INIMPUTABILIDADE
EXAMES POR ESTABELECIMENTOS OFICIAIS
INTERNAMENTO DE INIMPUTÁVEL
Sumário

1. Os exames e perícias de clínica médico-legal e forense, aqui se incluindo os exames e perícias de natureza psiquiátrica e psicológica, são, em regra, realizados por um médico perito (cf. art. 21.º n.º1 da citada Lei n.º 45/2004) e não estão sujeitas a qualquer confirmação ou revisão por Junta Médica. Aliás, o DL 11/98, de 24 de Janeiro, que procedeu à reorganização dos institutos de medicina legal, eliminou a competência inerente à revisão dos relatórios periciais, que fora afastada pelo CPP de 1987, que, no domínio do CPP de 1929, era atribuída ao Conselho Médico-Legal (art. 200.º).
2. É, porém, lícito aos sujeitos processuais - confrontados com o relatório pericial - requerer, não apenas a prestação de esclarecimentos complementares pelo perito, como inclusivamente obter a realização de nova perícia ou a renovação de perícia anterior, desde que (como refere o artigo 158.º n.º1 do Código de Processo Penal) isso se revele de interesse para a descoberta da verdade. Tal implica necessariamente que se invoquem fundadamente as razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, convencendo o tribunal da indispensabilidade da realização da nova diligência para descoberta e apuramento da verdade material, suprindo ou corrigindo uma eventual inexactidão dos resultados da primeira perícia.
3. A imputabilidade constitui o primeiro elemento sobre que repousa o juízo de culpa. Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação.
4. O Código Processo Penal tem normas próprias quanto à produção de prova documental e não existe qualquer lacuna para cujo preenchimento importe recorrer às normas plasmadas no Código de Processo Civil, nomeadamente aos art. 523.º, 524.º e 706.º do CPP.
5. Os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido. O tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei.
6. Em processo penal não é admissível a junção de documentos com a motivação do recurso, pois não podendo o tribunal de recurso atender ao seu conteúdo para justificar a sua decisão, é manifesta a sua inutilidade.
7. A simples perigosidade do inimputável não constitui só por si fundamento para a aplicação de uma medida de internamento; exige-se ainda que essa perigosidade se revele através dos factos típicos penalmente relevantes e se mostre que eles se podem repetir.
(relatado e confidencializado pelo relator)

Texto Integral

Acordam, precedendo conferência, na Secção Criminal (9.ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I
1. No processo acima referido do 3.º Juízo de Competência Criminal de Almada, a assistente A. & C, Lda., por não se conformar com o despacho de 7 de Dezembro de 2006 (v.fls.343 a 346), de não pronúncia da arguida C.R., id. nos autos, pela prática dos factos que lhe haviam sido imputados na douta acusação pública de fls.247 a 249, a que aderiu nos termos constantes de fls.271, dele interpôs o presente recurso.

2. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.ª - Subsistem indícios suficientes do preenchimento pela conduta da ora arguida dos elementos típicos objectivos dos crimes por que foi acusada;

2.ª - Não obstante a pretensa inimputabilidade da ora arguida – que a assistente impugna enquanto não for proferido o necessário PARECER pela competente JUNTA MÉDICA, designada para o efeito – devia ser proferido despacho de pronúncia, nos precisos termos /factos e direito constantes da acusação.

3.ª - Foi violada a norma do art. 91.º n.º1 do Código Penal, enquanto a JUNTA MÉDICA não dê o competente PARECER, aliás, de todo em todo imprescindível para desempatar os dois pareceres emitidos em sentido contrário já constantes dos autos: o 1.º emitido pelo Dr. Nelson Santos, Psiquiatra, que refere ter a arguida “consciência do acto que está a praticar (cf. despacho proferido em 10.12.2001, a fls. __; o 2.º emitido em 25.10.2006, de sentido oposto, pelo Dr. Paulo Ferreira, Psiquiatra, constante de fls.322 a 325.

Termos em que a ora arguida deve ser pronunciada pelos factos e pelas normas constantes da douta acusação, e, em consequência, a decisão em crise deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie a ora arguida.

3. O recurso foi admitido por despacho de 8 de Janeiro de 2007 (v.fls.370). Com este recurso a assistente juntou dois documentos que foram mandados desentranhar dos autos, por despacho proferido na mesma data.

4. Não houve qualquer resposta por parte da arguida.

5. A Exma. Magistrada do Ministério Público, junto do tribunal recorrido, sustentou o não provimento do referido recurso, dizendo, em sede de conclusões, o seguinte:

- Na sequência de perícia psiquiátrica realizada a pedido da arguida foi formulado um juízo de inimputabilidade para os factos e afastada a probabilidade de repetição das condutas;

- Não existe fundamento para considerar, em concreto, e face ao teor da perícia realizada, a existência de uma possibilidade razoável de à arguida vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (cf. art. 283.º n.º2, ex vi do art. 308.º n.º1 e 2 do CPP).

