FUNCIONÁRIO
PECULATO
INFIDELIDADE
Sumário


1- Podendo ser considerados organismos de utilidade pública as pessoas coletivas de direito privado que são objeto de uma declaração de utilidade pública, tal não basta para que possa ser atribuída a classificação funcionário, para efeitos da lei penal, nos termos previstos na al. d), do n.º 1 do artigo 386º do Código Penal, ao agente que aí exerça funções, sendo, ainda, necessário que o agente desempenhe uma atividade de utilidade pública, complementar das desenvolvidas pelas entidades públicas, em determinadas áreas, atividade essa que envolve o uso de fundos públicos.

2 - A dimensão material da actividade desenvolvida é que será decisiva para a qualificação do agente como funcionário.

3 - A conduta típica que integra o crime de peculato consiste na apropriação ilegítima, em proveito próprio ou de terceiro, de dinheiro ou coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções. O conceito de posse deve aqui ser entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um ato para o qual tem competência em razão das suas funções (v.g. através de ordens, requisições ou mandados).
É, pois, necessário que o dinheiro ou a coisa móvel esteja acessível ao agente (funcionário) e que tal suceda em razão das funções que exerce, de tal modo que “terá sempre de se afirmar uma relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função” exercida ou desempenhada pelo agente.
A acessibilidade ao bem deve, assim, derivar das funções do agente, pelo que se impõe que exista uma efetiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objeto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação.

4 - O crime de infidelidade pressupõe a inexistência de apropriação, pelo que, quando resulte demonstrada a apropriação ou a intenção de apropriação (animus apropriandi), por parte do agente (a que foi confiado o encargo – poder/dever – de zelar pelos interesses patrimoniais alheios), é de afastar o crime de infidelidade.

Texto Integral



Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 148/12.9TAACN, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Criminal de Santarém, Juiz 2, foi submetido a julgamento o arguido (...), melhor identificado nos autos, pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, n.º 1, 386º, n.º 1, alínea d) e 66º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2, todos do Código Penal.
1.2. (…) constituíram-se assistentes nos autos.
1.3. Realizado o julgamento, foi proferido acórdão, em 17/09/2020, depositado nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(…) decide o Tribunal:
a) Condenar (...) pela prática, em autoria material, de um crime de peculato, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 66.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) e 2, 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão e na pena acessória de proibição de exercício das actividades compreendidas na função pública que (...) desempenhava na (…) pelo período de 3 (três) anos e 8 (oito) meses;
b) Declarar perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial alcançada por (...) com a prática do crime, a qual não sendo susceptível de apropriação se substitui pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, e consequentemente, condenar (...) a pagar ao Estado a quantia de € 960.000,00 (novecentos e sessenta mil euros), sem prejuízo dos direitos da ofendida (…);
c) Condenar (...) a pagar as custas criminais, fixando em 5UC a taxa de justiça devida;
(…).»
1.4. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem:
(…)
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantido, na íntegra, o acórdão recorrido.
1.7. Os assistentes (...), também responderam ao recurso, pugnando para que seja negado provimento ao mesmo, mantendo-se o acórdão recorrido, nos precisos termos em que foi proferido.
1.8. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantido, na íntegra, o acórdão recorrido, aderindo à posição defendida pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, na resposta que ofereceu, acrescentando outros argumentos, nos termos que constam de fls. 2026 a 2034.
1.9. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo os assistentes respondido, manifestando adesão ao parecer do Exm.º PGA.
1.10. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foi realizada a conferência, tendo sido, por este Tribunal da Relação, proferido acórdão, em 13/04/2021, no qual, por se admitir poder verificar-se uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no acórdão recorrido, em termos de serem suscetíveis de integrar a prática pelo arguido/recorrente, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, foi determinada, nos termos do disposto no artigo 424º, n.º 3, do CPP, a comunicação ao arguido/recorrente dessa alteração da qualificação jurídica dos factos, para, querendo, se pronunciar, no prazo de dez dias.
1.11. Na sequência tal comunicação, o arguido/recorrente pronunciou-se, manifestando o entendimento de que «os factos que devem ser dados como provados não conduzem à sua qualificação jurídica como crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal», enquadrando-se antes no crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º do Código Penal.
1.12. Vieram os autos, de novo, à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
(…)
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. artigo 428º do C.P.P.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ n.º 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
Tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo arguido/recorrente da motivação de recurso, são as seguintes as questões a decidir:
- Impugnação da matéria de facto dada como provada sob os pontos 33) a 44), 57), 58), 65) a 76), 80) a 93), 100), 109) e 110);
- Erro notório na apreciação da prova;
- Erro na qualificação jurídica dos factos;
- Medida da pena;
- Suspensão da execução da pena de prisão propugnada.

*
Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter o teor do acórdão recorrido, nos segmentos que, para tal efeito, relevam e que se passam a transcrever:

2.2. Acórdão recorrido
«(…)
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1.º FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma:
1) Por Escritura Pública, datada de 10 de Dezembro de 1991, exarada a fls. 45 verso a 48 verso do Livro de Notas Dez-D, do Cartório Notarial de (...), foi constituída a Associação (...) – (doravante designada apenas por (...)), com sede no concelho de (...).
2) A referida associação tem como fim assegurar a gestão do sistema de tratamento de águas residuais de (...), nomeadamente a sua exploração e conservação, podendo igualmente assegurar a gestão do tratamento e reciclagem do crómio e de quaisquer outros resíduos resultantes da actividade dos utilizadores, sendo, no entanto, seu objecto específico o tratamento de águas residuais relacionadas com a utilização do domínio público hídrico, conforme os respectivos Estatutos.
3) A (...) é uma associação sem fins lucrativos, que não distribui dividendos pelos seus associados e detém o estatuto de entidade de utilidade pública, nos termos do disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei nº 460/77, de 7/XI, conferido por despacho do Primeiro-Ministro, datado de 20 de Março de 1995, publicado no DR nº 95, II Série, de 22 de Abril de 1995.
4) A referida associação dispõe de património próprio, constituído, segundo o artigo 22.º, n.º 1, dos Estatutos, pelos bens e direitos transferidos no acto da sua constituição ou posteriormente adquiridos.
5) Por sua vez, constituem receitas da associação, de acordo com o artigo 21.º dos Estatutos:
a) As joias pagas pelos associados;
b) As tarifas cobradas dentro da competência da (...);
c) O produto de quaisquer outras contribuições de cada associado;
d) Os rendimentos de bens próprios e o produto da sua alienação ou da sua constituição de direitos sobre eles;
e) Os subsídios ou comparticipações de outras entidades;
f) O produto de empréstimos contraídos nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 16.º
g) Quaisquer outros rendimentos permitidos por lei;
h) O produto de eventuais indemnizações ou sanções.
6) De acordo com o artigo 4.º, n.º 1, dos respectivos Estatutos, podem ser associados da (...) quaisquer pessoas singulares ou colectivas que utilizem ou pretendam utilizar o Sistema de Tratamento de Águas Residuais de (...), designadamente autarquias e indústrias.
7) Constituem órgãos da referida associação a assembleia geral, o conselho de administração e o conselho fiscal.
8) De acordo com o artigo 15.º, n.º 1, dos Estatutos da associação, o conselho de administração constitui o respectivo órgão executivo, sendo composto por cinco membros, um deles a Câmara Municipal de (...) e os restantes quatro eleitos pela Assembleia Geral de entre os seus membros.
9) Ainda nos termos do artigo 15.º, n.º 2, dos Estatutos, o Conselho de Administração elege, de entre os seus membros, aquele que exerce o cargo de Presidente.
10) Também nos termos do artigo 17.º, alínea d), dos referidos Estatutos, a associação obriga-se com a assinatura de três membros do Conselho de Administração, sendo uma dessas assinaturas do respectivo presidente.
11) Nos períodos de 2008 a 2010 e 2011 a 2012, o conselho de administração foi composto pelas sociedades comerciais:
- (…) S.A, representada por (...);
- (…) S.A, representada por (…);
- (…) S.A., representada por (…);
- (…) S.A., representada por (…).
12) O cargo de presidente foi exercido por (...), em representação da sociedade (…) S.A.
13) Por sua vez, no que concerne à representação da Câmara Municipal de (...) no Conselho de Administração da (...), esta foi representada pelo respectivo presidente, (…), até ao dia 30 de Outubro de 2009.
14) Na sequência das eleições autárquicas, ocorridas no dia 11 de Outubro de 2009, os novos órgãos autárquicos tomaram posse no dia 31 de Outubro de 2009, entre eles a Presidente da Câmara, (…).
15) Mediante ofício remetido à (...), no dia 27 de Novembro de 2009, a referida presidente comunicou que passaria ela própria a assumir a representação da Câmara Municipal de (...) na associação.
16) (...), para além do cargo de presidente da referida associação, intervinha também em diversas sociedades comerciais, umas na qualidade de sócio, por deter participação no respectivo capital social, noutras por exercer a respectiva gerência e noutras ainda por a sua gerência ou representação ser exercida por familiares próximos, entre eles o seu filho (…), o seu irmão (…) e a sua companheira (…).
17) A sociedade comercial (…), S.A. (doravante designada apenas por …, S.A.), NIPC n.º (…), de origem (…), era representada em Portugal por (…), por deliberação datada de 18 de Fevereiro de 2003.
18) A sociedade comercial (…), Ldª (doravante designada apenas por …, Ldª), NIPC nº (…), com o objecto social de exercício da actividade de indústria e comércio de peles e couros, foi constituída no ano de 2004, tendo como sócios a referida sociedade comercial (…), S.A. e (…) e gerente (…).
19) (...) assumiu a gerência da (…), Ldª, por deliberação datada de 5 de Maio de 2011, juntamente com o seu irmão (...), mas ambos renunciaram a essas funções, por deliberação datada de 21 de Julho de 2012.
20) Entretanto, a sociedade (…), Ldª foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado no dia 16 de Setembro de 2013.
21) A sociedade comercial (…), S.A., NIPC nº (…), com o objecto social de exercício da actividade de indústria e comércio de couros e peles, importação e exportação, compra e venda e revenda de bens imóveis, foi constituída no ano de 2009, tendo como sócios o (...) e (...), exercendo este último a respectiva gerência.
22) No ano de 2012 constitui-se como sociedade anónima, entrando como novos sócios (…), tendo (...) assumido a função de Presidente do Conselho de Administração por deliberação datada de 14 de Junho de 2012, mas vindo a renunciar a essa função no dia 23 de Julho de 2012.
23) Em 2017, a sociedade voltou a constituir-se como sociedade por quotas, sendo seu gerente (…).
24) A sociedade comercial (…), Ldª, NIPC nº (…), com o objecto social de exercício da actividade de comércio, importação, exportação de produtos ligados à indústria de curtumes, vestuário, calçado, acessórios, roupa desportiva e de dança, compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, actividades de dança, música e outras actividades do espectáculo, foi constituída no ano de 2007, tendo como sócios a sociedade (…), S.A. e (…).
25) (...) assumiu a gerência da sociedade, por deliberação datada de 28 de Setembro de 2007, mas em 13 de Março de 2009 renunciou a essa função.
26) Voltou a assumir a gerência da sociedade por deliberação datada de 1 de Abril de 2011 e, no ano de 2012, entrou para a sociedade como sócio, tendo adquirido duas quotas, sendo uma no valor de € 40.000,00 e a outra no valor de € 10.000,00.
27) A sociedade comercial (…), Ldª (doravante designada apenas por …, Ldª), NIPC nº (…), com o objecto social de exercício da actividade indústria e comércio de couros e peles, foi constituída no ano de 1997, tendo como sócios (…), os quais, também, assumiram a respectiva gerência.
28) (...) veio, no entanto, a assumir a gerência da sociedade, por deliberação datada de 15 de Março de 2013.
29) Entretanto, a sociedade foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado no dia 9 de Outubro de 2013.
30) Entre os anos de 2008 e 2010, a (...) era titular das seguintes contas bancárias à ordem:
(…)
31) Para além destas contas bancárias à ordem, a (...) dispunha ainda de contas bancárias, com depósitos a prazo, nos (...) , bem como outras aplicações financeiras.
32) (...), enquanto presidente do Conselho de Administração da (...), tinha conhecimento dos recursos financeiros de que aquela associação dispunha.
33) Apesar de saber que tais recursos financeiros pertenciam à referida associação e que, enquanto Presidente do Conselho de Administração, lhe competia geri-los em prol das finalidades da mesma, em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2008, (...) concebeu o plano de utilizar a sua posição dentro da aludida associação, para, através desse exercício de funções, durante o seu mandato, apossar-se dos recursos financeiros da (...) em seu próprio benefício e das sociedades comerciais que representava, na qualidade de gerente, ou em que detinha participação social, enquanto sócio das mesmas, ou em que tinha interesses comerciais.
34) De acordo com esse seu plano, (...), no exercício das suas funções de Presidente do Conselho de Administração, diligenciou pela emissão de cheques, associados às contas bancárias à ordem daquela associação, para, desse modo, entrar na disponibilidade de quantias monetárias pertencentes à associação, fazendo-as coisas suas, a partir do momento em que os cheques entraram na sua posse, para as canalizar para aquelas sociedades, para pagar dívidas das mesmas ou para contas bancárias por si movimentadas.
35) Contudo, uma vez que as contas bancárias da (...) não eram movimentáveis apenas com a sua assinatura, necessitando para o efeito da assinatura dos demais administradores, em número de três, o (...), a fim de viabilizar o seu plano, e de justificar perante os demais administradores a emissão de cheques que titulassem a saída de quantias monetárias das contas bancárias da associação, convenceu os restantes administradores da (...) de que pretendia efectuar investimentos financeiros em nome e no proveito da associação, para retorno financeiro superior aos juros das normais contas bancárias.
36) Os demais administradores acreditaram que (...) pretendia utilizar os recursos financeiros da associação para efectuar investimentos, financeiramente rentáveis, em nome e no proveito desta, e, nessa sequência, não se opuseram à saída de quantias monetárias das contas bancárias da associação e procederam à assinatura dos cheques que aquele lhes apresentou.
37) Contudo, de acordo com o plano por si engendrado, (...), ao invés de efectuar tais investimentos, apossou-se das quantias monetárias tituladas pelos cheques emitidos pelo conselho de administração da (...) em proveito próprio, para depósito nas contas bancárias das sociedades comerciais que representava ou em que detinha interesses comerciais, ainda que através de familiares, nas contas bancárias da sua companheira e da sua mãe, as quais também movimentava, e bem assim para efectuar pagamentos de dívidas a terceiros com quem se relacionava comercialmente, através daquelas sociedades.
38) Em execução do aludido plano, (...), fazendo uso da suas funções de Presidente do Conselho de Administração da (...), entre os anos de 2008 e 2010, diligenciou pela emissão de cheques, num valor total de € 1.940.000,00 (um milhão novecentos e quarenta mil euros), uns meramente ao portador, outros à ordem da própria (...), procedeu à sua assinatura, solicitou a assinatura de outros dois administradores da (...), e, nos casos em que os cheques se encontravam emitidos à ordem da própria associação, solicitou-lhes ainda o respectivo endosso no verso, através da aposição das suas assinaturas, para que, desse modo, pudesse destiná-los a fim diverso dos investimentos financeiros da associação por si invocados.
39) Os demais administradores, erroneamente convictos de que esses cheques se destinavam à realização de investimentos em nome e no benefício da (...), procederam à sua subscrição, e, (...), uma vez na sua posse, apresentou-os a pagamento e utilizou-os para depósito nas contas bancárias de (…).
40) No ano de 2008, através da aludida actuação, (...) logrou obter a emissão dos seguintes cheques da conta bancária da (...) nº (…), do Banco (…), os quais depositou na conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…):
(…)
41) Também no ano de 2008, através da aludida actuação, (...) conseguiu obter a emissão dos seguintes cheques da conta bancária da (...) n.º (…), do Banco (…), os quais depositou na conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…):
(…)
42) No ano de 2009, igualmente, através da aludida actuação, (...) logrou obter a emissão dos seguintes cheques da conta bancária da (...) nº (…), do Banco (…), os quais depositou nas contas bancárias que a seguir se indicam:
(…)
43) No ano de 2010, ainda mediante a aludida actuação, (...), conseguiu obter a emissão dos seguintes cheques da conta bancária da (...) nº (…), do Banco (…), os quais depositou nas contas bancárias que a seguir se indicam:
(…)
44) Na sequência da actuação de (...), no sentido de obter a emissão e depósito dos aludidos cheques nas mencionadas contas bancárias, em seu próprio benefício e das referidas sociedades, entraram nas aludidas contas bancárias as seguintes quantias monetárias globais:
Ano de 2008:
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…): € 520.000,00;
Ano de 2009:
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…): € 115.000,00;
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…).: € 635.000,00;
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…): € 250.000,00;
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…): € 100.000,00;
Ano de 2010:
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…).: € 290.000,00;
- conta bancária nº (…), do Banco (…), titulada por (…): € 30.0000,00;
45) A titular da conta bancária nº (…), do Banco (…), (…), vive maritalmente com o arguido, em situação de união de facto, e tem, conjuntamente com este, duas filhas menores de idade, (…).
46) (...) encontrava-se autorizado a movimentar a aludida conta, tendo sido o mesmo a utilizar as quantias monetárias que aí depositou.
47) (...) transferiu ou depositou as seguintes quantias monetárias daquela conta para a conta bancária de (…), funcionário das sociedades comerciais em que o primeiro detinha interesses comerciais, designadamente a (…):
(…)
48) Por ordem de (...), (…) procedeu ao levantamento dessas quantias e ao seu depósito em contas bancárias que aquele indicou para o efeito.
49) Também por ordem de (...), no dia 3.12.2008, (…) efectuou o levantamento da quantia monetária de € 8.500,00, através de cheque emitido da conta bancária de (…) nº (…) do Banco (…).
50) Da referida conta bancária, (...) efectuou ainda uma transferência bancária, no dia 18.12.2008, para a conta bancária da sociedade comercial (…), no valor de € 7.500,00.
51) Por sua vez, a titular da conta bancária nº (…), do Banco (...), (…), é mãe de (...), tendo falecido no dia 21.02.2015, detendo, igualmente, o mesmo poderes para movimentar esta conta, tendo sido este a utilizar e dar destino às quantias monetárias que aí depositou.
52) A quantia monetária, no valor de € 925.000,000, titulada pelos cheques supra referidos, provenientes da conta bancária da (...), depositada na conta bancária da sociedade (…), nos anos de 2009 e 2010, foi, igualmente, movimentada por intervenção de (...), sendo:
- € 493.630,00, levantados ao balcão por (…); - € 195.000,00, levantados por (...); - € 66.000,00, levantados por (…);
- € 65.050,00, levantados ao balcão, por indivíduo que não foi possível identificar;
- € 43.716,00, depositados na conta do Banco (…), titulada pela sociedade (…);
