em que o demandado se encontrava, exercendo no processo de insolvência em causa as funções que este exercia, não podia deixar de conhecer a lei e de saber que nenhuma decisão judicial, mormente um acórdão da Relação, se substitui a essa lei.

XV.–Uma vez que nos termos do disposto no art. 29º/5 do EAI o AI apenas tem direito à remuneração variável finda a liquidação do ativo e encerrado o processo, factos ainda não ocorridos quando da transferência bancária pelo mesmo realizada em seu benefício, sempre estaríamos diante uma “crença” que, além de juridicamente irrelevante, se mostra igualmente censurável por, na prática, constituir uma legitimação inteiramente subjetiva e infundada para se violar a lei.

XVI.–Aquilo em que cada um acredita (ou quer acreditar) para justificar as suas ações não tem o condão de tornar regular e legal um facto objetivamente contrário à lei, sob pena de se entrar num campo de total incerteza e insegurança jurídicas, em última análise, no caminho para a impunidade.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.RELATÓRIO

1.Vem o presente recurso interposto pela Massa Insolvente de AA da sentença absolutória proferida em 14/11/2023 no processo em epígrafe, pela qual foi julgada improcedente, por não provada, a acusação pública deduzida, pelo Ministério Público, contra o arguido, BB, e, em consequência, foi decidido:
• absolvê-lo da prática do crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, número 1, do Código Penal, pelo qual vinha acusado;
• julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela Massa Insolvente de AA contra o arguido, BB, absolvendo-o dos pedidos formulados contra si.

2.A recorrente peticiona seja revogada a sentença recorrida, com fundamento em erro de julgamento, de Direito e violação de normas legais, e seja a mesma substituída por outra que conheça e defira o respetivo pedido de indemnização civil; formula para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
I.O presente recurso vem interposto da sentença datada de 14/11/2011, que indeferiu o pedido de indemnização civil, na sequência da absolvição do arguido.
II.–O douto Tribunal a quo não considerou demonstrada a ilicitude e censurabilidade da conduta do arguido, com impacto direto sobre a imediata e subsequente apreciação e decisão de indeferimento do pedido de indemnização civil.
III.–A sentença recorrida deu como provado que o arguido, na qualidade de administrador da insolvência, autorizado a movimentar a conta bancária da ora recorrente, em 25/08/2014 transferiu a quantia de € 2.250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros) e, em 17/12/2014, a quantia de € 3.776.88 (três mil setecentos e setenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos), para a conta n.º ..., sediada ..., por si titulada.
IV.–Deu como provado que, com tal conduta, o arguido logrou fazer sua a quantia de 6.016,88 € (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), pertencente à recorrente, depositando-a em conta bancária titulada pelo arguido, ciente de que não lhe pertencia.
V.–Aquando da nomeação do administrador de insolvência substituto do arguido, inexista qualquer valor nas contas bancárias da massa insolvente, cfr. depoimento das testemunhas CC e DD.
VI.–O prejuízo que o arguido causou à recorrente foi de 9.200,00 € (nove mil e duzentos euros), e não de 6.016,88 € (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos).
VII.–O credor hipotecário não pagou as custas por sua própria e livre iniciativa; foi chamado a pagar pelo Tribunal de Comércio, por se ter verificado que “a conta da massa insolvente não tem qualquer saldo” para tal pagamento, constituindo divida da massa, cfr. despacho de 11/12/2017, proferido no processo de insolvência n.º 812/14.8TBSXL, que se encontra junto aos autos a fls. 187.
VIII.–As custas do processo de insolvência são um encargo da massa insolvente, nos termos do artº 304º do CIRE.
IX.–O valor das custas pago do processo de insolvência é manifestamente inferior ao valor retirado pelo arguido das suas contas bancárias, pelo que dificilmente se pode sustentar a ausência de dano.
X.–O processo de insolvência tem como finalidade o pagamento do passivo através da liquidação do ativo do insolvente e não gerar mais dividas para a messa insolvente.
XI.–A massa insolvente, sofreu um dano, porque ficou privada da quantia de 9.200,00€ (nove mil e duzentos euros), tendo ficado com uma divida correspondente às custas do processo de insolvência, divida da massa insolvente, no valor de 3.676.88 € (três mil seiscentos e setenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos), cfr. fls. 187 destes autos.
XII.–O Tribunal a quo formulou o juízo de credibilidade que atribuiu às declarações do arguido, e que conduziu à sua absolvição e indeferimento do pedido de indemnização civil, tendo por base auxiliar o sumário jurisprudencial do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, fornecido pelo arguido (Acórdão de 03/07/2014, proferido no processo n.º 1703/12.2TBPRD-G.P1, tendo por relator Pedro Lima Costa).
XIII.–Sucede que, conforme se retira da fundamentação desse acórdão, o ali apelante retirou a verba da massa insolvente, depois da decisão que julgou encerrada a liquidação do ativo e, como tal, o Venerando Tribunal da Relação do Porto entendeu que, nessas especiais circunstâncias, não era precoce a retirada da verba a título de remuneração variável.
XIV.–Por maioria de razão, será precoce (e consequentemente ilegal) a retirada da verba a título de remuneração variável, antes da decisão que julgue encerrada a liquidação do ativo.
XV.–Assim, a situação subjacente ao mencionado sumário jurisprudencial é totalmente distinta da dos presentes autos, em que a retirada das verbas ocorreu imediatamente a seguir à adjudicação do imóvel ao credor hipotecário e antes da decisão que julgou encerrada a liquidação do activo, que só veio a ocorrer mais tarde.
XVI.–Estabelece o art.º 23 nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei nº 22/2013 de 26.2 Já o nº 2 que “os administradores judiciais (…) auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado na portaria referida no número anterior.”
XVII.–O Administrador da Insolvência tem direito à remuneração fixa e à remuneração variável. A remuneração fixa é no montante de 2.000,00€ nos termos do art.º 1 da Portaria 51/2005 de 20.1, sendo paga em duas prestações de 1.000,00€ cada.
XVIII.–Em 18/06/2014 e 22/04/2015, o arguido já havia recebido do Tribunal de Comércio a totalidade da remuneração fixa, paga em duas prestações de 1.000,000 € respetivamente e a quantia de 500,00 € (quinhentos euros), a título de provisão de despesas, paga igualmente em duas prestações de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), (cfr. fls. 288).
XIX.–A remuneração variável apenas é devida quando há liquidação e é calculada nos termos dos n.ºs 4 a 6 do referido artigo 23º da Lei nº 22/2013 de 26.2.
XX.–A remuneração variável é paga a final, aquando do encerramento do processo de insolvência, momento em que há lugar à determinação do respetivo montante, ordenando-se o seu pagamento. (n.º 6 do art.º 23º e n.º 5 do art.º 29º da Lei nº 22/2013 de 26.2).
XXI.–A remuneração variável vence-se na data do encerramento do processo, momento adequado para determinar qual o valor da remuneração variável, para cujo cálculo são necessários outros elementos para além do valor do produto da venda, tais como os montantes necessários para pagamento das dívidas da massa e das custas dos processos judiciais pendentes à data da declaração de insolvência, grau de satisfação dos créditos reclamados.
XXII.–Estatui o n.º 10 do art.º 29º da Lei nº 22/2013 de 26.2 que, nos casos em que a administração da massa insolvente ou a liquidação fiquem a cargo do administrador da insolvência e a massa insolvente tenha liquidez, os montantes referidos nos números anteriores são diretamente retirados por este da massa, mas tal só poderia ocorrer após a liquidação do ativo, nos termos do art.º 29º n.º 1 e n.º 5 da mencionada lei.
XXIII.–O arguido apropriou-se consciente e intencionalmente das verbas da conta bancária da recorrente, quando não o poderia ter feito, antes do apuramento de todos os encargos a suportar pela massa e da liquidação do ativo; só após este momento tinha legitimidade legal para o fazer.
XXIV.–A conduta do arguido, ao apropriar-se das quantias pertencentes à massa insolvente recorrente, configura sim um facto ilícito, violador dos normativos legais vigentes, aos quais o mesmo se encontrava vinculado no exercício das suas funções e,
XXV.–um facto censurável, na medida em que o Arguido desempenhava funções de administrador judicial há várias décadas e, para além disso, é Advogado, tinha o conhecimento, experiência na função e era conhecedor do regime jurídico aplicável aos processos de insolvência, em especial quanto ao pagamento de remunerações.
XXVI.–Revela-se difícil ou mesmo impossível de crer, para um homem médio com a profissão, conhecimento e experiência do arguido, tendo em conta a sua profissão, que se tenha apropriado de tais quantias, sabendo que as mesmas não lhe pertenciam, “por acreditar que (…) lhe eram devidas a título de remuneração e provisão para despesas, bem assim como que, na qualidade de administrador de insolvência, poderia fazer-se pagar das mesas”.
XXVII.–Com o devido respeito, bastaria atentar à matéria de facto, fundamentação e conclusões do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, fornecido pelo próprio arguido.
XXVIII.–Esta é uma questão essencial ao conhecimento do pedido de indemnização civil, interligando-se com o mesmo, na medida em que está em causa o conhecimento da licitude ou ilicitude da conduta do arguido se apropriar das quantias que se apropriou.
XXIX.–Assim, a sentença recorrida foi proferida em violação do disposto nos artigos 29º n.º 1, n.º 5 e n.º 10 da Lei nº 22/2013 de 26.2, devendo a mesma ser revogada e ser substituída por outra que conheça e defira o pedido de indemnização cível.
(…)».

3.–O recurso foi admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo.

4.–Notificado o Ministério Público do recurso apresentou resposta, admitindo assistir razão à recorrente quanto a uma parte do fundamento do recurso, devendo ainda assim ser o mesmo julgado improcedente; formula as seguintes conclusões: [transcrição]
«(…)
1.-O legal representante da Massa Insolvente de AA, inconformado com a decisão proferida por sentença no âmbito do presente processo, que absolveu o arguido BB, da prática de 1 (um) crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal, e igualmente o absolveu do pedido de indemnização cível deduzido por aquela, dela veio interpor recurso.
2.-Alega, em síntese, que a Sentença proferida violou o disposto no artigo 29.º, n.ºs 1, 5 e 10 da Lei n.ºs 22/2013, de 26 de fevereiro.
3.-O Pedido de indemnização cível deveria ter procedido.
4.-Assiste razão ao Recorrente, quando à violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs 5 e 10 da referida Lei.
5.-Com efeito, o administrador de insolvência só poderá proceder ao pagamento da quantia devida a título de remuneração variável, após ser declarado encerrado o Processo de Insolvência.
6.-Como resulta da produção de prova, e das próprias declarações do arguido, este fê-lo intempestiva e precocemente, antes de tal encerramento.
7.-Assim, violou o arguido o disposto no artigo 29.º, n.º 5 da referida Lei.
8.-A Sentença recorrida não contemplou na sua decisão tal atuação do arguido.
9.-O arguido apropriou-se apenas, e no entanto, das quantias referidas no ponto 12 da matéria de facto dada como provada, €6.016,88, e não de €9.200,00.
10.-Tal facto encontra-se devidamente fundamentado na Sentença, suportando por robusta prova documental.
11.-Por outro lado, o Recorrente, sobre o qual recai o ónus de demonstrar o dano que sofreu com a conduta do arguido, não o fez.
12.-Pelo exposto, deve a Sentença Recorrida ser substituída, por uma que leve em conta a violação do artigo 29.º, n.º 5 da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro.
13.-No mais, não assiste razão ao Recorrente, não merecendo a presente Sentença, reparo.
(…)».

