CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
FALSIDADE DE DEPOIMENTO
FALSIDADE DE TESTEMUNHO
RAI
ELEMENTO VOLITIVO DO DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário

I - Tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa prejudicada pelos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, dos art.º 359 e 360.º, do Cód. Penal.
II - No RAI apresentado pelo assistente após arquivamento do inquérito não basta a alegação de factos relativos ao elemento volitivo do dolo, exigindo-se também os referentes ao elemento intelectual do dolo - a consciência da ilicitude.

Texto Integral

Recurso 16943/13.9TDPRT-A.P1
Origem: comarca do Porto, instância central, 1ª secção de instr.criminal- J1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
Iniciaram-se os autos com denúncia efetuada por B… (ora constituído assistente e recorrente) contra C… – a quem imputou a prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º, nº 2, um crime de falsidade de depoimento, previsto e punido pelo artigo 359º, nº 1, e um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, todos do Código Penal – e contra D…, a quem assacou um crime de falsidade de depoimento e outro de injúria.
Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho em que, nomeadamente:
- arquivou os autos, por falta de indícios suficientes, na parte respeitante aos crimes de falsidade de depoimento imputados aos denunciados/arguidos;
- acusou o arguido C…, imputando-lhe um crime de denúncia caluniosa.

*
Não concordando com o assim decidido, o assistente B… deduziu requerimento de abertura de instrução, pretendendo: a pronúncia do arguido C… por mais outro crime de denúncia caluniosa e por três crimes de falsidade de depoimento, previstos e punidos pelo artigo 359º do Código Penal (ou, subsidiariamente, por três crimes de falsidade de depoimento previsto e punido pelo artigo 360º do mesmo diploma); a pronúncia da arguida D… por um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º do Código Penal.
Por despacho proferido a folhas 1007 a 1009, o Ex.mo JIC indeferiu liminarmente o requerimento de abertura de instrução, invocando como fundamentos quer a falta de legitimidade do assistente – considerou que não tinha legitimidade para requerer a abertura da instrução relativamente àqueles ilícitos (falsidade de depoimento ou de testemunho dos artigos 359º ou 360º do Código Penal), por não ser o titular dos interesses que as normas legais em causa especialmente quiseram proteger – quer a consideração de que o RAI não continha os elementos exigíveis pelo disposto nos artigos 287º, n.º 2 e 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
Refira-se, ainda, que nada disse sobre o segundo alegado crime de denúncia caluniosa.
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Novamente inconformado, veio o assistente interpor o presente recurso, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões

«A. Nulidade da sentença:
I. O Assistente, no seu RAI (requerimento de abertura de instrução), pugnou pela pronúncia do arguido C…, entre outros, pelo crime de denúncia caluniosa (art. 365º/CP);
II. O tribunal recorrido não se pronunciou quanto ao crime de denúncia caluniosa;
III. O crime de denúncia caluniosa vem tratado nos artigos 2º a 16º do RAI e o despacho recorrido não tomou qualquer posição quanto a esse pedido;
IV. Ao não se ter pronunciado sobre uma questão que devia apreciar/conhecer, incorreu o despacho na nulidade de omissão de pronúncia - art. 379º/1/c do CPP;
V. Nulidade da sentença que, desde já, se invoca;
B. Da rejeição do RAI, por legalmente impossível
VI. Salvo melhor entendimento, errou o tribunal recorrido ao ter rejeitado o RAI, por legalmente impossível;
VII. Entendeu o tribunal – mal é certo – que a instrução era inadmissível por duas ordens de razão:
a. O assistente não tinha legitimidade para requerer a abertura de instrução, uma vez que não era titular dos interesses que a norma quis proteger;
b. o requerimento não continha os elementos essenciais estipulados no art. 287º/2 do CPP;
VIII. Quanto ao primeiro argumento, se é certo que os crimes de falsidade de depoimento/testemunho visam proteger o bem jurídico Justiça, em sentido amplo, também não deixa de ser verdade que a prática desses crimes se repercute directamente na esfera jurídica daquele que o autor visou desfavorecer;
IX. As normas jurídicas em causa (359º/360º) visam, também, acautelar os interesses daqueles que são prejudicados/desfavorecidos pelo depoimento do autor e, por isso, têm legitimidade para se constituírem assistentes e, consequentemente, para requererem a abertura da instrução.
X. O assistente tem legitimidade para requerer a abertura de instrução pela prática dos crimes de falsidade de testemunho e depoimento.
XI. Quanto ao segundo argumento (o rai não continha os elementos essenciais), também não assiste qualquer razão ao tribunal recorrido, uma vez que o assistente cumpriu escrupulosamente o previsto no art. 283º/3 “ex vi” 287º/2, ambos do CPP;
XII. A decisão recorrida viola, nesta parte, os artigos 283º/3; 287º/1/b; 287º/2/3 do CPP.»
Finalizou o assistente o seu recurso requerendo:
a. a declaração da invocada nulidade do despacho recorrido (omissão de pronúncia);
b. a revogação do despacho recorrido e, em consequência, que seja declarada aberta a instrução.