- € 30.000,00, depositados na conta bancária do Banco (…), titulada por (…);
- € 20.000,00, depositados na conta bancária da (...) nº (…);
- € 10.000,00, sem que tenha sido possível apurar o seu destino.
53) (…) trabalhava por conta das sociedades (…), efectuou o levantamento das referidas quantias monetárias, depositadas nas contas bancárias de (…) e da sociedade (…), por ordem de (...) e procedeu ao seu depósito em contas bancárias que o mesmo indicou para o efeito, principalmente em contas bancárias da (…).
54) Também (…) exercia funções na sociedade (…) e procedeu ao levantamento daquelas quantias por ordem de (...) e ao seu depósito em contas bancárias que aquele indicou para esse efeito.
55) No âmbito da respectiva actividade comercial, as sociedades comerciais em que (...) detinha participações sociais ou interesses comerciais, incluindo as sociedades (…), estabeleceram relações comerciais com as sociedades (…).
56) No decurso dessas relações comerciais de compra e venda de peles curtidas, as referidas sociedades emitiram diversas letras a favor das sociedades (…), sendo que, nos anos de 2009 e 2010, essas letras foram emitidas, principalmente, pela sociedade (…).
57) (...) depositou os referidos cheques da (...), nas contas bancárias das aludidas sociedades comerciais (…), com a finalidade de prover ao pagamento dessas letras.
58) Na sequência da emissão dos aludidos cheques e do seu depósito nas mencionadas contas bancárias, sem que o seu destino fosse do conhecimento e consentimento dos demais administradores da (...), que os assinaram na convicção de que a sua movimentação era para efectuar investimentos financeiros em benefício desta, (...), em execução do seu plano inicialmente traçado, para ocultar o real destino por si dado às quantias monetárias tituladas pelos cheques, utilizou as contas bancárias de (…) e das sociedades comerciais (…), para fazer entrar quantias monetárias na conta bancária da (...), aberta no Banco (…), como se as mesmas fossem o retorno financeiro de tais investimentos.
59) Desse modo, nos anos de 2008 e 2009, entrou na conta bancária da (...) nº (…), do Banco (...), a quantia monetária global de € 981.394,28, sendo o montante de € 930.977,68, proveniente das contas bancárias tituladas por (…) e pelas mencionadas sociedades comerciais, não tendo sido possível apurar a proveniência da quantia de €50.416,60, depositada no dia 25.08.2008:
Ano de 2008:
(…)
Ano de 2009:
(…)
60) A conta bancária nºs (…), do Banco (…) era da titularidade de (…), mas (...) encontrava-se autorizado a movimentá-la, tendo sido a este a efectuar o depósito daquela quantia na conta bancária da (...).
61) As contas bancárias nºs (…), do Banco (…) e (…), do Banco (…), da titularidade da sociedade (…), eram também movimentáveis por (...), tendo sido este a efectuar o depósito daquelas quantias na conta bancária da (...).
62) A conta bancária nº (…), era da titularidade de (...), mas (...) encontrava-se autorizado a proceder à sua movimentação, tendo sido este a efectuar o depósito daquelas quantias na conta bancária da (...).
63) A conta bancária nº (…) era da titularidade da sociedade comercial (…), mas (...) encontrava-se autorizado a movimentá-la, tendo sido este a efectuar o depósito daquela quantia na conta bancária da (...).
64) (...) diligenciou, ainda, junto dos respectivos gerentes, pela movimentação das contas bancárias nºs (…),
65) Através da descrita actuação, (...) conseguiu obter a emissão dos aludidos cheques, associados às contas bancárias da (...), com o nº (…), do Banco (…), e com o nº (…), do Banco (…), entrou na disponibilidade das quantias monetárias por eles tituladas, as quais fez coisas suas, mediante o depósito desse cheques nas contas bancárias de (...), (...) e das sociedades comerciais (…).
66) Contudo, para ocultar dos demais administradores da (...) o real destino por si dado às quantias monetárias tituladas pelos cheques, (...) diligenciou pela emissão de cheques associados às contas bancárias de (...), (...) e das sociedades comerciais (…) e pelo seu depósito na conta bancária da (...) nº (…), do Banco (…).
67) Da diferença entre as quantias monetárias que (...), através da descrita actuação, retirou da (...) e fez coisas suas, e as quantias monetárias depositadas na referida conta bancária desta associação, persiste em desfavor da (...) a quantia monetária global de € 960.000,00, que o mesmo fez sua e utilizou em seu proveito pessoal e das sociedades que representava ou em que detinha interesses comerciais.
68) No ano de 2008, através da descrita actuação, (...) logrou retirar das aludidas contas bancárias da (...) a quantia monetária de € 520.000,00, que fez coisa sua.
69) Por seu turno, (...), através do expediente por si engendrado, apenas diligenciou pelo depósito na conta bancária da (...), no Banco (…), da quantia monetária global de € 471.394,28, contabilizando como proveitos o montante de € 1.394,28.
70) Entre a quantia monetária retirada das contas bancárias da (...) e aquela que aí foi depositada, (...) manteve na sua posse e disponibilidade a quantia de € 50.000,00.
71) No ano de 2009, igualmente, através da mencionada actuação, (...) retirou das contas bancárias da (...) a quantia monetária de € 1.100.000,00, que fez coisa sua.
72) Contudo, através do expediente por si engendrado, apenas diligenciou pelo depósito na conta bancária da (...), no Banco (…), da quantia monetária global de € 510.000,00.
73) Entre a quantia monetária retirada das contas bancárias da (...) e aquela que aí foi depositada, (...) manteve na sua posse e disponibilidade a quantia de € 590.000,00.
74) Também no ano de 2010, através da mencionada actuação, (...) retirou das contas bancárias da (...) a quantia monetária de € 320.000,00, que fez coisa sua.
75) Contudo, nesse ano, apesar do expediente por si engendrado, (...) não diligenciou pelo depósito nas contas bancárias da (...) de qualquer quantia monetária, pelo que manteve na sua posse e disponibilidade a totalidade da quantia monetária retirada, no valor de € 320.000,00.
76) Igualmente, na sequência da retirada das aludidas quantias monetárias das contas da (...), (...), para tentar evitar que os demais administradores se apercebessem do montante em falta nessas contas, passou a fazer transitar valores monetários entre as várias contas bancárias daquela associação, no início de cada ano civil, para que o saldo dessas contas fosse superior ao que na realidade aí existia, sem que, no entanto, ocorresse uma efectiva retirada de valores de uma conta bancária para reforço da outra ou outras.
77) Entre os anos de 2009 e 2012, tais movimentações bancárias atingiram um valor global de € 2.790.000,00, sendo que deste apenas a quantia de € 800.000,00 constituiu um efectivo reforço do saldo da conta bancária beneficiária.
78) Este reforço foi efectuado através da emissão e depósito dos seguintes cheques:
(…)
79) Quanto às demais transacções bancárias, não constituíram qualquer reforço dos saldos bancários, na medida em que essa movimentação entre contas anulou o valor dos depósitos efectuados.
80) No que concerne à emissão dos cheques referentes à conta bancária nº (…), Banco (…), uma vez que essa conta apenas era movimentável com a assinatura de três administradores, uma delas do Presidente da Câmara de (...), constando ainda da ficha de assinaturas a identificação de (…), (...) convenceu-o, apesar do seu mandato enquanto Presidente da Câmara de (...) já ter terminado, a procedeu à sua assinatura e utilizou esses cheques na aludida movimentação entre contas bancárias da (...).
Ano de 2010:
81) (...) diligenciou pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (…) nº (…) que depositou, no dia 4.01.2010, na conta bancária do Banco (…) nº (…), no montante global de €320.000,00:
(…)
82) (...) diligenciou, ainda, pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (…) nº (…) que depositou, também no dia 4.01.2010, na conta bancária do Banco (…) nº (…), no montante global de € 320.000,00, o que anulou os valores entrados em ambas as contas bancárias:
(…)
83) (...) diligenciou também pela emissão e assinatura do cheque nº (…), no valor de € 30.000,00, da conta bancária do Banco (…) nº (…), e, no dia 4.01.2010, depositou-o na conta bancária do Banco (...) nº (…).
84) Mais diligenciou, pela emissão e assinatura do cheque nº (…), no valor de € 30.000,00, da conta bancária do Banco (…) nº (…), e, no dia 5.01.2010, depositou-o na conta bancária do Banco (…) nº (…), o que anulou os valores entrados em ambas as contas bancárias.
Ano de 2011:
85) (...) diligenciou pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (…) nº (…) que depositou, no dia 3.01.2011, na conta bancária do Banco (…) nº (…), no montante global de €160.000,00:
(…)
86) (...) diligenciou, ainda, pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (…) nº (…) que depositou, também no dia 3.01.2010, na conta bancária do Banco (...) nº (…), no montante global de €160.000,00, o que anulou os valores entrados em ambas as contas bancárias:
(…)
87) Ano de 2012:
(...) diligenciou pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (...) nº (…) que depositou, no dia 2.01.2012, na conta bancária do Banco (...) nº (…), no montante global de € 305.000,00:
(…)
88) (...) diligenciou, ainda, pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (...) nº (…) que depositou, também no dia 2.01.2012, na conta bancária do Banco (...) nº (…), no montante global de € 305.000,00, o que anulou os valores entrados em ambas as contas bancárias:
(…)
89) (...) diligenciou também pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (...) nº (…) que depositou, no dia 2.01.2012, na conta bancária do Banco (…) nº (…), no montante global de € 180.000,00:
(…)
90) Mais diligenciou pela emissão e assinatura dos seguintes cheques da conta bancária do Banco (…) nº (…), que depositou, também no dia 2.01.2012, na conta bancária do Banco (...) nº (…), no montante global de € 180.000,00, o que anulou os valores entrados em ambas as contas bancárias:
(…)
91) Na sequência do aludido plano e dos expedientes por si engendrados, (...) entrou na posse de todas as quantias monetárias tituladas pelos cheques emitidos das contas bancárias da (...), que fez coisas suas e a que deu destino, em proveito próprio e das referidas sociedades comerciais, persistindo em desfavor da (...) a quantia monetária global de € 960.000,00, que o mesmo fez igualmente sua, embora soubesse que os recursos financeiros daquela associação não lhe pertenciam e que o exercício de funções de Presidente do Conselho de Administração não lhe permitia dar-lhes aquele destino.
92) (...) agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, através do exercício das suas funções de Presidente do Conselho de Administração da (...), aceder às contas bancárias desta e obter, mediante os descritos expedientes, a emissão e entrega de cheques associados a essas contas bancárias, fazendo coisas suas as quantias monetárias tituladas pelos mesmos, em proveito próprio e das referidas sociedades comerciais, apesar de saber que a elas apenas tinha acesso devido à sua qualidade de Presidente do Conselho de Administração, que o exercício desta função lhe impunha agir em prol das finalidades daquela associação, e que, ao invés, fazendo suas tais quantias monetárias, actuava sem autorização e contra a vontade dos demais órgãos sociais da (...), ficando esta associação privada dessas mesmas quantias monetárias, tendo sofrido a correspondente perda patrimonial.
93) (...) sabia que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei e, ainda assim, não se inibiu de a realizar.
*
94) Por sentença, proferida no âmbito do processo n.º 15/14.1TAACN do Juízo Local Criminal de Torres Novas desta Comarca e transitado em julgado em 20 de Novembro de 2017, (...) foi condenado pela prática em 30 de Setembro de 2013 de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros).
*
95) (...) tem o 7.º ano de escolaridade.
96) (...) vive em união de facto com companheira (...), de (…) anos de idade, e as duas filhas do casal, de (…) e (…) anos de idade respetivamente.
97) O relacionamento intrafamiliar é pautado pelo diálogo, partilha e afetividade.
98) O agregado reside num apartamento, de tipologia T4, com condições de habitabilidade e conforto situado na zona urbana da cidade de (…), numa artéria reconhecida como calma e cuja população vizinha aparenta estar bem inserida socialmente.
99) (...) mantem com a família alargada um relacionamento próximo e afetuoso, privilegiando o contato regular com os dois filhos do seu primeiro casamento, cuja mulher já faleceu, atualmente com (…) e (…) anos de idade respetivamente e com as suas vidas devidamente organizadas e estruturadas.
100) Os rendimentos do agregado familiar, de valor não concretamente apurado, avulta da remuneração da companheira, que é diretora pedagógica e professora do (…), e de algumas poupanças de (...), que ocupa o seu tempo de modo voluntário no referido (…).
101) Nos tempos livres (...) dedica-se a atividades passivas nomeadamente de conhecimento ao nível das áreas de geografia, ciências, informática e ouvir música, preferencialmente clássica.
102) (...) é o mais velho de dois filhos resultantes do casamento dos progenitores, cujo o ambiente familiar foi avaliado como harmonioso e normativo sem dificuldades financeiras, porquanto o pai era ourives e a mãe doméstica.
103) Aos 7 anos de idade (...) iniciou o seu percurso escolar, sem problemas de comportamento e/ou de aprendizagem, tendo concluído o 7.º ano liceal.
104) Aos 18 anos de idade (...) iniciou o seu percurso profissional, que foi essencialmente na área de curtumes, tendo constituído a sua própria empresa em 1986.
105) Aos 20 anos de idade (...) iniciou um relacionamento de namoro, que originou o casamento com 26 (vinte e seis) anos de idade, o qual perdurou sensivelmente 20 (vinte) anos.
106) O divórcio não criou problemas no relacionamento do casal, que sempre manteve um bom relacionamento e um convívio salutar nas festas de família.
107) No âmbito da acção ordinária n.º (…) que correu seus termos no Juízo Central Criminal desta Comarca, (…), na qualidade de legal representante da Autora, a (...) – (...), (…), na qualidade de Réu, e (...), na qualidade de Réu, celebraram um acordo no dia 26 de Abril de 2017, que foi homologado por sentença transitada em julgado, nos seguintes termos:
(…)
108) Na sequência do acordado, foi judicialmente decidido, relativamente ao processo (…), face à confissão do pedido, no sentido da condenação do Réu (...) nos exactos termos peticionados, ou seja, no pagamento à Autora (...) (...) da quantia de €1.113.139,73, acrescidos de juros de mora vincendos a contar da data da notificação até efectivo integral pagamento.
109) Apesar de dispor das aludidas poupanças e de capacidade de trabalho, (...), até ao presente, não restituiu qualquer quantia monetária à (...).
110) (...) assumiu em audiência que não exerce qualquer actividade remunerada deliberadamente pois se o fizer as quantias que vier a auferir serão apropriadas pelos seus credores.