5.–Notificado o arguido do recurso, apresentou também resposta, pugnando por que seja negado provimento ao mesmo, com os seguintes fundamentos e conclusões [transcrição]:
«(…)
A-A recorrente põe em causa no seu recurso factos dados como provados com reflexo na tipicidade, ilicitude e culpa penal, o que faz na qualidade de demandante cível, que é.
B-Por ser demandante cível, o âmbito do recuso da recorrente deverá somente restringir-se aos factos essenciais relacionados com a responsabilidade civil, que não colidam com a possibilidade de alterar a factualidade central penal, ao menos no que diz respeito à integração no tipo de ilícito e à culpa penal.
C-Assim, a recorrente carece de legitimidade para, em suma, pôr em crise a sentença recorrida nos moldes em que o fez, já que são pressupostos da argumentação da recorrente factos com reflexo directo na tipicidade, ilicitude e culpa penal do arguido.
Ainda que assim não se entenda, o que se admite à cautela e dever de patrocínio,
D-A recorrente alega que o Tribunal a quo deu como provado que o arguido logrou fazer sua a quantia de € 6.016,88, ciente de que não lhe pertencia, nem que lhe eram devidas.
E-Não obstante tal factualidade ser insusceptível de ser alterada, a verdade é que também a recorrente não apresenta nem indica qualquer meio de prova do qual resulte o contrário.
F-A recorrente alega que inexistia qualquer valor nas contas bancárias da massa insolvente aquando da remoção do arguido como AI; sucede que nunca tal questão se colocou, nem na acusação proferida pelo Ministério Público, nem no decurso da audiência, razão também pela qual não se verificou qualquer alteração não substancial de factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º do CPP.
G-Portanto, decidiu bem o Tribunal a quo ao ter dado como provado o que vinha referido na acusação proferida pelo Ministério Público: “o arguido, BB, na qualidade de Administrador de Insolvência e, por esse motivo, autorizado a movimentar a conta da Massa Insolvente de AA, (…) transferiu a quantia de € 2.250,00 (…) e, em ... de ... de 2014, a quantia de € 3.776,88 (três mil, setecentos e setenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos), para a conta n.º ... sediada no, à data, ..., por si titulada”, não fazendo qualquer sentido a recorrente invocar a existência de um dano na sua esfera no montante de € 9.200,00.
H-A recorrente refere que o credor hipotecário suportou o valor correspondente às custas judiciais, mas que não o fez por sua própria e livre iniciativa, o que, na verdade, se reveste de irrelevância para a apreciação tanto da questão criminal, como da perspectiva da verificação dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual do arguido.
I-A recorrente alega o facto de ter uma dívida no valor de € 3.676,88, correspondente às custas judiciais; todavia, nunca fez prova da existência de um reconhecimento de dívida perante o credor hipotecário e que por força do mesmo a massa insolvente incorreu em dano.
J-A recorrente refere que o prejuízo que o arguido causou à recorrente foi de €9.200,00 e não de € 6.016,88.
K-A verdade é que, mais uma vez, tal factualidade não consta sequer da acusação, não foi objecto de produção de prova no decurso do julgamento, nem de qualquer alteração, nos termos do disposto no artigo 358.º do CPP, tendo resultado provado pelo Tribunal a quo que o arguido transferiu o valor de € 6.016,88, devendo desconsiderar-se tal fundamento no presente recurso.
L-A recorrente alega um dano na massa insolvente de tal forma que foi o credor hipotecário quem suportou o valor das custas judiciais.
M-Ora, tal argumento é invocado e rebatido em simultâneo pela própria recorrente, já que reconhece que quem suportou as custas judiciais foi o credor hipotecário e não a massa insolvente; de forma que, a admitir-se um dano patrimonial, o mesmo terá ocorrido na esfera patrimonial do credor hipotecário e não na esfera da massa insolvente, não tendo, por tal motivo, a recorrente logrado provar a ocorrência de um dano.
N-A recorrente alega ainda que o caso vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em que o arguido se respaldou – e a douta sentença assim o considerou, e bem!, como provado - para transferir o valor da remuneração variável para uma conta por si titulada antes do encerramento do processo é diferente do caso dos presentes autos.
O-Contudo, no citado Acórdão, o AI retirou da massa insolvente o valor correspondente à remuneração variável em .../.../2012 e a verdade é que que ainda faltavam liquidar alguns bens móveis, sendo só em .../.../2013 que veio a ser proferido aquele que foi o definitivo despacho a julgar encerrada a liquidação do activo, o que o Venerando Tribunal da Relação do Porto considerou não configurar como infracção ao disposto no n.º 5 do artigo 29.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro,
P-Da mesma forma que se entende que, também no caso dos presentes autos, não tenha ocorrido qualquer violação do citado preceito por força de, no momento em que o arguido efectuou a transferência do valor da remuneração variável para uma conta por si titulada, não ter ainda ocorrido o encerramento da liquidação. No mais, nem o Tribunal a quo considerou – posição que se sufraga - que tal questão tenha qualquer reflexo na apreciação da responsabilidade civil extracontratual do arguido.
(…)».

6.–Subidos os autos, pelo Senhor Procurador Geral Adjunto do Ministério Público junto desta Relação foi emitido parecer mediante o qual entendeu ser parte ilegítima no recurso considerando que o mesmo versa exclusivamente o pedido de indemnização civil.

7.–Cumprido o disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.

8.–Realizado o exame preliminar, foi o processo remetido aos vistos e para julgamento em conferência, nos termos do preceituado no art. 419º/3, c) do Código de Processo Penal.

II–FUNDAMENTAÇÃO

QUESTÕES A DECIDIR
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.

Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1.ªQuestão prévia: legitimidade da recorrente enquanto demandante civil e âmbito do recurso interposto;
2.ªO Tribunal a quo deveria ter dado como provado que resultou da conduta do demandado civil um prejuízo para a recorrente de 9.200€?
3.ªDos factos provados resulta demonstrado que o demandado civil praticou ato ilícito e culposo, do qual resultou um prejuízo para a recorrente correspondente ao valor apropriado ilicitamente, gerador de responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar?

APRECIAÇÃO DO RECURSO

1.–A decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida na parte relevante [transcrição]:
«(…)
A fls. 385 e ss. dos autos, a Massa Insolvente de AA deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, BB, pugnando no sentido de ser o mesmo condenado a pagar-lhe um total de € 9.200 (nove mil e duzentos euros), acrescidos de juros vincendos, por conta do prejuízo que, alegadamente, lhe causou a conduta delituosa imputada ao demandado.
*
Após ter sido, expressamente, notificado para o efeito, o arguido, BB, apresentou contestação, que não foi admitida por extemporânea, rol de testemunhas e alguns documentos.
*
(…)

2.–FUNDAMENTAÇÃO

2.1.–Matéria de Facto Provada

Uma vez discutida e instruída a causa, com relevo para a decisão da mesma, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1.O arguido BB foi administrador de insolvência.
2.Manteve domicílio profissional na ....
3.No processo de insolvência n.º 812/14.8TBSXL que corre termos no Juiz 4 do Juízo do Comércio do Barreiro, em que é insolvente AA, por Sentença, proferida no dia 25 de Fevereiro de 2014, o arguido, BB, foi nomeado Administrador de Insolvência, fixando-se a sua remuneração em € 2.000 (dois mil euros), a pagar em duas prestações. e autorizando-se o mesmo a pagar as despesas que comprovasse nos autos, devendo ser adiantado ao mesmo, para o efeito, o montante de € 500,00 (quinhentos euros), também a pagar em duas prestações.

4.Por força e em resultado das funções para as quais foi nomeado, o arguido, BB, recebeu as quantias:
• de € 1.000,00 (mil euros), a título de remuneração, e de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de despesas, em 13 de Março de 2014,
• de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de despesas, em 18 de Junho de 2014, e
• de € 1000,00 (mil euros), a título de remuneração, em 22 de Abril de 2015.

5.–A massa insolvente era constituída por um único bem imóvel correspondente à fracção autónoma designada pela letra “M”, sita na freguesia da ..., ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrita na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ….
6.–Em 31 de Julho de 2014 o ... requereu a adjudicação da descrita fracção pelo montante de € 46.000,00 (quarenta e seis mil euros).
7.–No dia 19 de Agosto de 2014, o ..., a solicitação do Administrador de Insolvência, ora arguido, transferiu para a conta da Massa Insolvente de AA com o n.º ... a quantia de € 9.200,00 (nove mil e duzentos euros), correspondente a 20% do valor da sua proposta.
8.–Sucede que, o arguido, BB, na qualidade de Administrador de Insolvência e, por esse motivo, autorizado a movimentar a conta da Massa Insolvente de AA, em 25 de Agosto de 2014, transferiu a quantia de € 2.250,00 (dois mil, duzentos e cinquenta euros) e, em ... de ... de 2014, a quantia de € 3.776,88 (três mil, setecentos e setenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos), para a conta n.º ... sediada no, à data, ..., por si titulada.
9.–Em Setembro de 2014, o ... deu cumprimento às obrigações fiscais, procedendo à liquidação do IMT e I Selo devidos e informou o arguido, BB, que estava em condições de celebrar a escritura pública ou documento particular autenticado com vista à formalização da adjudicação do aludido imóvel, sem que este marcasse data para a realização da mesma.
10.–Muito embora tivesse sido notificado para o efeito, por despachos proferidos em 15.04.2015, 27.05.2015, 24.06.2015 e 14.09.2015. 10, o arguido, BB, desde Fevereiro de 2015, não mais prestou qualquer informação ao Tribunal, em concreto ao Processo de Insolvência n.º812/14.8TBSXL, nem depositou o valor que retirou da conta da massa insolvente, tendo acabado, em 23 de Novembro de 2015, por despacho proferido nesses outros autos, por ter sido determinada a remoção do arguido das suas funções.
11.–Por mensagem de correio electrónico remetida ao tribunal no dia ... de ... de 2016, o arguido, BB, viria a enviar cópia dos extractos bancários das contas de depósito à ordem e a prazo que abrira em nome da massa insolvente, atestando a permanência nesta última da quantia de € 3.215,65 (três mil, duzentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos).
12.–O arguido, BB, agindo na qualidade de Administrador de Insolvência, e aproveitando-se dos poderes de movimentação da conta bancária da massa insolvente, que por força daquela qualidade lhe foram conferidos, apropriou-se da quantia de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) disponível na referida conta, a qual lhe cumpria administrar por força da nomeação pelo Tribunal.
13.–Quis, com a conduta descrita, e logrou fazer sua tal quantia, de 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), pertencente à massa insolvente, depositando-a em conta bancária por si titulada, ciente de que não lhe pertencia.
14.–Isso fez por acreditar que tais quantias lhe eram devidas a título de remuneração e provisão para despesas, bem assim como que, na qualidade de Administrador de Insolvência, poderia fazer-se pagar das mesmas.
15.–Mantém-se primário e deixou de exercer a actividade de administrador de insolvência.
16.–Padece de doença crónica do foro respiratório e de depressão crónica.
17.–Já esteve internado na ..., entre 30 de Março e 24 de Abril de 2009, e, no ..., entre 27 de Novembro e 15 de Dezembro de 2017, tendo frequentado as sessões de hospital de dia daquela unidade hospitalar, entre 18 de Dezembro de 2017 e 25 de Janeiro de 2018.
18.–Mantinha-se em seguimento, em consulta externa de psiquiatria, no ano de 2020 e, ainda, se mantém, para além de medicado.
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2.2.–Matéria de Facto Não Provada