6. A assistente A. & C., LDA, veio interpor também recurso do despacho proferido a fls.370, na parte em que determinou o desentranhamento dos autos e a sua entrega à recorrente dos documentos que havia junto com as alegações de recurso, pugnando para que seja revogado e substituído por outro que ordene a junção ao recurso dos documentos que tem por indevidamente devolvidos, voltando a situação processual do recurso à sua forma primitiva com o reingresso dos documentos à motivação do recurso, dizendo, numa única conclusão, que “a decisão recorrida ofendeu as normas dos art. 706.º, 524.º e 677.º do CPC, aplicadas subsidiariamente - art. 4.º do CPP.” – cf. fls.383 a 386.

7. Este recurso foi admitido por despacho de 12.02.2007 (v.fls.403).

8. Apenas o Ministério Público veio responder ao recurso, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, dizendo, em síntese, que não existe qualquer omissão relativa ao regime de produção da prova documental em processo penal, pelo que não há lugar à aplicação subsidiária do Código de Processo Civil; os documentos devem ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo possível, devem sê-lo até ao encerramento da audiência (art. 165.º n.º1 do CPP); o tribunal ad quem não pode apreciar o teor dos documentos juntos, pelo que a sua junção é manifestamente inútil, não ocorrendo outra solução plausível que não o seu desentranhamento e devolução.

9. O senhor juiz manteve o decidido.

10. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e emitiu parecer sobre o recurso interposto da decisão instrutória no sentido de que não merece provimento, pois o tribunal recorrido não poderia ignorar ou desvalorar a perícia médica forense que concluiu pela inimputabilidade da arguida.

11. Cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP, veio a assistente A. & C., Lda responder, nos termos constantes de fls. 419 a 433, dizendo, além do mais, o seguinte:

“ 1 - O Digno Procurador da República afirma muito laconicamente que o TJ Almada não podia ignorar ou sequer desvalorar a perícia médico-forense que concluiu pela inimputabilidade da arguida, pelo que nenhuma censura merece o DESPACHO sob recurso.

E nessa perspectiva genérica e reducionista limitou-se a concordar quer com as contra-alegações do MP, quer com a fundamentação do DESPACHO recorrido e a emitir parecer negativo: “Somos de parecer que o recurso não merece provimento”.

2. Mas a Assistente/recorrente interessa-se mais com a verdade substancial das coisas do que com as meras formalidades, como sucede neste caso concreto, em que a dialéctica vai muito parca e parcimoniosa.

Esperava-se da 2.ª Instância uma análise mais profunda e consistente e não de mera remissão para outra peça processual da 1.ª Instância.

Efectivamente, nem o MP/1.ª Instância, nem o MP/2.ª Instância desfazem a questão mais relevante destes autos: há dois pareceres psiquiátricos antagónicos: o 1.º emitido pelo DR. N. S., segundo a qual a arguida é imputável; o 2.º emitido pelo DR .P. F., que defende a inimputabilidade da arguida.

a). O 1.º é de 10.12.01 /(Despacho de fls.___):

b). O 2.º é de 25.10.06 (constante de fls.322 a 325).

Os referidos médicos são da especialidade de psiquiatria e deram pareceres diametralmente opostos. Há que quebrar este imbróglio!!!

Impõe-se, assim, o Parecer de uma JUNTA MÉDICA, que desempate os pareceres individuais, não podendo ser nem o MP, nem o Tribunal a julgar matérias puramente psiquiátricas, para as quais os dignos MAGISTRADOS não estão vocacionados, isto é, carecem de qualificação profissional para o efeito e um dos referidos pareceres individuais poderá estar viciado.

Aliás, o Gerente da Assistente A. & C., LDA, sustenta, inclusive, que a arguida está a ser escandalosamente protegida por um FUNCIONÁRIO DO TRIBUNAL e por um MÉDICO, conhecimento a que chegou já depois de ter sido proferida a SENTENÇA em 1.ª Instância e quer prestar depoimento ou declarações sobre esta matéria superveniente, por um lado grave e por outro lado muito relevante para a descoberta da verdade e para a boa apreciação e decisão da causa.

Complementa a MOTIVAÇÃO do RECURSO um documento manuscrito e devidamente assinado pelo GERENTE da Assistente/recorrente A. & C., LDA. E foram arroladas testemunhas.

Devido ao desentranhamento desse documento foi interposto recurso, que se encontra pendente, com contra-alegações produzidas em 10.02.2007, a fls.---, pelo MP/1.ª Instância.

Assim, os dois recursos formam um todo unitário, incindível e a Assistente considera que ambos os recursos merecem Provimento.

Termos em que a Assistente / Recorrente entende que a arguida deve ser pronunciada pelos factos e pelas normas constantes da DOUTA ACUSAÇÃO, sendo imprescindível, para desempate dos pareceres individuais, que seja designada JUNTA MÉDICA para dar parecer isento e imparcial e clarifique, de uma vez por todas e da forma o mais fundamentada esta pseudo nebulosa psiquiátrica, já que a arguida nunca foi vista a “rasgar notas”, mas sim a “arrecadar notas”!!!

O “favorecimento a nível de FUNCIONÁRIO e DE MÉDICO constitui suspeita grave que o Gerente da recorrente “A. & C., LDA” defende e pretende testemunhar em Tribunal, com o único fito da descoberta plena e cabal da VERDADE SUBSTANCIAL, para que se faça JUSTIÇA.”.

12. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.

13. Demarcado o objecto de cada recurso pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva minuta, o que importa saber é se devem ser admitidos em sede de recurso os documentos que a assistente apresentou nesta fase, bem como se a arguida deve ser pronunciada pela prática dos factos e pelos crimes que lhe foram imputados na acusação pública.

Vejamos.
II

14. O despacho a que respeita o recurso interposto em 1.º lugar, na parte que releva, é do seguinte teor:

“RELATÓRIO

O Ministério Público deduziu acusação, sob a forma de processo comum e perante tribunal singular, ao abrigo do disposto no art. 16.º/3, do Código de Processo Penal, contra C.R., …residente……, no Laranjeiro, porquanto lhe é imputada, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217°/1 e 218º/1/2/a), e dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 256º/l/a)/3 e 256º/1/b)//3, respectivamente, todos do Código Penal.

A ora arguida requereu a abertura da instrução, defendendo a sua inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.

Declarada a abertura da instrução, foi solicitado ao INML a realização de perícia médico-legal, a fim de se apurar da inimputabilidade da ora arguida à data dos factos, tendo o concernente relatório sido junto a fls. 320 a 325, ao que se seguiu a realização de debate instrutório com observância do pertinente formalismo legal.

Não se afigura ser necessária qualquer outra diligência, nem tal foi requerida.

O Tribunal é competente. O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal. Não se suscitam nem existem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

FUNDAMENTAÇÃO

Das finalidades da instrução

A instrução, nos termos do disposto no art. 286º do Código de Processo Penal, visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, só devendo o juiz pronunciar o arguido pelos factos respectivos se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança; caso contrário, o juiz deve proferir despacho de não pronúncia (cfr. art. 308º/1 do CPP).

Por indiciação suficiente, entende-se « a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança». Trata-se da «probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal...» (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., 1999, pp. 99 e 100). Assim, «os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição» (in Figueiredo Dias “Direito Processual Penal”, 1.º vol., 1974, pag.133). Desenvolvendo, «indícios, no sentido em que a expressão é utilizada no art.308º, do CPP, são meios de prova enquanto são causas ou consequências morais ou materiais, recordações ou sinais, do crime (...). Quer a doutrina quer a jurisprudência vem entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido [isto é], os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição». (in A.R.P. de 20 de Outubro de 1993, CJ, XVIII; T. IV, pp 259 e 260; no mesmo sentido, cfr. A.R.C. de 31 de Março de 1993, in CJ, 1993, T. II, p.66).

Pode dizer-se, a final e em súmula, que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado.

Dos factos

Dos documentos juntos e das declarações prestadas em sede de inquérito subsistem indícios suficientes para imputar à conduta da ora arguida os crimes em referência, sendo certo que tais indícios não foram postos em causa pela requerente da abertura da instrução.

Das diligências instrutórias realizadas, conclui-se que a ora arguida, após o seu divórcio, ocorrido há cerca de nove anos e com as dívidas decorrentes de falência de negócio de supermercado, sofreu descompensação hipomaníaca com agitação, humor exaltado e tendência a gastos excessivos, coincidentes com as datas dos factos encontrando-se a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos factos e a sua capacidade de critica claramente diminuídas, verificando-se por preenchidos os critérios de inimputabilidade em relação aos factos em apreço. Desenvolve em seguida crise depressiva grave que se mantém ao longo do tempo e que provoca um funcionamento muito deficitário a nível laboral, social e familiar. Porém a sua perigosidade, ou seja, a probabilidade de repetir factos semelhantes não se afere por alta, por se encontrar em ambiente mais protegido, principalmente se em tratamento (cfr. fls. 320 a 325).

Do direito

A ora arguida é imputado, em autoria material e a título de dolo, um crime de crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º/1 e 218º/2/a), ambos do Código Penal.

Dispõe o mencionado art. 217º/1 que, «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».

Tal ilícito criminal é qualificado sempre que o prejuízo patrimonial causado à vítima seja de valor consideravelmente elevado, caso em que a medida da pena se eleva para prisão de 2 a 8 anos (cfr. art. 217º/1, do mesmo diploma legal). Explicita o art. 202º/b) do referido diploma legal o conceito de valor consideravelmente elevado, entendendo-se que o mesmo ocorre sempre que aquele atinja 200 unidades de conta.

No que concerne a imputação à arguida de dois crimes de falsificação de documento, reza o art. 256º/l do Código Penal, que, «Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:

a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;

b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou

c) Usar documento a que referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa;

é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».

Como já se referiu, subsistem indícios suficientes do preenchimento pela conduta da ora arguida dos elementos típicos objectivos dos crimes em referência.

Não obstante, preceitua o art. 20º/1, do mesmo diploma legal, como pressuposto da punição do facto, que, «É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.»

