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DANO QUALIFICADO
VEÍCULO POLICIAL
VALOR DO PREJUÍZO
CRIME SEMI-PÚBLICO
Sumário
I – É suscetível de integrar a prática de um crime de Dano qualificado, do art. 213.º, n.º 1, alínea c), do Cód. Penal, a conduta do agente que desfere um pontapé num veículo policial [“coisa destinada ao uso e utilidade de organismo ou serviço público” - Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro], causando “amolgadelas”. II – O valor referente para efeitos de qualificação do crime de Dano é o do prejuízo sofrido e não o do valor da coisa na sua totalidade. III – Sempre que não for notório que os danos causados tenham valor superior à unidade de conta, se a acusação for omissa quanto ao seu valor, não poderá o agente ser julgado por mais do que por um crime de Dano “simples” [art. 212.º, n.º 1, do Cód. Penal].
Texto Integral
Proc. nº 4/13.3PEPRT.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
No âmbito do Inquérito que correu termos na 5ª secção do DIAP do Porto com o nº 4/13.3PEPRT, o Ministério Público deduziu acusação contra B…, imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de dano qualificado p. e p. nos artºs. 212º e 213º nº 1 al. c), todos do Cód. Penal.
Remetidos os autos à distribuição, o Sr. Juiz não recebeu a acusação pública formulada por entender que, face à natureza semi-pública do crime e à ausência de queixa, falecia uma condição essencial de procedibilidade.
É dessa decisão que o Mº Público traz o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Os factos descritos na acusação deduzida nos presentes autos enquadram-se na previsão típica do crime de dano qualificado, na formulação atualmente vigente na sequência da entrada em vigor da Lei nº 59/07 de 04/09, que introduziu alterações ao Cód. Penal de 1995;
2. Ou seja, um veículo automóvel da PSP enquanto coisa destinada ao uso e utilidade de organismo ou serviços públicos integra a previsão da al. c) do nº 1 do artº 213º do Cód. Penal;
3. Ora, o citado ilícito penal reveste natureza pública;
4. O douto despacho recorrido violou, pois, o disposto no artº 213º nº 1 al. c) do Cód. Penal.
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O arguido respondeu às motivações de recurso, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente por entender que “aos danos dolosamente provocados num carro da polícia falta o carácter imediato da utilidade pública e por isso o caso em apreço cai no danos simples do artº 212º do Código Penal”, crime que reveste natureza semi-pública, dependendo por isso de queixa que no caso não existe.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer concordante com as motivações de recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentadas qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO A decisão sob recurso é do seguinte teor: (transcrição)
«Autue como processo comum com intervenção de Tribunal Singular.
O Tribunal é competente.
A fls. 266 a 268 veio o M.P. deduzir acusação, contra B…, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelosarts. 212º e 213º, n.º 1, al. c), do CP, pelos seguintes factos:
1. “No dia 2 de Março de 2013, entre as 19h00m e as 20h00m, em frente à …, sita nesta cidade do Porto, no decorrer de uma manifestação que envolvia milhares de pessoas, o arguido B…, sem nada que o justificasse, desferiu um pontapé na porta traseira, lado direito do veículo policial, de matrícula ..-..-XH, marca Mercedes, que aí se encontrava estacionado.
2. Em consequência da ação descrita, o referido veículo, pertença da P.S.P., ficou com diversas amolgadelas.
3. O arguido bem sabia que o veículo supra descrito era pertença do Estado Português, e que ao amolgá-lo atuava sem o consentimento do seu legítimo dono e contra a vontade deste.
4. Atuou de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito de causar prejuízo patrimonial ao ofendido, como de facto causaram, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
Como resulta do disposto no artigo 311º., n.º 1, do CPP, “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.
Vejamos.
O art. 213º, n.º 1, al. c), do C.Penal, prevê que, “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável, coisa destinada ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
A norma em análise incrimina e pune a atuação que consiste em destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa destinada ao uso e utilidade públicos.
Ora, destruir é fazer desaparecer ou acabar com a individualidade da coisa; danificar é infligir um estrago que diminui o valor económico ou a utilidade; desfigurar é ofender a estética da coisa.