Inversamente, com interesse para a decisão a proferir, não ficou demonstrado:
a)-Que o arguido, BB, agiu de forma livre deliberada e consciente, sabendo que a conduta por si empreendida é proibida e punida pela lei penal;
b)-Que a demandante, Massa Insolvente de AA, sofreu um prejuízo no montante de € 9.200 (nove mil e duzentos euros), por força da actuação do arguido, BB, supra descrita.
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2.3.–Motivação da Decisão de Facto

A convicção do tribunal, quanto à matéria de facto provada e não provada, teve por base a análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Vejamos em que termos.
A este nível, o tribunal valorou, essencialmente, as declarações prestadas pelo arguido, BB, que, para além de elucidar o tribunal a respeito da sua actual situação de vida, confirmou a factualidade dada como provada, com excepção da vertida em 4, esclarecendo que não teve noção desta, porventura, em razão do estado de saúde – mental – deteriorado em que se encontrava, e que permanece convencido de que não recebeu quaisquer importâncias pecuniárias, tendo agido, em razão de tal convencimento, respaldado por jurisprudência que citou.
Mereceu credibilidade na medida em que as declarações que prestou se mostraram consistentes em si mesma e com a demais prova carreada para os autos, como, seguidamente, melhor se verá.
A pendência dos autos de insolvência a que se vem fazendo alusão, o respectivo decretamento, a nomeação do arguido, BB, na qualidade de administrador de insolvência, as quantias que lhe foram pagas por conta dos honorários devidos ao mesmo e provisão para despesas, no âmbito desses autos, o pagamento – de € 9.200 (nove mil e duzentos euros) - feito pelo sobredito credor da massa insolvente em questão, as interpelações feitas, no âmbito desses autos, ao, então, administrador de insolvência em funções e ora arguido, a resposta dada às mesmas e, finalmente, a sua remoção do cargo encontram-se documentados nas cópias e certidões extraídas desse processo de insolvência número 812/14.8tbsxl e informações solicitadas ao mesmo e juntas aos presentes.
Inquiridos na qualidade de testemunhas, confirmaram-no, de igual modo, o administrador de insolvência que sucedeu ao arguido, DD, e a, então, funcionária do mesmo, CC.
Já as transferências bancárias feitas pelo arguido, BB, como, desde logo, a que foi realizada pelo ..., para a conta bancária da sobredita massa insolvente, encontram-se documentadas nos extractos bancários e comprovativos de operações juntos aos autos, bem assim como nas informações bancárias remetidas a juízo, resultando dos primeiros que o remanescente – no valor de € 3.215,65 (três mil, duzentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos) – terá sido, efectivamente, transferido para a conta de depósitos a prazo aberta em nome da massa insolvente, no ..., ali tendo permanecido.
A respeito do estado de saúde do arguido, BB, e do respectivo impacto na sua capacidade de trabalhar ou até no que tange às tarefas mais elementares de auto-cuidado, bem assim como aos internamentos a que foi sujeito, consideraram-se, para além das declarações que prestou e consistentes com as mesmas, a documentação clínica remetida a juízo pela defesa e os depoimentos prestados pelos amigos EE e FF, os quais, por manterem convívio próximo com o mesmo, puderam confirmar que padece de depressão, há longos anos, tendo crises, no decurso das quais não é sequer possível, nas palavras do primeiro, “tirá-lo de casa ou sequer da cama”, e que chegou a estar internado por duas vezes, tendo atravessado uma das piores fases da sua vida, justamente, nos anos de 2013, 2014 e 2015, já depois de se ter separado da ex-mulher, que se encontrou, fortemente, medicado e, por força da medicação, com perdas de memória e lentificado.
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A final, e no que concerne ao passado criminal do arguido, BB, considerou o tribunal o respectivo certificado de registo criminal, de cuja análise resulta que não traz qualquer condenação averbada.
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Já no que concerne à factualidade dada como não provada, a mesma ficou a dever-se:
• no que se refere ao propósito do arguido, BB, e à noção que o mesmo tinha do carácter ilícito da sua conduta, ao teor das declarações que prestou, consistentes, em face (1) da jurisprudência vertida, entre o mais, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Julho de 2014, disponível em www.dgsi.pt, em que o primeiro se respalda (e, nos termos da qual, “o art. 29 nº 1, nº 5 e nº 9 da Lei 22/2013, de 26/2, faculta ao administrador de insolvência que por decisão própria e auto-liquidação, retire da massa insolvente os montantes relativos à sua remuneração e despesas”), (2) dos valores concretos que resulta da documentação bancária remetida a juízo que o mesmo transferiu para a sua conta bancária, equivalentes, justamente, aos montantes devidos a título de remuneração fixa e provisão para despesas, por um lado, e à remuneração variável, e do destino que deu ao remanescente, deixando-o ficar depositado em conta da massa insolvente, e, finalmente, (3) da informação coligida junto do processo de insolvência a respeito das datas em que, com referência a esses autos, foram realizados os pagamentos devidos ao mesmo, especialmente, o último, no valor de € 1.000 (mil euros), somente, em 22 de Abril de 2015, ou seja, em data posterior à data em que foram realizadas aqueloutras transferências bancárias;
e
• no que tange ao prejuízo, alegadamente, sofrido pela demandante, ao facto de resultar da análise da documentação bancária remetida a juízo que o arguido, BB, só fez suas as quantias mencionadas na acusação pública deduzida – num total de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) - e não o remanescente – no valor de € 3.215,65 (três mil, duzentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos) – que deixara ficar depositado em conta de depósitos a prazo, de resto, vencendo juros, de acordo com informação bancária vertida a fls. 317, e, por outro lado, à circunstância de resultar da prestação de contas apresentada pelo administrador de insolvência que sucedeu ao arguido, DD, e respectiva documentação de suporte, cujo teor, de igualmente, se valorou, que foi o credor hipotecário (e não a massa insolvente) quem suportou o pagamento das custas processuais, de resto, na sequência de despacho proferido nos autos de insolvência, em 11 de Dezembro de 2017, a determiná-lo, conforme se extrai da cópia junta aos presentes autos, e das notas de adiantamento de fls. 295 e ss. que foi o I.G.F.EJ. quem pagou ao arguido, BB, as importâncias pecuniárias fixadas, a título de remuneração fixa e provisão para despesas, na sentença proferida nos sobreditos autos de insolvência.
A este passo, e fixados que estão os factos, vejamos qual o direito aplicável ao caso dos autos.
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2.4.–Subsunção dos Factos ao Direito

Imputa-se ao arguido, BB, a prática, como autor material, de um crime de peculato, p. e p. no artigo 375.º, número 1, do Código Penal, onde se estabelece que
1-O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

A norma penal transcrita tem em vista a tutela de bens jurídicos patrimoniais, mas também da probidade e fidelidade dos funcionários, ressaltando da sua leitura que são elementos típicos do crime de peculato:
• que o agente seja um funcionário para efeitos do artigo 386º do C. P.;
• que tenha a posse do bem (dinheiro ou coisa móvel) em razão das suas funções;
• que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro/coisa móvel;
• que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse, em razão das suas funções, e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.
Pune-se a apropriação ilegítima, por banda de quem, sendo “funcionário” e, em razão dessa sua qualidade, acedeu a algo e, em benefício próprio ou de terceiro, a faz sua.
Mais se estabelece, desta feita, no artigo 386.º do Código Penal que, para efeito da lei penal, a expressão funcionário abrange, entre o mais,
c)-Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função administrativa ou jurisdicional”.
Pode ler-se, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2023, disponível em www.dgsi.pt, com interesse para a decisão a proferir, a este propósito, que:
“(…) o administrador de insolvência participa no desempenho da atividade judicial de composição dos interesses dos credores e do insolvente no âmbito de um processo judicial, sendo nomeado pelo juiz do processo (art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26-02) razão pela qual, durante o período em que desempenhar tais funções deve ser considerado, para efeitos penais, funcionário abrangido pela al. c) do n.º 1 do art. 386.º do CP.”
Vejamos, então, o que sucede no caso em apreço.
Mostra-se provado que, tendo acesso a conta bancária da Massa Insolvente de AA, na qualidade de administrador de insolvência nomeado, o arguido, BB, transferiu da mesma, para conta bancária de que era titular, a quantia pecuniária de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), fazendo sua.
Há, assim, apropriação por banda de um “funcionário” de dinheiro a que acedeu por força do exercício das suas funções.
A verdade é, porém, que não ficou demonstrado que o arguido, BB, tivesse agido ciente da censurabilidade da sua conduta, antes que, não tendo recebido parte da remuneração que lhe era devida e convencido de que, a esse título, nada tinha recebido, de resto, efectuou as transferências supra transcritas, respaldado em jurisprudência vertida em acórdão do Tribunal da Relação do Porto a que supra se aludiu.
Assim e porque, conforme se pode ler em acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5 de Maio de 2021, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/200926/, “impõe-se que, ao actuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige-se a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.º do Código Penal”, forçoso se torna concluir que não está preenchido o tipo subjectivo do ilícito em questão e, consequentemente, pela absolvição do arguido.
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2.5.–Do Pedido de Indemnização Civil

Prevê o artigo 377.º, número 1, do Código de Processo Penal que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido sempre que o pedido vier a revelar-se fundado”.
A verdade é, porém, que – conforme resulta do que acima já se deixou escrito – não ficou demonstrado que a actuação do arguido, BB, tivesse provocado um dano à demandante, Massa Insolvente de AA, pressuposto essencial do direito a indemnização, em conformidade com o preceituado no artigo 483.º do Código Civil, devendo, consequentemente, o arguido/demandado ser, integralmente, absolvido também do pedido de indemnização civil contra si formulado.
(…)».

