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PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Sumário
I - Na acção civil enxertada em processo penal com a dedução do pedido de indemnização, é admissível o incidente de intervenção principal provocada; II - O pedido de intervenção não constitui por si fundamento para a remessa das partes para os tribunais civis, quanto àquele pedido.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 13932/13.7TDPRT, da Comarca do Porto, Porto – Instância Local – Secção Criminal, J3, por decisão judicial datada de 15 de maio de 2015, foi remetido para os meios comuns o conhecimento do pedido de indemnização civil nele formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., contra a Companhia de Seguros “B…, S.A.”
Inconformado com tal decisão, o Instituto da Segurança Social, I.P. dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. Uma vez que o comportamento que consubstancia responsabilidade penal é também gerador de responsabilidade civil, a prova produzida e gravada no âmbito da acção penal serve ambos os propósitos – civil e penal – pelo que a remessa da questão civil para os meios comuns implica uma duplicação inadmissível de diligências probatórias, atentando contra o princípio da economia processual.
2. A questão suscitada pelo pedido de indemnização cível parece ser, salvo melhor opinião, manifestamente fácil de apreciar uma vez que a por força do disposto no artigo 369.º do Código Civil a certidão comprovativa dos valores pagos e que se pretendem reembolsar é um documento autêntico e por força do disposto no artigo 371.º do Código Civil faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo ISS, IP/CNP.
3. Assim, à semelhança do que tem acontecido em centenas de outros processos o Tribunal normalmente dá esses factos como provados, a menos que seja alegada e demonstrada a falsidade do documento autêntico (coisa rara dado que na prática nunca aconteceu no que se reporta ao ISS,IP) e vai decidi-los de acordo com toda a matéria probatória produzida em julgamento, até porque é comumente sabido que no pedido de reembolso dos autos, em conformidade com o que sempre foi feito, o ISS, IP limita-se a aderir e a reproduzir os factos constantes da acusação do Ministério Público. Por outras palavras, o ISS, IP não traz novas questões na medida em que o seu pedido de reembolso está dependente do resultado da acusação e a única questão que traz já é velha e fácil de apreciar pois resulta da prova produzida por um documento autêntico relativamente aos valores antecipados pela morte do beneficiário.
4. Ora, isso significa que estamos perante uma questão que acima de tudo não gera qualquer atraso nos Tribunais, na medida em que a procedência do pedido de reembolso e a sequente condenação dos terceiros responsáveis depende de duas coisas: da prova produzida em julgamento conforma acusação do Ministério Público (há aqui um aproveitamento total dos factos vertidos na acusação por parte do ISS, IP dado que esta entidade não acrescenta qualquer facto novo que influencie a decisão relativa ao acidente que gerou a morte do beneficiário); da prova de um documento autêntico que faz prova plena (o caso da certidão de valores pagos).
5. Por esse motivo quer-nos parecer, salvo melhor opinião, que não existe qualquer fundamento válido para se não conhecer do pedido cível tempestivamente deduzido, remetendo-o para os meios comuns.
6. Até porque admitindo-se o incidente referido no caso, sempre cumpre referir que em caso algum este iria retardar intoleravelmente o procedimento criminal até porque até ao dia designado para a audiência de julgamento de 01/10/2015b decorreria tempo mais do que suficiente para ser feita a notificação exigível e por isso é bastante previsível que muito antes da data do julgamento tudo ficaria resolvido.
7. O despacho recorrido violou as regras constantes dos artigos 71.º do CPP, o princípio da economia processual e o dever de fundamentação previsto no artigo 97.º, n.º 5 do CPP.
8. A fundamentação utilizada no despacho é, salvo melhor opinião, deficiente por considerar que por base num mero incidente se justifica remeter as partes para os Tribunais Civis.
9. A fundamentação é deficiente por não se alicerçar corretamente no disposto no n.º 3 do artigo 82.º, na medida em que inverte absolutamente a sua lógica por se basear num mero incidente para fundamentar o atraso no decurso da audiência, quando em alternativa deveria verificar a data em que estava marcado o julgamento e fazer a análise se aquilo que se impunha fazer seria ou não susceptível de retardar intoleravelmente o processo penal. Ao fazê-lo o Tribunal decidiu contra legem.