*
Respondendo ao recurso ora em causa, o Ministério Público considerou que:
- tendo o crime de denúncia caluniosa sido objeto de acusação pública, não implica nulidade do despacho judicial de rejeição do R.A.I. o não conhecimento expresso da pretensão aí deduzida (de ser reapreciado o mesmo crime em instrução);
- o assistente não tem legitimidade para requerer a abertura de instrução relativamente a crimes de falsidade de depoimento ou de testemunho;
- no entanto, ainda que se lhe reconhecesse essa legitimidade, no R.A.I. não são alegados factos suficientes para completarem os elementos típicos objetivos distintivos dos crimes de falsidade de depoimento (artigo 359º do Código Penal) e de falsidade de testemunho (artigo 360º) – aqueles elementos que permitiriam distinguir a qualidade em que os arguidos terão efetuado os respetivos depoimentos – ou para consubstanciarem os elementos subjetivos referentes à consciência, pelos arguidos, da falsidade desses depoimentos;
- assim, não podendo o juiz de instrução acrescentar os factos em causa sob pena de violação do princípio acusatório, bem andou o Tribunal recorrido ao rejeitar o R.A.I., por ser legalmente inadmissível a instrução.
A final das suas contra - alegações, o respondente concluiu que deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, manter-se integralmente o despacho recorrido.
*
Nesta 2ª instância, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a posição tomada na resposta.
Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Tendo como ponto de partida o teor do requerimento de abertura de instrução e o despacho que o rejeitou e levando em conta as já conhecidas conclusões de recurso, as principais questões a decidir são as de saber:
- se, ao não conter a pronúncia do Tribunal a quo sobre a existência de mais um crime de denúncia caluniosa (além daquele por que o arguido C… foi acusado pelo Ministério Público), o despacho recorrido está ferido de nulidade;
- se o assistente tem legitimidade para requerer a abertura de instrução pelos crimes de falsidade de depoimento ou de falsidade de testemunho;
- se o requerimento de abertura de instrução contém todos os factos suficientes para configurarem os crimes de falsidade de depoimento ou de falsidade de testemunho pelos quais o assistente pretende ver pronunciados os arguidos.
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Previamente à abordagem dos temas assinalados, mostra-se útil transcrever o despacho do Ministério Público de 13/5/2015, na parte em que configura uma acusação, o requerimento de abertura de instrução e o despacho recorrido, o que se passa a fazer.

Factos e sua qualificação, constantes da acusação de 13/5/2015:
«No dia 15.11.2012 cerca das 12.39h., nas instalações do Diap do Porto, o arguido [2] apresentou queixa contra B…, imputando-lhe a falsificação da sua assinatura no contrato de cessão de créditos junto ao processo com o número 270906111.0YIPRT, que correu os seus termos no l° juizo, do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto.
A denúncia referida veio a dar origem aos processos de inquérito com os números 5247/12.4TDPRT e 14983/12.4TDPRT, tendo este último sido incorporado naquele, o qual correu os seus termos na 3° secção do Diap do Porto e veio a ser arquivado nos termos do art. 227º, n.º 2, do C. P. Penal, em 16.9.2014, como se vê de fls. 827 a 829, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, designadamente por no processo com o número 270906/11.0YIPRT, ter sido realizada perícia à escrita constante do aludido contrato, e se ter apurado no parâmetro do provável, que a assinatura do arguido ali constante, é a dele, como se vê de fls. 670 a 698, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Ainda na sentença proferida no processo com o número 270906/11.0YIPRT, se extraiu como matéria provada, a conclusão de que o documento de cessão de créditos foi assinado pelo arguido, como se vê de fls. 706 a 715, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Bem sabia o arguido que a denúncia que apresentou contra B… não correspondia à verdade, já que não ignorava que havia outorgado o supra referido contrato, apondo nele a sua assinatura.
O arguido agiu com intenção concretizada de vir a ser instaurado procedimento criminal contra B….
Sabia a sua conduta proibida.
