Os tribunais administrativos apenas são competentes para dirimir litígios emergentes de relações jurídico- administrativas.
A lei não permite que dois réus sejam demandados num único processo se, em relação a cada um deles, o tribunal competente em razão da matéria não for o mesmo.
Formulando-se o mesmo pedido contra uma entidade de direito privado e um Município (actuando este no domínio do ius imperii), deve este ser absolvido da instância.
A instaurou acção com processo sumário
Contra
P. e o Município...
Invocando para o efeito ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de um acidente de viação ocorrido em Lisboa, na Av. da Liberdade, em virtude de ter sido derrubado por um cabo telefónico que se encontrava suspenso e atravessando a faixa de rodagem, quando conduzia um motociclo.
Pelos danos resultantes deste acidente seriam responsáveis ambos os RR: a P. por ser a responsável pelas ligações telefónicas na cidade de Lisboa e por não ter cumprido, no caso, as regras de segurança dessas instalações; o Município por não ter fiscalizado a segurança da via pública, como lhe competia.
Ambos os RR contestaram, alegando não serem responsáveis pelas consequências do acidente.
O Município excepcionou a incompetência do tribunal cível, em razão da matéria, dizendo serem competentes os tribunais administrativos, uma vez que estaríamos perante um caso de responsabilidade civil extra-contratual por acto de gestão pública omitido pelos seus agentes, tendo, consequentemente, por base uma relação jurídica administrativa.
O autor não respondeu a esta contestação.
Por despacho de 06.10.2002 foi julgada procedente a arguida excepção da incompetência material do tribunal cível e, em consequência, foram absolvidos da instância ambos os RR, nos termos dos artigos 101º, 102º, nº 1, 103º, 105º, nº 1, 288º, nº 1 al. a), 494º al. a) e 495º todos do CPC.
Dele agravou o autor, formulando as seguintes conclusões:
(...)
No artigo 209º da C.R.P. prevê-se a existência de várias categorias de tribunais.
Aí estão incluídos, nomeadamente, os chamados tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais.
O nº 1 do seu art. 211º estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Nos termos do nº 3 do artº 212º, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
De forma semelhante estabelece o art. 3º do ETAF.
Temos assim que os tribunais administrativos apenas são competentes para dirimir litígios emergentes de relações jurídico- administrativas.
Mas, como resulta do preceituado no nº 1 do artº 4º do ETAF, existem recursos e acções que estão excluídos da jurisdição administrativa.
Aí se referem nomeadamente as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (f) - trata-se, portanto, de um critério jurídico e não orgânico, isto é, mesmo que se trate de duas pessoas de direito público poderemos estar perante uma relação de direito privado. Neste caso não existe uma relação jurídica de direito administrativo, e, portanto, os tribunais administrativos não são competentes para o seu julgamento - e as acções cuja apreciação pertença por lei à competência de outros tribunais (g) - consagra-se assim uma cláusula de natureza residual.
E como já dissemos, nos termos do art. 66º do CPC são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Neste mesmo sentido já estabelecia o art. 14º da LOTJ (DL 38/87, de 23.12), tal como agora o artigo 18º da LOFTJ.
No caso em apreço, os fundamentos da acção são essencialmente os alegados prejuízos sofridos pelo agravante e o acidente do quais os mesmos terão resultado.
Ora, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se sempre pela pretensão deduzida pelo autor e segundo a versão por ele apresentada na petição.
Nos termos da alínea h) do artigo 51º do ETAF, compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado e dos demais entes públicos...decorrentes de actos de gestão pública...
Mas este artigo 51º refere-se apenas à repartição da competência entre os vários tribunais administrativos.
Por isso, a sua alínea h) só será aplicável quando se concluir que são os tribunais administrativos os competentes para conhecer de uma determinada causa em razão da matéria.
E já vimos que existem alguns casos (que em princípio seriam da competência dos tribunais administrativos) expressamente excluídos da jurisdição administrativa (als. f) e g) do artº 4º do ETAF).
Por isso duas questões bastante complexas se deparam com frequência para se averiguar da competência dos tribunais administrativos em razão da matéria:
1. o que se deve entender por “relação jurídica de direito administrativo”.
2. como fazer a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.
A este propósito escreve o Prof. Freitas do Amaral in “ Direito Administrativo” Vol. III (pag 423) que relação jurídica de direito administrativo “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impões deveres aos particulares perante a administração”.
Sérvulo Correia entende que é administrativa a relação jurídica “disciplinada em termos específicos do sujeito administrativo, entre pessoas colectivas da Administração ou entre a Administração e os particulares”
E também há que fazer a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.
A questão coloca-se, assim, em saber quando é que a Administração Pública pratica actos no exercício da sua actividade de gestão pública ou actos no exercício da sua actividade de gestão privada, pois só para o julgamento daqueles são competentes os tribunais administrativos.
Actos de gestão pública serão aqueles em que a administração actua no exercício de poderes de autoridade, disciplinados pelas normas de direito administrativo. Serão actos de gestão privada aquelas em que a administração actua despida desses poderes, ou seja, do ius imperii, estando sujeitos às mesmas regras que vigorariam no caso de serem praticados por simples particulares.
Pode também dizer-se que são actos de gestão pública os actos praticados por órgãos ou agentes da administração pública, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público.
A este respeito decidiu o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 05.11.81 (BMJ 311-195) o seguinte: para a definição do regime de responsabilidade extracontratual do Estado e das restantes pessoas colectivas de direito público, consideram-se: a) actos de gestão privada, os que se compreendem numa actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado; b) actos de gestão pública, os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando, eles mesmos, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas
A acção devia ser proposta contra os dois RR, o que aconteceu, existindo por isso um litisconsórcio passivo dos recorridos ...