2.–Questão prévia: legitimidade da recorrente demandante civil e âmbito do recurso interposto
Pretende a recorrente, na qualidade de demandante civil, reverter a decisão absolutória proferida também quanto ao pedido de indemnização civil, defendendo que, ao contrário do julgado provado em primeira instância:
- o arguido transferiu para a sua conta bancária € 9.200,00, e não o valor de € 6.016,88;
- foi essa a quantia que fez sua, ciente de que não lhe pertencia, razão pela qual, a massa insolvente sofreu um dano de € 9.200,00.
Considerando, depois, verificadas a ilicitude da conduta por violadora do disposto no art. 29º/5 do Estatuto do Administrador da Insolvência quanto ao modo pagamento da remuneração variável e a imputação subjetiva dessa conduta ao demandado civil, a título de culpa, peticiona que nesta instância se julgue procedente o pedido de indemnização civil formulado.
Defende o demandado civil, por seu lado, que por ter a qualidade de demandante cível, a recorrente não pode pôr em causa no seu recurso factos dados como provados com reflexo na tipicidade, ilicitude e culpa penal, devendo somente restringir-se aos factos essenciais relacionados com a responsabilidade civil, que não colidam com a possibilidade de alterar a factualidade central penal, ao menos no que diz respeito à integração no tipo de ilícito e à culpa penal.
Entende, nesse sentido, que a recorrente carece de legitimidade para, em suma, pôr em crise a sentença recorrida nos moldes em que o fez, já que são pressupostos da argumentação da recorrente factos com reflexo direto na tipicidade, ilicitude e culpa penal do arguido.
Vejamos.
Antes de mais, contrariamente ao propugnado pelo demandado/recorrido, a recorrente, na qualidade de demandante civil, tem legitimidade para o recurso quanto à parte da decisão em matéria civil, que foi absolutória, julgando improcedente o pedido que oportunamente formulara contra o arguido/demandado civil, e que fora liminarmente admitido.
É o que decorre linearmente do disposto nos arts. 399º e 400º/2 e 3, do Código de Processo Penal, nos termos dos quais é admissível o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil, mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
A alçada dos tribunais de primeira instância é de 5.000,00€, como prescrito pelo art. 44º da L. 62/2013, de 26/08, pelo que o valor peticionado de €9.200, tendo ocorrido total decaimento no pedido, supera essa alçada.
Em suma: o recurso é admissível e a recorrente, demandante civil, é nele parte legítima.
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Atentas as conclusões e pedido formulado no recurso, não vemos ainda que o mesmo exceda o âmbito restrito da decisão em matéria civil, como pretendido pelo arguido.
Expliquemos melhor.
O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem que ser fundado na prática de um crime, segundo estatui o art. 71º do Código de Processo Penal.
Como assim, tem necessariamente por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado, existindo, nessa medida, uma vinculação temática do pedido cível aos factos da acusação ou da pronúncia sempre que o pedido seja conhecido mesmo depois de extinto o procedimento criminal ou proferida decisão criminal absolutória.
Trata-se de uma decorrência do princípio da adesão e da regra nele ínsita da obrigatoriedade de dedução do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime no processo penal respetivo – arts. 71º e 72º, do Código de Processo Penal.
São, de resto, conhecidas as virtudes desta adesão da ação cível ao processo penal: desde a de permitir resolver neste processo todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes, sem necessidade de recurso a mecanismos autónomos, com evidente economia de tempo e de meios, passando pela certeza e segurança jurídicas por via da salvaguarda da possibilidade de julgados contraditórios acerca do mesmo ilícito, contribuindo para o prestígio institucional.
É, deste modo, consagrada a interdependência entre a ação penal, destinada a aplicar as reações criminais adequadas à infração, e a ação civil, destinada à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infração tenha dado causa. [1]
Como se aduz no acórdão do STJ de 10/07/2008 citado na nota [i], que aqui seguimos de perto, «a interdependência das ações significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objeto), sendo a ação penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a ação civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil.».
Por isso, nos termos do preceituado pelo art. 129º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil quanto aos respetivos pressupostos materiais; apenas processualmente, a formulação do pedido de indemnização civil é regulada pela lei processual penal.
Assim é que, a interdependência das ações significa independência substantiva e dependência («adesão») processual da ação cível relativamente ao processo penal.
Substantivamente, como princípio geral da responsabilidade por factos ilícitos, dispõe o art. 483º do Código Civil que são pressupostos cumulativos daquela (1) a existência de um facto voluntário, (2) a ilicitude da conduta, (3) a imputação subjetiva do facto ao agente (4) a existência de um dano, (5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Verificados que estejam estes pressupostos determinativos da responsabilidade civil, nasce a obrigação de indemnização a cargo do lesante nos termos dos arts. 562º, 564º/1 e 566º, todos do Código Civil.
Processualmente, terá que existir um processo penal, no qual seja deduzida acusação ou proferida pronúncia contra o arguido pela prática de um crime, para que a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, o lesado, possa formular naquele processo penal e em momento próprio, o respetivo pedido de indemnização civil – arts. 71º a 74º e 77º, do Código de Processo Penal.
Esta dependência processual leva a que, segundo o art. 84º do Código de Processo Penal, uma vez decidido o pedido civil, ainda que a decisão seja absolutória, constitua esta caso julgado nos exatos termos do caso julgado formado pelas sentenças civis.
Já da independência substantiva resulta que, nos termos do art. 377º/1 do Código de Processo Penal, «A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado.».
Temos, assim, que, pese embora a falada interdependência das ações, penal e civil, se mostra salvaguardada a autonomia da responsabilidade civil em relação à responsabilidade criminal, permitindo que, mesmo no caso de absolvição do arguido quanto à parte criminal, o tribunal conheça da sua responsabilidade civil.
Do exposto decorre, como é bom dever, que os factos cuja alegação e apuramento se mostra necessário para aferir e atribuir responsabilidade criminal a um agente, são coincidentes com aqueles de que depende a sua responsabilização civil, mormente no que diz respeito à caracterização do ato ilícito gerador dessas responsabilidades – pressupostos da responsabilidade civil acima assinalados em (1) e (2).
Específica da instância cível enxertada no processo penal será já a factualidade atinente à definição do dano reparável, assim como do nexo causal entre esse dano e o facto ilícito.
Não obstante, como referido no indicado aresto do STJ, «o itinerário probatório é exactamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que em relação a esta há, ainda, que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito.».
É claro que esta coincidência da base factual da ação penal e da ação cível, quando a primeira seja julgada improcedente, coloca questões que se prendem com o caso julgado formado pela decisão na parte penal absolutória [2] e com a presunção de inocência do arguido, simultaneamente demandado civil, assim mantida intacta. [3]
Isto porque, a decisão que recair sobre o pedido de indemnização civil não pode ferir o caso julgado que se formou em relação à responsabilidade criminal, ou, noutra perspetiva, pôr em causa a presunção de inocência do arguido absolvido do crime.
Nesse equilíbrio delicado, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de não ser admissível a impugnação que pretenda colocar em causa a matéria de facto que suporta a responsabilização criminal, podendo o recurso relativo à matéria cível apenas abarcar a impugnação da decisão sobre os factos proferida no que toca à matéria específica do pedido cível, ou seja, ao prejuízo reparável – neste sentido, o acórdão do STJ de 10/12/2008, relatado por Santos Cabral no processo 08P3638.
De um prisma positivo, extrai-se que, tendo por base os factos provados no processo penal, com abertura para discussão da matéria de facto especificamente atinente à parte cível, relativa ao prejuízo e ao nexo causal entre o facto ilícito e esse prejuízo, nada impede que se profira decisão condenatória cível.
Neste sentido, no acórdão do STJ de 10/07/2008, relatado por Henriques Gaspar, no processo 08P1410[4], se conclui que, sendo o arguido absolvido de um crime «e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco.» (negrito nosso).
Acompanhando, pois, esta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é de afastar o entendimento segundo o qual, julgada improcedente a ação penal por se considerar não verificados os elementos típicos do crime numa análise subsuntiva dos factos provados ao direito, se exclua, sem mais, uma condenação cível no âmbito da responsabilidade por facto ilícito.[5]
Ponto é que no labor em torno da apreciação do pedido cível, mormente no que tange aos factos, sejam respeitados os limites impostos pelo caso julgado penal formado pela decisão absolutória, e a presunção de inocência do arguido daí reminiscente.
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Postas estas premissas e transpondo as mesmas para o caso em mãos, somos a concluir que o facto de ter sido proferida sentença absolutória do arguido em primeira instância, sem recurso quanto à parte penal, que, assim, transitou em julgado (como bem anotou o Senhor PGA no seu parecer), não impede que, na parte cível, a causa prossiga os seus termos, mediante apreciação do recurso interposto pela demandante civil restrito à parte cível.
E percorrendo a motivação e conclusões do recurso, constatamos que a recorrente desenvolveu a sua argumentação com respeito por tal restrição, pois que, quanto aos factos, ataca apenas os que dizem respeito ao invocado prejuízo e nexo causal entre o mesmo e a conduta do arguido/demandado civil, louvando-se nos demais factos dados como provados que, juntamente com a pretendida reversão do facto não provado do “prejuízo”, lhe permitem, aplicando-lhes o direito, reafirmar a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil daquele.
Na verdade, como resulta linear da sentença recorrida, o fundamento do afastamento da responsabilidade criminal do arguido residiu na não prova dos factos atinentes ao dolo e consciência da ilicitude da conduta – a) dos factos não provados; e o fundamento do afastamento da responsabilidade civil do mesmo arguido, desta feita como demandado civil, residiu, por sua vez, na não prova do alegado prejuízo invocado no pedido de indemnização civil – b) dos factos não provados.
Ora, pese embora não se autonomize no recurso a impugnação da matéria de facto provada e não provada, resulta claro, quer da motivação, quer das conclusões, que a recorrente ao nível da decisão sobre os factos, apenas a põe em causa na parte em que se deu como não provado o alegado prejuízo que para si terá resultado do facto imputado ao arguido/demandado – 1. a 16. da motivação; no mais, pressupondo um juízo (que na realidade não foi expressamente feito na sentença recorrida) de não ilicitude e não censurabilidade da conduta do arguido, argumenta juridicamente e pugna por que seja afirmada essa ilicitude e censurabilidade e, nessa medida, preenchido também esse pressuposto da responsabilidade civil do demandado/recorrido – 17. a final, da motivação.
E com este âmbito, o recurso não pode deixar de ser admissível, reconhecendo-se à recorrente legitimidade para o mesmo.
Com efeito, atentando no teor da sentença recorrida, facilmente se perceciona que aí não se aborda a questão da ilicitude da conduta, omitindo-se pronúncia acerca do preenchimento dos elementos objetivos típicos do crime de peculato pelo qual o arguido/demandado vinha acusado, e avançando-se para a conclusão de que o mesmo teria atuado sem consciência da ilicitude da conduta, como que considerando-se implicitamente verificados os demais elementos típicos.
E se, mercê do já citado caso julgado penal, com esta apreciação e decisão de absolvição daí extraída, se mostra nesta fase arredada do objeto do recurso a discussão relativa à consciência da ilicitude penal, para efeitos de responsabilidade penal, ainda que essa falta de consciência pudesse advir de erro censurável do arguido, nos termos do disposto no art. 17º do Código Penal (questão também não abordada na decisão recorrida), o mesmo não ocorre quanto à possibilidade de censura da conduta a título de mera culpa ou negligência em sede civil, posto que sobre essa matéria não assumiu o Tribunal a quo qualquer posição.
De resto, também em sede de apreciação do pedido de indemnização civil, o Tribunal a quo usa da mesma técnica de avançar diretamente para a apreciação do pressuposto da verificação de um dano, considerando-o não verificado para justificar a decisão de o julgar, sem mais, improcedente, deixando, mais uma vez, implícita a verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil em relação ao demandado.
E assim sendo, sobrará para discussão no âmbito do presente recurso, a questão de facto relativa à prova do prejuízo resultante para a demandante/recorrente e nexo de imputação do mesmo à ação do demandado civil, mas também, tendo por base a factualidade provada, as questões jurídicas da ilicitude e censurabilidade dessa ação à luz da lei civil.
Nesta medida, em abstrato, tendo presentes as considerações acima tecidas, a procedência do presente recurso e, por essa via, do pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pela recorrente, não é suscetível de ofender o caso julgado formado pela decisão penal absolutória, tão pouco a presunção de inocência daquele enquanto arguido.
Assim, assente a legitimidade da recorrente, temos que a apreciação do recurso terá, pois, este exato âmbito como objeto: o da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil em relação ao demandado, em especial, o da verificação de um prejuízo na esfera patrimonial da demandante/recorrente e nexo causal entre o facto ilícito (provado) e esse concreto prejuízo, da ilicitude da conduta e da sua censurabilidade, aqui restrita à apreciação da mera culpa ou negligência.
Importa, então, metodologicamente começar pelos factos, definindo em função das questões suscitadas a esse propósito no recurso, qual a pauta de factos provados a considerar na subsequente subsunção aos pressupostos da responsabilidade civil.
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3.–Da impugnação da matéria de facto provada