Pelo exposto, cometeu, em autoria material, na forma consumada, um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365°, n° 1, do C. Penal (…)»
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R.A.I. do assistente:
«ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.º Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Assistente que, da prova produzida em sede de inquérito, deveriam os arguidos ter sido acusados [para além dos crimes pelos quais já vêm acusados (arguido C… - um crime de denúncia caluniosa e um crime de injúrias; arguida D… - um crime de injúrias)], pelos seguintes crimes:
a. arguido C…: 1 crime de denúncia caluniosa; 3 crimes de falsidade de depoimento e um crime de falsidade de testemunho;
b. arguida D…: 1 crime de falsidade de testemunho;

a. (i) arguido C…: 1 (um) crime de denúncia caluniosa [365°/CP]
2.º Como já se disse supra e resulta dos autos, o arguido C… já se encontra acusado por um crime de denúncia caluniosa, por referência à queixa apresentada contra o assistente por "alegada" falsificação de assinatura no contrato de cessão de créditos;
3.° Acontece que, o arguido C… também apresentou, em 17.04.2012 uma queixa no DIAP do Porto contra o Assistente, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança - Doc.1;
4.º Para tal, alegou que entre ele e o Assistente foi celebrado um contrato de cessão de créditos "fictício", a fim de conseguir obter judicialmente a cobrança desses créditos;
5.° E que o Assistente, obtida a cobrança dos créditos, se tinha recusado a entregá-los ao arguido C…;
6.° Dizendo que o Assistente tinha recebido e recusado devolver os desse contrato de cessão de créditos "fictício";
7.° Essa denúncia correu termos no DIAP do Porto sob o nº 5247/12.4TDPRT;
8.º O arguido C… sabia serem falsos os factos que participou nessa denúncia;
9.° Sabia ser verdadeiro o contrato de cessão de créditos;
10.° Sabia que o Assistente não fez seus quaisquer valores que pertencessem ao arguido;
11.° O Assistente não reteve ou fez sua qualquer quantia pertencente ao arguido C…, como este bem sabia, e sabe!
12.º A denúncia que o arguido C… apresentou teve corno único objectivo de ser instaurado procedimento criminal contra o Assistente;
13.º O que veio a conseguir;
14.º O Ministério Público, certamente em consequência das diversas participações, apensações, etc., acabou por não acusar o arguido C… da prática desta denúncia caluniosa (participação contra o Assistente por alegado crime de abuso de confiança);
15.º Salvo melhor entendimento, encontram-se preenchidos todos os elementos do tipo, pelo que deveria o mesmo ter sido acusado;
16.º Pelo que, impõe-se a sua acusação pela prática de dois crimes de denúncia caluniosa e não de apenas um [365°/CP];

a. (ii) arguido C…: 3 (três) crimes de falsidade de depoimento [359°/CP]
17.° O arguido C…, como resulta dos autos, participou criminalmente do assistente em dois momentos:
1º - Crime de falsificação (proc. 14983/12.4TDPRT) – o arguido está acusado por denúncia caluniosa, em relação a esta participação;
2° - Crime de abuso de confiança (proc. 5247 jl2.4TDPRT) – pretende-se que o arguido, seja pronunciado pela prática do crime de abuso de confiança;
18.°
No âmbito desses inquéritos, sempre que o arguido C… prestou depoimento, acabou por, depois de prestar juramento e devidamente advertido da obrigatoriedade de falar a verdade e só a verdade, sempre por faltar à verdade;
Assim,
a.
19.º No dia 22.04.2013, no âmbito do proc. n.º 14983/12.4TDPRT, o arguido prestou depoimento e disse
- "confirma a factualidade constante na queixa por si apresentada, que aqui se dá por reproduzida ..."
- "o denunciado apropriou-se de 1.500,00 e de muito mais (€ 7.000,00 e 1.400,00). - doc. 2;
20.º O arguido C…, nesse depoimento, relatou factos que sabia serem falsos;
21.º Como resultou provado, o contrato de cessão de créditos foi um verdadeiro contrato e o assistente nada tinha que lhe entregar;
22.º O assistente não reteve qualquer quantia que não lhe pertencia;
23.º Ao ter faltado à verdade dos factos, como faltou, cometeu o arguido C… um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo art. 359º/1 do Código Penal (atenta qualidade em que o mesmo interveio);
24.º Crime pelo qual deveria estar o arguido acusado;
b.