Sendo estruturalmente um crime de resultado, tem de haver uma efetiva ocorrência de uma daquelas situações lesivas da propriedade, qualquer que seja o meio utilizado, e poderá resultar de uma ação ou de uma omissão, sendo objeto do ilícito a coisa móvel ou imóvel.
Por “coisa destinada ao uso e utilidade públicos” deve considerar-se toda a coisa de que o público se pode utilizar ou tirar um imediato proveito.
Como ensina Manuel da Costa Andrade, a expressão «coisa destinada ao uso e utilidade públicos», “como é próprio das cláusulas gerais, postula uma interpretação prevalentemente orientada para o caso concreto”, sendo dois fundamentalmente os critérios gerais “suscetíveis de emprestar à expressão a indispensável consistência abstrata e a desejável redução teleológica”, como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência, a saber: o critério do fim e o do carácter imediato da utilidade.”
Quanto ao primeiro, há-de tratar-se de coisa cuja finalidade seja precisamente o serviço ou a utilidade em relação ao público. Noutras palavras: coisa a que foi cometida uma função de serviço à comunidade.
Quanto ao segundo, deve entender-se que há imediação quando o público, mesmo que só após a verificação de algumas condições gerais, pode retirar vantagens da própria coisa ou dos seus produtos ou efeitos.
Se o proveito tirado da coisa pelo público não é imediato, mas mediato, parece que estas já não são protegidas por a norma incriminadora.
De contrário, seriam protegidas todas as coisas públicas e não somente as de utilidade pública.
Assim, compreendem-se no conceito de coisa destinada ao uso e utilidade públicos, os candeeiros de iluminação pública, os marcos postais, as fontes, os relógios públicos, bem como as placas com inscrição do nome de ruas, praças, pracetas, largos, autocarros de transporte público de passageiros etc.
Neste crime o dolo (não sendo punível a negligência) consiste na consciência e vontade de consumar um daqueles resultados (embora o dano não tenha de ser permanente), com o fim de lesar a propriedade de outrém, sendo irrelevantes os fins que o agente se propõe realizar e os motivos que o determinam, sendo assim suficiente o dolo genérico - (cfr. C.Penal, anotado, de Leal Henriques e Sima Santos, v.4, p. 117-118; Ac. RC de 23-1-85, BMJ, 343.º-383; Ac. RE de 8-1-85, BMJ, 338.º-476.)
Ora um veículo automóvel da PSP (facilitando ou possibilitando a atividade de pessoas no adimplemento das suas tarefas de utilidade pública), salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode ser havido como "coisa destinada ao uso e utilidade públicos", pois que, não obstante pertencer ao Estado, não pode o público dele utilizar-se ou tirar um imediato proveito, não cabendo, por isso, na previsão da norma do artº213º, n.º1, al. c). – Veja-se, neste sentido, Código Penal Parte geral e especial, de M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, comentário 4. ao art. 213º, pág. 903.
Assim, os factos alegados configuram apenas e tão só, em nosso entender, a prática de um crime de dano simples, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1, do C.P., o qual reveste natureza semi-pública.
Vejamos.
“O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º”(art. 48º, do CPP)
Por seu turno e para o que releva prevê o art. 49.º, do CPP, no seu n.º 1 que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”, acrescentando o seu n.º 2 que “Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele”.
Ora nos termos do n.º 3, da citada disposição legal, a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário não judicial munido de poderes especiais.
É, pois, necessário que o ofendido apresente queixa contra determinada pessoa, para que o M.P. possa promover o processo.
Essa manifestação de vontade constitui a base, o pressuposto, a condição para que o processo penal possa iniciar-se e prosseguir.
O art. 113º do C.P., estabelece quem são os titulares do direito de queixa, regulando que, tem legitimidade para apresentar queixa, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Ora, perante as disposições citadas e os factos supra descritos, temos que não foi apresentada qualquer queixa nos presentes autos.
Destarte, tendo por certo que a acusação pública deduzida contra o arguido se reporta a factos que configuram a prática de um crime de dano simples e logo de natureza semi-pública, sobre os quais não existe queixa-crime, temos que se verifica ausência de queixa, falecendo pois uma condição essencial de procedibilidade, motivo pelo qual, ao abrigo das disposições supra mencionadas e do disposto no art. 311º, n.º 1, do C.P.P., não recebo a acusação pública formulada.