2.º FACTOS NÃO PROVADOS
Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa.

3.º MOTIVAÇÃO DE FACTO
(…)

B) – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
QUESTÕES A DECIDIR
As questões jurídicas que importa conhecer, atento o objecto do processo, delimitado pelo teor da acusação, e o princípio da vinculação temática do Tribunal, são as seguintes:
- Primeira, aquilatar, por um lado, se (...) deve ser jurídico-penalmente responsabilizado pela prática, em autoria material, de um crime de peculato, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 66.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) e 2, 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal); e
- Segunda, caso se conclua pela sua responsabilidade jurídico-penal, apurar a espécie e medida da pena a aplicar-lhe.

1.º ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS
1. Prevê o artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal que “o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Por sua vez, o artigo 386.º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, que consagra o “Conceito de funcionário” e, no essencial, se mantém inalterada, estabelece que:
1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange: a) O funcionário civil; b) O agente administrativo; e c) Os árbitros, jurados e peritos; e d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
2 - Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.
3 - São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 335.º e 372.º a 374.º: a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de organizações de direito internacional público, independentemente da nacionalidade e residência; b) Os funcionários nacionais de outros Estados, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; d) Os magistrados e funcionários de tribunais internacionais, desde que Portugal tenha declarado aceitar a competência desses tribunais; e) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, independentemente da nacionalidade e residência, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; f) Os jurados e árbitros nacionais de outros Estados, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português.
4 - A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.”.
Através da incriminação da descrita conduta procurou o legislador tutelar, por um lado, bens jurídicos patrimoniais (um direito patrimonial do Estado, ainda que a propriedade não seja do Estado) e, por outro lado, e predominantemente, a probidade e a fidelidade dos funcionários, para garantir o bom andamento, a legalidade e a imparcialidade da administração (neste sentido, Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, pág. 688 a 691).
Conforme decorre claramente da leitura do normativo transcrito, o crime de peculato é um crime específico impróprio, ou seja, na definição de Figueiredo Dias, um crime em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar, uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional o pode cometer (vide Parte Geral do Direito Penal, Almedina, pág. 319).
Efectivamente, o agente do crime terá de ser um funcionário, tal como ele é definido no artigo 386.º do Código Penal, funcionário esse que, por força das suas funções, tem a posse do bem objecto do crime.
E é essa qualidade de funcionário que distingue o crime de peculato do crime de furto ou do crime de abuso de confiança e é ela que torna a ilicitude da conduta do agente mais grave.
Sucede que, da leitura do citado artigo 386.º do Código Penal ressalta que o conceito de funcionário aí plasmado é deveras mais amplo que o conceito meramente administrativo e relacionado com a actividade do Estado.
No dizer de Leal -Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 3.ª ed., Rei dos Livros, 2000, pág. 1651, “a elasticidade da lei, neste âmbito, tem justificada razão, atendendo às múltiplas situações em que podem estar envolvidos cidadãos não rigorosamente funcionários, no sentido tradicional do termo, e que de outro modo não sofreriam uma censura jurídico-criminal ajustada aos seus actos, sendo certo que o seu comportamento não se afasta daquele que decorre dos servidores públicos como tal. Daí que a noção de funcionário, para estes fins, esteja intimamente ligada à ideia de função, que não propriamente ao formalismo da qualidade do agente (…) incluindo mesmo no conceito aquelas pessoas que prestam um exercício não profissional ou não permanente, as que não são remuneradas, as que não foram convocadas para servir mas espontaneamente deram o seu contributo, etc.”.
Também José António Barreiros, in Crime de Peculato, Labirinto das Letras, Março de 2013. pág. 11, após referir que o peculato é um crime de funcionário (mais à frente, a fls. 35, dirá ser um crime de mão própria, pois só pode ser cometido por quem tenha determinada qualidade pessoal, de funcionário, no sentido jurídico -penal, ou seja, em sentido mais amplo, diferente do conceito do Direito Administrativo), adianta que “é um tipo de ilícito que se encontra actualmente em expansão, ante a circunstância de o conceito jurídico -penal de funcionário ter sido alargado pelo Código Penal por razões pragmáticas inerentes à maximização da perseguição penal, a pessoas cuja ligação ao sector público é mais difuso do que a que resultaria ante o conceito clássico de funcionário”. E, desfazendo qualquer equívoco, adverte que, “[i]maginar que um presidente de uma associação privada passa a ser “funcionário” para efeitos penais desde que a mesma tenha obtido o estatuto de utilidade pública e assim qualquer apropriação que o mesmo faça de valores associativos (ainda que de origem privada) passa a ser peculato e não furto ou abuso de confiança, já nos dá a real dimensão daquilo a que nos estamos a referir e abre a porta para perplexidades intelectuais que só se resolvem numa lógica prática pela qual o Direito se estende para além dos quadros da racionalidade típica para dar tutela a puros interesses estaduais que o Estado entende prosseguir por esta forma de sobre -criminalização”.
Por outras palavras, neste entendimento, a opção legislativa tem a ver com a natureza, não da instituição, sem autoridade pública, mas da actividade que desenvolve, de utilidade pública. Estando em causa o exercício de uma actividade de utilidade pública, complementar da desenvolvida pelas entidades públicas em determinadas áreas, actividade essa que envolve o uso de fundos públicos, não se pode deixar de concluir que o Estado é indirectamente lesado com condutas criminosas como as que são objecto de apreciação no caso sub judice.
Sabendo que no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2020 publicado no Diário da República n.º 96/2020, Série I de 18 de Maio de 2020, se decidiu que “o conceito de 'organismo de utilidade pública', constante da parte final da actual redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, não abarca as instituições particulares de solidariedade social, cujo estatuto consta hoje do Decreto-Lei n.º 172-A/2014, de 14 de Novembro, alterado pela Lei n.º 76/2015, de 28 de Julho”, impõe-se, à luz do enquadramento jurídico supra preconizado, demarcar a situação de facto em apreço dos fundamentos que alicerçaram esta uniformização da jurisprudência.
Com efeito, a (...) não é uma instituição particular de solidariedade social, mas sim uma associação que tem como objecto específico o tratamento de águas residuais relacionadas com a utilização do domínio público hídrico, assegurando a gestão do sistema de tratamento de águas residuais de (...), nomeadamente a sua exploração e conservação, podendo igualmente assegurar a gestão do tratamento e reciclagem do crómio e de quaisquer outros resíduos resultantes da actividade dos utilizadores. Ademais, a (...) é uma associação sem fins lucrativos, que não distribui dividendos pelos seus associados e detém o estatuto de entidade de utilidade pública, nos termos do disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei nº 460/77, de 7/XI, conferido por despacho do Primeiro-Ministro, datado de 20 de Março de 1995, publicado no DR nº 95, II Série, de 22 de Abril de 1995.
Quer dizer, na (…) verifica-se uma cabal e exclusiva identificação da função da associação a uma função pública. Tal significa que a abrangência pelo conceito de funcionário de quem desempenhar funções na (...), enquanto organismo de utilidade pública, na medida em que desempenha ou participa no desempenho de uma actividade compreendida exclusivamente na função pública administrativa. O que leva à conclusão de que o Presidente do respectivo Conselho de Administração se trata de um funcionário, para efeitos jurídico-penais, que desempenha de uma tarefa materialmente compreendida nas tarefas da administração pública.
Sucede que, ao Estado compete um conjunto de tarefas que só podem ser convenientemente realizadas com recurso à colaboração com entidades privadas, seja em razão dos modelos organizativos do próprio Estado, seja pela dificuldade de chegar a todas as partes do território, seja pela conveniência de prestar determinados serviços numa lógica de mercado. Sem prejuízo, a dimensão material da actividade desenvolvida pelas entidades provada a quem é concessionada exploração da função pública afigura-se decisiva para a qualificação do agente como funcionário. O conceito de funcionário para efeitos penais não pode ser arbitrário, sob pena de se colocar o aparelho do Estado ao serviço de interesses que vão para além do interesse público da defesa dos bens jurídicos subjacentes aos crimes cometidos no exercício de funções públicas, ou que pressuponham a qualidade de funcionário, colocando-o na órbita de interesses privados que por esta via ficarão numa situação de privilégio relativamente a outros sujeitos ou operadores de mercado. Isso é particularmente visível no que diz respeito às empresas concessionárias de serviços públicos, que têm fins lucrativos. Ou seja, uma caracterização como funcionário baseada na relação subjectiva entre o trabalhador e a instituição, retiraria em muitas situações fundamento material à antijuridicidade ou antijuridicidade agravada pressuposta nos tipos penais que exigem essa qualidade por parte do agente. E sem esse fundamento material esvai -se a própria legitimidade de intervenção do direito penal enquanto ultima ratio da política social.
Isto mesmo se parece depreender do que escreve Damião da Cunha, in ob. cit., em anotação ao artigo 386.º do Código Penal, a propósito do conceito de funcionário no âmbito do sector público empresarial: “(…) a atribuição da qualificação de funcionário a um agente deve estar dependente ou de uma especial vinculação ou qualificação pessoal deste, ou do facto de este desempenhar funções ou participar numa empresa que desenvolva uma actividade de serviço público”.
Ou seja, mais do que uma equiparação entre agentes é preciso ocorrer uma equiparação entre as funções de modo a que se possa considerar que a conduta do agente lesou bens jurídicos conexos com interesses do Estado e que são tutelados no capítulo relativo aos crimes praticados no exercício de funções públicas
Nesta conformidade, consideramos que a parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal abrange as associações, como a (...), que têm como objecto exclusivo o exercício de funções públicas, em concordância, aliás, com o entendimento plasmado por Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Código Penal, 3.ª edição actualizada, página 1234. Assim, de acordo com o entendimento preconizado. “o organismo de utilidade pública é a pessoa de direito privado que é objecto de declaração de utilidade pública, precisamente porque a declaração de utilidade pública reconhece a ‘cooperação’ desta pessoa colectiva no exercício da função pública da Administração (…)”.
Em conclusão, a conduta do arguido subsume-se ao conceito da figura de funcionário para efeitos da lei penal, pelo que se encontra preenchido o primeiro segmento do elemento objectivo do tipo legal de crime do artigo 375.º do Código Penal.
2. No que à conduta típica concerne, o crime de peculato consiste na apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, de uma coisa móvel alheia – na parte que ao caso vertente interessa - que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções.
Como bem nota Conceição Ferreira, na mencionada anotação a este artigo, o conceito de posse deve ser “entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções” (cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, pág. 688 e sãs).
A acessibilidade ao bem deve contudo derivar das funções do agente, pelo que deverá existir uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação.
Assim, o agente deve ter a posse ou detenção do objecto “em razão das suas funções”.
Acompanhamos, pois, à análise de Conceição Cunha no sentido da interpretação restrita desta expressão constante do tipo: é necessário, para que uma determinada conduta seja subsumida ao tipo legal em análise, que a posse esteja na dependência funcional do exercício da função, pois a razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do funcionário-agente, da confiança funcional que nele foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem, entendendo-se esta posse, como já supra se referiu, por detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador dos bens, não se desviando dos fins legais. O funcionário é punido desta forma agravada porque abusou das suas funções ou foi infiel às suas funções, traindo a confiança que lhe foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem. É esta relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função, de modo a que a apropriação viole a relação de fidelidade pré-existente que, no caso dos autos, inexiste.
Saliente-se ainda que o crime de peculato é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de resultado, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.
O objecto do crime de peculato é, assim, duplo: por um lado, a tutela de bens jurídicos patrimoniais; e, por outro, a tutela da probidade e fidelidade dos funcionários.
Consistindo o tipo objectivo na apropriação pelo funcionário, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções; ou na oneração dos referidos bens, por exemplo, dando de empréstimo ou empenhando. A acção de apropriação inclui a apropriação de dinheiro ou da coisa que se encontra na posse ou acessível ao funcionário em razão das suas funções.
Sendo, pois, recapitulando, seus elementos típicos:
a) Que o agente seja um funcionário (ou equiparado) para efeitos do artigo 386.º do Código Penal;
b) Que tenha a posse do bem (neste caso dinheiro ou coisa móvel) em razão das suas funções;
c) Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro, o que deve revelar-se por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a “inversão do título de posse ou detenção”;
d) Que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.
A consumação ocorre quando o agente inverte o título de posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente.
No caso sub judice, provou-se que o arguido era, à data da prática dos factos, Presidente do Conselho de Administração da (...) e, nos termos acima expostos, funcionário para efeitos penais.
Provou-se também que o arguido, aproveitando-se de circunstância de, enquanto Presidente do Conselho de Administração, ter acesso às receitas e aos depósitos bancários daquela Instituição, se foi apoderando entre os anos de 2008 e 2012, de diversas quantias monetárias que lhe foram confiadas gerir no exercício das funções, que sabia não lhe pertencer, fazendo seu, pelo menos, o valor global de €960.000,00 (novecentos e sessenta mil euros.
Tratam-se, pois, de quantias monetárias que, como se disse, lhe tinham sido confiadas e que possuía por força das suas funções. Concretamente, as quantias monetárias foram entregues ao arguido, enquanto presidente do Conselho de Administração da (...), para que ele o rentabilizasse, em proveito/benefício exclusivo da (...) e nas condições por ele expostas aos demais administradores. Daí que se imponha concluir que o arguido violou a relação de fidelidade pré-existente e deve, pois, a sua conduta ser reconduzida ao tipo legal em análise.
3. Em reforço do entendimento preconizado, cumpre salientar que «a conduta punida por este tipo legal consiste na apropriação ilegítima; por apropriação deve entender-se o acto de fazer seu o bem, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor; a apropriação é ilegítima desde logo porque não deriva de nenhum título aquisitivo da propriedade.» E escreve Figueiredo Dias, no mesmo Comentário Conimbricense, a págs. 103 e sãs sobre o elemento apropriação e apropriação ilegítima, para que remete a anotação do artigo 375.º «a apropriação no abuso de confiança “não pode ser…um puro fenómeno interior – até porque cogitationis poenam nemo patitur – mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento, que o revele e execute” (doutrina que a jurisprudência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). É a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação.» (…)
«A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção.» (…)
«O agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do titulo de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.» (…)
Problemas são aqui de novo suscitados pela apropriação de coisas móveis absolutamente fungíveis, nomeadamente dinheiro… (…)
«…o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não será integrado pela mera confusão ou o simples uso de coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos; ao que, é claro, terá de acrescer o dolo correspondente.» (…)
«À integração do tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança é finalmente necessário que a apropriação seja ilegítima. (…) no abuso de confiança do que se trata (…) é de que a apropriação não deve ter-se por ilegítima sempre que ela não acarrete uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade, máxime, porque o agente detém sobre o desapropriado uma pretensão jurídico-civilmente válida, já vencida e incondicional (…).»
Ora, resulta da extensa prova documental junta aos autos e ficou sobejamente demonstrado, que o arguido depositou e levantou inúmeros cheques emitidos pela (...) em contas bancárias de sociedades comerciais que geria de facto, contas bancárias da companheira e outros familiares e, bem assim, de restituiu somente parte dessa quantia apropriada, perfazendo o valor em falta a quantia global de € 960.000,00 (novecentos e sessenta mil euros).
Para além de não ter devolvido o aludido remanescente, retendo-o na sua posse, o arguido não apresentou qualquer justificação plausível para o facto, não demonstrou que lhe deu qualquer fim lícito, ou seja, que foi utilizado para os fins da associação em causa ou sequer em benefício da (...), nem invocou razões com base nas quais se possa sustentar que lhe foi dado um fim lícito ou que, pelo menos, faça crer que assim possa ter acontecido.
Antes pelo contrário, os argumentos invocados pelo arguido para a não devolução do dinheiro não têm qualquer sustentação possível, nem constituem justificação para tal atitude.
É certo que se demonstra que, logo no ano de 2008 o arguido afirmou perante os demais administradores o propósito de se apropriar da quantia em dinheiro que lhe foi confiada pela (...) para “investir em benefício daquela associação”, mas também resulta sobejamente demonstrado que nunca realizou qualquer investimento ou aplicação financeira e que, ao invés, canalizou todas as quantias para as sociedades comerciais que geria.
De qualquer modo, o momento da formulação do propósito é absolutamente irrelevante para o preenchimento do tipo criminal em causa.
Quer para o crime de abuso de confiança, quer para o de peculato, o que releva é a apropriação, não o propósito de apropriação. Aquela consuma-se com a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa ou, simplesmente, dar-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar. Qualquer dessas atitudes revela que o arguido agiu como se o dinheiro fosse dele, usou-o como se fosse o respectivo dono, apropriando-se do mesmo. É esse o momento da inversão do título da posse, pois, enquanto até ali, o agente possuía em nome de terceiro – tendo aquele recebido o bem por título não translativo da propriedade com fito de realizar os aludidos “investimentos” -, a partir de então agiu como dono da coisa que lhe foi entregue.
Aquela apropriação, implicando a aludida inversão do título de posse, extrai-se da prática de actos concludentes de que resulte a intenção de o agente fazer sua a coisa, sendo exemplo de tal apropriação «a recusa de restituição ou a omissão da recusa de interpelação para o efeito», ou ainda, a «mera omissão da devolução decorrido um tempo razoável» e, tratando-se de coisa fungível, como o dinheiro, «ocorre quando o agente não a restitui no tempo e sob a forma combinada com o seu proprietário ou dispõe dele de forma injustificada» - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 568, citando vários autores e jurisprudência atinente.
É inquestionável que o arguido, começou por, no ano de 2008, restituir parte relevante da quantia monetária que lhe foi confiada e que inclusivamente fez a entrega de cheques de valor equivalente aos que lhe foram confiados e, concomitantemente, entregou cheques de menor valor monetário aos quais imputou o pagamento da remuneração (juros) devida pela realização dos aludidos investimentos.
Sucede que, logo a partir do ano de 2009 verifica-se uma enorme desproporção entre o valor monetário confiado ao arguido (€1.100.000,00) e o valor restituído pelo mesmo (€510.000,00) e que a partir do ano de 2010 o arguido nem sequer restituiu qualquer quantia, nunca mais tendo devolvido o remanescente (no valor de cerca de €960.000,00), apesar de lhe ter sido solicitado, inclusivamente com recurso à via judicial. E, note-se, já decorreram cerca de oito anos e nunca foi apresentada qualquer justificação plausível para tal comportamento.
No caso vertente, ao gastar as quantias monetárias tituladas nos cheques supra identificados em proveito das aludidas sociedades comerciais cuja gestão de facto exercia, em vez de as destinar à realização de investimentos financeiros em proveito da (...), o arguido passou a utilizá-la como se as mesmas lhe pertencessem e a comportar-se relativamente a estas uti dominus, o que significa que se apropriou das mesmas.
Efectivamente, as quantias monetárias foram entregues ao arguido, enquanto Presidente do Conselho de Administração da (...), para que ele o rentabilizasse, em proveito/benefício exclusivo da (...) e nas condições por ele expostas aos demais administradores, mas, ao invés, o arguido canalizou essas quantias, em benefício próprio, para as sociedades comerciais que administrava.
Tal apropriação é indubitavelmente ilegítima no sentido de contrária ao interesse público prosseguido pela (...) e ao ordenamento jurídico pelo se encontram preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal do crime de peculato.

4. Do ponto de vista subjectivo, estamos em presença de crime essencialmente doloso, pelo que, de acordo com a conceitualização da doutrina hoje dominante, se exige que o agente tenha conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do tipo objectivo de ilícito.
De um lado, impõe-se que, ao actuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.º do Código Penal (a este propósito, vide Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 328 e sãs).
Do que ficou dito resulta que a afirmação do dolo do tipo exige, antes de tudo, a apreensão do sentido ou significado, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, da totalidade dos elementos constitutivos do respectivo tipo de ilícito objectivo, da factualidade típica.
No caso dos autos, resultou provado que o arguido, aproveitando-se dessa relação de fidelidade, a determinada altura, com o desconhecimento dos demais administradores e associados, passou a agir como se o dinheiro em causa fosse seu, destinando-o a seu favor e de terceiros, bem sabendo que para tal não estava autorizado, prejudicando os desígnios/interesses da (...) e dos associados. Tanto assim é que o arguido nunca deu a conhecer aos demais administradores a forma como estaria a “gerir” o dinheiro da (...), ciente que caso o fizesse estes nunca o iriam aprovar. De facto, não é pelo facto de os demais administradores não o questionarem como estavam a ser processados os investimentos - tal como declarou com vista a justificar o desconhecimento dos administradores-, que lhe retira a obrigação de lhes dar a conhecer, bem como aos associados, a forma como procedia, inclusive para sua salvaguardar. Não o fez, porque sabia, que para tal não estava legitimado. E a circunstância de o arguido nunca ter diligenciado pela regularização das assinaturas da ficha no (…), fazendo que da mesma passasse a constar a assinatura da nova Presidente do Município, tal como deveria ter feito de imediato, assenta precisamente no facto de saber que, ao movimentar aquelas quantias monetárias, da forma arbitrária como fazia, estava a proceder de forma errada, e que aquela nunca iria anuir a tais alegados “investimentos”; bem como a forma como determinou que o contabilista certificado que apresentasse as contas finais anuais, através da realização da tal operação de “charme”, evidencia a sua preocupação em ocultar os prejuízos que estava a causar à (...) e aos seus associados, consciente que estava da ilicitude da sua conduta.
Assim, resultou provado que o arguido agiu com a vontade determinada de fazer suas as aludidas quantias monetárias, sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e em prejuízo da (...), agindo sempre conscientemente e com perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida por lei, pelo que se mostra preenchido o elemento subjectivo, nas suas vertentes cognitiva e volitiva.
Nesta conformidade, no caso dos autos é ostensivo que a arguido actuou com dolo directo, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.

5. Nos termos do artigo 26.º do código Penal, “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Atenta a factualidade provada, afigura-se que a responsabilidade do arguido pela prática do crime de peculato lhe deve ser imputada a título de autoria material.

6. Refira-se ainda que nenhum dos factos provados tem a virtualidade de integrar qualquer causa de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa do arguido, sem prejuízo de serem considerados no momento da determinação concreta da medida da pena a aplicar ao mesmo, pelo que deve ser condenado pela prática do crime de peculato pelo qual vem acusado.