25.º No dia 28.11.2012, no âmbito do proc. n.º 5247/12.4TDPRT, o arguido prestou depoimento e disse:
- “que confirma na íntegra os factos explanados a fls. 3 e 4, por corresponder à verdade";
- "que o aqui denunciado já falsificou a sua assinatura pelo menos uma vez para unilateralmente fazer uma nova cedência de crédito, sem o conhecimento do depoente..." - Doc.3;
26.º Estes factos são falsos, como resulta da acusação pública de denúncia caluniosa e o arguido C… tinha perfeita consciência que estava a faltar à verdade durante o seu depoimento;
27.º Ao afirmar que o Assistente tinha falsificado a sua assinatura, tendo-se provado por prova pericial que foi o próprio a assinar, é certo que sabia estar a mentir quando afirmou que tinha sido falsificada a sua assinatura;
28.º Ao ter faltado à verdade dos factos, como faltou, cometeu o arguido C… um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo art. 359°/1 do Código Penal (atenta qualidade em que o mesmo interveio), por referência ao depoimento prestado nesse dia 28.11.2012;
29.º No dia 22.01.2014, o arguido C… prestou novamente depoimento no âmbito do proc. n.º 5247/ 12.4TDPRT e, novamente advertida da obrigatoriedade de falar verdade e das consequências de o não o fazer, afirmou que:
"ambos os inquéritos se reportam ao mesmo contrato de cessão de créditos documento a fls. (...) que não sabe indicar a data real da elaboração do contrato" - Doc. 4;
30.º Significa que, uma vez mais, consciente e deliberadamente, faltou o arguido C… à verdade dos factos;
31.º Ao ter faltado à verdade dos factos, como faltou, cometeu o arguido C… um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo art. 359°/1 do Código Penal (atenta qualidade em que o mesmo interveio), por referência ao depoimento prestado nesse dia 22.11.2014;
32.º Em resumo, pelos factos acima descritos, deveria o arguido C…, atenta a posição processual em que prestou declarações, ter sido acusado da prática de três crimes de falsidade de depoimento (359º/CP), a saber:
a. declarações prestadas em 22.04.2013, no âmbito do proc. n.º 14983/12.4TDPRT;
b. declarações prestadas em 28.11.2012, no âmbito do proc. n.º 5247/12.4TDPRT;
c. declarações prestadas em 22.01.2012, no âmbito do proc. n.º 5247/12.4TDPRT;
33.º Caso assim não se entenda, sempre teria o arguido praticado três crimes de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º do Código Penal;

a. (iii) 1 (um) crime de falsidade de testemunho praticado pelo arguido C…
34.º O Ministério Público, cremos de forma errada, considerou que o arguido C… não cometeu o crime de falsidade de testemunho (360°/CP), quando prestou depoimento no âmbito do processo cível n° 270906/11.0YIPRT;
35.º O arguido C…, como resulta da transcrição de fls..., declarou, entre outros, que:
. não cedi o crédito;
. as assinaturas não são minhas;
36.º O arguido estava sob juramento, a prestar depoimento como testemunha;
37.º Ao dizer que não tinha cedido o crédito, nem assinado o contrato, estava o arguido consciente de estar a faltar à verdade;
38.º Porquanto a prova pericial demonstrou que as assinaturas no contrato de cessão de créditos eram do próprio arguido;
39.º O Ministério Público, face à prova existente nos autos - transcrição do depoimento e relatório pericial à letra - deveria ter acusado o arguido C… da prática do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º do Código Penal;

b. arguida D…: 1 (um) crime de falsidade de testemunho
40.º Entendeu o MP que do depoimento da arguida D… não resulta, de forma consistente, que a mesma tenha praticado o crime de falsidade de testemunho, porquanto a mesma acabou admitindo que "já tinha estagiado na empresa "E…" em 2004 ..."
41.º A arguida D…, em depoimento prestado em 11.12.2012, no âmbito da audiência de julgamento do proc. 270906/l1.0YIPRT, afirmou nada saber, tudo desconhecer... quando em depoimento prestado 11 (onze) meses antes, no âmbito do proc. 159304/l1.2YIPRT (2º Juízo Cível da Maia), afirmou ter conhecimento directo de factos ocorridos na actividade da empresa em Janeiro de 2004 - Doc. 5;
42.º Como é que alguém tinha conhecimento directo de factos ocorridos em Janeiro de 2004 e, onze meses depois, afirma que nada saber referente a 2004, porquanto só começou a trabalhar na empresa em 2005?
43.º Da análise documental (transcrição do depoimento prestado, informação da segurança social e da sentença do processo 159304/11.2YIPRT) resulta de forma clara que a arguida D… praticou o crime de falsidade de testemunho (359°/CP), ao afirmar que nada sabia e que só tinha trabalhado na "E…" de 2005 a 2007;
44.º Porquanto, de forma consciente e deliberada, faltou à verdade dos factos, depois de ter prestado juramento e devidamente advertida para as consequências da falsidade de testemunho.
Termos em que, R. a V. Ex:.a. se digne ordenar a abertura da instrução, a produção da prova requerida e, a final, terminar com um despacho de pronúncia dos Arguidos, pelos seguintes crimes:
a. Arguido C…:
- 01 (um) crime de denúncia caluniosa [art. 365º/1 CP];
- 3 (três) crimes de falsidade de depoimento [art. 359°/CP];
- 1 (um) de falsidade de testemunho [360°/CP].
b. Arguida D…:
- 1 (um) crime de falsidade de testemunho [360º/CP].»
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DESPACHO RECORRIDO:
«Não se conformando com o despacho de arquivamento proferido pelo Mº Pº, vem o assistente requerer a abertura da instrução pugnando a pronúncia dos arguidos, por um lado, pelo crime de falsidade de depoimento ou de testemunho, ora art.º 359º, ora art.º 360º do CP.
Sucede que o assistente não tem legitimidade para requerer a abertura da instrução por tal ilícito penal na medida em que não é o titular dos interesses que a norma legal especialmente quis proteger, al. a) do nº 1 do art.º 68º do CPP. Citando o Ac. Rel. Porto de 09.07.2014, proc. 5072/12.2TAVNG, Relator Dr.ª Élia São Pedro “os autores da ação cível onde (na sua ótica) terá sido cometido o crime de Falsidade de depoimento ou declaração, do art.º 359.º, n.º 1, do Cód. Penal, não são titulares dos interesses especialmente protegidos pela norma e, nessa medida, não têm legitimidade para se constituírem assistentes nos autos.”