Compulsados os termos do recurso, verificamos que não sendo invocado expressamente erro de julgamento, se pretende a reversão da decisão recorrida quanto à matéria de facto com base numa análise da prova que impõe decisão diversa da adotada.
Com efeito, não sendo aí autonomizada a impugnação da matéria de facto provada e não provada, a recorrente tece considerações mescladas de facto e de direito, das quais se depreende a sua discordância:
• quanto ao valor de que o arguido se terá apropriado indevidamente, que defende ser de 9.200€, e não de 6.016,88€ – 13. dos factos provados;
• quanto à não prova de que sofreu prejuízo nesse valor em resultado da atuação do arguido – b) dos factos não provados.
Deste modo, assumimos que a recorrente pretende invocar erro de julgamento, fazendo-o, todavia, sem observar o regime prescrito no art. 412º do Código de Processo Penal, seja na motivação, seja nas conclusões do recurso.
Senão vejamos.
Enquanto concretização do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, consagrado no art. 428º do Código de Processo Penal, segundo o qual os tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto, o erro de julgamento resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
O recurso visa, então, a reapreciação da prova gravada em primeira instância, impondo-se a sua audição pelo Tribunal de recurso, cujos poderes de cognição não se restringem ao texto da decisão recorrida, como acontece com os vícios previstos no art. 410º/2, do Código de Processo Penal, alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos nºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Assim, quando o recurso tem como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente em cumprimento desse ónus de especificação, indicar:
a)-os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-as provas que devem ser renovadas.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, indicando concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, como resulta dos n.ºs 4 e 6 do art. 412º do Código de Processo Penal.
O recurso da matéria de facto assim formulado permite que os poderes de cognição do tribunal de recurso se estendam à matéria de facto, e que, sendo o recurso, nessa parte, procedente, venha a ser modificada a decisão quanto a ela tomada na 1.ª instância, conforme preceitua o art. 431º/1,b) do Código de Processo Penal).
Todavia, conforme tem vindo a entender-se de forma pacífica na jurisprudência, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse; antes se destina a uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo do tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do art. 412º do Código de Processo Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Ora, no recurso em apreço, a recorrente incumpre de forma flagrante este ónus de indicar de forma adequada as provas que imporiam decisão diversa da tomada, mormente quanto ao valor que alegadamente teria sido apropriado pelo arguido/recorrido, indicado em 13. dos factos provados.
Limita-se, pois, a uma alusão sob o ponto 6. da motivação do recurso ao depoimento das testemunhas CC e DD, sendo que, tendo estes depoimentos sido gravados, conforme resulta das atas de audiência de julgamento de 12/10/2023 e de 31/10/2023, não indica as passagens desses depoimentos em que se funda a impugnação, a fim de as ouvirmos e confrontarmos com a demais prova, como previsto nos nºs 4 e 6 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Em suma: nem na motivação, nem nas conclusões do recurso, a recorrente indica as passagens da gravação dos testemunhos que imporiam decisão diversa da tomada quanto aos factos provados em 13., como requerido pelo disposto no art. 412º/3, a), b) e 4, do Código de Processo Penal.
O que sempre inviabilizaria qualquer convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões nos termos do art. 417º/3 do Código de Processo Penal, na medida que que não pode aperfeiçoar-se o que, devendo constituir uma síntese do que foi previamente alegado na motivação, não contém nessa motivação qualquer substrato de alegação que pudesse ser vertido para as conclusões, sendo, de resto, esse, motivo de rejeição do recurso por falta ou insuficiência de motivação–art. 414º/2 do Código de Processo Penal.[6]
É que, não contendo também o corpo da motivação a especificação exigida por lei, não estamos somente perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de deficiência substancial da motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insuscetível de aperfeiçoamento, com a consequência de o mesmo, nessa parte assim afetada, não poder ser conhecido.
Na verdade, o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado mediante resposta a convite à correção das conclusões, posto que o aperfeiçoamento destas não pode servir para modificar o âmbito recursivo naquela motivação previamente fixado; as conclusões aperfeiçoadas terão, pois, que manter-se no âmbito da motivação apresentada, sem se traduzirem numa reformulação do recurso.[7]
O recurso nesta parte não é, pois, admissível – art. 414º/2 do Código de Processo Penal.
*

Já no concernente à alegada existência de prejuízo patrimonial em resultado da conduta do arguido, e à decisão emitida de não se considerar provada, afigura-se-nos encontrar-se esta eivada de vício previsto no art. 410º do Código de Processo Penal, de conhecimento imediato e oficioso. [8]
Com efeito, afirmando-se na sentença recorrida não se ter provado a verificação desse prejuízo na esfera da recorrente, afigura-se-nos que o Tribunal a quo o faz incorrendo em erro notório na apreciação da prova, o qual envolve ainda uma argumentação juridicamente desacertada.

Estabelece o citado art. 410º/2 do Código de Processo Penal, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

c)-Erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer destas hipóteses, o vício, constituindo um defeito estrutural da decisão, terá de resultar do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; é, nessa medida, vedado o recurso a elementos estranhos ao texto da decisão – v.g. prova documentada ou quaisquer dados existentes nos autos, ainda que provenientes do julgamento - para fundamentar a verificação do vício.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que resultam numa decisão destituída de racionalidade lógica, tornando mesmo inviável uma decisão logicamente correta e conforme à lei.[9]
o Tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios evidenciados pela decisão recorrida, atendo-se a esta, e, não podendo saná-los por não ter disponíveis na decisão recorrida os elementos imprescindíveis à nova solução, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, pois que não há em caso algum lugar a análise da prova produzida, própria da impugnação ampla prevista no art. 412º/3 do Código de Processo Penal.
Ora, no caso em apreço, resulta do próprio texto da fundamentação da decisão recorrida que o Tribunal recorrido incorreu em erro manifesto na análise da prova, erro esse escorado por sua vez em erro de direito, do qual cumpre desde já conhecer.
Expliquemos melhor.
Justificou o Tribunal a quo esta decisão de dar como não provada a existência de um prejuízo na esfera patrimonial da massa insolvente recorrente, com a seguinte argumentação:
«(…)
• no que tange ao prejuízo, alegadamente, sofrido pela demandante, ao facto de resultar da análise da documentação bancária remetida a juízo que o arguido, BB, só fez suas as quantias mencionadas na acusação pública deduzida – num total de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) - e não o remanescente – no valor de € 3.215,65 (três mil, duzentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos) – que deixara ficar depositado em conta de depósitos a prazo, de resto, vencendo juros, de acordo com informação bancária vertida a fls. 317, e, por outro lado, à circunstância de resultar da prestação de contas apresentada pelo administrador de insolvência que sucedeu ao arguido, DD, e respectiva documentação de suporte, cujo teor, de igualmente, se valorou, que foi o credor hipotecário (e não a massa insolvente) quem suportou o pagamento das custas processuais, de resto, na sequência de despacho proferido nos autos de insolvência, em 11 de Dezembro de 2017, a determiná-lo, conforme se extrai da cópia junta aos presentes autos, e das notas de adiantamento de fls. 295 e ss. que foi o I.G.F.EJ. quem pagou ao arguido, BB, as importâncias pecuniárias fixadas, a título de remuneração fixa e provisão para despesas, na sentença proferida nos sobreditos autos de insolvência.».
Ora, do que deu o Tribunal a quo como provado em 12. e 13. resulta adquirido para o processo que o arguido:
• agindo na qualidade de Administrador de Insolvência, e aproveitando-se dos poderes de movimentação da conta bancária da massa insolvente, que por força daquela qualidade lhe foram conferidos, apropriou-se da quantia de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) disponível na referida conta, a qual lhe cumpria administrar por força da nomeação pelo Tribunal.
• fez sua essa quantia, depositada na conta bancária da massa insolvente e a esta pertencente, depositando-a em conta bancária própria ciente de que lhe não pertencia.
E tanto basta para se afirmar o prejuízo da massa insolvente como resultado da conduta do arguido.
Prejuízo neste sentido factual, comum, em que está utilizado, sendo sinónimo de perda ou dano, reconduz-se à ideia de perda de um bem ou de uma vantagem [10].
Esse prejuízo ou dano assume natureza patrimonial quando é suscetível de avaliação pecuniária, cabendo no conceito jurídico de dano patrimonial, tanto o «prejuízo causado nos bens e direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão» – dano emergente -, como «os benefícios que o lesado deixou e obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão»[11] – lucro cessante.
O dano patrimonial há-de assim medir-se pela diferença entre a situação real atual do lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria se não fosse a lesão, no mesmo momento – art. 566º/2 do Código Civil.
Ora, se, como provado, em 12. e 13., o arguido:
- se apropriou da quantia de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) disponível na conta bancária da massa insolvente ora recorrente e a esta pertencente, transferindo-a para uma sua conta bancária pessoal;
- quis e logrou com essa conduta fazer sua tal quantia, de 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), ciente de que não lhe pertencia;
evidente se torna que constituiu consequência direta de tal conduta a privação da massa insolvente de um bem que lhe pertencia, causando-lhe o prejuízo correspondente.
*