10. Significa que não se encontra, nem parece ser possível fundamentar, a existência de qualquer desvantagem para o processo penal, pois o pedido de reembolso e o referido incidente, conforme melhor demonstrado supra, pela sua simplicidade não o retarda intoleravelmente.
11. De resto, tendo o ISS, IP junto um documento autêntico a provar os montantes pagos para que possa ser ressarcido, não havia qualquer fundamento razoável para supor que a resolução das questões suscitadas pelo pedido de indemnização geraria incidentes que retardariam intoleravelmente o processo penal, nem parece fazer sentido uma sentença surpresa como esta ora em análise.
12. Face ao exposto, conclui-se que o despacho recorrido, ao remeter as partes para os tribunais civis, violou o disposto no artigo 71.º e no n.º 3 do artigo 82.º, ambos do CPP.
13. O despacho recorrido violou ainda os artigos 97.º, n.º 5, 118.º e 123.º do CPP.
14. Mais grave ainda, o despacho recorrido viola expressamente o artigo 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, porquanto existe norma expressa para que o pedido de reembolso seja feito diretamente na ação penal. Por outro lado, em caso algum poderá haver remessa para o processo civil, porque contrariamente ao que acontece no processo-crime em que o Centro Nacional de Pensões é tido como lesado nos termos e para os efeitos do artigo 74.º do CPP e faz pedido de reembolso sem precisar de se encostar ao pedido civil das partes, no processo civil já não é assim, dado que nesse caso o pedido de reembolso está dependente do pedido de indemnização civil (leia-se os artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro).
15. Significa que o Tribunal a quo ao remeter o ISS pata o Tribunal Civil não avaliou da (im)possibilidade de concretização do despacho por violação dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro e parece-nos, salvo melhor opinião, que estava obrigado a fazê-lo.
16. Por outras palavras, ao fazê-lo o Tribunal a quo está a negar a possibilidade de o ISS ser ressarcido através d aplicação do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, em conformidade com o que se tem feito ao longo dos anos em milhares de processos idênticos a este.
17. E se realmente a remessa para o Tribunal Civil for impossível (que é o que nos parece da leitura do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro) está-se a negar o direito constitucional à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).
18. Assim, o despacho deverá também ser declarado violador dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, assim como violador do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, dado que a concretizar-se acabará por negar o acesso aos Tribunais.
19. Por esse motivo para além do controlo da legalidade, parece que necessariamente terá de ser considerada que a interpretação do Tribunal a quo ao remeter o processo para o tribunal civil sem estarem reunidos os pressupostos para que essa remessa pudesse ser feita inviabilizará nesse tribunal a respetiva decisão de mérito e com isso prejudicar-se-á o erário público e negar-se-á acesso à justiça, devendo por isso ser declarada a inconstitucionalidade do referido despacho ou, em alternativa, no mínimo ser declarada a ilegalidade por violação da imposição constante no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro que trata precisamente a ocorrência destes pedidos de reembolso em acção penal.
20. E se alei exige que esse pedido seja feito em acção penal e que o ISS seja notificado então é porque nesses casos não poderá haver remessa para o Tribunal Civil, senão qual seria o sentido útil da lei ?
Nestes termos e nos demais de direito deve a referida Sentença ser revogada, com as legais e necessárias consequências.
Assim se fazendo a habitual justiça, requer-se que o presente recurso interposto da sentença que remeteu o ISS, IP e as demais partes para os tribunais civis seja julgado procedente, devendo o Tribunal a quo conhecer do pedido de reembolso das quantias antecipadas pelo ISS, IP, sob pena de violação das supra-referidas normas legais.»
O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
A Senhora Juíza manteve a decisão recorrida, por entender que a mesma não merece qualquer censura.
*
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta apôs visto.
Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[1], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
*
Com interesse para a decisão, o processo fornece os seguintes elementos:
i) O Instituto da Segurança Social, IP, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, e no artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, deduziu pedido de reembolso pelo valor pago em consequência da morte do seu beneficiário C….
Em concreto, pediu a condenação solidária de D… – que nos autos figura como Arguida – e da “B…, S.A.”, a pagarem-lhe a quantia de € 5 877,15 (cinco mil oitocentos e setenta e sete euros e quinze cêntimos), acrescida das pensões de sobrevivência que se vencerem e forem pagas na pendência da ação, bem, como dos respetivos juros de mora legais, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
ii) Pedido que foi admitido apenas em relação à Companhia de Seguros “B…, S.A.”
iii) Na resposta que apresentou ao sobredito pedido, a “B…, S.A.”, invocando ter já indemnizado totalmente os herdeiros do C…, requereu a intervenção principal dos mesmos – E…, F… e G….