Mais,
Em processo penal vigora o princípio da vinculação temática. Isto é, o juiz de instrução está limitado pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução. Se esta não existe, ou é insuficiente, legalmente não pode existir instrução. Não pode o juiz suprir essa falta. Oficiosamente o juiz só pode suprir as nulidades e as irregularidades nos termos do art.º 119º e ss. do C. P. Penal.
O requerimento de instrução do assistente tem de conter, nº 2, in fine, do art.º 287º do CPP:
- a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena …, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve …, al. b) do art.º 283º, nº 3, do CPP;
- a indicação das disposições legais aplicáveis, al. c) do art.º 283º, nº 3, do CPP.
Ora, no requerimento de abertura de instrução não se alcança que esteja narrada a factualidade que permita concluir pelo tipo legal do crime.
A figura-se-nos que os factos descritos, embora denunciem um acontecimento, não integram a prática dos crimes enunciados no RAI. Impõe-se a conclusão de que, ainda que se demonstrassem todos os factos constantes do requerimento de abertura de instrução, os mesmos não preencheriam os elementos subjetivos.
Como melhor se argumenta no Ac. Rel. Porto de 06-06-2012, proc. 414/09.0PAMAI, e em que é relator Dr. Melo Lima:
“I – A estrutura acusatória do processo penal obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura da instrução equivalente a acusação.
II – Para se afirmar o elemento intelectual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha actuado com consciência da ilicitude.
III – A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objecto do processo.
IV – Se na acusação ou no RAI não constem os factos atinentes ao elemento subjectivo “consciência da ilicitude”, devem ser rejeitados por manifestamente infundados”.
É o que acontece com o presente requerimento de abertura de instrução. É omisso quanto à descrição de factos que podem preencher, os elementos quer objetivos quer subjetivos, fazendo com que a instrução careça de objeto.
Não só não alega factos do elemento interno que consubstancia o elemento subjetivo dos crimes em causa e tal elemento não decorre, nem de forma implícita, da descrição dos factos. Mais seguramente quanto à arguida D….
Porque não consta do RAI, não se sabe em que modalidade é prestado os depoimentos dos arguidos. Daí o pedido e formulação alternativa das imputações.
E, sendo como se diz no Ac. Rel. Lx de 16.07.2008, proc. 9613/2007-3: “Seria um absurdo fazer recair nos ombros da testemunha, que foi coercivamente obrigada a depor e com verdade, o ónus da prova da veracidade das imputações. Se assim fosse, seria coartar a liberdade e obrigação de denúncia de crimes, pois ninguém se disporia a prestar o seu depoimento sem primeiro saber se tinha meios para provar a verdade dos factos”, quais então os factos alegados que possam consubstanciar ao depoimento o conhecimento, a consciência, por parte dos arguidos da falsidade?
Não está.
E ao não constarem tais elementos no requerimento de abertura de instrução do assistente, incorre-se na nulidade prevista pelo nº 3 do art.º 283º do C. P. Penal, por força do nº 2 do art.º 287º do mesmo diploma legal.
O juiz não acusa, pronuncia.
Pelas razões expostas é o requerimento de abertura de instrução legalmente impossível, pelos princípios que norteiam o processo penal, não só da legalidade, como da contraditoriedade e dos direitos de defesa do arguido, art.º 61º do CPP e 32º da Constituição. Pelo que, em consequência, é rejeitado nos termos do nº 3 do art.º 287º, por força do nº 2, in fine, do art.º 287º, ambos do citado diploma legal (…)»
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A) Omissão de pronúncia
Começou o assistente por argumentar, no seu recurso, que o tribunal recorrido não se pronunciou, no despacho ora em causa, sobre o crime de denúncia caluniosa, cuja problemática, segundo alegou, foi exposta nos artigos 2º a 16º do R.A.I..
Conclui o recorrente que, ao não se ter pronunciado sobre uma questão que devia apreciar/conhecer, incorreu o Tribunal recorrido na nulidade de omissão de pronúncia prevista no artigo 379º/1/c do Código de Processo Penal.
Com efeito, basta ler com alguma atenção o R.A.I. do assistente e o despacho recorrido para se verificar que, a todas as luzes, o recorrente tem, aqui, toda a razão.
Ainda que se assumisse a posição apriorística e pouco fundamentada da resposta do Ministério Público – a de que estaríamos perante um só crime de denúncia caluniosa e de que esse se encontraria abrangido pela acusação oportunamente deduzida – tal não dispensaria o Tribunal recorrido de se pronunciar, fosse em que sentido fosse, sobre esta primeira pretensão deduzida pelo assistente no seu R.A.I..