Dito isto, não se percebe com franqueza o que tem a ver com a verificação desse prejuízo saber quem pagou ou deixou de pagar as custas do processo e o que releva esse facto para efeitos da prova do prejuízo resultante da conduta do arguido para a titular das quantias apropriadas, a aqui recorrente.
De igual forma, é de rejeitar a tese ensaiada na resposta do demandado ao recurso de que caberia à recorrente provar a existência de uma dívida de custas judiciais atinentes ao processo de insolvência para se concluir pela existência de prejuízo – artigos 17.º e 18.º.
Trata-se, aliás, de factos sem relevo para a decisão a proferir nestes autos, e que não constam sequer do objeto do processo fixado pela acusação e pedido de indemnização civil (como é notado em 15.º da resposta do demandado civil ao recurso), sendo certo que a contestação do arguido não foi admitida por extemporânea; foram, pois, os mesmos trazidos à decisão pelo Tribunal a quo como forma de justificar a ausência de prejuízo da massa insolvente, sendo que com esse fundamento lhe indeferiu o pedido de indemnização civil.
Ao considerar esses factos, como considerou, conforme veremos infra, a reboque de um raciocínio e argumentação errados tendo em conta as normas legais aplicáveis, decidiu em contrário do que resultava da prova e dos demais factos dados como provados, efetuando uma apreciação manifestamente incorreta dessa prova.
Na verdade, de acordo com os factos dados como provados – e são apenas esses os que relevam para a decisão -, o prejuízo na esfera patrimonial da recorrente consumou-se assim que o arguido transferiu da conta bancária daquela para a sua pessoal a quantia em questão, sabendo que a mesma lhe não pertencia, pois que pertencia à massa insolvente, e fazendo-a sua, não a tendo, de resto, devolvido apesar das várias interpelações que lhe foram feitas – 10. dos factos provados.
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis, mas também quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra critérios legalmente fixados e/ou contra as regras da experiência comum, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente – neste sentido, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 15/02/2007, relatado por Costa Mortágua no processo 3174/06 – 5ª Secção, acessível em www.pgdlisboa.pt
Está em causa um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
No caso em apreço, como já referido, tendo o Tribunal recorrido dado como não provada a existência de um prejuízo para a recorrente em contrário da prova produzida e dos próprios factos que deu como provados, de 10. a 13., dos quais decorre linearmente a verificação desse prejuízo, com base numa argumentação ilógica e errada à luz das normas aplicáveis, incorreu, pois, em erro notório na apreciação da prova.
*

Expliquemos então porque assomam o raciocínio e argumentação desenvolvidos pelo Tribunal a quo para justificar a sua decisão, como ilógicos e errados.
Mesmo admitindo que foi o credor hipotecário a assumir o pagamento das custas do processo de insolvência e que a provisão de honorários e despesas foi paga pelo IGFEJ (factos que não foram alegados nem ficaram provados, contrariamente ao assumido pelo demandado em 19.º e 24.º, da resposta ao recurso, e apesar de tidos por assentes pelo Tribunal a quo), olvidou-se na decisão recorrida que, como assinala a recorrente, nos termos do art. 304º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a massa insolvente é a responsável pelo pagamento das custas do processo, constituindo estas e muitas outras despesas, dívidas da massa insolvente.
É o que resulta do preceituado no art. 51º/1 do CIRE, com a epígrafe «dívidas da massa insolvente», nos termos do qual, são dívidas da massa insolvente, nomeadamente:
«(…)
a)-As custas do processo de insolvência;
b)-As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores;
c)-As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;
d)-As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;
(…)» (negrito nosso).
Ainda segundo o preceituado no art. 29º/1 do EAI, relativo ao pagamento das respetivas remunerações, ressalvando os casos de insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e dívidas da massa, previstas nos arts. 39º e 232º do CIRE, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pela massa insolvente.
O adiantamento pelo IGFEJ ou pelos credores, das despesas e remuneração fixa devidas ao AI é realizado apenas quando inexista liquidez na massa insolvente, mas fica pendente de reembolso assim que essa liquidez existir, nomeadamente por via da liquidação do ativo – cfr. art. 29º/8 a 13 e 30º, do Estatuto do Administrador de Insolvência.
Ou seja, ainda que o IGFEJ - isto é, o Estado, isto é, todos nós contribuintes ativos - tenha adiantado o pagamento ao Administrador da Insolvência (AI) da parte fixa da respetiva remuneração e provisão para despesas, e que o credor hipotecário tenha sido chamado a efetuar o pagamento das custas do processo (em observância do disposto no art. 164º/4 do CIRE, na redação então vigente), essa circunstância não altera a natureza da dívida, tão pouco o responsável pelo seu pagamento, pois que continua a ser uma dívida da massa insolvente, dívida essa que, não sendo caso de insuficiência da massa (que não é o mesmo que mera falta de liquidez, como expressamente afirma o nº 5 do art. 30º do EAI), será sempre a suportar por esta.
A própria remuneração variável, cujo pagamento é invocado pelo demandado para justificar a transferência bancária realizada (devida apenas quando há liquidação de ativo patrimonial), é calculada em função do resultado da recuperação do devedor, ou seja, do montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa ou da liquidação da massa insolvente – art. 23º/2 e 4, do Estatuto do Administrador de Insolvência, aprovado pela L. 22/2013, de 26/02 (doravante EAI).
Mais: sendo essas dívidas da massa insolvente pagas com prioridade sobre os créditos reclamados e reconhecidos aos credores da insolvência, o remanescente após pagamento das mesmas, beneficiará necessariamente estes credores e, em última análise, no caso de a liquidação permitir o pagamento da integralidade dos créditos e das dívidas da massa insolvente, deixando um remanescente, o próprio devedor, a quem o AI teria que entregar o respetivo saldo – cfr. o disposto no arts. 172º a 177º e 184º/1, do CIRE.
De resto, resulta da certidão remetida aos autos em 22/11/2019, relativa ao processo de insolvência – contendo o relatório anual do fiduciário, previsto no art. 240º/2 do CIRE, certidão com referência CITIUS 24717778 - que o produto da liquidação foi insuficiente para o pagamento dos créditos reconhecidos sobre a insolvência, existindo passivo restante que aguarda pagamento no âmbito do incidente respetivo, pelo que as quantias que se considerarem pertencer à massa insolvente serão afetadas ao pagamento das dívidas ainda subsistentes, e, pagas estas, aos credores e ao devedor.
Não faz, assim, qualquer sentido, sendo absolutamente destituído de lógica o raciocínio desenvolvido na decisão recorrida que, da forma de pagamento de dívidas da massa insolvente e de factos que estão fora do objeto do processo, numa argumentação errada à luz das normas aplicáveis, acabou a extrair consequências para a prova dos factos que, com o devido respeito, se mostram manifestamente erradas.
*
Em suma: resultando da matéria de facto provada de 10. a 13. dos factos provados, em conjugação com as normas legais aplicáveis, a efetiva verificação de prejuízo para a recorrente/demandante civil pelo valor correspondente à quantia depositada na conta bancária da massa insolvente apropriada pelo demandado civil, como consequência direta e necessária desta apropriação, e constando da própria decisão todos os elementos de facto (não se mostrando necessário recorrer a análise da prova, apenas possível em sede de impugnação ampla), impõe-se, nessa medida, a modificação dessa decisão na parte correspondente, como prescrito pelo art. 431º/a) do Código de Processo Penal.
Como assim, e nos termos do preceituado no art. 410º/1, c) e 431º/a), do Código de Processo Penal, a decisão recorrida será modificada quanto ao facto não provado sob a alínea b) que passará a dar-se como provado nos seguintes termos:
«A demandante, Massa Insolvente de AA, sofreu um prejuízo no montante de 6.016,88€, traduzido na redução patrimonial correspondente, por força da atuação do arguido, BB, supra descrita.».
Consequência da apreciação precedente, de rejeição do recurso quanto à impugnação ampla, manter-se-á como facto não provado que o prejuízo sofrido pela demandante civil tivesse sido de €9.200 (nove mil e duzentos euros).
É, pois, nesta parte julgado procedente o recurso.
*