Assim, a inimputabilidade é referida ao momento da prática do facto. De acordo com a supracitada norma legal, subsistem dois pressupostos para a exclusão da culpa, a saber, a existência de uma anomalia psíquica e a incapacidade de avaliar a ilicitude do facto, ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Ora, da prova pericial produzida resulta a configuração de anomalia psíquica sofrida pela ora arguida à data da prática dos factos, que a tornou incapaz, nesse momento, de avaliar a ilicitude dos mesmos. Nestes termos, importa concluir que a ora arguida é inimputável relativamente à prática dos factos em referência.

Não obstante, deverá ser proferido despacho de pronúncia caso se verifiquem por indiciariamente preenchidos os pressupostos ínsitos no art. 91º/1, do supracitado Código, o qual dispõe que, «Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do disposto do art. 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».

Contudo, igualmente nesta sede as conclusões extraídas da perícia realizada são peremptórias em afirmar da não perigosidade actual da ora arguida pelo que também neste âmbito não estão colhidos os indícios suficientes de modo a que em julgamento, perante um juízo de prognose, como supra explanado, se permita aquiescer a uma condenação ou aplicação de medida de segurança à arguida pelos iter criminis em referência, pelo que, não deverá esta ser pronunciada.

DECISÃO:

Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 308º/1 do Código de Processo Penal, decido não pronunciar C.R. por um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º/1 e 218°/l/2/a), e por dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 256º/l/a)/3 e 256º/l/b)/3, respectivamente, todos do Código Penal.

Custas pela assistente, nos termos do disposto no art. 5^/1/a), do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C.

Notifique.”

15. Importa começar por sublinhar que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286 n.º 1, do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

Configura-se, assim, como um expediente destinado a questionar o despacho de arquivamento ou a acusação deduzida ( - Simas Santos e Leal Henriques, “Código de Processo Penal Anotado” vol. I, pag.158.).

A estrutura acusatória do processo exige, porém, que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.

A acusação fixa no processo os termos da questão submetida a decisão (a vinculação temática), tanto que, mesmo quando requerida instrução pelo arguido, e comprovada judicialmente a decisão de acusar, o despacho de pronúncia não pode pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação.

A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente (art. 283 e 308 n.º 1, do CPP) ( Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, Verbo, 2000, pp. 182 e segs.).

Na verdade, é condição da sujeição de alguém a julgamento que se reúnam indícios suficientes da verificação e prática do crime. Os indícios só são suficientes quando deixam antever a possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, em julgamento. Aquela probabilidade só existe quanto os elementos recolhidos já possibilitem um juízo de condenação provável, se em julgamento não acabarem prejudicados, verbi gratia, por falhar aí a sua prova ou por se demonstrar uma qualquer circunstância que os neutralize.

Não é correcto que se relegue para julgamento o esclarecimento das dúvidas e pontos obscuros, transformando a remessa do processo para julgamento num verdadeiro "salto no escuro", na medida a que, a persistirem ali essas dúvidas, a absolvição se antevê inexorável.

Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto, de 20/10/93, citado no despacho recorrido «a simples sujeição de alguém julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.

Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da Constituição da República).

E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (...)».

Esta doutrina, que mantém a sua actualidade e ora se reitera, é a que razoavelmente há-de continuar a iluminar a interpretação do artigo 308, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Assim, sempre que no espírito do juiz surjam dúvidas sérias de que um qualquer arguido, perante a factualidade indiciária constante do processo, virá a ser, provavelmente, absolvido, não deve sujeitá-lo a julgamento, ou seja, não deve pronunciá-lo. É o princípio in dubio pro reo, omnipresente na fase de julgamento, que deve também estar presente na fase da pronúncia.

A recorrente discorda do despacho de não pronúncia pois entende que, no caso da alegada inimputabilidade verificam-se pelo menos indiciariamente os pressupostos ínsitos no art. 91.º/1 do Código Penal, enquanto a JUNTA MÉDICA não dê parecer em contrário, pois, em seu entender, a Perícia Individual não é suficiente para afastar a pronúncia, que irá permitir/possibilitar, a seu tempo, uma condenação ou aplicação de medida de segurança à arguida pelo iter criminis em foco.
Será que os autos fornecem indícios suficientes para que se possa efectivar a pronúncia da arguida, com vista à sua sujeição a julgamento pela prática dos crimes de burla agravada e falsificação de documentos, como pretende a assistente-recorrente?

Liminarmente dir-se-á que a resposta é negativa.

Na verdade, como já se referiu supra, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286 n.º 1, do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

Mesmo que nesta fase não seja produzida qualquer prova – como bastas vezes acontece – impõe-se ao juiz de instrução sindicar, no caso de ter sido deduzida acusação, se esta é ou não bem fundada. E, para tanto, terá de apreciar, em sede de decisão instrutória, se há indícios suficientes da prática dos factos imputados ao arguido e se os factos em causa preenchem um tipo legal de crime e se verificam os demais pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.

E na análise da prova o juiz não está vinculado ao juízo feito na fase anterior pelo Ministério Público ou pelo assistente.
Na ausência de prova vinculada, o juiz aprecia livremente a prova, tendo presentes as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

E afigura-se-nos que o despacho recorrido espelha, cabal e convenientemente, todo o circunstancialismo a ponderar para bem apreciar e decidir o presente recurso, sem revelar minimamente a existência de qualquer violação ao princípio da livre apreciação da prova, tal como se mostra consagrado no art. 127 do CPP, e não deixou de ter na devida consideração o relatório pericial, contra o qual a assistente se insurge.