2.º DETERMINAÇÃO DA ESPÉCIE E MEDIDA DA PENA
1. O Código Penal traça um sistema punitivo que parte do princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.
Efectivamente, o artigo 40.º do Código Penal elege como fins das penas e das medidas de segurança a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente infractor na sociedade. Em articulação com este preceito, o n.º 1 do artigo 71.º do diploma legal citado, estabelece que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
No processo de escolha da medida da reacção criminal a culpa assume, assim, a dignidade de pressuposto incontornável de toda e qualquer punição.
Como considera Figueiredo Dias, in Das Consequências Jurídicas do Crime), a culpa e a prevenção constituem os dois vectores fundamentais em que assenta a operação de determinação da medida da pena. “Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.
Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela imanente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”
No caso vertente, temos que o crime peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, é punido com pena de prisão de 1 (um) até 8 (oito) anos.
Foi o legislador que, atendendo aos ponderosos interesses em causa, afastou a regra da preferência pela pena não detentiva, impondo a pena de prisão como única aplicável.
Resta, por conseguinte, determinar o respectivo quantum.
2. Para a determinação da medida concreta da pena, importa ponderar todas as circunstâncias que, não integrando o tipo legal de crime em análise, se revelem susceptíveis de evidenciar as exigências concretas da culpa e da prevenção, em conformidade com o estatuído no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, tendo presente a sua natureza ambivalente, bem como a necessidade de ponderação global e valoração concreta de todas as circunstâncias apuradas.
A culpa do agente, por consubstanciar um juízo de valor, é insusceptível de medição exacta, pelo que, se confere ao julgador alguma flexibilidade na sua apreciação – que Anabela Miranda Rodrigues sublinha não ser ilimitada, mas consubstanciar discricionariedade juridicamente vinculada, sindicável por via de recurso – e que, não obstante, deverá ser integrada pela consideração das exigências de prevenção de futuros crimes (cfr. “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, Abril -Junho de 2002, pág. 147/182).
O quantum de culpa constituirá sempre o limite máximo da pena a aplicar, em nome do princípio da culpa em sentido unilateral, segundo o qual, apesar de poder haver culpa sem pena, a pena dependerá sempre da existência de culpa, nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal.
Neste contexto, a prevenção geral determinará o mínimo abaixo do qual a intervenção punitiva do Estado seria de todo ineficaz para restabelecer a confiança comunitária na norma e ao mesmo tempo o máximo, que será o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias; a culpa funcionará sempre como limite máximo inultrapassável da pena, ainda que abaixo do óptimo encontrado quando operando com critérios de prevenção geral; por último, dentro da moldura assim encontrada, funcionará a prevenção especial positiva que determinará o quantum necessário para permitir ao arguido a sua ressocialização.
No caso sub judice, o Tribunal ponderou o elevado grau de ilicitude dos factos, bem como a intensidade do dolo com que o arguido agiu. Também foram ponderadas as qualidades da sua personalidade manifestadas nos factos, revelando relevante desconformação com o direito - atenta a gravidade do ilícito em presença e o contexto de uma relação de confiança em que o mesmo foi praticado – e as relevantes consequências da conduta ilícita, atento o valor muito elevado prejuízo patrimonial determinado pelo mesmo.
No que concerne às necessidades de prevenção geral, diremos que as mesmas são se fixam num grau muito alto, merecendo, no caso em apreço, um especial cuidado, não só porque têm frequentemente sido levadas a cabo na nossa sociedade, como também pelo modo próprio e motivos subjacentes, sendo necessário repor a confiança nas normas jurídicas violadas de tal forma que se evitem situações de insegurança.
Acresce que o arguido demonstrara uma manifesta falta de respeito pelo interesse público e pelo património alheio e incapacidade para assimilar o desvalor jurídico das suas condutas, bem como revela individualismo e incapacidade para assimilar a sua responsabilidade ética perante os seus pares no meio social envolvente.
A favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais pela prática de crime de idêntica natureza e a sua inserção social, ainda que esta dependa essencialmente do apoio de terceiros uma vez que o arguido já manifestou não pretender reorganizar a sua vida e exercer actividade remunerada uma vez que nesse caso os seus credores iriam apropriar-se dos seus rendimentos.
Por último, e no que diz respeito à prevenção especial, teremos que atender ao modo como o crime foi cometido, à intensidade do dolo que presidiu às suas resoluções e à existência de antecedentes criminais pela prática de crime de falsificação de documento.
Entende-se, assim, que é simultaneamente adequado às exigências de prevenção geral e especial e respeitador do limite imposto pela culpa a aplicação ao arguido de uma pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
3. Nos termos do artigo 50.º do Código Penal estatui que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Nesta sede não estão em causa considerações sobre a culpa, mas exigências de prevenção, importando de determinar se existe a possibilidade fundada de que a socialização pode ser alcançada em liberdade.
Deste modo, sempre que o julgador formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial, acerca da possibilidade de ressocialização, deverá deixar de decretar a execução da pena de prisão (neste sentido, vide Acórdão da Relação de Évora de 4 de Janeiro de 2000, in BMJ, Nº 493, pág. 432).
No plano da prevenção especial mostra-se necessária uma resposta punitiva que promova uma eficaz recuperação do agente, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, fazendo-lhe sentir a antijuridicidade e gravidade da sua conduta. Por isso, a opção deve partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a autoprevenção do cometimento de novos crimes, devendo a suspensão ser decretada sempre que se configure esse juízo favorável.
Ora, no caso em apreço, desde logo, mão se encontra preenchido o pressuposto formal, consistente na não aplicação ao arguido de uma pena de prisão superior a cinco anos.
No que respeita ao pressuposto material, reconduzível a um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do delinquente, cumpre salientar que a gravidade dos factos ilícitos praticados pelo arguido, configurativos do crime de peculato, decorre, não só do montante da quantia objecto de apropriação indevida por parte do arguido [no caso, efectivamente, de valor avultado: quase de um milhão de euros], mas também do dano que com a sua conduta delituosa o arguido provoca na imagem do serviço público que, por suposto, devia servir com honestidade e por forma a prestigiá-lo.
Admitindo, pois, a projecção destes dois factores na determinação judicial da sanção, considera-se que a suspensão da execução da pena de prisão nunca se mostraria adequada a satisfazer a protecção dos bens jurídicos violados e a propiciar a reintegração do agente na sociedade.
Na verdade, o juízo de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição impõe-se como consequência necessária das exigências de prevenção geral e especial, já expostas: designadamente, das impressivas avultadas consequências da prática do crime, da sua postura refractária perante o presente crime e das exigências de prevenção geral nos crimes de peculato são muito elevadas, desde logo pela razoável frequência com são praticados em todo o País e porque este é o tipo de crime que causam forte alarme e “sentimentos de insegurança” na comunidade.
O sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido, numa situação como esta, em que o arguido manifesta total sentimento de impunidade e de obstaculizar a toda e qualquer reparação da lesada, ficaria afetado pela substituição, da pena de prisão por suspensão de execução da pena de prisão, mesmo que sujeita a condições.
Em suma, não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ainda que a pena não ultrapassasse o limite legal de 5 (cinco) anos nunca poderia ser decretada a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.
Quanto a um eventual arrependimento, entendendo-se ele como “um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente, no sentido de que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir” – cfr. neste sentido Ac. do STJ de 21 de Junho de 2007, Proc. nº 07P2042, disponível em www.dgsi.pt –, a factualidade provada tal não revela, sendo que, in casum, o arguido nem sequer o verbalizou em audiência, apesar da evidência das provas que concorriam contra si, mas, pelo contrário, assumiu uma postura de omissão de interiorização do desvalor da sua conduta e de determinação em nada fazer no sentido de minimizar os gravosos danos emergentes da conduta ou reparar, nem que fosse parcialmente, a lesada.
As exigências de prevenção geral são, então, muito intensas, dada a elevada censura social, mesmo forte indignação, que este tipo de crime provoca, conquanto constitui uma afronta aos alicerces do Estado de Direito democrático e de menosprezo do bem público, bem como o descrédito junto da comunidade.
As exigências de prevenção especial assumem também forte intensidade, ponderando a sua postura não completamente crítica perante o crime, circunstância reveladora de uma personalidade com necessidade de socialização e de consciencialização da imposição da adopção de comportamento em conformidade com o Direito.
Pelo exposto, efectuado juízo de ponderação sobre a sua culpa e considerando as exigências de prevenção, a natureza do crime, as suas consequências e a personalidade do arguido e a repercussão social que tem este tipo de crimes no meio em que se insere, impõe-se o cumprimento de pena privativa da liberdade.
Destarte, deve inexoravelmente o arguido cumprir pena de prisão efectiva.

4. Nos termos do artigo 66.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção actual, que vem já da alteração introduzida nesta matéria pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, «o titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto: a) For praticado com flagrante e grave abuso das funções ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes; b)Revelar indignidade no exercício do cargo; ou c) Implicar a perda de confiança necessária ao exercício da função
São, portanto, dois os pressupostos exigidos, um de natureza formal e outro, de natureza material. O primeiro diz respeito à condenação numa determinada pena: 3 (três) anos de prisão; o segundo relaciona-se com a conexão do crime praticado com as funções exercidas, ou por o crime ter sido cometido com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes (alínea a), ou por o crime praticado, apesar de cometido fora da função, revelar indignidade no exercício do cargo, ou implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função (alíneas b) e c).
Como anota Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, pág. 168, o que faz desencadear a pena acessória é a violação grave de deveres relativos à função exercida pelo agente ou a consequência que a prática do crime acarreta do ponto de vista funcional, pela indignidade manifestada na prática do crime ou pela perda de confiança necessária ao exercício da função que dele deriva. Analisando-se no reflexo produzido na função, o aludido pressuposto acresce à prática do crime propriamente dito, sendo aquele o determinante autónomo da aplicação da pena acessória, que assim se distingue da sanção correspondente ao crime – sanção principal, embora pressupondo-a.
A reforma penal de 1995 trouxe uma inovação importante, para além de outras, nesta matéria: a introdução de um mínimo e um máximo – limites dentro dos quais deve ser doseada a pena acessória, conferindo, assim, a esta uma mais vincada natureza de pena (e não já de medida de segurança), pena essa a ser doseada de acordo com critérios ligados ao facto praticado e à culpa do agente. Uma tal reforma não é alheia às críticas tecidas ao regime anterior por Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 178 e ss.
Ora, quanto ao pressuposto formal, não há dúvida de que o arguido foi condenado na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão. Deste modo, está preenchido aquele pressuposto formal.
Resta aquilatar o pressuposto material.
Ora, atendendo à factualidade dada por assente, não pode deixar de se reconhecer que o arguido pôs seriamente em causa os pilares éticos, deontológicos e jurídicos em que assenta o exercício da função.
Do que se trata é de fazer reflectir na pena a fixar que quem desempenha cargos de interesse público relevante, como era o caso do arguido, deve, mais do que qualquer outra pessoa, abster-se da prática de actos que possam pôr em causa, como puseram, o bom nome da instituição onde se inserem.
Na verdade, a actuação geral do arguido afectou de forma grave aqueles fundamentos em que assenta o exercício da função que desempenhava, sendo o mais alto representante de uma instituição que tem como objectivo a conservação e tratamento do domínio público hídrico.
A actuação do arguido, reiterada, persistente, em crimes tão grave não deixa de ter pronunciado reflexo em tais funções, implicando a perda da confiança necessária ao seu exercício.
Ora, a actuação do arguido, revelada em todas estas situações, é particularmente lesiva dos deveres inerentes ao cargo, sendo adequada a produzir a tal perda de confiança no exercício da função, para além de revelar indignidade, sendo que, como referem Simas Santos e Leal Henriques no seu Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, em anotação ao artigo 66.º «é indigno tudo o que for desprezível, indecoroso, impróprio, inadequado ao prestígio e elevação que o exercício do cargo exige dos seus servidores.»
Por todo o exposto, o arguido não pode deixar de ser punido com a pena acessória de proibição de exercício das funções que desempenhava (e não de qualquer cargo público). É que «a proibição do exercício de função pública não impossibilita o titular, funcionário ou agente de ser nomeado para cargo ou para função que possam ser exercidos sem as condições de dignidade e confiança que o cargo ou a função de cujo exercício foi proibido exigem» (cfr. artigo 68.º, n.º 2 do Código Penal).
Considerando a gravidade da actuação do arguido do ponto de vista do prejuízo acarretado para a função e o seu reflexo na confiança que deve merecer aos cidadãos, e ainda a culpa do mesmo arguido na violação dos deveres impostos pelo exercício do cargo, sendo o Presidente do Conselho de Administração e servindo numa instituição de relevante interesse público, acha-se adequado puni-lo com a pena acessória de proibição de exercício daquela função por um período de 3 (três) anos e 8 (oito) meses.