3.–Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil
Defende a recorrente que, além do prejuízo que sofreu em consequência da atuação do demandado civil, ser esta atuação ilícita e censurável, estando nessa medida verificados os pressupostos da responsabilidade civil, a determinar a procedência do pedido de indemnização civil contra ele deduzido.
Sobre esta matéria o Tribunal a quo não se pronunciou em concreto, pois que se bastou com a não prova da existência de prejuízo para a recorrente como consequência da conduta ilícita do arguido, como vimos de forma errada.
No entanto, ao assinalar esta como a única falha no tocante aos pressupostos da responsabilidade civil, o Tribunal a quo pressupõe implicitamente que os demais estão verificados.
Pois bem.
Sem prejuízo dos limites acima delineados quanto ao caso julgado formado pela decisão recorrida na parte penal, entendemos que, em face dos factos provados, com a ampliação acabada de realizar, se mostram efetivamente verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil em relação ao aqui demandado civil.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art. 483º do Código Civil:
«1.-Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2.-Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.».
Temos, assim, que a obrigação de indemnizar com origem na responsabilidade civil depende, por regra, da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (1) a existência de um facto do agente, voluntário, (2) a ilicitude da conduta, (3) a imputação subjetiva do facto ao agente (4) a existência de um dano, (5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.[12]
O facto voluntário reconduz-se a um comportamento ou conduta humana que não tem de consistir necessariamente numa ação, podendo traduzir-se numa omissão, posto que seja dominável pela vontade; nesse caso, porém, como resulta do disposto no art. 486º, a imputação ao agente da conduta omissiva exige que sobre ele recaia o dever de praticar o ato omitido, uma vez que inexiste um dever genérico de evitar a ocorrência de danos.
Já no tocante à ilicitude da conduta, pode a mesma revestir duas modalidades: a violação de direitos subjetivos alheios – mormente os direitos absolutos, reais ou pessoais – ou a violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios -aqui se incluindo todas as normas que tutelando certos interesses públicos, visam em simultâneo proteger determinados interesses particulares, como as normas incriminadoras, as definidoras de contraordenações, de regras de direito administrativo, de direito da economia, etc..
Como ensinam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela[13], traduzindo-se num juízo de valor emitido pela lei sobre o facto, a ilicitude não tem que ser provada, tratando-se de matéria que cabe dentro da esfera do conhecimento oficioso do tribunal.
Para que o facto ilícito gere a obrigação de indemnizar é ainda necessário que esse facto possa ser subjetivamente imputável ao seu autor, ou seja, que tenha este agido com culpa, seja sob a forma de dolo, seja de negligência (mera culpa ou culpa em sentido estrito), culpa que é nesta sede, cível, apreciada pela diligência de um bonus pater familias em face das circunstâncias de cada caso – art. 487º/2 do Código Civil.
Atuar com culpa significa agir em termos tais que a conduta merece a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo, e em que grau podia e devia ter agido de modo diferente.
Finalmente, é necessário que do facto ilícito e culposo resulte um dano – o prejuízo, a perda “in natura” que o lesado sofreu, como consequência do facto, nos seus interesses (materiais, espirituais ou morais) – e que interceda um nexo de causalidade entre o facto e o dano; é ainda necessário que esse dano se produza no círculo de interesses que a lei tem em vista tutelar.
Postas estas premissas, e como resulta da apreciação já feita quanto aos factos, resultou provado com relevo para a integração destes pressupostos que:
• O demandado civil BB exerceu as funções de administrador de insolvência para que foi nomeado em 25/02/2014 no processo de insolvência n.º 812/14.8TBSXL, em que é insolvente AA, tendo a sua remuneração aí sido fixada em € 2.000 (dois mil euros), a pagar em duas prestações, autorizando-se o mesmo a pagar ainda as despesas que comprovasse nos autos, sendo-lhe adiantado para o efeito o montante de € 500,00 (quinhentos euros), também a pagar em duas prestações – 1. a 3.;
• Nessa sequência, por força e em resultado do exercício dessas funções, o arguido recebeu as quantias seguintes:
• de € 1.000,00 (mil euros), a título de remuneração, e de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de despesas, em 13 de Março de 2014,
• de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de despesas, em 18 de Junho de 2014, e
• de € 1.000,00 (mil euros), a título de remuneração, em 22 de Abril de 2015.
• A massa insolvente era constituída por um único bem imóvel que o credor hipotecário ... requereu lhe fosse adjudicado pelo montante de € 46.000,00 (quarenta e seis mil euros), tendo a 19 de Agosto de 2014, a solicitação do Administrador de Insolvência, ora arguido, transferido para a conta bancária da Massa Insolvente de ACRamião com o n.º ... a quantia de € 9.200,00 (nove mil e duzentos euros), correspondente a 20% do valor da sua proposta – 4. a 7..
• O arguido, que na qualidade de Administrador de Insolvência estava autorizado a movimentar a conta da Massa Insolvente de Ana Cristina Ramião, em 25 de Agosto de 2014, transferiu a quantia de € 2.250,00 (dois mil, duzentos e cinquenta euros) e, em ... de ... de 2014, a quantia de € 3.776,88 (três mil, setecentos e setenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos), para a conta por si titulada no ..., com o n.º ....
• Muito embora tivesse sido notificado para o efeito, por despachos proferidos em 15.04.2015, 27.05.2015, 24.06.2015 e 14.09.2015. 10, o arguido, desde fevereiro de 2015 não mais prestou qualquer informação ao Processo de Insolvência n.º 812/14.8TBSXL, nem depositou o valor que retirou da conta da massa insolvente, tendo acabado por ser determinada a remoção do arguido das suas funções em 23 de Novembro de 2015 – 10..
• Por mensagem de correio eletrónico remetida ao tribunal no dia ... de ... de 2016, o arguido viria a enviar cópia dos extratos bancários das contas de depósito à ordem e a prazo que abrira em nome da massa insolvente, atestando a permanência nesta última da quantia de € 3.215,65 (três mil, duzentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos) – 11..
• O arguido, agindo na qualidade de Administrador de Insolvência, e aproveitando-se dos poderes de movimentação da conta bancária da massa insolvente, que por força daquela qualidade lhe foram conferidos, apropriou-se da quantia de € 6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) disponível na referida conta, a qual lhe cumpria administrar por força da nomeação pelo Tribunal – 12..
• Quis, com a conduta descrita, e logrou fazer sua tal quantia, de €6.016,88 (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), pertencente à massa insolvente, depositando-a em conta bancária por si titulada, ciente de que não lhe pertencia – 13..
• A demandante, Massa Insolvente de AA, sofreu um prejuízo no montante de 6.016,88€, traduzido na redução patrimonial correspondente, por força da atuação do arguido, BB, supra descrita – adicionado no item anterior.
Resulta nestes factos evidenciado que o arguido praticou um facto voluntário – transferência de dinheiro da conta da massa insolvente para a sua conta bancária pessoal sem título legítimo para tal – e que esse facto deu causa a um prejuízo para a massa insolvente correspondente ao valor assim transferido.
Afigura-se-nos também evidente que esse facto é ilícito, na medida em que violou desde logo o direito, absoluto, de propriedade, apropriando-se de uma quantia que sabia não lhe pertencer, fazendo-a sua sem qualquer título que o legitimasse a fazê-lo; do mesmo passo, infringiu as regras atinentes à forma de administração da massa insolvente e bem assim aos deveres profissionais a que o AI está legalmente vinculado, em particular os que decorrem da previsão do art. 12º/2 do EAI, nos termos do qual: «Os administradores judiciais, no exercício das suas funções, devem atuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer atos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados.».
Nunca poderia, pois, o demandado, na qualidade de AI, dispor das quantias pertencentes à massa insolvente a seu bel prazer, muito menos em seu benefício pessoal, sem violar a lei.
Ainda na perspetiva da defesa apresentada pelo demandado em juízo, e que acabaria por ser vertida para o ponto 14. dos factos provados, sempre resultariam violadas as regras relativas ao pagamento da remuneração devida ao AI, nomeadamente o disposto no art. 29º/1, 5,9 e 10, do EAI, porquanto não tinha sido ainda concluída a liquidação do ativo e encerrado o processo, inexistindo elementos que permitissem sequer o cálculo da remuneração variável da qual o demandado cria estar a pagar-se diretamente.
Em qualquer caso, o prejuízo correspondentemente ocasionado pela conduta ilícita adotada pelo demandado atingiu o círculo de interesses que aquelas regras visam tutelar, qual seja, a garantia de que os valores apurados a crédito da massa insolvente, mormente por via da liquidação do ativo, são destinados nos termos legais, ao pagamento das respetivas dívidas e maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados, com precedência daquelas, sendo a remuneração variável a fixar, por isso, no encerramento do processo, também em função do grau de satisfação daqueles interesses.
Mas vejamos um pouco melhor.
Estabelece o art. 60º/1 do CIRE que o Administrador da Insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto.
Por seu turno, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial (EAI) aprovado pela L. 22/2013 de 26/02 na redação originária, vigente à data da prática dos factos:
«1-(…) o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, de acordo com o montante estabelecido em portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia.
2- (…) o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado nas tabelas constantes da portaria referida no número anterior.
(…)
4-Para efeitos do n.º 2, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
5-O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1.
(…)» (negrito nosso).
De acordo com o preceituado no art. 29º do EAI, relativo ao pagamento destas remunerações:
«1-Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 52.º e no n.º 7 do artigo 55.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pela massa insolvente, salvo o disposto no artigo seguinte.
(…)
5-A remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo.
(…)
9-Nos casos em que a administração da massa insolvente ou a liquidação fiquem a cargo do administrador da insolvência e a massa insolvente tenha liquidez, os montantes referidos nos números anteriores são diretamente retirados por este da massa.
10-Não se verificando liquidez na massa insolvente, é aplicável o disposto no n.º 1 do artigo seguinte relativamente ao pagamento da provisão para despesas do administrador da insolvência.
(…)» (negrito nosso).