Este exame pericial não pode ser posto em causa de forma tão linear, como intenta a assistente nesta fase de recurso, socorrendo-se de elementos exógenos à decisão recorrida, nomeadamente a suspeições. Com efeito, a perícia médico-legal é deferida aos institutos de medicina legal, aos gabinetes médico-legais, a médicos contratados para o exercício de funções periciais nas comarcas ou, quando isso não for possível ou conveniente, a quaisquer médicos especialistas ou de reconhecida competência para a actividade médico-legal nos termos da lei (cf. art. 159.º n.º1 do CPP).

O regime jurídico das perícias médico-legais e forenses encontra-se estabelecido na Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, que determina no seu art. 2.º que as perícias médico-legais são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina legal e, só excepcionalmente, perante a manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias poderão ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo instituto.

E, no caso, o Instituto Nacional de Medicina Legal deferiu a realização da perícia ao Hospital Miguel Bombarda, tendo a perícia sido distribuída pela Coordenadora do Serviço de Psiquiatria Forense ao perito médico – Dr. P. F. (cf. fls.301 e 302).

Emerge do art. 5.º n.º4 e 5 da citada Lei que “no exercício das suas funções periciais, os médicos e outros técnicos especialistas em medicina legal, os médicos contratados para o exercício dessas funções, os médicos dos serviços de saúde (…) gozam de autonomia e são responsáveis pelas perícias, relatórios e pareceres por si realizados”, …mas “encontram-se obrigados a respeitar as normas, modelos e metodologias periciais em vigor no Instituto, bem como as recomendações decorrentes da supervisão técnico-científica dos serviços.”

Os exames e perícias de clínica médico-legal e forense, aqui se incluindo os exames e perícias de natureza psiquiátrica e psicológica, são, em regra, realizados por um médico perito (cf. art. 21.º n.º1 da citada Lei n.º 45/2004) e não estão sujeitas a qualquer confirmação ou revisão por Junta Médica.

Aliás, o DL 11/98, de 24 de Janeiro, que procedeu à reorganização dos institutos de medicina legal, eliminou a competência inerente à revisão dos relatórios periciais, que fora afastada pelo CPP de 1987, que, no domínio do CPP de 1929, era atribuída ao Conselho Médico-Legal (art. 200.º).

E bem se compreende que assim seja.

Não pode, na realidade, olvidar-se que não estamos perante exames realizados por peritos ocasionais, nomeados ‘ad hoc’ para certo acto processual, mas face a uma diligência probatória que tem lugar, de forma institucional, num serviço público que tem como objecto precisamente a sistemática realização de perícias de certa natureza, em condições de particular apuro e credibilidade científica.

Por outro lado, é lícito aos sujeitos processuais - confrontados com o relatório pericial - requerer, não apenas a prestação de esclarecimentos complementares pelo perito, como inclusivamente obter a realização de nova perícia ou a renovação de perícia anterior, desde que (como refere o artigo 158.º n.º1 do Código de Processo Penal) isso se revele de interesse para a descoberta da verdade. Tal implica necessariamente que se invoquem fundadamente as razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, convencendo o tribunal da indispensabilidade da realização da nova diligência para descoberta e apuramento da verdade material, suprindo ou corrigindo uma eventual inexactidão dos resultados da primeira perícia.

Ora, como resulta dos autos, os sujeitos processuais foram notificados da junção do relatório da perícia, antes da realização do debate instrutório (v.fls.327 e ss), não tendo sido requerida na sequência dessa notificação, nem no decurso do debate instrutório, a produção de qualquer prova suplementar, nomeadamente a prestação de esclarecimentos complementares pelo perito médico que subscreve o relatório da perícia.

Dispõe o art.163.º do CPP:

«1. O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2. Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dois peritos, deve aquele fundamentar a divergência.»

Tal norma contém um limite à regra da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP). Mas como assinalam Simas Santos e Leal-Henriques ("Código de Processo Penal Anotado", 1999, I, p. 829) tal princípio "não é esquecido aqui, na medida em que se permite que o juiz possa divergir do entendimento contido no parecer dos peritos. Nessa situação apenas se impõe ao juiz que fundamente a sua divergência, em homenagem ao peso que o juízo oriundo da peritagem apresenta, por ter origem em entidade devidamente qualificada".

Germano Marques da Silva ("Curso de Processo Penal", I, p. 153 e ss., também citado por aqueles) entende que a presunção contida no n.º 1 do art. 163.º «não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», pois «o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador», não sendo «necessária uma contraprova», bastando «a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial».

E conclui: «Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para valoração da prova, seria de todo incompreensível que depois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser aplicado na base de argumentos da mesma natureza».