5. Considerando a situação económica do arguido e a tramitação processual destes, mostra-se adequado fixar a taxa de justiça, a cargo de cada, em 5 UC, nos termos dos artigos 513.º e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

DA PERDA DE PRODUTOS E VANTAGENS
6. Em sede de despacho de acusação, o Ministério Público, dando por reproduzidos os factos e elementos probatórios daquele despacho, promove igualmente que o valor de €960.000,00 alcançado pelo arguido, seja declarado perdido a favor do Estado, sendo o mesmo condenado a pagar ao Estado o referido montante, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1 alínea b), 3, 4, 5, e 6, 111.º, n.ºs 2, 3 e 4, 112.º e 112.º-A, do Código Penal, sem prejuízo dos direitos da ofendida (...).
Sucede que o regime jurídico em vigor à data do crime constante do artigo 111.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 32/2010, de 2 de Setembro, diverge daquele que resultou da entrada em vigor da Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio, que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia.
O crime que constitui o objeto deste processo ocorreu no período temporal fixado entre 2008 a 2012 – ou seja, antes dessa alteração legislativa.
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
Cumpre, portanto, comparar os dois regimes jurídicos que se sucederam no tempo desde a data da prática do crime e apurar aquele que se mostre mais favorável ao arguido.
Regime legal em vigor à data do crime:
Artigo 111º do Código Penal, na versão introduzida pela Lei nº 32/2010, de 2 de Setembro:
1 – (…).
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico.
4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.”
Regime legal que sucedeu a essa versão legal:
Artigo 110º do Código Penal, na versão introduzida pela Lei nº da Lei nº 30/2017, de 30 de Maio:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) (…); e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 – (…).
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 – (…).
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”
Comparando os dois regimes jurídicos resulta manifesto que, in casu, a aplicação de um ou de outro dos regimes jurídicos em confronto não oferece qualquer vantagem comparativa ao arguido, não permitindo assim a aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal determinar, concretamente, o regime a aplicar.
Resta, apenas e tão-somente, aplicar o regime jurídico em vigor à data dos factos, fazendo uma interpretação extensiva do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal: “As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.”, ou seja, aplicar-se-á o disposto no artigo 111.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 32/2010, de 2 de Setembro.
Concretizando, no caso vertente não se mostra apreendida à ordem dos autos a importância em dinheiro da qual o arguido se apropriou ao consumar o crime de abuso de peculato pelo qual vai condenado.
Por conseguinte, não poderá ter lugar a entrega da mesma à lesada (a (...)), nem ser declarada a sua perda a favor do Estado (n.º 2 do artigo 111.º do Código Penal).
Perante esse pressuposto - e mesmo não tendo sido deduzido um pedido de indemnização civil por parte da lesada, tendo apenas sido requerida a condenação do arguido a pagar ao Estado aquela importância monetária ao abrigo do regime da perda de vantagem do crime -, a pretensão formulada deverá ser equacionada à luz do disposto no n.º 4 do mesmo artigo.
A este propósito, interessa recordar a ratio legis do instituto da perda de vantagem do crime: esta constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos.
Desenvolvendo essa noção, constitui entendimento pacífico na doutrina (cfr. Professor Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 41) e jurisprudência que a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”] – neste sentido vide os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto datados de14 de Setembro de 2016 (processo nº 459/15.1GAPRD.P1), e de 22 de Fevereiro de 2017, (processo nº 149/16.8.IDPRT.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Tal bastará para se concluir que a vontade do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa – mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado, uma vez que a lei não o distingue -: a norma legal atrás reproduzida (artigo 111º do Código Penal) tem caráter geral e abstrato, não prevendo a mesma qualquer excepção, mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa.
Seguindo o referido entendimento e filosofia político-criminal que presidiu à criação desta figura jurídica da perda de vantagens, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem defendendo que não tendo sido apreendida a quantia apropriada, não poderá ter lugar a entrega da mesma ao lesado (o ofendido de boa-fé), nem ser declarada a sua perda a favor do Estado, porém, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil por parte do lesado, há lugar à condenação do autor do crime a pagar ao Estado o valor correspondente, de que o arguido se apropriou ilegitimamente, por ter sido requerido pelo Ministério Público (nesse sentido, vejam-se, entre outros, o acórdãos do Tribunal da Relação de Porto de 14 de Setembro de 2016 (Proc. 459/15.1GAPRD.P1) disponível in www.dgsi.pt.
Revertendo para o caso dos autos, verifica-se que não foi deduzido pedido de indemnização civil e ficou provado que o arguido se apropriou de quantias monetárias pertencentes à ofendida, no valor de, pelo menos, €960.000,00, a que corresponde o prejuízo da ofendida (...). Mais se apurou que, até ao momento o arguido não restituiu aqueles bens e valores.
Assim, forçoso é considerar que o arguido obteve uma vantagem patrimonial ilícita de, pelo menos, €960.000,00, com a prática de um crime de peculato.
Fazendo nossas, as palavras de João Conde Correia, Procurador da República, e Hélio Rigor Rodrigues, Procuradores-Adjuntos, publicado na Revista publicado em Abril de 2015 na Revista Julgar On Line, disponível in http://julgar.pt/anotacao-ao-acordao-do-trg-de-01-12-2014-processo-21811-0gacbc-g1pedido-de-indemnizacao-eonfisco/), “a remoção dos incentivos económicos subjacentes a prática do crime, concretizada através do confisco das respectivas vantagens, constitui o único modo verdadeiramente eficaz de combater a actividade ilícita que visa o lucro. As finalidades preventivas que por esta via se alcançam, em conjugação com o quadro normativo vigente, impõem que se conclua de forma inequívoca que inexiste qualquer limite ao confisco motivado pela mera possibilidade de ser deduzido um pedido de indemnização civil”, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 111.º, n.º 4, do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, deve o arguido ser condenado a pagar ao Estado a quantia de € 960.000,00, sem prejuízo da ofendida poder vir a requerer a atribuição da sobredita quantia, nos termos do disposto no artigo 130.º do Código Penal.
A reforçar o entendimento preconizado, refira-se que o direito à indemnização da lesada, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido (cfr. facto provado 110), é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório.
A reserva constante do n.º 2, do citado artigo 111.º, em benefício dos direitos do ofendido ou terceiros de boa-fé, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes.
Aliás, no mesmo sentido vai a estatuição do artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, ao prever que o tribunal possa “atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109.º e 110.º”.
Nesta conformidade não há nenhuma incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização formulado pela lesada no âmbito do processo civil, tal como a jurisprudência tem vindo consistentemente a decidir no seguimento de informada doutrina (cfr., entre outros, “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários” - Dr. João Conde Correia e Dr. Hélio Rigor Rodrigues, in ob. cit).
Vejam-se, neste sentido e a título de exemplo, os seguintes Acórdãos: -Acórdão de 22 de Fevereiro de 2017, processo n° 2373/14.9IDPRT; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Março de 2017, processo n° 86/14.0IDPRT; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Junho de 2017, processo n° 25/15.1IDPRT; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Julho de 2017, processo n° 149/16.8IDPRT; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Maio de 2017, processo n° 259/15.9IDPRT; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2018, processo n° 176/16.5PAVFR; e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Janeiro de 2018, processo n° 126/14.3GBAMT; todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Daqui se conclui que o facto de já ter procedido o pedido de indemnização nos presentes autos no âmbito de acção civil que correu seus termos autonomamente em nada obsta à pretensão do Ministério Público – quando muito a declaração da perda de vantagens poderá é não alcançar qualquer efeito útil (conforme, aliás, já alertava Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pág. 633, § 1005) -, sendo certo que nem o Estado poderá obter o duplo pagamento das quantias em causa (se inteiramente coincidentes), nem o arguido terá que pagar a totalidade do valor fixado, caso já tenham feito, entretanto, reembolso parcial do mesmo à ofendida, como decorre da leitura harmónica quer dos preceitos legais aplicáveis quer dos princípios que regem nesta sede.
(…).»