Embora não seja essa a questão que está neste momento, diretamente, em causa (a que nos ocupa é a da nulidade por pura e simples omissão de pronúncia), assinale-se que, para além do Tribunal recorrido, também o Ministério Público, no seu despacho de 13/5/2015, omite qualquer referência à denúncia apresentada em 17/4/2012, imputando ao assistente a alegada prática de um crime de abuso de confiança, que terá dado origem ao processo nº 5247/12.4TDPRT, enquanto na acusação deduzida se refere apenas a denúncia, mais tardia, datada de 15/11/2012 (que terá originado o processo 14983/12.4TDPRT, posteriormente incorporado naquele com nº 5247/12), alegadamente por falsificação de assinatura.
Não se olvida que o crime de denúncia caluniosa, previsto no artigo 365º do Código Penal, envolve especificidades muito próprias no que respeita à unidade ou pluralidade de infrações cometidas pelo mesmo caluniador sobre o mesmo caluniado. Assim, como comenta Manuel da Costa Andrade [3], “se o agente repetir perante a mesma instância a mesma denúncia (sem acrescentar nada relevante) sobre a mesma pessoa, não haverá repetição do tipo”, valendo a repetição apenas como ‘facto posterior co-punido’; se, inversamente, acrescentar factos que reforcem a denúncia originária, então será esta que figurará como ‘facto anterior co-punido’.
No concreto contexto processual, o assistente refere-se às duas denúncias como consubstanciando factos diversos e crimes diversos, embora correlacionados entre si pela existência de um mesmo contrato de cessão de créditos.
Porém, seja qual for a posição a tomar sobre a questão de fundo do eventual concurso de crimes de denúncia caluniosa, o que é indiscutível é que o Tribunal recorrido teria que se pronunciar sobre esta pretensão deduzida no RAI e não o fez.
Tanto basta (e sobeja) para que se tenha que declarar a nulidade do despacho recorrido, a qual não pode ser suprida pela 2ª instância.
Com efeito, como anota Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal…, 4ª edição, UCE, Lisboa, 2011, página 985) embora o tribunal de recurso tenha o poder de suprir as nulidades da sentença, este poder é muito reduzido na prática, pois só se aplica aos casos de excesso de pronúncia e não aqueloutros de omissão de pronúncia, como é presente.
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B) A legitimidade da promoção do lesado quanto aos crimes de falsidade de depoimento ou de testemunho
Reagindo a outro dos fundamentos do despacho que rejeitou o seu requerimento de abertura de instrução – em que se entendeu que o requerente não tem legitimidade para requerer a abertura da instrução pelos crimes de falsidade de depoimento ou de falsidade de testemunho, na medida em que não é o titular dos interesses que as normas legas especialmente quiseram proteger – o assistente sustentar o contrário, isto é a sua legitimidade para fazer prosseguir o procedimento criminal contra os arguidos por tais alegados crimes independentemente do acusador público.
Vejamos.
Podem constituir-se assistentes no processo penal, nomeadamente – e além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito – os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – cf. artigo 68º/1/a) do Código de Processo Penal.
A interpretação que a doutrina e a jurisprudência tradicionais vêm fazendo da referida alínea a) é a de que não é qualquer ofendido, vítima ou particular afetado pela infração que tem a faculdade de intervir no processo como assistente. Segundo esta interpretação, depois de indagado qual o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, a legitimidade para a constituição de assistente não resulta de se deter um qualquer interesse reflexo na decisão do processo, mas unicamente da titularidade do específico interesse que a lei quis primordialmente defender.
Assim, o critério residiria na natureza individual ou supra individual do bem jurídico tutelado pela incriminação, apenas no primeiro caso se admitindo a constituição de assistente.
Este entendimento ou modelo interpretativo – admitindo que alguma vez tenha sido inteiramente pacífico na doutrina e na jurisprudência – tem vindo, porém, a consentir algumas significativas nuances e concessões, quando confrontado com as diversas opções doutrinárias e a matizada realidade judiciária.
Assim, dando alguns exemplos, não obstante o entendimento de que o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, veio a ser decidido pelo acórdão de uniformização de jurisprudência nº 1/2003 [4] que, no procedimento criminal respetivo, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.
Também quanto ao crime de denúncia caluniosa, apesar de incluído no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, veio o acórdão do S.T.J. de 29/3/2000 [5] a reconhecer legitimidade ao caluniado para se constituir assistente.
Por fim, registe-se que, não obstante se entender que o bem jurídico protegido pelo crime de falso testemunho é “essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado” [6], no acórdão do S.T.J. de 12/7/2005 [7] veio a entender-se que, se, num caso concreto, o agente, com a falsidade de depoimento, causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente.
Com esta última referência, abeirámo-nos definitivamente – embora, advirta-se, pelo ‘caminho’ talvez ainda menos trilhado – do objeto do presente recurso.
Com efeito, também aqui, pelo menos até 2005, vinha sendo entendimento claramente maioritário – quer na doutrina [8], quer da jurisprudência [9] – o de que se trata de um crime em que estão em causa valores supraindividuais, não sendo admissível a constituição de assistente de particulares eventualmente lesados.