Juntou cópia da escritura de habilitação de herdeiros e recibo de indemnização.
iv) Na sequência de notificação que, para tanto lhe foi dirigida, o Instituto de Segurança Social, IP, respondeu ao articulado apresentado pela Companhia de Seguros, mantendo a pretensão que havia anteriormente formulado.
v) A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«A arguida D… encontra-se acusada da prática de um crime de homicídio por negligência, p.p.no art. 137.º, n.º 1 do Código Penal.
Por despacho de fls. 186 foi recebida a acusação e designadas datas para a realização da audiência de julgamento.
A audiência de julgamento foi marcada para o dia 23-4-2015, sendo a 2ªdata designada para o dia 7-5-2015.
Entretanto, em 24-3-2015, deu entrada o requerimento de reembolso deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP contra a B…, SA e a ora arguida.
Por despacho de fls. 236, em 26-3-2015, foi admitido liminar e parcialmente tal pedido e ordenada a notificação da demandada companhia de seguros nos termos e para os efeitos do disposto no art. 78º do Código de Processo Penal.
Conforme se pode constatar da leitura do requerimento de fls. 258 e do despacho de fls. 274 e ss foi a audiência de julgamento adiada uma vez que ainda não tinha corrido o prazo para a demandante apresentar a devida contestação.
A contestação da ora demandada companhia de seguros deu entrada a 28-4-2016 – cfr. fls. 281 e ss cujo teor aqui se dá por reproduzida para os devidos efeitos e por uma questão de utilidade processual.
A demandada veio, entre outros, requerer ainda a intervenção principal provocada dos herdeiros da vítima alegando para tanto que já procedeu ao pagamento da indemnização global devida.
A audiência de julgamento encontra-se designada para o próximo dia 01-10-15, pelas 9.30h.
Cumpre decidir.
Os requerentes/demandantes cíveis e os requeridos podem requerer os meios de prova que considerem convenientes à descoberta da verdade material bem como suscitar os incidentes que entendem por necessário.
No entanto, dispõe o art. 82º, n.º 3, do C.P.P. que “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.”
É o que sucede no presente caso com o referido pedido de indemnização civil e incidente de intervenção provocada. Com efeito, tal incidente da instância, tipicamente civil, está directamente relacionado com questões de legitimidade processual passiva o que pode gerar incidentes dilatórios e, ainda, contender com uma decisão cível rigorosa pois não nos esqueçamos que os incidentes da instância – aqui em causa – estão gizados, antes de mais, para um formalismo legal e processual amplamente civil e não processual penal.
Nos presentes autos tais incidentes além da decisão da sua admissão irão implicar a citação/notificação dos chamados, prazo para contestar e prazo para a resposta da companhia de seguros.
Ora, o princípio processual penal da celeridade e economia de actos não se compadece com tais incidentes processuais, que se poderão ou não verificar, o que inviabiliza desde logo uma decisão rigorosa na parte cível, não se mostrando o meio processual próprio para o fazer.
Além do mais, e como já adiantamos supra, tais incidentes podem atrasar de forma intolerável o presente procedimento criminal – notificações para contestar, requerimentos de novos meios de prova, etc.
Assim sendo, por todo o exposto, e não obstante ter já sido admitido o pedido cível formulado nos autos ao abrigo do princípio da adesão, nos termos do referido art. 82º, n.º 3 do Código de Processo Penal, oficiosamente remeto as partes para os meios comuns.
Notifique.»
Conhecendo.
Com o Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, procurou-se alargar o âmbito de aplicação do regime consagrado na Lei n.º 28/84, de 14 de agosto, no domínio dos meios de recuperação das quantias em dinheiro pagas, a título de subsídios ou de pensões, a quem se viu privado de rendimentos de trabalho por acontecimento da responsabilidade de terceiro.