Sem custas, por o MP delas estar isento.
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Quanto ao pedido de indemnização civil formulado pelo MP, cumpre desde logo referir que o princípio da adesão tem por finalidade o arbitrar de uma indemnização por danos que tiveram a sua causa adequada, num facto, eventualmente, punível – cfr. art. 71º, do C.P.P.
Com efeito, o pedido de indemnização civil formulado nos autos tendo por causa de pedir, em obediência ao fixado no art. 71º, do C.P.P., a prática de um crime - a causa de pedir do pedido civil analisa-se unicamente no facto criminoso -, reporta-se aos danos sofridos pelo Ofendido/Estado Português em consequência da imputada conduta ao arguido, pelo que subjacente lhe está o ilícito de natureza semi-pública, o crime de dano, sendo que, por força da ausência de queixa e falecendo assim uma condição essencial de procedibilidade, foi a acusação rejeitada.
Nestes termos e consequentemente não admito o pedido de indemnização civil formulado.
Sem custas, por o MP delas estar isento.
Notifique.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão de saber se o crime de dano num veículo da PSP, imputado ao arguido na acusação deduzida pelo Mº Público, constitui um crime público ou, ao invés, um crime semi-público.
Ao deduzir acusação o Mº Público imputou ao arguido a prática de um crime de dano qualificado p. e p. nos artºs. 212º e 213º nº 1 al. c) do Cód. Penal, por ter “desferido um pontapé na porta traseira do veículo de matrícula ..-..-XH, marca Mercedes, pertencente à PSP, provocando diversas amolgadelas”.
Sob a epígrafe “dano qualificado” dispõe o artº 213º nº 1 al. c) do Cód. Penal que: “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável […] coisa destinada ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos, […] é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”.
Antes das alterações introduzidas no Código Penal pela Lei nº 59/07 de 04/09, a al. c) do nº 1 do citado preceito, apenas previa a qualificação do crime de dano se se tratasse de coisa destinada ao uso e utilidade públicos, pelo que a doutrina e a jurisprudência vinham entendendo que seriam coisas de utilidade pública aquelas de que o público se pode utilizar ou tirar um imediato proveito, havendo “imediação” nesse sentido quando qualquer um do público, mesmo que só após a verificação de algumas condições gerais, pode retirar vantagens da própria coisa ou dos seus produtos ou efeitos, sem a mediação de um terceiro legitimado a escolher as pessoas autorizadas a participar ou beneficiar. E para tentar clarificar a noção, exemplificava-se como coisas destinadas a uso ou utilidade públicas, as estradas, os caminhos, pontes, comboios elétricos, estações ferroviárias ou rodoviárias, condutas de água, gás ou eletricidade destinadas ao abastecimento público, etc.
Contudo, excluía-se de tais categorias «o carro-patrulha da polícia ou o auto-tanque dos bombeiros, isto é, “coisas que apenas facilitam ou possibilitam a atividade de pessoas no adimplemento das suas tarefas de utilidade pública. Não cometem, por isso, Dano qualificado os jovens que, depois de assistirem a um concerto de rock, desferem alguns murros ou pontapés no carro da polícia, causando-lhe ligeiras amolgadelas»[3]. Também M. Miguez Garcia e J.M.Castela Rio[4], citados na decisão recorrida, referem exemplo idêntico: “Não comete dano qualificado o jovem que na altura de uma autuação desfere um pontapé no carro da polícia, causando amolgadelas”.
Contudo, com a Lei nº 59/07 o crime de dano passou a ser qualificado quando incidisse sobre coisa destinada a uso de organismo ou serviço públicos e não apenas a uso e utilidade públicas, em nome de uma analogia substancial entre ambas as hipóteses[5].
Mostram-se assim hoje desatualizadas as considerações de M. Costa Andrade e de M. Miguez Garcia e Castela Rio, na medida em que o carro da polícia, que pertence a um organismo público (embora não se destine direta e imediatamente a uso ou utilidade públicas), caso seja objeto de atos de destruição, total ou parcial, danificação ou desfiguração, fará incorrer o respetivo agente num crime de dano qualificado p. e p. no artº 213º nº 1 al. c), 2ª parte, na medida em que o aditamento introduzido pela Lei nº 59/07 de 04.09 constitui ampliação do critério legal de qualificação.