No entanto, a partir do citado acórdão do S.T.J. de 12/7/2005, também neste âmbito tem vindo a ganhar força a posição que sustenta que o comportamento proibido pela norma incriminadora se pode repercutir diretamente na esfera jurídica individual de um particular lesado, isto é, que, provado o respetivo nexo, a prestação de um falso testemunho pode ter consequências diretas na esfera jurídica da pessoa que o seu autor dolosamente visou desfavorecer.
É isto, quanto a nós, que sucede – ou melhor, que pode acontecer, a provar-se tudo o alegado no RAI – com o caso ajuizado.
Com efeito, na doutrina nacional, Paulo Pinto de Albuquerque [10] e Augusto Silva Dias [11] entendem expressamente que tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa prejudicada pelo crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução.
Para este último autor – que vê similaridade, para estes efeitos procedimentais, nas hipóteses incriminadoras do Código Penal para a denegação de justiça e prevaricação (artigo 369º), falsidade de depoimento ou declaração (artigo 359º), falsidade de testemunho (360º), prevaricação de advogado ou de solicitador (artigo 370º) e de denúncia caluniosa (artigo 365º) – “[o] centro de gravidade da tutela é constituído pelos interesses públicos, mas quando estes são lesados pela conduta prevaricadora ou denegadora, a liberdade e/ou o património do sujeito que reclama justiça são colocados em perigo ou mesmo lesados[; d]este modo, podemos afirmar que uma parte da objectualidade jurídica se consubstancia num concreto portador, que é ofendido pela prática do crime e que pode constituir-se assistente nos termos da alínea a)”.
Na jurisprudência, para além do já destacado (e precursor) acórdão do S.T.J. de 12/7/2005, encontramos, em idêntico sentido, os acórdãos da Relação de Lisboa de 14/12/2005, recurso 10832/2005-3, de 18/07/2007, 5957/2007-3 [12], de 22-09-2009, 1830/07.8TDLSB.L1-5 [13], e de 23-01-2007, 7158/2006-5 [14], do acórdão da Relação de Coimbra de 06/05/2009, 966/08.2TBLRA.C1 [15] e do acórdão da Relação do Porto de 21/11/2012, 2113/09.4TAMAI.P1 [16].
Entendemos, pois, como já fomos adiantando, que o recorrente (assistente) em razão quando impugna o despacho judicial em causa e afirma que – considerando o que vem alegado no RAI – o requerente da instrução deve considerar-se ofendido para os efeitos do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal e tem, consequentemente, legitimidade, não só para se constituir como assistente, como para requerer a abertura de instrução relativamente aos alegados crimes de falsidade de depoimento e de falsidade de testemunho que imputa aos arguidos neste processo.
Mostra-se, assim, procedente este fundamento do recurso interposto.
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C) A invocada suficiência dos factos alegados no RAI
Discordando, também nesta parte, do decidido pelo Tribunal recorrido, o assistente pretende que se reconheça que o seu requerimento de abertura de instrução contém todos os factos suficientes para configurarem os crimes de falsidade de depoimento ou de falsidade de testemunho pelos quais pretende ver pronunciados os arguidos.
Decorre do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal que o requerimento de abertura de instrução, não estando sujeito a formalidades especiais, deve porém conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º [17], isto é, deve conter, designadamente, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (…).
É certo, pois, que a estrutura acusatória do processo penal impõe que o requerimento para abertura da instrução (RAI) deduzido pelo assistente deve consubstanciar, materialmente, uma acusação contra os arguidos, contendo a narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sob pena de padecer de nulidade de conhecimento oficioso, que implica a inadmissibilidade legal da instrução [18]
Ainda assim, diversamente do expendido pelo Tribunal recorrido, entendemos que o RAI deduzido pelo assistente contém os elementos fácticos objetivos necessários para, a serem provados, configurarem os crimes de falsidade de testemunho imputados aos arguidos.
Com efeito, não concordamos que não tenham sido alegados os factos objetivos constitutivos dos referidos crimes.
Questão diversa é a da qualificação jurídica dos três primeiros crimes imputados ao arguido C… Constata-se que o assistente entende, em primeira linha, que serão de falsidade de depoimento, admitindo, apenas subsidiariamente, que possam ser de falsidade de testemunho. Quanto a nós, tendo sido alegado que o referido arguido prestou tais depoimentos depois de prestar juramento, só se pode estar perante crimes de falsidade de testemunho, pois os assistentes e/ou partes civis não o prestam (nº 4 do artigo 145º do C.P.Penal). A mera inexatidão da subsunção jurídica em que incorreu o assistente não compromete decisivamente a realização da instrução.
Já no que tange aos elementos subjetivos referentes aos alegados crimes, verifica-se que o elemento subjetivo que se traduz na invocação de factos consubstanciadores do elemento volitivo do dolo direto (não exigindo o tipo incriminador qualquer outra intenção específica) se encontra suficientemente explicitado pelo recorrente.