Na prossecução de tal objetivo, o Decreto-Lei n.º 58/89, de 22 de fevereiro, impõe se dê conhecimento à Segurança Social da existência de procedimento judicial – ação cível ou processo crime – onde se avaliem atos de que tenha resultado a morte ou a incapacidade para o exercício da atividade profissional, para lhe permitir a intervenção nesses processos, aí formulando o pedido de reembolso de quantias que haja pago, a título de subsídio ou pensão.
Trata-se, pois, de agilizar os mecanismos destinados ao reembolso de prestações sociais pagas pela Segurança Social, permitindo que tal seja feito em processos que não intentou e de que não tem conhecimento.
Mas só isto.
Ou seja, do disposto no Decreto-Lei n.º 58/89, de 22 de fevereiro, não resulta que a Segurança Social apenas possa obter o ressarcimento de quantias que pagou, em caso de evento que provocou a norte ou a incapacidade temporária a beneficiário seu, através da intervenção nos sobreditos processos
Porque nada impede a Segurança Social de intentar as ações adequadas a obter tal ressarcimento.
Feito este esclarecimento, que se impunha perante opinião diversa expressa pelo Recorrente e geradora da formulação de outras questões, importa agora olhar para a decisão recorrida.
Que, de forma muito genérica – por não revelar preocupação em concretizar as afirmações que deixa feitas –, considera haver razões para fazer uso do disposto no n.º 3 do artigo 82.º do Código de Processo Penal.
Em tal preceito legal consagra-se a possibilidade de o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os Tribunais Civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.
A simplicidade das questões suscitadas no pedido de indemnização formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., e na contestação da Companhia de Seguros “B…, S.A. inviabiliza a afirmação de que o seu conhecimento, nos presentes autos, possa causar perturbação.
O incidente de intervenção principal provocada dos herdeiros do C… afigura-se de resolução linear e célere.
Naturalmente que terá que lhes ser dada a possibilidade de tomarem posição nos autos.
Isto para dizer que não está em causa a qualidade de decisão que venha a ser tomada, mas sim a velocidade que se pretende que os processos hoje tenham, por razões meramente estatísticas.
Mas trata-se de circunstância – essa pressa – que a lei não contempla como motivo de encaminhamento das partes civis em processo crime para os meios comuns.
Quanto à alusão, na decisão recorrida, de que os incidentes da instâncias se não adequam ao processo penal, impõe-se – para cabal esclarecimento de tal questão – a transcrição do que se mostra enunciado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.11.2007, proferido no processo nº 1322/02.1TACBR-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc
«(…)
Existe uma corrente jurisprudencial que defende que “não é admissível a intervenção provocada de terceiros na acção cível enxertada no processo penal, uma vez que não há “caso omisso”, já que o Cód. Proc. Penal (arts. 73º e 74º) prevê e regula toda a matéria de intervenção de terceiros, não havendo por isso qualquer lacuna a preencher, com recurso às normas do processo civil, nos termos do art. 4º do Código de Processo Penal” - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-11-2004 (processo 0415651, em www.dgsi.pt.); no mesmo sentido, entre outros o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-06-98 (processo 0000785, em www.dgsi.pt).
Os defensores desta tese argumentam, em síntese, que:
O Código de Processo Penal prevê e regula apenas um dos vários tipos de intervenção de terceiros: a principal, passiva e espontânea. Não fala dos outros tipos de intervenção de terceiros previstos no Código de Processo Civil, nos artºs 320º e seguintes porque é só essa que se admite, pois, de outra maneira, não teria sentido regulá-la apenas a ela.
O Código de Processo Penal regula a intervenção principal em moldes diferentes dos do processo civil porque a intervenção passiva voluntária, em regra, não suscita oposição. É a própria pessoa com responsabilidade meramente civil que quer intervir ao lado do demandado, e o lesado não tem qualquer interesse em opor-se a isso. Pelo contrário, passa a ter mais possibilidades de ver o seu direito satisfeito. Todas as outras formas de intervenção de terceiros podem suscitar oposição e, portanto, demora, susceptível de provocar atraso no processo penal.
Não se está perante um caso omisso ou lacuna, a integrar com recurso às normas do processo civil, nos termos do artº 4º do Código de Processo Penal.
É irrelevante que o objectivo da intervenção espontânea e da provocada seja substancialmente o mesmo, pois o que pesa é a demora que uma e outra podem implicar. E nisso são muito diferentes: a intervenção provocada pode normalmente suscitar oposição e, portanto, atraso do processo penal, em muitos casos, intolerável; enquanto a intervenção espontânea não.