No caso dos autos, a arguida foi, como já dissemos, submetida a uma perícia médico-legal às suas faculdades mentais por perito do Gabinete de Psiquiatria Forense do Hospital de Miguel Bombarda e, após exames, o perito indigitado concluiu o seguinte (fls.325):

“A examinada apresenta história pessoal compatível com a presença de perturbação afectiva que parece ter o seu primeiro episódio de gravidade após o nascimento do filho aos 25 anos de idade. Parece haver alguns episódios depressivos ligeiros que não são valorizados no relato da examinada. Após o divórcio ocorrido há 9 anos e com as dívidas decorrentes de falência do negócio de supermercado parece haver uma descompensação hipomaniaca com agitação, humor exaltado e tendência a gastos excessivos que coincide com a data em que ocorreram os factos em apreço e que remontam ao ano de 1999. Desenvolve em seguida crise depressiva grave que se mantém ao longo do tempo e que provoca um funcionamento muito deficitário a nível laboral, social e familiar.



A examinada não tem recebido o tratamento adequado à sua perturbação depressiva pelo que deve ser acompanhada por psiquiatria para tratamento com medicação antidepressiva e eventual recurso a terapia electroconvulsiva.

A examinada, na altura dos factos em apreço parece estar numa fase de agitação e de exaltação do humor em que a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos factos e a sua capacidade de crítica estão claramente diminuídas pelo que preenche os critérios de inimputabilidade em relação aos factos em apreço.

A sua perigosidade, ou seja, a probabilidade de repetir factos semelhantes não é alta por estar num ambiente mais protegido. Se a examinada tratar o seu estado depressivo irá diminuir ainda mais a perigosidade e, principalmente, poderá melhorar significativamente a sua qualidade de vida.”

Ora, deste relatório de exame pericial resulta, para além do mais, que a arguida é inimputável para os factos que lhe foram imputados, por claramente diminuídas a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos factos e a sua capacidade crítica, situação que se integra no art. 20.º n.º2 do Código Penal.

A imputabilidade constitui o primeiro elemento sobre que repousa o juízo de culpa.
Na terminologia Penal, imputabilidade é a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um acto ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática. Essa responsabilização penal pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação. Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação.

Ou seja, aquilo que no jargão jurídico é descrito com o uso da fórmula: “actuar voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta é proibida por Lei”.

Imputável é, assim, a pessoa em relação à qual é possível censurar a prática de um acto ilícito típico, e puni-la por essa prática, por meio da aplicação de uma pena; a pessoa a quem é possível atribuir uma culpa ou formular um juízo de culpabilidade.

Aquele que não tem capacidade para avaliar o mal que pratica e/ou se determinar de acordo com essa avaliação é – do ponto de vista Penal – considerado inimputável.

A inimputabilidade pode derivar da idade (em Portugal, consideram-se inimputáveis os menores de 16 anos – art. 19.º do CP), ou de uma anomalia psíquica (circunstancial ou permanente), sendo esta a que agora nos interessa.

É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação – art. 20.º nº 1 do Código Penal.

A determinação da inimputabilidade é condicionada à verificação da existência de dois pressupostos:

- um biológico (a anomalia psíquica), não tendo, no entanto, a lei optado por uma enumeração das doenças e estados psíquicos anómalos susceptíveis de fundamentar a inimputabilidade, presente a dificuldade e precariedade de tal enumeração; e

- Um Psicológico, ou normativo (incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação), envolvendo um conceito de anomalia psíquica que ultrapassa os casos de doença mental, abrangendo, v.g., as perturbações de consciência, as diversas formas de oligofrenia, e, em suma de anormalidade psíquica grave (as psicopatias, as neuroses, as pulsões, etc.) e que se traduz praticamente na destruição da conexão objectiva do sentido do comportamento do agente.

O inimputável comete um acto ilícito (violador da ordem jurídica), típico (qualificado como crime), mas não culposo (não susceptível de ser objecto do referido juízo de reprovação jurídica ou censurabilidade penal).

Assim sendo, têm de se ter presentes os actos ilícitos típicos, ou seja, os actos violadores da ordem jurídica qualificados como crime, e os factos que determinam a não censurabilidade penal (ou seja, a anomalia psíquica, determinante da inimputabilidade), a que acrescem – se for caso disso – os integrantes da perigosidade que imponha a aplicação de medida de segurança.

A assistente para infirmar a prova pericial produzida em sede de instrução, contrapõe as declarações prestadas pela testemunha N. S., médico psiquiatra, que foi ouvido em sede de inquérito e que declarou a fls.80-v que “o quadro clínico da arguida C. …não leva à prática de crimes de que não tenha consciência do acto que está a praticar”.

Porém, nem tais declarações são de todo incompatíveis com o resultado da perícia, nem elas devem prevalecer sobre esta. Com efeito, trata-se de um juízo conclusivo produzido em 7 de Junho de 2001, sem que estejam indicados os fundamentos de tal conclusão, nem a que data se reporta esse juízo, sendo certo que os feitos aqui em causa ocorreram em Junho e Outubro de 1999.

Por outro lado, não pode cotejar-se um tal depoimento, cuja valoração é feita segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (cf. art. 127.º do CPP), com um juízo científico emergente da perícia.