2.3. Conhecimento do recurso
2.3.1. Do erro notório na apreciação da prova
(…)
2.3.2. Quanto ao erro de julgamento
(…)
2.3.3. Do erro na qualificação jurídica dos factos
Sustenta o arguido/recorrente que não se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de peculato, por que foi condenado, em 1ª instância, pelo que, se impõe a sua absolvição da prática de tal crime.
O Ministério Público e os assistentes pronunciam-se no sentido de que se mostra correta a subsunção jurídica dos factos, ao crime de peculato p. e p. pelos artigos 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al. d), ambos do Código Penal, como decidido pelo Tribunal a quo.
Vejamos:
Nos termos do artigo 375º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de peculato: «O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções (…).»
O tipo legal em análise tutela, simultaneamente, bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ilegítima de bens alheios e a «probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração (…), punindo abusos de cargo ou função.[9]»
Constituem elementos do tipo objetivo do crime de peculato:
- A qualidade de funcionário do agente;
- Que o funcionário, em razão das suas funções, tenha a posse do dinheiro ou do objeto da apropriação;
- Que o dinheiro ou a coisa móvel objeto da apropriação pelo funcionário sejam alheios relativamente ao agente;
- Que se tratem de bens que tenham sido entregues, estejam na posse ou sejam acessíveis ao agente, em razão das suas funções;
- Que a apropriação por parte do agente seja ilegítima.
Do ponto de vista da imputação subjetiva o crime de peculato é um crime doloso.
O agente terá, assim, de ter conhecimento da factualidade típica, nomeadamente, ter consciência de que se trata de bem alheio que lhe está acessível ou de que tem a posse em razão das suas funções e terá ainda de ter consciência e vontade de fazer seu o bem, para o seu próprio benefício ou de terceiro[10].
Começando por analisar, de per si, cada um dos enunciados elementos do tipo objetivo, temos que:
- O agente do crime tem de ser um funcionário ou equiparado.
O conceito de funcionário, para efeito da lei penal, vem plasmado no artigo 386º do Código Penal, sendo que, no que para o caso vertente releva, importa atentar na al. c), do n.º 1, na redação originária e a que corresponde atualmente, na redação introduzida pela Lei n.º 32/2010, de 2 de setembro, a al. d), que dispõe que: «Para efeito da lei penal, a expressão funcionário abrange: Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar
A citada norma contempla o “conceito alargado” de funcionário, equiparando a este aquele que, muito embora não tenham qualquer vínculo funcional ou pessoal à administração, é, no entanto, chamado a desempenhar atividades compreendidas no âmbito da função pública administrativa ou jurisdicional ou em organismos de utilidade pública.
É consabido que tem existido grande controvérsia na doutrina e na jurisprudência sobre o conceito de «organismos de utilidade pública» e sobre os requisitos que se terão de verificar para quem aí exerce funções possa ser considerado funcionário, para efeitos da previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 386º do Código Penal.
No acórdão recorrido é feita a análise desta problemática.
Merece-nos concordância o entendimento de que podendo ser considerados organismos de utilidade pública as pessoas coletivas de direito privado que são objeto de uma declaração de utilidade pública, tal não basta para que possa ser atribuída a classificação de funcionário, para efeitos da lei penal, nos termos previstos na al. d), do n.º 1 do artigo 386º do Código Penal, ao agente que aí exerça funções[11], sendo, ainda, necessário que o agente desempenhe uma atividade de utilidade pública[12], complementar das desenvolvidas pelas entidades públicas, em determinadas áreas, atividade essa que envolve o uso de fundos públicos.
Como refere o Cons. Júlio Pereira, na declaração de voto de vencido, que lavrou no Acórdão do STJ, n.º 3/2020, de 13/02/2020[13], «Diferentemente do que acontece com a previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 386.º, em que a qualidade de funcionário para efeitos penais emerge da relação subjetiva que se estabelece entre um sujeito e uma pessoa colectiva de direito público, na alínea c)[14] o que está em causa é o conteúdo material da actividade desenvolvida pelo agente, independentemente do tipo de relação que exista entre este agente e o Estado ou outro ente público.
(…). Tal significa que a abrangência pelo conceito de funcionário de quem desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar, não pode prescindir do desempenho ou participação no desempenho de uma actividade compreendida na função administrativa ou jurisdicional.» Ou seja, exigindo-se para que possa ser considerado funcionário para efeitos penais, «o desempenho de uma tarefa materialmente compreendida nas tarefas da administração pública.»
«Ao Estado compete um conjunto de tarefas que só podem ser convenientemente realizadas com recurso à colaboração de entidades privadas, seja em razão dos modelos organizativos do próprio Estado, seja pela dificuldade em chegar a todas as partes do território, seja pela conveniência de prestar determinados serviços numa lógica de mercado.»
(…).»
Fazendo o paralelismo as IPSS e os fins que prosseguem, escreve o mesmo Cons., na aludida declaração de voto, «à semelhança do que acontece com empresas concessionarias de serviços públicos, cujo escopo pode abranger finalidades que não se prendem com a prestação do serviço público (por ex. uma empresa concessionária do serviço de distribuição de energia elétrica que para além disso vende equipamentos ou presta outro tipo de serviços que não fazem parte da concessão).
Também aí a dimensão material da actividade desenvolvida é que será decisiva para a qualificação do agente como funcionário. O conceito de funcionário para efeitos penais não pode ser arbitrário, sob pena de se colocar o aparelho do Estado ao serviço de interesses que vão para além do interesse público da defesa dos bens jurídicos subjacentes aos crimes cometidos no exercício de funções públicas, ou que pressuponham a qualidade de funcionário, colocando-o na órbita de interesses privados que por esta via ficarão numa situação de privilégio relativamente a outros sujeitos ou operadores de mercado. Isso é particularmente visível no que diz respeito às empresas concessionárias de serviços públicos, que têm fins lucrativos, mas que também ocorre nas IPSS quando prossigam fins que, mesmo sem propósito lucrativo, não estão relacionados com as finalidades que lhes conferem o apoio e a colaboração do Estado. Ou seja, uma caracterização como funcionário baseada na relação subjectiva entre o trabalhador e a instituição, retiraria em muitas situações fundamento material à antijuridicidade ou antijuridicidade agravada pressuposta nos tipos penais que exigem essa qualidade por parte do agente. E sem esse fundamento material esvai-se a própria legitimidade de intervenção do direito penal enquanto ultima ratio da política social.»
Neste quadro, resulta da matéria factual provada que o arguido, ora recorrente, exercia à data dos factos, as funções de Presidente do Conselho de Administração, da (...), sendo esta uma pessoa coletiva de direito privado, sem fins lucrativos, que não distribui dividendos pelos associados e detém o estatuto de entidade de utilidade pública, nos termos do disposto no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, conferido por despacho do Primeiro-Ministro, datado de 20 de março de 1995, publicado no DR n.º 95, II Série, de 22 de abril de 1995 e tem como fim assegurar a gestão do sistema de tratamento de águas residuais de (...), nomeadamente a sua exploração e conservação, podendo igualmente assegurar a gestão do tratamento e reciclagem do crómio e de quaisquer resíduos resultantes das atividades dos utilizadores.
Embora o objeto da (...) contemple também a prossecução de interesses privados, o seu objeto específico é o tratamento de águas residuais relacionadas com a utilização do domínio público hídrico, atividade esta que sendo da exclusiva competência da administração pública e que, no caso em apreço, cabia à administração local, concretamente, ao Município de (...), que, por contrato de concessão, celebrado com a (...) cedeu a esta associação a exploração dessa atividade, desde 21 de março de 1995, conferindo-lhe “o direito de assegurar em benefício dos utilizadores, o serviço público de águas residuais” – nos termos da Cláusula nona do contrato de concessão celebrado.
Como refere o Senhor Juiz de Instrução, na decisão instrutória que proferiu nos autos, a fls. 2013 e ss., se não tivesse sido concessionado à (...), o serviço público de águas residuais, esse serviço seria obrigatoriamente prestado pelo Município de (...), nos termos das atribuições que lhe estão cometidas, atualmente, previstas no artigo 23º, n.ºs 1 e 2, al. k) e da Lei 75/2013, de 12 de setembro (Lei das Autarquias Locais) e, com referência à data dos factos, nos artigos 13º, n.º 1, al. l) e 26º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (que estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais), respeitantes ao saneamento básico e tratamento de águas residuais urbanas.
Atendendo à atividade desenvolvida pela (...), estando em causa a prestação de um serviço público que está no âmbito das atribuições de uma autarquia local, o Município de (...), serviço esse cuja exploração foi concessionada pelo mesmo Município à (...), em consonância com a posição que se perfilha e que supra se deixou exposta e que foi a acolhida no acórdão recorrido, entendemos que o Presidente do Conselho de Administração da (...), desempenha, por inerência, uma função pública administrativa e, como tal, deve considerar-se funcionário, para efeitos da lei penal, integrando o respetivo conceito definido na al. d) do n.º 1 do artigo 386º do Código Penal.
Assim sendo e ressalvado o devido respeito, entendemos não assistir razão ao recorrente, quando sustenta que não pode ser considerado funcionário para efeitos do preenchimento do elemento do tipo objetivo do crime de peculato previsto no artigo 375º do Código Penal.
Já no tocante o elemento do tipo objetivo do crime de peculato que respeita à acessibilidade do dinheiro ou da coisa, objeto da apropriação pelo funcionário, em razão das suas funções, entendemos, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, no acórdão recorrido, que não se mostra verificado, no caso vertente.
Explicitando:
A conduta típica que integra o crime de peculato consiste na apropriação ilegítima, em proveito próprio ou de terceiro, de dinheiro ou coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções. O conceito de posse deve aqui ser entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um ato para o qual tem competência em razão das suas funções (v.g. através de ordens, requisições ou mandados)[15].
É, pois, necessário que o dinheiro ou a coisa móvel esteja acessível ao agente (funcionário) e que tal suceda em razão das funções que exerce, de tal modo que “terá sempre de se afirmar uma relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função” exercida ou desempenhada pelo agente[16].
A acessibilidade ao bem deve, assim, derivar das funções do agente, pelo que se impõe que exista uma efetiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objeto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação[17].
Como se refere no Ac. da RC de 23/01/2013[18], «O segmento «acessível em razão das suas funções» referido no n.º 1, do art.º 375º, do C. Penal, que se reporta ao tipo legal de crime de “Peculato”, exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria[19]
A razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do agente, que detém a qualidade de funcionário, da confiança funcional que nele foi depositada ao ser-lhe conferida a posse de um bem, devendo o conceito de posse para efeitos deste tipo legal ser entendido em sentido amplo, como supra se referiu, abrangendo a «detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador dos bens, não se desviando dos fins legais; trata-se, assim de um abuso ou infidelidade à função que o agente exerce que só existirá quando o agente tem, devido exatamente às funções que exerce, a posse do bem[20]
Neste quadro e perante a matéria factual que resultou provada, entendemos, salvo devido respeito pela posição contrária que foi acolhida no acórdão recorrido, que a apropriação pelo arguido, ora recorrente, do dinheiro pertencente (...), ilegítima é certo, não ocorreu em razão das suas funções, de Presidente do Conselho de Administração dessa Associação, não sendo o dinheiro em causa acessível ao arguido, em razão dessas funções.
Na verdade, perfilhando-se o entendimento de que a expressão «em razão das suas funções», deve ser interpretada em sentido restritivo nos termos sobreditos, posto que o abuso da função e a respetiva infidelidade que são característicos do bem jurídico tutelado pela incriminação do peculato só serão violados quando o agente (funcionário) tem a acesso ao bem, devido às funções que exerce[21], considera-se que na concreta situação em que o arguido atuou da forma que resultou apurada, as quantias pertencentes à (...) de que se apropriou não estavam na sua disponibilidade, nem lhe eram acessíveis em razão das funções que exercia nessa Associação. Com efeito, as quantias em causa estavam depositadas em contas bancárias da titularidade da (...), que o arguido, sozinho, não estava autorizado a movimentar, já que só podiam ser movimentadas com a assinatura de três membros do respetivo Conselho de Administração, tendo o arguido, para conseguir que essas quantias lhe fossem entregues e ficassem na sua disponibilidade, engendrado um plano tendente a convencer esses membros do Conselho de Administração, dois deles os ora assistentes, a entregarem-lhe as quantias em causa, emitindo cheques sacados sobre aquelas contas, com a finalidade de proceder a aplicações financeiras, de maior rentabilidade do que a resultante da remuneração/juros dos depósitos a prazo e tendo a (...) como beneficiária, quando, na realidade o que o arguido queria e veio a concretizar era dispor e utilizar essas quantias, como coisa sua, para depósito nas contas bancárias da sua companheira e da sua mãe, as quais também movimentava e nas contas bancárias das sociedades comerciais que representava ou em que detinha interesses comerciais, ainda que através de familiares, e bem assim para efetuar pagamentos de dívidas a terceiros com quem se relacionava comercialmente, através daquelas sociedades.
A viabilização, pelos membros do Conselho de Administração da (...), da entrega ao arguido das quantias monetárias em causa, mediante cheques emitidos e assinados, que lhe permitiram ficar na posse de tais quantias não ocorreu em virtude das funções de Presidente do Conselho de Administração exercidas pelo arguido, ainda que a confiança depositada no mesmo, por via dessa sua qualidade funcional, possa ter relevado para que os ditos membros do Conselho de Administração viabilizassem a entrega ao arguido das quantias em causa.
Concluímos, assim, que as referidas quantias, pertencentes à (...), de que o arguido ilegitimamente se apropriou não lhe eram acessíveis em razão das suas funções, pelo que, não se mostra preenchido um dos requisitos essenciais para o preenchimento do crime de peculato p. e p. pelo artigo 375º, n.º 1, do Código Penal.
Por conseguinte, impõe-se a absolvição do arguido do crime de peculato, por que foi pronunciado e condenado em 1ª instância.
Porém, a absolvição do arguido, aqui recorrente, da prática do crime de peculato não afasta a sua responsabilidade criminal tout court.
Em nosso entender, a factualidade que resultou provada integra a prática, pelo arguido/recorrente, de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), ambos do Código Penal.
Assim e, ressalvado o devido respeito, não nos merece concordância o entendimento do recorrente, de que os factos provados são subsumíveis ao crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º, n.º 1, do Código Penal.
Explicitando:
De harmonia com o disposto no artigo 224º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de infidelidade «quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante».
Constituem elementos do tipo objetivo do crime de infidelidade:
- A atribuição, por lei ou ato jurídico, do encargo (dever, função) de dispor, administrar ou fiscalizar interesses patrimoniais alheios;
- Que a conduta adotada pelo agente (que tanto pode consistir numa ação como numa omissão) cause prejuízo patrimonial importante ao titular dos interesses patrimoniais que lhe foram confiados, isto é, ao sujeito passivo.
Assim e como refere Paulo Pinto de Albuquerque[22] «O tipo objetivo consiste na provocação de prejuízo patrimonial importante a interesses patrimoniais alheios, por pessoa a quem foi confiado, por lei ou por ato jurídico, o encargo de dispor, administrar e fiscalizar esses interesses. Dito de outro modo, a conduta do agente do crime de infidelidade é idêntica à do agente do crime de dano, mas incide sobre um objeto distinto: os interesses patrimoniais alheios (…).»
O tipo subjetivo do crime de infidelidade exige, para o respetivo preenchimento, segundo o entendimento que perfilhamos, o dolo direto[23] – o que decorre da expressão “intencionalmente”, empregue no n.º 1 do artigo 224º do CP –, não bastando o dolo necessário e, muito menos, dolo eventual.
Para além do dolo direto, exige-se também que o agente atue com grave violação dos deveres que lhe incumbem.
Um aspeto muito importante a salientar é que como vem sendo afirmado pela doutrina[24] e jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores[25], o crime de infidelidade pressupõe a inexistência de apropriação, pelo que, quando resulte demonstrada a apropriação ou a intenção de apropriação (animus apropriandi), por parte do agente (a que foi confiado o encargo – poder/dever – de zelar pelos interesses patrimoniais alheios), é de afastar o crime de infidelidade.
Ora, no caso vertente, perante a factualidade que ficou provada, resulta inequivocamente demonstrado que o arguido/recorrente, Presidente do Conselho de Administração da (...), se apropriou das quantias a esta pertencentes e que lhe foram entregues, por via dos cheques emitidos e assinados pelos administradores, para que efetuasse aplicações financeiras e rentabilizasse esse capital, vindo o arguido canalizar essas quantias, para sociedades comerciais que representava e/ou em que tinha interesses comerciais, através de familiares e a utilizá-las/gastá-las para efetuar pagamentos e no giro comercial dessas sociedades, pelo que, é de afastar a subsunção da conduta do arguido/recorrente ao crime de infidelidade.
Relativamente ao crime de burla:
Nos termos do artigo 217º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de burla “quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
No artigo 218º do Código Penal prevêem-se circunstâncias qualificativas do crime de burla, entre as quais, a do al. a) do n.º 2, ou seja, a do valor consideravelmente elevado do prejuízo patrimonial, sendo considerado como tal, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cf. al. b) do artigo 202º).
São os seguintes os elementos do tipo objetivo da burla:
- A conduta do agente traduzida no emprego de “astúcia” para induzir em erro ou engano outrem;
- A verificação de erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia;
- Que através desse erro ou engano, o agente determine a vítima à prática de atos que de outro modo não praticaria;
- A existência de prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro, resultante da prática dos referidos atos.
O primeiro dos enunciados elementos refere-se ao processo enganoso astucioso, empreendido pelo agente, isto é, à utilização pelo mesmo de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano na vítima.
Para que o elemento da astúcia esteja preenchido tem de verificar-se, como refere José António Barreiros[26] «uma actuação engenhosa da parte do agente do crime, algo ao nível do estratagema ardiloso, da encenação orientada a ludibriar», que terá de ser caracterizada, no caso concreto, objetivamente, a partir da reconstituição de atos materiais que a revelem e evidenciem, e não subjetivamente, por referência a estados de espírito ao nível da mera motivação do agente.
Além do emprego pelo agente de astúcia, exige o tipo do crime de burla uma relação causal entre a astúcia empregue e o erro ou engano em que o burlado foi induzido.
Com efeito, a manipulação psíquica do intelecto do burlado deve decorrer do processo astucioso engendrado.
Para aferir do nexo de causalidade entre os meios empregues (astuciosos) e o erro ou engano deve o aplicador do direito socorrer-se da teoria da causalidade adequada consagrada no Código Penal, exigindo não só que a ação tenha sido condição sine qua non, mas ainda causa adequada do erro ou engano.
Mercê da manipulação da inteligência e da exploração da vontade do burlado, isto é, da viciação da sua vontade, exige-se que o burlado pratique determinados atos causadores de prejuízos patrimoniais.
A burla é assim um crime de participação necessária da vítima, requerendo a atividade do burlado de espoliação do seu património ou de terceiro.
Por último, constituído o crime de burla um crime de resultado, de dano, integra a sua factualidade típica a efetiva verificação de um prejuízo patrimonial daquele que foi induzido em erro ou engano ou de terceiro.
Deste modo, para o preenchimento do crime de burla, exige-se um triplo nexo de causalidade: a) que a astúcia seja a causa do erro ou engano; b) que o erro ou engano sejam a causa da prática de atos pela vítima; c) que da prática dos atos resulte um prejuízo patrimonial para a vítima ou para terceiro.
Do ponto de vista da imputação subjetiva, o crime de burla é um crime doloso.
Exige-se para o preenchimento do tipo subjetivo, para além do dolo genérico – designadamente, que o agente tenha conhecimento de estar a atuar fraudulentamente, isto é, sabendo que os meios engenhosos que utiliza são adequados a induzir a vítima em erro ou engano e idóneos a que a vítima consinta, consequentemente, na espoliação do seu património ou de terceiro, resultado pretendido pelo agente –, o dolo específico traduzido na intenção de enriquecimento à custa do património alheio.
O agente deve ter consciência da ilegitimidade do enriquecimento.
Há enriquecimento ilegítimo quando à face das normas vigentes e designadamente contratuais, o mesmo carece de causa justificativa.
Revertendo ao caso dos autos, tendo presentes as considerações jurídicas que se deixam enunciadas, confrontando os factos, tal como já referimos, somos levados a concluir que a conduta do arguido, que resultou apurada preenche os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), este último com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal.
Com efeito, da factualidade provada resulta que:
- O arguido formulou o propósito e elaborou um plano para se apossar dos recursos financeiros da (...) em seu próprio beneficio e das sociedades comerciais que representada, na qualidade de gerente, ou em que tinha participação social, quanto sócio das mesmas ou em que tinha interesses comerciais, tendo, de acordo com esse plano, no exercício das suas funções de Presidente do Conselho de Administração da (...), diligenciado pela emissão de cheques sacados sobre contas bancárias de que aquela associação era titular, para desse modo, entrar na disponibilidade de quantias monetárias pertencentes à (...), fazendo-as suas, a partir do momento em que os cheques entraram na sua posse, para as canalizar para aquelas sociedades, para pagar dívidas das mesmas ou para contas bancárias por si movimentadas.
- Uma vez que as contas bancárias da (...) não podiam ser movimentadas apenas com a sua assinatura, sendo necessária a assinatura de três administradores, o arguido, a fim de concretizar o seu plano e de justificar perante os demais administradores a emissão de cheques que viabilizassem a saída de quantias monetárias depositadas nas contas bancárias da (...), logrou convencer os administradores da (...) de que pretendia efetuar investimentos financeiros em nome e em proveito da associação, para retorno financeiro superior aos juros das normais contas bancárias;
- Os demais administradores acreditaram que o arguido pretendia utilizar os recursos financeiros da (...) para investimentos, financeiramente rentáveis, em nome e em proveito da mesma associação e, por essa razão, ou seja, por estarem erroneamente convictos de que esses cheques se destinavam à realização de investimentos financeiros em beneficio da (...), procederam à assinatura dos cheques que o arguido lhes apresentou, viabilizando, dessa forma, a saída de quantias de contas bancárias da associação;
- Contudo, ao invés de efetuar os investimentos financeiros que convenceu os administradores que iria fazer, o arguido, em execução do plano por si delineado, apossou-se, em proveito próprio, das quantias tituladas pelos cheques emitidos pelos administradores da (...), efetuando depósitos nas contas bancárias das sociedades comerciais que representava ou em que detinha interesses comerciais, ainda que através de familiares, nas contas bancárias da sua companheira e da sua mãe, as quais também movimentava, e bem assim para efetuar pagamentos de dívidas a terceiros com quem se relacionava comercialmente, através daquelas sociedades;
- Na sequência da emissão dos aludidos cheques e do seu depósito nas mencionadas contas bancárias, o arguido, em execução do seu plano inicialmente traçado, para ocultar dos administradores da (...) o real destino por si dado às quantias monetárias tituladas pelos cheques pelos mesmos assinados, utilizou as contas bancárias de (...), (...) e das sociedades comerciais (…), para fazer entrar quantias monetárias na conta bancária da (...), aberta na (…), como se as mesmas fossem o retorno financeiro de tais investimentos, o que aconteceu nos anos de 2008 e 2009, não tendo, a partir de 2010, o arguido não fez retornar à conta da (...) qualquer valor o que se manteve no ano de 2011 e até janeiro de 2012, tendo, nesse período o arguido continuado a retirar das contas bancárias da (...), através do expediente por si engendrado;
- A diferença entre as quantias monetárias retiradas pelo arguido das contas bancárias da (...) e as quantias que fez retornar a conta da (...) na (…), ascende ao montante global de €960.000, que o arguido fez sua e a que deu destino, em proveito próprio e das referidas sociedades comerciais, com o consequente prejuízo patrimonial causado à (...).
- Com as suas descritas condutas, em execução do aludido plano e dos expedientes por si engendrados, o arguido entrou na posse de todas as quantias monetárias tituladas pelos cheques emitidos das contas bancárias da (...), que fez coisas suas e a que deu destino, em proveito próprio e das referidas sociedades comerciais, persistindo em desfavor da (...) a quantia monetária global de € 960.000,00, que o mesmo fez igualmente sua, embora soubesse que os recursos financeiros daquela associação não lhe pertenciam e que o exercício de funções de Presidente do Conselho de Administração não lhe permitia dar-lhes aquele destino.
- O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, através do exercício das suas funções de Presidente do Conselho de Administração da (...), aceder às contas bancárias desta e obter, mediante os descritos expedientes, a emissão e entrega de cheques associados a essas contas bancárias, fazendo coisas suas as quantias monetárias tituladas pelos mesmos, em proveito próprio e das referidas sociedades comerciais, apesar de saber que a elas apenas tinha acesso devido à sua qualidade de Presidente do Conselho de Administração, que o exercício desta função lhe impunha agir em prol das finalidades daquela associação, e que, ao invés, fazendo suas tais quantias monetárias, atuava sem autorização e contra a vontade dos demais órgãos sociais da (...), ficando esta associação privada dessas mesmas quantias monetárias, tendo sofrido a correspondente perda patrimonial.
- O arguido sabia que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei e, ainda assim, não se inibiu de a realizar.
O arguido, através das suas descritas condutas, preencheu todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), este último com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, sendo que o arguido utilizou um artificio fraudulento para, em execução do plano delineado, conseguir que os administradores da (...) emitissem/assinassem os cheques que viabilizassem a saída de quantias monetárias depositadas nas contas bancárias da (...) com a intenção de delas se apropriar, convencendo-os de que pretendia efetuar investimentos financeiros em nome e em proveito da associação, para retorno financeiro superior aos juros das normais contas bancárias, o que não correspondia à realidade, já que era sua intenção apoderar-se de tais quantias, o que veio a concretizar – efetuando depósitos nas contas bancárias das sociedades comerciais que representava ou em que detinha interesses comerciais, ainda que através de familiares, nas contas bancárias da sua companheira e da sua mãe, as quais também movimentava e utilizando-as para efetuar pagamentos de dívidas a terceiros com quem se relacionava comercialmente, através daquelas sociedades –, bem sabendo que tais quantias não lhe pertenciam e que atuava sem autorização e contra a vontade dos demais órgãos sociais da (...), locupletando-se com a quantia total de €960.000,00, ficando a (...) associação privada dessa mesma quantia monetária, tendo sofrido a correspondente perda patrimonial.
Assim sendo e inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, tem o arguido/recorrente de ser condenado, como autor material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), este último com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal.
A alteração da qualificação jurídica dos factos, que agora se efetua e tendo-se procedido à respetiva comunicação ao arguido/recorrente, em observância do disposto no artigo 424º, n.º 3, do CPP, é permitida, podendo o tribunal de recurso alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos, efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus, prevista no artigo 409º do CPP.