No caso em apreço, a conduta descrita na acusação subsume-se, sem dúvida, na atual previsão do artº 213º nº 1 al. c) do Cód. Penal: o veículo policial pertença da PSP, em cuja porta traseira o arguido terá desferido um pontapé, causando amolgadelas, é uma “coisa destinada ao uso e utilidade de organismo ou serviço público”.
Contudo, nem por isso se impunha a prolação de decisão diversa da recorrida.
Com efeito, da acusação pública deduzida não consta o valor dos prejuízos causados pelo arguido no veículo policial.
E tal facto mostra-se relevante pois que, como se entendeu no Ac. do STJ de 18.04.2002 “… é indiscutível que em qualquer crime patrimonial o valor da coisa objeto material e imediato do crime é de importância jurídica imprescindível, tal como vai implícito, desde logo, na disposição preliminar constituída pelas definições legais do artigo 202.º do Código Penal, que abre com as diversas definições de valor, e também, por outro lado, nas consequências drásticas que a sua variação pode acarretar inclusive a nível da tipicidade relevante, tal como se vê da disposição do n.º 4 do artigo 204.º, do mesmo diploma, que importa a desqualificação do crime quando for diminuto o valor da coisa furtada”.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 06.12.06[6] “a circunstância qualificativa do nº. 1 do artigo 213º do C. Penal, em caso de destruição parcial, opera atendendo ao prejuízo causado e não ao valor da coisa danificada”, com argumentos assim sintetizados: “A jurisprudência maioritária, que também sufragamos, aponta no sentido de considerar que, face ao estatuído pelo artigo 9.º do Código Civil [CC], a lei deverá ser interpretada de forma não literal, o que implica que, atendendo ao seu espírito, se possa afirmar que “uma coisa danifica-se quando, sem perder totalmente a sua integridade, sofre um estrago substancial com a consequente diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica” (cfr. Código Penal, de Leal-Henriques e Simas Santos), apenas se podendo falar em identidade do valor da coisa e do prejuízo quando haja destruição da coisa, e não, como no caso dos autos, nos casos de destruição parcial. Isto é, a jurisprudência mostra-se praticamente unânime no sentido de que o teor estritamente literal do citado art. 213.º, n.º 1, alínea a), apenas se coaduna com a destruição total da coisa, impondo-se, nos casos de destruição parcial, a interpretação corretiva...”
No mesmo sentido se pronunciou também o Acórdão desta Relação do Porto de 09.05.2001[7], assim sumariado: “Para efeitos de determinação, no crime de dano, de coisa alheia de valor elevado (artigo 213 n.2 alínea a) do Código Penal), só assume relevância típica o dano diretamente infligido à coisa, aferindo-se o valor do dano pelos custos da reparação e da desvalorização da coisa”.
Também Costa Andrade[8] sustenta, relativamente ao valor elevado e valor consideravelmente elevado no crime de dano, que “as expressões assumem aqui o sentido que lhes é dado no art. 202°, respetivamente, valor superior a 50 e a 200 unidades de conta, avaliadas no momento da prática do facto. Mas as coisas colocam-se no domínio do Dano em termos diferentes do que se passa em matéria de Furto ou de Abuso de Confiança. Ao contrário do que o teor literal parece linearmente sugerir, nem todo o dano que atinge coisa alheia de valor elevado ou consideravelmente elevado determina a punibilidade nos termos do art. 213°. O problema não se coloca, naturalmente, para a modalidade de conduta destruir (no todo). Mas já se coloca nas demais modalidades de conduta e, particularmente, na de danificação, brevitatis causa, nem toda a lesão de uma coisa de valor elevado ou consideravelmente elevado configura um caso de Dano qualificado: um simples risco na pintura de um valioso automóvel não configura necessariamente um Dano qualificado. Significa isto que o referente do valor elevado ou consideravelmente elevado há-de ser não a coisa-objeto-da-ação mas o prejuízo causado pela ação. É o que expressamente prevê o dispositivo homólogo da lei austríaca (§ 126 do OStGB). E é a interpretação corretiva de que se mostra carecida a lei portuguesa”.
Efetivamente, existem diversas modalidades de conduta típica no crime de dano:
● A destruição total;
● A destruição parcial;
● A danificação;
● A desfiguração;
● A inutilização, redução da utilidade da coisa segundo a sua função (tornar não utilizável).