O que falta, no caso da actuação da arguida, é o elemento intelectual ou cognitivo do dolo, ou seja, uma adequada representação (ou avaliação) da situação em causa e do significado da sua conduta; falta também, é claro, a consciência da ilicitude.

A indicação no relatório pericial de uma clara diminuição da capacidade da arguida de avaliar a ilicitude dos factos e também da sua capacidade de crítica, é um juízo científico emitido por perito médico competente, de que não vemos razão para discordar.

É certo que o objectivo final do Processo Penal é a descoberta da verdade material e a produção - com respeito pelos direitos de defesa da arguida - da decisão ajustada ao caso.

Mas a descoberta da verdade não pode ser conseguida a qualquer preço, sem respeito pelos trâmites do processo e pelos princípios processuais que regem a produção e valoração da prova.

16. E isto reconduz-nos ao âmbito do 2.º recurso, que tem por base o despacho de fls.370, na parte em que determinou o desentranhamento e devolução à recorrente de dois documentos manuscritos, alegadamente da autoria do legal representante - um deles com um relato sobre determinados eventos que imputa à arguida e outros familiares, sem que dele conste a assinatura ou rubrica do autor, e outro dirigido ao Dr. A.F., ilustre advogado constituído pela assistente, em que indica duas testemunhas, que lhe terão dito não terem dúvidas de que a C. não está maluca (v.fls.396 a 399).

É por demais evidente que o senhor juiz do tribunal recorrido não violou os preceitos legais invocados pelo recorrente quando determinou o desentranhamento e devolução ao recorrente dos documentos em causa.

O Código Processo Penal tem normas próprias quanto à produção de prova documental e não existe qualquer lacuna para cujo preenchimento importe recorrer às normas plasmadas no Código de Processo Civil, nomeadamente aos art. 523.º, 524.º e 706.º do CPP.

Na verdade, dispõe o art. 165.º n.º1 do CPP que “o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”.

A audiência a que se reporta o preceito em causa, até cujo encerramento os documentos devem ser juntos, é a de discussão e julgamento em 1.ª instância (cf. Ac. do STJ de 30.10.2001, in rec.1645/01 – 3.ª, in SASTJ n.º67, pag.65).

Ora, a fase de instrução terminou com o encerramento do debate instrutório e a decisão instrutória foi proferida com base nos indícios extraídos das provas produzidas até esse momento processual.

E os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido.

É, aliás, pacífica a jurisprudência no sentido de que "a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408.

Se a Relação atendesse ao conteúdo dos documentos agora juntos, não formularia um juízo sobre a justeza da decisão recorrida, considerando os elementos ao dispor do tribunal “a quo”, mas estaria a proferir decisão nova sobre a questão.

Assim, não merece censura, o despacho recorrido quando ordenou o desentranhamento dos autos dos documentos em causa, pois não podendo o tribunal de recurso atender ao seu conteúdo para justificar a sua decisão, é manifesta a sua inutilidade.

17. Por último, dir-se-á que também não há indícios suficientes da verificação dos pressupostos que possam levar à aplicação à arguida de uma medida de segurança.

Dispõe o art. 91.º n.º1 do Código Penal:

Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalias psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.”

São pressupostos de imposição da medida de segurança de internamento do agente declarado inimputável em virtude de anomalia psíquica:

a) a prática por parte do agente declarado inimputável de um facto ilícito típico grave;

b) a perigosidade criminal do agente.

Como refere Maria João Antunes (Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica, p. 463), os art. 91.º n.º1 e 2, 20.º n.º1, e 40.º n.º1 do Código Penal devem ser interpretados do seguinte modo: o facto que é pressuposto da imposição da medida de segurança de internamento coincide com o facto do agente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica.

Na formulação de Cristina Líbano Monteiro (Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, p. 125 e 81), o juízo de inimputabilidade implica uma prova tríplice ou um triângulo probatório cujos lados são: o facto, a anomalia psíquica e o nexo que os junta numa mesma unidade de sentido. A aplicação de uma medida de segurança passa inevitavelmente por um juízo de prognose, que se reputa aliás decisivo e fundamental – o juízo sobre a perigosidade criminal do arguido.

No caso, há indícios suficientes que permitem imputar à arguida a prática de ilícitos típicos graves (crimes contra o património e a vida em sociedade), mas também há indícios fortes de que é inimputável e praticou os factos em virtude de uma descompensação hipomaniaca, tendo desenvolvido em seguida uma crise depressiva grave que se mantém ao longo do tempo e que provoca um funcionamento muito deficitário a nível laboral, social e familiar. Perante uma situação de inimputabilidade da arguida, o seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança depende exclusivamente de uma averiguação conclusiva no sentido de, em virtude da anomalia psíquica, haver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

Como realça Maria João Antunes [Ob. cit. p. 473] uma perigosidade específica «cometer outros da mesma espécie» a exigir o estabelecimento de uma ligação de causa e efeito entre a anomalia psíquica e o receio da prática de factos da mesma espécie do facto praticado anteriormente. Assim se confirmando, ao exigir-se que os factos receados sejam da mesma espécie do facto praticado pelo agente inimputável por motivo de anomalia psíquica, que do facto pressuposto é esperada a função de facto comprovativo de perigosidade criminal emergente da anomalia psíquica.