Nos termos do art. 30º do mesmo diploma legal:
«1-Nas situações previstas nos artigos 39.º e 232.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça.
(…)
5-Para efeitos do presente artigo, não se considera insuficiência da massa a mera falta de liquidez.».
Da conjugação destes preceitos legais resulta que o demandado, pelo exercício das funções de Administrador da Insolvência no processo de insolvência n.º 812/14.8TBSXL, do Juízo do Comércio do Barreiro, Juiz 4, tinha direito à remuneração fixa e à remuneração variável, esta porque ocorreu liquidação de património.
A remuneração fixa, no montante de 2.000,00€ nos termos do art.º 1 da Portaria 51/2005 de 20/01, foi paga em duas prestações de 1.000,00€ cada, as quais, como provado em 4., foram recebidas, respetivamente em 13/03/2014 e 22/04/2015, tendo ainda recebido a quantia de 500,00 € (quinhentos euros), a título de provisão de despesas, paga igualmente em duas prestações de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), a 13/03/2014 e 18/06/2014.
Ora, a remuneração variável, sendo devida apenas quando há liquidação de ativo patrimonial, é calculada em função do resultado da recuperação do devedor, ou seja, do montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa ou da liquidação da massa insolvente e tendo em conta o grau de satisfação dos créditos reclamados; por essa razão apenas pode ser paga a final, aquando do encerramento do processo de insolvência, momento em que será já possível determinar o respetivo montante.
Ou seja: ainda que nos termos do nº 9 do art. 29º do EAI, o arguido pudesse vir a pagar-se da respetiva remuneração variável pelos montantes existentes na conta da massa insolvente, nunca o poderia fazer antes de efetuada a respetiva determinação e encerrado o processo de insolvência.
Como resulta dos factos provados, em especial de 5. a 10., o AI efetuou a transferência bancária que em juízo diria corresponder ao auto-pagamento da remuneração variável, antes de apurado o produto da liquidação e deduzidas as despesas da massa insolvente, portanto, antes do momento em que o poderia fazer, e sem que estivesse sequer determinado se a ela teria direito (visto que não concluiu a liquidação do ativo) e o montante a que poderia ter direito a esse título.
Mais: depois de instado por várias vezes pelo Tribunal, não mais restituiu à conta bancária da massa insolvente o valor da mesma retirado indevidamente, tendo acabado, por isso, por ser removido das funções – 10. dos factos provados.
Dúvida alguma subsiste, pois, quanto a ter o arguido atuado em contrário do legalmente estabelecido em matéria de administração da massa insolvente e dos créditos que a mesma integra, em particular das regras relativas ao apuramento e pagamento da remuneração que lhe era devida pelo exercício das funções de AI, assim como em violação dos seus deveres profissionais previstos na lei.
Praticou, por isso, um facto ilícito.
Por fim, a culpa.
A atuação do demandado merece reprovação e a censura do direito para efeitos civis?
Claramente sim.
Na verdade, admitindo uma normal capacidade do demandado para o exercício do cargo de AI (nada em contrário se provou) e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia o mesmo ter agido de outro modo; nenhum facto se provou ou foi sequer alegado, que inviabilize este juízo, o qual, diga-se, não foi realizado para efeitos penais, aí se efetuando uma aferição ao nível, mais exigente, do dolo e consciência da ilicitude penal, apenas estes se afastando na sentença, nesta parte já insuscetível de qualquer modificação.
A tal não obsta também o facto de em 14. se ter dado como facto provado (apesar de constituir na realidade matéria de fundamentação da decisão de facto) que o demandado: «Isso fez por acreditar que tais quantias lhe eram devidas a título de remuneração e provisão para despesas, bem assim como que, na qualidade de Administrador de Insolvência, poderia fazer-se pagar das mesmas.».
Ora, tendo-se provado que o demandado retirou o valor que comprovadamente retirou da conta bancária da massa insolvente, ciente de que esse valor lhe não pertencia, e dele se apropriando, fazendo-o seu, como vimos, violando ostensivamente o direito absoluto de propriedade, e atuando em contrário da lei, com isso originando prejuízo àquela massa insolvente, aqui demandante civil, irreleva o que então acreditava ou deixava de acreditar.
Como nos parece óbvio, aquilo em que cada um acredita (ou quer acreditar) para justificar as suas ações não pode nunca justificar a ilicitude das mesmas, sob pena de se entrar num campo de total incerteza e insegurança jurídicas, em última análise, no caminho para a impunidade .
E embora esteja arredada do objeto do recurso a discussão em torno da consciência da ilicitude penal da conduta, a que se reportará esta inserção sob o ponto 14. dos factos provados, conforme resulta de a) dos factos não provados, não podemos deixar de partilhar da perplexidade da recorrente quando na decisão recorrida se justifica esta “crença” com o facto de o demandado ter invocado a jurisprudência vertida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de julho de 2014.
O AI médio, colocado na situação em que o demandado se encontrava, exercendo no processo de insolvência em causa as funções que este exercia, não podia deixar de conhecer a lei e de saber que nenhuma decisão judicial se substitui a essa lei.
Ademais, o aresto em questão não confere sequer razão de ser para uma tal “crença”.
Com efeito, lido na íntegra, como é suposto ler-se, com facilidade se constata ter o mesmo por objeto decisão de penalização do AI por retirada precoce da remuneração variável e despesa relativa a um anúncio no jornal (não estando em discussão ser-lhe a mesma devida ou não), mas quando havia já sido declarada encerrada a liquidação; tanto que aí se deu por assente (como não poderia deixar de ser em face da lei vigente) que «O transcrito nº 5 [do art. 29º do EAI], reportado à “remuneração variável” prevista no nº 2 do art. 23 da mesma lei para a liquidação da massa insolvente, não faculta ao administrador que retire tal remuneração do activo fiduciário da massa insolvente antes do fim da liquidação.» (sublinhado nosso); ou seja, exatamente o contrário do que foi feito pelo demandando.
E assim sendo, sempre estaríamos diante uma “crença” que, além de juridicamente irrelevante, se mostra absolutamente infundada e injustificada, pois que não tem o condão de tornar regular e legal um facto objetivamente contrário à lei.
E dúvidas não subsistem de que ao (auto)pagar-se diretamente de uma remuneração variável antes do encerramento da liquidação, quando nem sequer havia concluído todas as operações destinadas à liquidação do ativo patrimonial – cfr. 9. e 10. dos factos provados, donde resulta que foi concluída pelo novo AI nomeado em sua substituição, após remoção -, o demando civil contrariou a lei, lei essa que não podia desconhecer (e não desconhecia atendendo à defesa apresentada com base neste acórdão).
Assim, e no mínimo, porque por respeito ao caso julgado penal, não podemos pôr em causa o afastamento do dolo nos termos em que o Tribunal recorrido concluiu na decisão penal, não pode deixar de merecer censura à luz do direito a atuação do demandado, que, nada se havendo provado em contrário, podia e devia ter atuado em conformidade com o legalmente previsto no tocante à administração das quantias pertencentes à massa insolvente, a que apenas tinha acesso por via das suas funções de AI.
Tendo com essa conduta negligente dado causa direta ao prejuízo decorrente para a demandante civil massa insolvente, no valor correspondente aos 6.016,88€ (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), a esta pertencentes, depositando-a em conta bancária por si titulada, ciente de que não lhe pertencia, incorre em responsabilidade civil e na obrigação de indemnizar, nos termos previstos nos arts. 562º a 566/1 e 2º, do Código Civil.
Estabelece o art. 494º do Código Civil que, quando a responsabilidade se funda em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
É com base na concreta factualidade dada como provada que há-de concluir-se pela verificação de justificação para, excecionalmente, atribuir ao lesado indemnização inferior ao valor a que ascendem os danos que lhe foram ocasionados com a conduta ilícita e culposa.
Em todo o caso, essa indemnização só pode ser limitada equitativamente e em termos de ser fixada em montante inferior ao valor dos danos quando, face a esses factos provados, a sua reparação integral fosse claramente injusta, considerando a pequena culpa do lesante, a disparidade de condições económicas entre o lesante e o lesado, ou outras circunstâncias apuradas no processo.[14]
No que tange à culpa, importa ter presente a gradação típica da negligência ou mera culpa, que «(…) pode ser levíssima, leve ou grave. Será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que só uma pessoa excepcionalmente diligente e prudente teria observado; será leve quando o agente deixar de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria adoptado; será grave quando tiverem sido omitidos os deveres de cuidado, omissão que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta deixaria de respeitar.»[15]
Como já referido, pese embora o provado em 14., tal mostra-se irrelevante para efeitos da censurabilidade que merece a conduta do demandado civil, sendo ademais, como se viu, igualmente censurável essa dita “crença” que, na prática, constituiria uma legitimação inteiramente subjetiva e infundada para se violar a lei.
O demandado atuou no exercício das funções de AI, para as quais são exigidas habilitações académicas, de experiência profissional e de idoneidade particularmente exigentes, como imposição do preceituado nos arts. 3º e 5º, do EAI.
A atuação do demandado, violadora do direito de propriedade e da lei em matéria de auto-pagamento da remuneração devida pelo exercício das funções de AI, consistiu na apropriação indevida, com benefício próprio e correspondente prejuízo da massa insolvente e credores em cujo interesse deveria atuar, de uma quantia que lhe não pertencia e lhe estava confiada apenas por via desse exercício funcional.
Não pode, por isso, deixar de se concluir que só um AI especialmente descuidado poderia realizar a transferência bancária em que se materializaria essa apropriação, em contrário do legalmente estatuído quanto à possibilidade de o fazer, assim como só essa particular falta de cuidado e até um certo (censurável) alheamento face às regras legais que enformam o exercício da atividade profissional de AI, o poderiam levar a acreditar que pudesse fazer o que fez em flagrante violação da lei, sendo, portanto, grave a sua culpa.
Acresce que nenhuma outra circunstância resulta provada que possa justificar uma limitação excecional da indemnização, mormente as relativas à situação pessoal do demandado, indicadas de 15. a 18., praticamente todas subsequentes à data da prática dos factos, e concretamente quanto ao seu estado de saúde, sendo que não se demonstrou haver qualquer relação entre essas circunstâncias e estes factos.
De resto, o pagamento pelo demandado à lesada, a título de indemnização por danos patrimoniais, da quantia com que indevida e ilicitamente se locupletou, corresponderá tão somente à reposição do status quo ante por referência a momento da violação legal cometida, que se traduz na prática, na devolução dessa quantia monetária, repondo assim o Direito.
A esse valor acrescem os juros de mora devidos à taxa legal, atualmente fixada em 4%, desde a notificação do pedido de indemnização civil formulado nos autos e até integral pagamento – arts. 559º/1, 805º/3 e 806º/1, do Código Civil e Portaria 291/2003, de 08/04.

O recurso será, nestes termos, julgado nesta parte procedente.

III–DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, revogando a decisão recorrida na parte cível:
• Julgar provado que «A demandante Massa Insolvente de AA sofreu um prejuízo no montante de 6.016,88€ (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), traduzido na redução patrimonial correspondente, por força da atuação do arguido, BB, supra descrita.».
Condenar o demandado civil, BB, no pagamento à demandante civil/recorrente Massa Insolvente de GG Ramião, a título de indemnização por danos patrimoniais a quantia de 6.016,88€ (seis mil e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, atualmente de 4%, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até integral pagamento.
*
Custas por demandante civil e demandado civil, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 35% e 65%, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem - art. 527º/1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi do art. 523º do Código de Processo Penal.
*
Notifique.
*


Lisboa,09 de abril de 2024


Ana Cláudia Nogueira
(Relatora)
Mafalda Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunta)
Manuel Advínculo Sequeira
(2.º Adjunto)



1.[]Neste sentido, o acórdão do STJ de 10/07/2008, relatado por Henriques Gaspar no processo 08P1410, acessível em www.dgsi.pt .
2.[]Será aqui de notar que, caso seja deduzido pedido de indemnização civil em separado, com decisão absolutória no processo crime, nos termos do art. 624º do Código de Processo Civil, «1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário. 2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.».
3.[]Vide o caso do TEDH Allen v. The United Kingdom, §103.
4.[]Veja-se o caso de uma absolvição do crime de fraude fiscal por estar em causa prestação de valor inferior a 15.000€, e no entanto, ser julgado procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Estado, tratado no acórdão do STJ de 14/04/2016, relatado por Isabel Pais Martins no processo 165/11.6TELSB.E1.S1; também uma situação de abuso de confiança em que, absolvido o arguido por falta de preenchimento do elemento objetivo, ficou provada a prática de um ato ilícito pelo arguido e, em resultado deste, um prejuízo para o lesado, objeto do acórdão do STJ de 17/03/2016, relatado por Arménio Sottomayor no processo 13/09.7TALSA.C1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .
5.[]Para além dos casos em que a a obrigação de indemnizar emerge da prática do facto ilícito sem coexistência de culpa, portanto, de responsabilidade pelo risco, em que a decisão absolutória criminal não obsta a uma decisão cível condenatória, se o pedido se revelar fundado, em que os factos que motivam a condenação cível são os mesmos que eram objeto do processo penal definido na acusação ou na pronúncia, apenas ocorrendo a sua redução ao nível subjetivo (cfr. o Assento do STJ 7/99 publicado no DR, I-A de 03/08/99), importa considerar nesta sede os casos de extinção do procedimento criminal, por exemplo por prescrição, descriminalização, morte do arguido, após a acusação ou pronúncia e antes do encerramento da audiência de julgamento, em que há lugar, ainda no processo penal, à apreciação autónoma do pedido de indemnização civil – cfr. por prescrição, o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ 3/2002 publicado no DR, Série I-A de 05/03/2002; por descriminalização, o acórdão do TRL de 10/05/2001, CJ, XXVI, T. 3, pág. 138, e o acórdão do TRP de 29/09/2004, relatado por Isabel Pais Martins no processo 0443311, acessível em www.dgsi.pt ; por extinção do direito de queixa, o acórdão do TRC de 12/10/2005, CJ, XXX, T. 4, pág. 52, e o acórdão do TRL de 06/10/2021, relatado por Maria Margarida Almeida no processo 4207/16.0T9CSC.L1-3, acessível em www.dgsi.pt ; por morte do arguido, o acórdão do TRG de 11/10/2021, relatado por António Teixeira no processo 309/18.7T9PTL.G2, e o acórdão do TRC de 24/02/2016, relatado por Maria José Nogueira no processo 1241/0.8TAVIS.C2, fazendo o paralelo com a jurisprudência do AFJ 3/2002, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .
6.[]Cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional 259/2002, 140/2004 e 660/2014, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e, por todos, o acórdão do STJ de 19/05/2010, relatado por Isabel Pais Martins, no processo 696/05.7TAVCD.S1, com o seguinte sumário na parte aqui pertinente:
«(…)
VIII-O convite ao aperfeiçoamento pressupõe que não se esteja perante uma deficiência substancial da própria motivação, que necessariamente se reflectirá em deficiência substancial das conclusões.
IX-Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto.
X-Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso, o que o legislador reconheceu ao estatuir que o aperfeiçoamento das conclusões, na sequência do convite formulado nos termos do n.º 3 do art. 417.º d CPP, não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (n.º 4 da norma).».
7.[]Neste sentido, além dos indicados na nota anterior, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 31/10/2007, relatado por Armindo Monteiro no processo 07P3218, e de 03/12/2009, relatado por Rodrigues da Costa no processo 760/04.0TAEVR.E1.S1 (aqui citando outros arestos), e ainda o mais recente acórdão da Relação de Lisboa de 08/03/2023, relatado por Filipa Costa Lourenço no processo 216/19.6PILRS.L1-9, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
8.[]Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão 7/95, de 19 de outubro, in Diário da República, I Série-A, de 28/12/1995.
9.[]Cfr. acórdão do STJ relatado por Raul Borges no processo 1759/07.0TALRA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
10.[]Vide https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/prejuizo.
11.[]In Código Civil Anotado, de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 475.
12.[]Seguimos de perto a lição de de Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, págs. 471 a 475.
13.[]In ob. cit., pág. 474, nota 6..
14.[]Vide acórdão da Relação de Coimbra de 13/04/2021 relatado por José Avelino Gonçalves, no processo 2547/19.6T8LRA.C1, acessível em www.dgsi.pt .
15.[]Cfr. acórdão do STJ de 13/12/2007, relatado por Sousa Peixoto no processo 07S3655, acessível em www.dgsi.pt .