E a redação do Código Penal resultante da reforma de 1995 coaduna-se na sua análise literal com as condutas de destruição e inutilização totais mas exige um esforço interpretativo no sentido de, nos outros casos (destruição parcial, danificação…), fazer corresponder o valor da coisa destruída ou danificada ao valor do prejuízo diretamente causado.
A dita interpretação corretiva é, aliás, a única que se mostra consentânea com elementos históricos, sistemáticos e teleológicos de interpretação.
Já no Código Penal de 1886 (art. 472º) é o valor do prejuízo causado e não o valor da coisa que agrava a pena.
O Código Penal, na sua versão de 1982, consagra a possibilidade de agravação da pena do crime de dano em algumas circunstâncias por referência a “um prejuízo particularmente grave”, ou seja, tendo por referente o valor do prejuízo e não o valor da coisa (art. 310º nº 1 do Código Penal de 1982).
Com a revisão do Código Penal (Decreto-Lei 48/95 de 15.3) o que se pretendeu foi, tão somente, “harmonizar o sistema com as soluções adquiridas quanto ao furto e ao roubo” no dizer do Prof. Figueiredo Dias[9] e não operar uma profunda alteração na tradição jurídica portuguesa.
Por isso, impõe-se a interpretação da norma no sentido de que o valor referente para efeitos de qualificação do crime de dano é o do prejuízo sofrido e não o do valor da coisa na sua totalidade.
Feitas estas breves considerações, importa referir que a acusação pública deduzida descreve a conduta do arguido, mas acaba por não quantificar o prejuízo provocado, sendo certo que, como atrás se referiu, em caso de danificação parcial da coisa, o que releva é o valor do prejuízo causado pela ação e não o valor da coisa objeto da ação, sendo por isso irrelevante o valor do veículo policial, mas sim os prejuízos causados com as amolgadelas.
Ora, como é sabido, o nº 3 do artº 213º do Cód. Penal, ao remeter para o disposto nos nºs. 3 e 4 do artº 204º, “desqualifica” o dano previsto nos números anteriores se o dano for de diminuto valor, sendo certo que o artº 202º do mesmo diploma considera de diminuto valor aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto.
A norma do nº 4 do art. 204º do Cod. Penal consubstancia um contra-tipo, ou, citando Faria Costa[10], “um pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”, ou “uma irrefutável indicação contra a gravidade do caso”. Se o valor da coisa furtada não exceder o da unidade de conta “não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
No caso em apreço, tendo os factos ocorrido em 2013, se o prejuízo causado pelo arguido não excedesse o valor de € 102,00, não haveria lugar à qualificação do crime, mesmo verificando-se alguma das circunstâncias qualificativas previstas nos nºs 1 e 2 do artº 213º do Cód. Penal.
A determinação do valor do prejuízo causado é, assim, essencial como pressuposto necessário da integração diferencial, com reflexos fundamentais na qualificação ou não qualificação do crime e na moldura penal aplicável.
Da acusação não consta, no entanto, qualquer indicação sobre o valor do dano e mesmo sobre o valor da coisa danificada, e o valor quantificado ou quantificável, já que os critérios de integração das noções relevantes são positivados, delimitados e quantificados por referência a valores monetários.
O valor do dano não é, por outro lado, revertível à noção de facto notório e a ausência de circunstâncias que permitam, no mínimo, uma quantificação aproximada, relevante e segura para satisfazer o respeito pelo princípio da legalidade penal, não pode ser interpretada, no sentido mais amplo e com maior desfavor do arguido, ou seja, em valoração in pejus.
Deste modo, os factos constantes da acusação no que respeita ao elemento essencial do valor, não permitem a subsunção no tipo legal agravado.
Por isso, a projeção material ainda do princípio in dubio, enquanto princípio relevante da prova sobre elementos de facto relevantes em processo penal, impõe que a indeterminação do valor do dano causado tenha de ser valorada a favor do arguido.
Sobre a matéria vale a lição de Figueiredo Dias: “ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (…), de exclusão da culpa (…) e de exclusão da pena (…), bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais»[11].