2.3.4. Da medida da pena
O crime de burla qualificada perpetrado pelo arguido é punível com pena de prisão de dois a oito anos (cfr. artigo 218º, n.º 2, do CP).
Importa, pois, determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido, pena essa que é limitada pela sua culpa revelada nos factos (cfr. artigo 40º, n.º 2 do CP), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1, ambos do C.P., havendo que ponderar na determinação daquela medida, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente, as enumeradas no n.º 2 do artigo 71º do Código Penal.
Assim, há que ponderar:
O grau de ilicitude dos factos, que se nos afigura muito elevado, tendo em conta, designadamente, o valor global de que o arguido se apropriou, correspondendo a €960.000,00, com o consequente prejuízo causado à (...), sendo o arguido, então, Presidente do Conselho de Administração desta Associação e tendo-se se servido das funções que, nessa qualidade exercia e da relação de grande confiança, nele depositada pelos outros administradores da (...), para conseguir concretizar o seu desígnio criminoso e apropriar-se daquele valor;
O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo direto, muito intenso, atento o período temporal ao longo do qual o arguido desenvolveu a sua atuação e a forma como o fez;
As condições pessoais do arguido, que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas, encontrando-se o arguido familiar e, ao que tudo indica, também socialmente inserido.
Milita a favor do arguido a circunstância de à data dos factos ser primário, tendo sido, posteriormente, condenado, por sentença proferida no âmbito do processo n.º 15/14.1TAACN, transitada em julgado em 20/11/2017, pela prática em 30/09/2013, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 150 dias de multa.
Há, ainda, que ponderar, as exigências de prevenção, sendo prementes as de prevenção geral, face à proliferação de crimes da natureza daquele por que o arguido vai condenado e à sua gravidade, que impõem o reforço da confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada, por forma a não deixar dúvidas sobre o desvalor de semelhantes condutas, que tendem a aumentar de forma exponencial numa conjuntura de grave crise económica como aquela que se verificou em Portugal (reflexo da crise financeira mundial), de 2008 a 2013, tendo a atuação do arguido de que aqui se trata sido desenvolvida nesse período e sendo, à partida, medianas, as de prevenção especial, já que o arguido, que conta 66 anos de idade, não registando antecedentes criminais, à data dos factos, tendo sido sofrido uma condenação, por crime de falsificação, praticado em momento posterior, não exteriorizou qualquer manifestação de arrependimento por ter cometido os factos por que agora vai condenado e ao longo de nove anos que decorrerem sobre a respetiva prática, não envidou quaisquer esforços para ressarcir, ainda que parcialmente, o prejuízo que causou à (...), o que é revelador, tal como se refere no acórdão recorrido, de uma personalidade com necessidade de socialização e de consciencialização da imposição da adoção de comportamento em conformidade com o Direito.
Ponderando todos estes elementos e em obediência ao princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 409º n.º1 do CPP, consideramos adequada a aplicar ao arguido a pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses que o tribunal a quo havia fixado, pelos mesmos factos, ainda que com diferente qualificação jurídico-penal [sendo que a moldura penal abstrata que corresponde ao crime de burla qualificada por que o arguido é agora condenado, tem como limite mínimo 2 anos, enquanto que o limite mínimo da moldura aplicável ao crime de peculato por que o arguido foi condenado em 1ª instância, é de um ano e é o mesmo o limite máximo de ambas as molduras].
Mantém-se, assim, a medida concreta da pena aplicada ao arguido, no acórdão recorrido.
Sendo a pena superior a cinco anos de prisão, fica, necessariamente (cf. artigo 50º, n.º 1, do Código Penal), prejudicada a possibilidade de substituição pela suspensão da execução da pena, propugnada pelo arguido.

2.3.5. No referente à pena acessória de proibição do exercício das funções que o arguido desempenhava na (...), pelo período de 3 (três) anos e 8 (oito) meses, em que o arguido foi condenado, no acórdão recorrido, não sendo esse segmento da decisão objeto do recurso interposto pelo arguido e não acarretando a alteração da qualificação jurídica-penal dos factos a que se procedeu, qualquer modificação dos pressupostos que o tribunal recorrido julgou verificados para decidir aplicar ao arguido essa pena acessória [sendo que, tal como se deixou exposto supra, em 2.3.3. perfilhamos do entendimento de tendo em conta a função que o arguido desempenhava na (...), deve considerar-se funcionário, para efeitos da lei penal, integrando o respetivo conceito definido na al. d) do n.º 1 do artigo 386º do Código Penal], mantém-se inalterado o decidido.
Por identidade de razões mantém-se também inalterada a decisão de condenação do arguido, nos termos previstos no artigo 111º, n.º 4, do Código Penal, na redação na que lhe foi dada pela Lei nº 32/2010, de 2 de setembro, no pagamento ao Estado da quantia de €960.000,00 (novecentos e sessenta mil euros), sem prejuízo dos direitos da ofendida (...).
2.3.6. Tendo em conta a absolvição do arguido da prática do crime de peculato por que foi condenado no acórdão recorrido e a alteração da qualificação jurídica dos factos a que se procedeu, mantendo-se a dosimetria da pena de prisão aplicada em 1ª instância e o demais decido no acórdão recorrido, recurso é, pois, parcialmente procedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido (...) e, em consequência, decidem:

a) Absolver o arguido da prática do crime de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, por que foi condenado em 1ª instância;

b) Alterar a qualificação jurídica dos factos efetuada no acórdão recorrido e condenar o arguido (...) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), este último com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

c) No mais, confirmar o acórdão recorrido.


Sem tributação, dada a procedência parcial do recurso (cfr. artigo 513º n.º 1, do CPP, à contrario sensu).

Notifique.

Évora, 25 de maio de 2021

Fátima Bernardes
Fernando Pina

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[1] Cfr. Ac. do STJ de 06/07/2004, proc. n.º 04B1311 e de 12/07/2011, proc. n.º 317/04.5TBVIS-C.C1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Ac. n.ºs 392/2003, 397/2006, 90/2013 e 289/2020, acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
[3] Cfr. Ac. do STJ de 22/04/2020, proferido no Proc. n.º 68/18.3SWLSB.S1, cujo sumário se encontra publicado no Boletim de Sumários – STJ, 2020, págs. 294 e 295, acessível em https://www.stj.pt/
[4] Cfr. Ac. da RP de 10/05/2017, proc. n.º 324/14.0SGPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Proferido no processo n.º 360/08-1, acessível in www.dgsi.pt
[6] Cfr., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da R.L. de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.
[7] Idem.
[8] In Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 111.
[9] Neste sentido, vide, Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 688.
[10] Cfr. Conceição Ferreira da Cunha, in ob. cit., págs. 699 e 700.
[11] Em sentido contrário, vide Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 1234. Entende este autor que basta a declaração de utilidade pública, pela qual se reconhece a “cooperação” dessa pessoa coletiva no exercício da função pública da Administração” e, como tal, que o conceito de funcionário abrange todos aqueles que desempenham funções nessas pessoas coletivas.
[12] Neste sentido, cfr. José António Barreiros, in Crime de Peculato, Labirinto das Letras, 2013, pág. 11.
[13] Publicado no Diário da República, Série I, de 18/05/2020, que uniformizou jurisprudência no sentido de que «O conceito de “organismo de utilidade pública”, constante da parte final da actual redação da alínea d) do n.º 1 do artigo 386º do Código Penal, não abarca as instituições particulares de solidariedade social, cujo estatuto consta hoje do Decreto-Lei n.º 172-A/2014, de 14 de novembro, alterado pela Lei n.º 76/2015, de 28 de Julho.»
[14] A que corresponde a atual al. d), na redação dada pela Lei n.º 32/2010, de 2 de setembro.
[15] Cfr. Conceição Ferreira da Cunha, in ob. cit., págs. 694 e 695.
[16] Idem, pág. 695.
[17] Ibidem.
[18] Proferido no processo n.º 214/11.8PCCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[19] No mesmo sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 20/06/2012, processo n.º357/10.5TAAMT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Cfr. Conceição Ferreira da Cunha, in ob. cit., pág. 696.
[21] Neste sentido, Conceição Ferreira da Cunha, in ob. e loc. cit.
[22] In Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República …, 3ª edição, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 871.
[23] Neste sentido, vide, entre outros, na doutrina, Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, Vol. III, 4ª edição, 2016, Rei dos Livros, pág. 1040; Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 871; José António Barreiros, in Crimes contra o Património, Universidade Lusíada, 1996, pág. 213 e Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 16ª edição, Coimbra, pág. 827.
No sentido de que basta o dolo necessário para preencher o tipo subjetivo, cfr. Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 2001, págs. 369 e Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal Anotado, Almedina, 2014, pág. 251,
[24] Vide, entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 648.
[25] Cf., entre outros, Ac. da RP de 13/01/2016, proc. 478/11.7GAVGS.P1 e Ac. de 20/10/2004, proc. 2824/04-3, acessíveis in www.dgsi.pt.
[26] In Crimes contra o património no Código Penal de 1995, Universidade Lusíada, 1996, pág. 165.