Em consequência, não podendo o recorrente instaurar a presente acção contra o R. P em qualquer outro tribunal que não o comum, e devendo e querendo propor a acção contra ambos os RR., de modo a poder regular-se a situação concreta das partes, resulta que a apreciação do comportamento do Município terá que ser feita no mesmo tribunal, funcionando aqui não só o principio da economia processual, como a competência genérica e a característica residual que é atribuída aos tribunais comuns, independentemente de se considerar que o Município actuou no âmbito da gestão pública ou privada.
A não se considerar assim, face ao pedido formulado, denegar-se-ia a competente justiça o que violaria a lei.
Há, no entanto, que ter em consideração o seguinte:
O autor propôs a acção contra ambos os RR porque quis, pois não se verifica uma situação de litisconsórcio necessário passivo (artº 28º do CPC), não se vendo sequer por que razão se pede a condenação solidária dos RR (artº 513º do CC).
No litisconsórcio voluntário passivo todos os interessados podem ser demandados, mas se algum ou alguns o não forem, não se verifica qualquer situação de ilegitimidade. Por exemplo no caso de uma obrigação solidária, o autor pode demandar apenas um dos devedores. Mas só o litisconsórcio entre todos os devedores solidários assegura que a decisão que vier a ser tomada valha em relação a todos eles (artº 522º do CC). Se o credor demandar apenas um desses devedores, pode obter a condenação do réu no pagamento da totalidade da dívida (artº 512º, nº 1). Todavia, essa decisão não é oponível aos restantes devedores solidários. Mas o credor pode demandar apenas um desses devedores.
E o autor pede a condenação solidária dos RR.
O nº 2 do artigo 27º do CPC prevê precisamente o caso de a lei ou o negócio jurídico permitirem que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados; neste caso basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade.
Pelo contrário, no litisconsórcio necessário passivo todos os interessados devem ser demandados e a falta de algum deles gera uma situação de ilegitimidade.
O litisconsórcio voluntário depende exclusivamente da vontade das partes, designadamente do autor em propor a acção contra todos os interessados ou apenas contra um ou alguns deles.
Assim, no caso de uma obrigação solidária, tendo embora o credor a faculdade de demandar conjuntamente todos os obrigados, se o fizer, exigindo a cada um deles parte ou a totalidade da indemnização, verifica-se uma situação de litisconsórcio voluntário (artºs. 512º e 517º). A solidariedade é uma faculdade concedida aos credores ou aos devedores.
Pelo contrário, se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (artº 28º, nº 1 do CPC). E no caso sub judice, para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal não é necessária a intervenção de ambos os RR (artº 28º, nº 2).
Verifica-se, pois, uma situação de litisconsórcio necessário quando a lei, o negócio jurídico ou a natureza da relação controvertida exige a intervenção dos vários interessados nessa mesma relação
Portanto, no litisconsórcio necessário todos os interessados devem demandar e ser demandados, sob pena de ilegitimidade.
E daí o estabelecido no artigo 29º: “no caso de litisconsórcio necessário, há uma única acção com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes”.
O autor podia, pois, ter proposto (em separado) uma acção contra cada um dos RR, uma vez que não se trata de um caso de litisconsórcio necessário passivo (embora os factos sejam os mesmos em relação a ambos)
O artigo 30º do CPC permite a coligação de autores e RR em determinadas circunstâncias.
A coligação pressupõe a existência de uma pluralidade de partes principais e uma pluralidade de pedidos, os quais são formulados diferenciadamente por cada um dos autores e contra cada um dos réus. A coligação contem uma cumulação de partes principais e uma cumulação objectiva, mas esta última tem de ser repartida por cada uma das partes activas ou passivas, isto é, tem de haver uma distribuição de vários pedidos por cada um dos autores ou réus[1].
Para outra corrente doutrinária, no litisconsórcio há uma pluralidade de partes, mas uma única relação jurídica controvertida; na coligação há também uma pluralidade de partes e uma pluralidade de relações jurídicas.
Todavia, o artº 31º do CPC exige sempre que o tribunal onde a acção é proposta seja competente para o conhecimento de todos os pedidos. Assim, não é admissível a coligação, nomeadamente, se o tribunal não for competente, em razão da matéria, para o conhecimento de todos os pedidos coligados.
In casu não estamos perante uma situação de coligação, pois o mesmo pedido é formulado contra ambos os RR.
Mas a solução é a mesma.
Quer isto dizer que a lei não permite que, relativamente ao mesmo pedido, os RR sejam demandados num único processo se, em relação a cada um deles, o tribunal competente em razão da matéria não for o mesmo.
Assim, formulando-se (como se formula nesta acção) um mesmo pedido contra uma entidade de direito privado e um Município (actuando este no domínio do ius imperii) (pedindo-se a condenação solidária de ambos), se relativamente ao 1º é competente o tribunal comum e para o 2º o tribunal administrativo, há que absolver da instância este último.
E razões de economia processual (ou quaisquer outras) não permitem ao autor propor a acção contra os dois RR no tribunal comum, quando é certo que em relação ao Município o tribunal competente é o administrativo.
Nesta conformidade há que julgar o tribunal recorrido incompetente em razão da matéria, mas apenas relativamente ao Município, absolvendo-se da instância, tal como foi decidido no despacho recorrido.
Mas tal não sucede em relação ao R. P
De resto, no despacho recorrido não se justifica minimamente a razão pela qual se julgou incompetente o tribunal cível relativamente a este R, como bem se refere na conclusão f) das alegações de recurso[2].