Neste sentido, perante os factos constantes da acusação, na qualificação jurídico-penal não poderá ser considerado um valor que não seja aquele que seja o mais favorável, e que é o contido na definição legal de valor diminuto[12].
Nesta conformidade, os factos constantes da acusação apenas permitem a subsunção no tipo de dano simples p. e p. no artº 212º nº 1 do Código Penal, uma vez que por efeito do disposto no nº 3 do artº 213º, e da remissão para o artº 204º nº 4 do mesmo diploma, não tem lugar a qualificação do crime.
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. Rel. Guimarães de 27.04.2008[13], estando embora em causa a prática de um crime de furto qualificado: “Após a revisão de 1995, a punição do crime de furto, bem como de outros crimes contra o património, passou a ser relacionada com o valor dos bens em causa. Atualmente, para que se possa considerar que o agente cometeu um crime de furto qualificado, não basta que os factos integrem a previsão de uma das alíneas dos nºs 1 ou 2 do art. 204 do Cod. Penal. É necessário, também, que o valor do furto exceda uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto, já que não há lugar à qualificação se o valor for igual ou inferior – arts. 202 al. c) e 204 nº 4 do Cod. Penal. […] Para a decisão do recurso, o que fica dito tem de ser conjugado com o princípio do acusatório, que tem consagração constitucional (art. 35 nº 2 da C.R.P.). Este apenas permite ao tribunal investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (o MP ou o juiz de instrução). É a acusação que define e fixa, perante o tribunal, o objeto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objeto do processo penal – v., entre outros, Figueiredo Dias, Lições de Direito Processual Penal, UC, ano 88/89, pag. 99 e ss. Isto é, para que alguém possa ser condenado por um crime de furto qualificado é não só necessário que da acusação constem factos que integram a previsão da respetiva circunstância qualificativa, mas também que dela resulte inequivocamente que o valor do furto é superior à unidade de conta. Se assim não for, não estará devidamente delimitado o “contra-tipo” do furto qualificado ou, para repetir a frase acima citada, o “pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”. Tal delimitação negativa faz-se, normalmente, através da indicação do valor dos bens furtados.
É certo que nem sempre é necessária a expressa indicação do valor dos bens. Se, por exemplo, alguém furta com chaves falsas um automóvel topo de gama em estado novo, não é imprescindível indicação do valor para que o tribunal possa concluir que a coisa valia mais do que uma unidade de conta. Trata-se de facto notório, de conhecimento geral, que não carece de alegação e prova – cfr. art. 514 nº 1 do CPC. Mas sempre que não for notório que os bens valiam mais do que a unidade de conta, se a acusação for omissa quanto ao seu valor, sob pena de violação do princípio da acusação, não poderá o arguido ser condenado por mais do que por um crime de furto “simples”. Se a acusação, ao fixar e definir o objeto do processo, alega factos que permitem admitir que os bens têm valor igual ou inferior à unidade de conta, não pode o tribunal ultrapassar esse limite. Se o fizer (sem se socorrer do mecanismo da alteração substancial de factos – art. 359 do CPP), não estará a observar os limites dos seus poderes de cognição e da sua vinculação temática”.
No mesmo sentido se pronunciaram ainda o Ac. do STJ de 17.12.1997[14] [Não constando da acusação o valor do fio que o arguido pretendia roubar, nem figurando do acórdão recorrido, na factualidade provada, esse valor, por mais favorável ao arguido, terá de considerar-se o valor do mesmo fio como diminuto], Ac. STJ de 10.12.1997[15] [Não se conseguindo determinar o valor dos objetos subtraídos pelo arguido, tem de concluir-se, em benefício daquele, que o mesmo é insignificante e diminuto, o que exclui a qualificação do furto, nos termos do disposto pelos artigos 297 n. 3 do CP de 1982 e 204 n. 4 e 202 alínea c) do CP de 1995], Ac. da Rel. do Porto de 15.04.2009[16] [Desconhecendo-se o valor dos bens objeto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, considerando-se ser esse valor diminuto e, em consequência, a tentativa de furto simples].
Entendimento diverso manifestou-se no Ac. do STJ de 26.06.1997[17] em que se decidiu que a circunstância de não se ter conseguido apurar o real valor das quantias pecuniárias subtraídas não serve para se desqualificar o furto, nos termos do n.º 3 do artigo 297.º do CP/82 (ou do n.º 4 do artigo 204.º do C.P./95), por isso que, para se considerar tal valor como insignificante (ou diminuto – no segundo caso) seria necessário um juízo positivo sobre esse valor, o que se não verifica.
