ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
EXECUTORIEDADE FACE AO NCPC
Sumário

O documento particular que dispunha de executoriedade à data em que foi elaborado (art. 46º nº 1 al. c) do CPC) não a perdeu face ao actual art. 703º do CPC e ao disposto no art. 6º nº 3 da Lei nº41/2013 de 23/6.

Texto Integral

Proc. n.º 4698/14.4T8LOU.P1
Comarca do Porto Este
Lousada – Inst. Central- Secção de Execução – J2

Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

B… instaurou execução ordinária contra C…, visando o pagamento por este da quantia de €49.900,00. Como título executivo juntou o documento reproduzido a fls. 2, vº e 3, datado de 16 de Julho de 2007, intitulado “Assunção de Dívida”, do qual consta que o ora executado assumia a responsabilidade pelo pagamento dos créditos que a sociedade “D…, Ld.ª” detinha sobre as sociedades “E…, Ld.ª” e “F…, Ld.ª” até ao montante de €105.000.
A exequente juntou ainda um documento intitulado “Cedência de Crédito”, do qual consta que a sociedade “D…, Lda” cedia a B… os créditos que detinha sobre as sociedades “E…, Lda.” e “F…, Lda.”, cujo pagamento tinha sido assumido por C…, gerente das devedoras, até ao montante de €105.000.
Conclusos os autos, em 22.01.2015 foi proferido despacho (fls. 12/16) a indeferir liminarmente o requerimento executivo, “por manifesta falta de título executivo.” Considerou-se para tanto que “o contrato dado à execução configura um mero documento particular pelo que não tem a natureza de título executivo dado não se enquadrar na previsão contida nas als. b) ou d) do n.º 1 do art. 703º do CPC”; que “a exequente terá que lançar mão da acção declarativa para obter o pertinente título executivo.”