Na verdade, os elementos fácticos reveladores do elemento volitivo do dolo encontram-se, respetivamente, nos artigos 20º, 26º-27º, 30º, 37º (arguido C…) e 44º (arguida D…) do RAI.
No entanto, como vem entendendo a melhor jurisprudência – nomeadamente o acórdão da Relação do Porto citado no despacho recorrido – que não basta a alegação dos factos relativos ao elemento volitivo do dolo, exigindo-se também os referentes ao elemento intelectual do mesmo, que não dispensa o conhecimento da consciência da ilicitude.
Aliás, parece ser esse o sentido do recente acórdão de fixação de jurisprudência nº 1/2015, publicado no DR, nº 18, Série I, de 27/1/2015, em que se uniformiza a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Ora, é evidente que o assistente, no seu RAI, não alega quaisquer factos que substanciem a consciência da ilicitude dos arguidos relativamente aos crimes de falsidade de testemunho.
Não constando no RAI os factos atinentes ao elemento subjetivo “consciência da ilicitude”, foi o mesmo rejeitado (e bem, nesta parte) por manifestamente infundado, pelo que, neste segmento, improcederá o recurso interposto pelo assistente.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgarem parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente B…, no que respeita à nulidade por omissão de pronúncia que este invocou (circunscrita ao alegado 2º crime de denúncia caluniosa), ordenando a devolução dos autos à 1ª instância (Tribunal de Instrução Criminal), que deverá proferir nova decisão liminar em que supra a referida nulidade da anterior decisão liminar instrutória agora recorrida.
No demais (parte não afetada pela referida nulidade), confirma-se o despacho recorrido.
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Sem custas.
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Porto, 16 de março de 2016
Vítor Morgado
Raúl Esteves
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[1] Tal decorre, desde logo, de uma interpretação conjugada do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] C…, como consta do respetivo cabeçalho.
[3] Em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo III, página 555, citando o comentário de Theodor Lenckner, incluído em A. Schönke/H. Schröder, Strafgezetzbuch, Kommentar, 24ª edição, 1991.
[4] Acórdão do S.T.J. de 16/10/2002, publicado no D.R, nº 49, I série, de 27/2/2003.
[5] Relatado por Armando Leandro e publicado na CJ/S.T.J., tomo I, páginas 234 e seguintes.
[6] Medina de Seiça, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte especial, tomo III, página 460.
[7] Relatado por Simas Santos e publicado, designadamente, na CJ/S.T.J. XIII, tomo II, páginas 238 e seguintes.
[8] Neste sentido, na doutrina, podem recensear-se, especificamente quanto ao crime de falso testemunho, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, páginas 124, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª volume, 1974, página 513, José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal português, vol. II, Lisboa, 1997, página 168, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 17ª edição, Coimbra, 2009, página 211, e Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e comentários, 2ª edição, página150. Note-se, porém, que já Figueiredo Dias, na obra e local citados, nota 20, advertia para que se tratava de questão doutrinalmente muito discutida, indicando como defensor, entre nós, da tese contrária, Beleza dos Santos, in RLJ, 70º-19.
[9] Vejam-se, de entre os proferidos já no domínio do Código de Processo Penal de 1987, os acórdãos do S.T.J. de 30/1/2002, in C.J./S.T.J., X, 3, 227, da Relação do Porto de 23-10-2002, proc.º n.º 0240502 (Coelho Vieira), de 15-06-2005, 0447397 (Conceição Gomes), de 18-05-2011, 907/08.7TAVFR.P1 (Ana Paramés), da Relação de Lisboa de 18-05-2005, proc.º n.º 1967/05-3ª (Mário Morgado), da Relação de Coimbra de 29-11-1989, BMJ n.º 391, pág. 709 de 09-01-1990, sumariado no BMJ n.º 393, página 672, da Relação de Guimarães de 18-12-2006, 1991/06-1 (Cruz Bucho), e de 10/11/2008, e proc. 1336/2008-2ª (Estelita Mendonça) e da Relação de Évora de 10-12-2009, 411/07.0TAPSR.E1 (Gilberto Cunha).
[10] Comentário do Código de Processo Penal (…), 4ª edição, UCE, página 212.
[11] A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português, in Maria Fernanda Palma (coordenadora) Jornada de Direito processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, Almedina, 2004, página 62-63.
[12] Ambos relatados por Carlos Gonçalves, acedidos em www.dgsi.pt.
[13] Relatado por Vieira Lamim, acedido em www.dgsi.pt.
[14] Relatado por Agostinho Torres, acedido em www.dgsi.pt.
[15] Relatado por Calvário Antunes, acedido em www.dgsi.pt.
[16] Relatado por Ernesto Nascimento, acedido em www.dgsi.pt
[17] Sublinhados nossos.
[18] Neste sentido, ver, por exemplo o acórdão da Relação do Porto de 15/09/2010, processo 167/08.0TAETR-C1.P1, in www.dgsi.pt.