Com outro entendimento, a Rel. de Coimbra, no acórdão de 03.02.2010[18] decidiu que, “não se sabendo qual o valor dos bens furtados, não é aplicável o nº 4 do art.º 204º do C.P.”, devendo a sentença ser anulada e o processo enviado ao tribunal recorrido para cumprimento do n.º 3 do artº 358° do CPP”.
Entendemos, porém, que a tese defendida por estes últimos arestos violaria os princípios do acusatório e da vinculação temática, em todas as situações (como a presente) em que o Mº Público tivesse omitido na acusação o valor dos danos provocados ou dos objetos subtraídos.
Não vemos, por isso, razões para discordar da posição maioritária da jurisprudência, no sentido de que, sempre que não for notório que os danos causados tenham valor superior à unidade de conta, se a acusação for omissa quanto ao seu valor, sob pena de violação do princípio da acusação, não poderá o arguido ser julgado e, muito menos, condenado por mais do que por um crime de dano “simples”.
Ora, o crime de dano simples p. e p. no artº 212º nº 1 do Código Penal é de natureza semi-pública na medida em que o procedimento criminal depende de queixa. (nº 3 do mesmo preceito).
Nos termos do n.º 1 do art.º 113º do Código Penal, quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Dispõe o artº 49º nº 1 do C.P.Penal que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, que não se pode confundir com denúncia (art.ºs 241º e seguintes do CPP), como parece acontecer nos autos.
Segundo Figueiredo Dias[19] (Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, pg. 665), a “queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…)”. E acrescenta o mesmo autor a fls. 675: “No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto. … Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”.
No caso em apreço, os autos tiveram início com o auto de notícia de fls. 4 e, no que respeita ao arguido B…, com o aditamento de fls. 30.
Como se afirma na decisão recorrida, quanto aos factos imputados ao arguido não existe queixa-crime.
Nos termos do artº 115º nº 1 do Cód. Penal “o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores […]”.
Tendo há muito decorrido o referido prazo de seis meses, sem que a pessoa com legitimidade para o efeito, tivesse exercido o direito de queixa, extinguiu-se o respetivo direito, carecendo o Ministério Público de legitimidade para o prosseguimento da ação penal. Impõe-se, assim, embora por razões diversas das que fundamentaram a decisão recorrida, o não recebimento da acusação por falta de condição de procedibilidade.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, confirmando embora por fundamentos diversos a decisão recorrida.
Sem tributação.
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Porto, 10 de Dezembro de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Dez. 1999, pág. 247 e 248, em anotação ao artº 213º.
[4] In Código Penal, Parte Geral e especial, Março 2014, pág. 903.
[5] Cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 98/X, que esteve na origem da Lei nº 59/07.
[6] Proferido no Proc. nº 61/04.3TAFIG.C1, Des. Brízida Martins, disponível em www.dgsi.pt
[7] Proferido no Proc. nº 0110269, Des. Costa Mortágua, disponível no mesmo site.
[8] In ob. cit., pág. 245.
[9] “Código Penal – Atas e Projeto da Comissão de Revisão”, Min. Justiça, 1993, pg. 338.
[10] In Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, 1999, pag. 87
[11] In Direito Processual Penal, Volume I, 1974, pág. 215.
[12] Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 23.06.2010, Cons. Henriques Gaspar, Proc. nº 246/09.6GBLLE.S1, 3ª secção.
[13] Proferido no Proc. nº 182/07.0GACBT.G1, Des. Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Proferido no Proc. nº 97P1037, Cons. Andrade Saraiva, disponível em www.dgsi.pt , e anotado por Simas Santos, in RPCC, ano 8, pp. 459 a 500.
[15] Proferido no Proc. nº 97P899, Cons. Brito Câmara, disponível no mesmo site.
[16] Proferido no Proc. nº 0817858, Des. Manuel Braz, disponível no mesmo site.
[17] In CJ Acs. STJ, Ano V, Tomo II, pág. 250.
[18] In www.dgsi.pt/jtrc, Des. Isabel Valongo
[19] In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 665