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A exequente interpôs recurso, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:
1– Confrontando o estipulado pelo artigo 46.º do pretérito Código de Processo Civil, com o consagrado no artigo 703.º do novo Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.6), de imediato se conclui que os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações, deixaram de integrar o elenco de títulos executivos taxativamente previsto pelo aludido artigo 703.º.
2– Porém, a apelante apresentou como título executivo um documento particular assinados pelo devedor, que importa a constituição ou reconhecimento de obrigações, elaborado em 16 de Julho de 2007;
3– Aquele documento particular apresentado à execução como título executivo foi elaborado em 16 de Julho de 2007, data essa anterior à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil - 01/09/2013;
4– As razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não podem prevalecer sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico;
5– A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703.º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático- Ac. TRE 27/02/2014;
6– A aplicação retroactiva do artigo 703.º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.
7– Assim, o título executivo ora apresentado à execução deve ser considerado exequível e como tal a execução não deveria ter sido indeferida liminarmente, mas antes deveria ter sido ordenada a citação da apelada, prosseguindo a execução os seus termos até final, com o fim de recuperar o crédito exequendo acrescido dos juros e das despesas de execução.
8– Pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 703.º e 726.º, n.º 2 a) do CPC e art. 2.º da CRP.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, proferindo-se douto acórdão que julgue o título executivo apresentado nos presentes autos exequível, com as legais consequências.
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações
Os factos
Além dos acima enunciados, para a decisão relevam os seguintes facos:
1. O documento intitulado “Assunção de Dívida”, datado de 16 de Julho de 2007, encontra-se assinado por G… e C….
2. A “Cedência de Crédito” acima referida, datada de 28 de Novembro de 2008, encontra-se assinada por G…, na qualidade de gerente da sociedade “D…, Ld.ª” e por B….
3. No requerimento executivo foi alegado que a exequente, por carta registada com aviso de recepção, notificou o executado da cessão de créditos.
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O direito
Questão a decidir: Se a exequente dispõe de título executivo.
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Na data que se encontra aposta no documento junto com o requerimento executivo e intitulado “Assunção de Dívida”, este era considerado título executivo, integrando a previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do então vigente CPC – o documento (particular) encontra-se assinado pelo assuntor que se obrigou perante o credor a efectuar a prestação devida por duas sociedades, até ao montante de €105.000.
Todavia, com excepção dos títulos de crédito, os documentos particulares naquela alínea mencionados perderam a qualidade de títulos executivos no novo Código de Processo Civil (art. 703.º, n.º 1, al. c).
Como a presente execução foi instaurada na vigência do novo diploma, o qual, entre outras, rege em matéria de títulos executivos (art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o CPC), não integrando o mencionado documento o elenco de tais títulos, enunciados no n.º 1 do artigo 703.º, entendeu-se no despacho recorrido que a exequente não dispõe de título executivo.
Pugna a exequente pela inaplicabilidade desta norma, invocando a sua inconstitucionalidade por violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República.
A questão já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, em cujo acórdão nº 847/2014, de 03.12, se lê:
“(…) a imprevista eliminação de exequibilidade a um documento que anteriormente era dotado de força executiva pode deixar o credor em sérias dificuldades (senão mesmo privado de meios) para ver satisfeito o seu direito de crédito.
Ainda que subsistam outras vias de acesso ao direito, como o processo de injunção ou a ação declarativa, o credor deixa de poder contar com a presunção de prova da dívida que lhe oferecia o documento munido de força executiva.
Na verdade, não deve ignorar-se que o direito de ação executiva, materializado no título executivo, pressupõe a presunção da prova da dívida. Por conseguinte, a exclusão de determinado tipo de documento do rol dos títulos executivos acarreta consigo não apenas a privação do acesso imediato à ação executiva como também a privação da presunção de prova do direito de crédito. “
(…)
“Assim, no juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse do credor particular (que pode ficar sem possibilidade de fazer valer o seu crédito), com um interesse público, que pode ser alcançado por outras medidas legislativas e seguramente também num horizonte temporal mais alargado. Ora, neste caso, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança impõe que a implementação da medida se faça de forma diferida no tempo. Aplicá-la de imediato, é ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que bastaria a previsão de um regime transitório adequado para acautelar as expetativas legítimas dos titulares de títulos executivos que perderam essa natureza, sem descurar o interesse público que reside na eliminação de execuções injustas.
Não se trata de exigir que a atribuição de força executiva a um documento particular por uma lei revogada tenha de ser garantida até à extinção da última execução baseada num desses títulos e ainda por instaurar. Na verdade, bastaria a previsão de um período de tempo após a publicação da nova lei durante o qual fosse permitido aos titulares de tais documentos instaurar execuções com base neles para assegurar a devida proteção da sua legítima confiança na estabilidade do ordenamento jurídico.
Conclui-se, assim, que a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem um disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.”

Finalizava julgando inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961.
O mesmo entendimento foi sufragado no acórdão do mesmo Tribunal, nº 161/2015, de 04.03.2015, cuja fundamentação remete para o acórdão nº 847/2014. As decisões, de diferentes secções, foram tomada por unanimidade. Embora não se trate de declaração com força obrigatória geral, a argumentação mostra-se convincente, o que nos conduz a rever a posição sustentada em acórdão prolatado em data anterior ao acima referido acórdão nº 847/2014.
Não encontrando razões com solidez bastante para dissentir do decidido nos referidos arestos, aderimos ao ali decidido, acompanhando a respectiva retórica argumentativa. No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos da Relação de Évora, citados pela apelante e o acórdão da Relação de Coimbra, de 19.05.2015 (Proc. 376/14.2T8CBR.C1).
O documento particular apresentado nos presentes autos como título executivo dispunha de executoriedade à data em que foi elaborado, por integrar a previsão da al. c) do nº 1 do artigo 46º do CPC. A retirada dessa executoriedade afronta os princípios constitucionais da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição. Resta recusar a aplicação do artigo 703º do CPC, conjugado com o artigo 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho e considerar que a exequente dispõe de título executivo, o que implica a revogação do despacho recorrido e o prosseguimento da execução, caso nada mais obste a tal prosseguimento.
Decisão
Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se a prossecução dos autos, caso nada obste a tal.
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Sem custas

Porto, 23.6.2015
José Carvalho
Rodrigues Pires
Márcia Portela