Apesar dos factos praticados a decisão recorrida não concluiu pela perigosidade, socorrendo-se para tal do juízo pericial. A leitura que fazemos da perícia é um pouco diversa da que fez o tribunal recorrido. Ou seja, a perigosidade não é excluída.

Resulta muito claro da perícia que a perigosidade da arguida, ou seja, a probabilidade de repetir factos semelhantes não é alta por estar num ambiente mais protegido. Lê-se ainda do relatório que se a examinada (ora arguida) tratar o seu estado depressivo irá diminuir ainda mais a perigosidade e, principalmente, poderá melhorar significativamente a sua qualidade de vida.

Em resumo, perigosidade existe, mas está relacionada com o quadro depressivo actual e não com a descompensação hipomaniaca que fundamenta a inimputabilidade.

Tudo aponta, ainda que o relatório da perícia não o afirme expressamente, que a arguida evoluiu para uma doença bipolar, tradicionalmente designada por Doença Maníaco-Depressiva, que é uma doença psiquiátrica caracterizada por variações acentuadas do humor, com crises repetidas de depressão e «mania». Qualquer dos dois tipos de crise pode predominar numa mesma pessoa, sendo a sua frequência bastante variável. As crises podem ser graves, moderadas ou leves.

As viragens do humor, num sentido ou noutro, têm importante repercussão nas sensações, nas emoções, nas ideias e no comportamento da pessoa, com uma perda importante da saúde e da autonomia da personalidade.

Agora o que está em causa é a perigosidade subjectiva, a prognose para o futuro.

Nessa tarefa o juiz há-de perscrutar o futuro, projectar a personalidade da arguida no horizonte do que ainda não ocorreu e procurará ajuizar sobre a eventualidade de ela vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos [Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo», p.91].

A partir do momento em que, com o auxílio da perícia, se mostrou existir na arguida uma anomalia psíquica determinante da prática do ilícito típico, há a certeza da sua perigosidade – de que já foi perigosa.

Mesmo que outra fosse a conclusão pericial importa vincar que a observação de um arguido com o fim de avaliar a sua imputabilidade ou perigosidade por um perito não é definitiva, já que a imputabilidade e a perigosidade têm referentes normativos que só ao juiz cabe interpretar e decidir.

É uma tarefa com duas faces e a tarefa do perito constitui apenas uma das faces da mesma realidade.

A perícia tem um carácter instrumental relativamente à boa decisão forense: pretende-se do perito médico-legal que forneça a base científica imprescindível para que o julgador possa decidir pela verificação ou não, in casu, dos elementos definitórios da perigosidade normativa.

Assim o perito pode dizer que o arguido é perigoso pois existe grande probabilidade de atentar contra a sua vida – dele arguido - e o juiz desvalorizar esse juízo, pois isso não configura sequer ilícito penal.

O recurso à perícia, à prognose clínica é, depois do que fica dito, útil mas em alguns casos insuficiente para o tribunal que tem de ajuizar quanto à perigosidade.

Insuficiente não apenas no sentido de que a aplicação do critério normativo de perigosidade cabe sempre, em última instância ao julgador, mas igualmente insuficiente no sentido de não lhe poder fornecer uma base de facto com a solidez desejada e necessária para sobre ela apoiar um juízo convicto. Por outras palavras: a prognose clínica não constituirá (em muitas ocasiões) prova acabada da perigosidade [Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo», p.101, 102].

O caso presente não é excepção: perante o quadro depressivo actual da arguida, perícia concluiu que a perigosidade não é alta.

A simples perigosidade do inimputável não constitui só por si fundamento para a aplicação de uma medida de internamento; exige-se ainda que essa perigosidade se revele através dos factos típicos penalmente relevantes e se mostre que eles se podem repetir.

Ora, os factos em causa nestes autos foram praticados pela arguida há cerca de 8 anos, foi requerida, em sede própria, a inabilitação desta por anomalia psíquica e não consta dos autos que ela tenha já sofrido qualquer condenação.

Num juízo de prognose dir-se-á que não há indícios suficientes dos pressupostos fácticos que permitam que à arguida possa ser aplicada uma medida de segurança de internamento, se for sujeita a julgamento.

Concluímos, assim, que é de manter a decisão de não pronúncia da arguida.

Do exposto se resulta que as decisões recorridas não podem deixar de ser confirmadas.

18. Improcedentes os recursos, incumbe à assistente recorrente o pagamento de taxa de justiça, nos termos prevenidos nos art. 515.º n.º 1 alin. b) do CPP, fixada nos termos e com os critérios estabelecidos nos art. 82.º n.º 1 e 87.º nºs 1 alin. b) e 3, estes do Código das Custas Judiciais.

III

DECISÃO:

19. Termos em que acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação Lisboa em negar provimento aos recursos interpostos pela assistente A. & C., LDA, mantendo, em consequência, as decisões recorridas.

Custas pela recorrente, fixando-se em 8 (oito) UC a taxa de justiça.