(…)
Actualmente, outra corrente jurisprudencial sustenta que “em pedido de indemnização civil deduzido em acção penal é admissível o incidente de intervenção principal provocada” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-10-2003 (processo 2755/03); no mesmo sentido, alinham o recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-04-2007 (processo281/05.3TAFIG-A.C1), o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-04-2000 (processo 0024475), o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8-03 e de 20-12-2006, (processos 0546514 e 0615328) todos em www.dgsi.pt e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-12-2002, no Recurso 3575/02.
Em defesa desta tese, que perfilhamos, dir-se-á que:
O nosso sistema processual penal consagra no artº 71º do Código de Processo Penal o princípio da adesão através de uma via de adesão obrigatória da acção civil à acção penal de harmonia com a qual o direito à indemnização por perdas e danos sofridos como o ilícito criminal só pode ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento (civil) a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso - “Código de Processo Penal Anotado”, 1996, 1º vol., pg. 331, de Simas Santos, Leal-Henriques e Borges de Pinho.
Esta dependência processual resulta “não apenas do interesse e da função iminentemente públicos ligados à indemnização, mas também de que assim se cumpririam da melhor forma exigências compreensíveis de economia processual, protecção do lesado e auxílio à função repressiva do direito penal” - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal” 1º volume, Coimbra Editora, 1974, pg. 543. “A sua maior vantagem, que o torna um instrumento indispensável em qualquer Estado-de-direito social dos nossos dias, reside em permitir uma realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização” - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra Editora, 1974, pg. 562.
Perante este tipo de preocupações subjacentes ao princípio da adesão vigente, não faria sentido que o legislador excluísse um dos mecanismos necessários para uma efectiva e eficaz protecção dos interesses dos intervenientes processuais. Constituiria, mesmo, uma violação do princípio de adesão (…) “fazer corresponder à unidade e concentração das pretensões advenientes das infracções penais a impossibilidade de efectivar a responsabilização (ainda que meramente civil) mediante a intervenção principal provocada prevista no artigo 325º do Código do Processo Civil, ex vi o artigo 4º do Código de Processo Penal, sempre conduziria a uma violação do principio da adesão ao “exigir” um desdobramento da efectivação do peticionado civil ou a uma imposição de um meio processual (penal) claramente insuficiente e desajustado”.
(…)
Em processo civil, o incidente de intervenção principal provocada, tal como o espontâneo, configuram uma intervenção de terceiros com a finalidade de fazer valer um interesse igual ao dos autor ou do réu - Antunes Varela, RLJ 120-25.
Substancialmente, o objectivo da intervenção espontânea e da provocada é o mesmo e, na perspectiva dos propósitos do instituto e da sua adequação ao processo penal (tendo em atenção a primazia das regras processuais penais que se sobrepõem, em regra, às normas do processo civil - Cavaleiro Ferreira, Curso, I vol., pg. 16), não se vislumbra motivo para admitir apenas uma das suas formas em processo penal.
(…)
O Prof. Figueiredo Dias, mentor incontestado da nova lei processual penal defendia já em 1974, ao analisar o problema no plano do direito a constituir - “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra Editora, 1974, pg. 572; as soluções propostas e explanadas a pg.s 559 a 575 vieram, aliás, a ser genericamente consagradas no Código de Processo Penal de 1987 - que “deverá finalmente generalizar-se a possibilidade - aberta hoje entre nós pelo Código da Estrada - de o lesado exigir, no processo penal, indemnização às pessoas só civilmente responsáveis pelo facto imputado ao arguido, podendo elas intervir voluntariamente no processo penal movido contra o mesmo arguido. Paralelamente, quando a indemnização seja apreciada no tribunal penal e o arguido declare que pretende chamar à demanda pessoas só civilmente responsáveis, não deverá por esse facto cessar a competência daquele tribunal para apreciar a indemnização”.
Conhecemos assim o propósito do legislador de permitir a intervenção principal provocada. Mas, então, porque é que a letra da lei não é esclarecedora, apenas parecendo consagrar a possibilidade da intervenção principal espontânea no art. 73º nº 1 do Código de Processo Penal, como bem salientam os defensores da tese da inadmissibilidade da intervenção principal provocada?
A razão é de índole prática e prende-se com a alteração do Código de Processo Civil então também a decorrer: De acordo com Maia Gonçalves - “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 15ª ed, 2005, pg. 208 - do Ante-Projecto constava uma disposição que foi discutida na Comissão Revisora, segundo a qual quando a indemnização fosse pedida no tribunal penal e o arguido declarasse que pretendia chamar à demanda pessoas só civilmente responsáveis, não cessaria por esse facto a competência para apreciar o pedido de indemnização contra todos. A eliminação desta disposição foi deliberada, por se entender dependente do que viesse a ser regulamentado no Código de Processo Civil, a cuja revisão se estava a proceder, e pela eventualidade de supressão deste tipo de matérias como o incidente de chamamento de pessoas.
Mas, que o propósito do legislador era o de permitir a intervenção provocada resulta ainda da leitura das Actas da Comissão Revisora do Código de Processo Penal - Referência à Acta nº 5 de 26.3.91, constante do “Código de Processo Penal Anotado”, 1996, 1º vol, pg. 346, de Simas Santos, Leal-Henriques e Borges de Pinho: Colocada a questão de saber se a intervenção provocada pelo lesado, das pessoas com responsabilidade meramente civil era contemplada pela disposição do art. 73º nº 2 do Código de Processo Penal, a resposta foi negativa, por se entender que a intervenção provocada está prevista no nº 3 do art. 74º e que o nº 2 do art. 73º apenas pretende esclarecer que as pessoas com responsabilidade civil também podem intervir voluntariamente.
O Código de Processo Penal, interpretado a esta luz, consagra a regra geral da admissibilidade da intervenção de terceiros com assento legal no disposto no nº 3 do seu art. 74º, enquanto o nº 2 do art. 73º se limita a esclarecer a possibilidade também da intervenção espontânea Por isso, afirma Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, I, Verbo, 1996, pg.s 323 a 326) que “tudo se passa nos mesmos termos em que é permitida a intervenção de terceiros no processo civil”. Também José da Costa Pimenta, “Código de Processo Penal Anotado”, 2ª ed, pg. 243 a 244, sustenta a admissibilidade da intervenção provocada, embora por “analogia” com o disposto na al. f) do nº 1 do art. 72º do Código de Processo Penal, “ou, se assim se não entender, por aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil.”.
(…)
Não se realce a maior demora nem se invoquem razões práticas de celeridade processual para sustentar a inadmissibilidade da intervenção provocada - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-11-2004 supra citado. Como se referiu supra, são também razões de celeridade, eficácia e economia que estão na génese do princípio da adesão com a possibilidade de intervenção provocada de terceiros.
Aliás, em situações de retardamento intolerável do processo penal motivado pelas questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil – sendo hipoteticamente configuráveis situações de demora excessiva provocadas por incidentes de oposição a qualquer dos tipos de intervenção (espontânea ou provocada) - o juiz pode, após avaliação das circunstâncias concretas do caso, remeter as partes para os tribunais civis, nos termos do art. 82º nº 3 do Código de Processo Penal.
Esse juízo é casuístico e, assim, não é legítimo pressupor que os incidentes de intervenção provocada geram sempre oposição e são sempre demorados.
Mas, recordemos, as preocupações de celeridade existem fundamentalmente para assegurar o direito constitucionalmente consagrado que assiste ao arguido de ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa - Artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
(…).»
No sentido da afirmada admissibilidade da intervenção principal provocada vejam-se, ainda, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 27 de fevereiro de 2007, in Coletânea de Jurisprudência., Ano XXXII, Tomo I/2007, páginas 262 e 263 e de 12 de junho de 2012, proferido no processo 768-06.0GTABF-B.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre.
Porque assim, sem necessidade de mais considerandos, forçoso é concluir pela admissibilidade da intervenção principal provocada em processo penal, consagrada no nº 3, do artigo 74º, do Código de Processo Penal.
Consequentemente, o despacho/decisão recorrido deverá ser substituído por outro que aprecie os pressupostos da intervenção principal provocada suscitada pela “B…, S.A.”
Nestes termos, o recurso é, pois, procedente.
III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que aprecie os pressupostos da requerida intervenção principal provocada suscitada pela “B…, S.A.”
Sem tributação.
Porto, 2015 novembro 11
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Ana Bacelar
Nuno Ribeiro Coelho
______________ [1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.