COMPRA E VENDA
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO
Sumário

Perante um contrato definitivo de compra e venda, em que uma das partes não realiza integral e atempadamente a sua prestação de pagamento do preço acordado e em que a outra não chegou a realizar a sua prestação de entrega de um bem móvel é admissível a resolução do contrato, com a consequência de ambas as partes ficarem obrigadas à restituição do que receberam ou do seu valor.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:
1.1.1. Autora: 1º - J.
1.1.2. Ré: 1º - O, LDA.

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1.2. Acção e processo:
Acção declarativa com processo ordinário.
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1.3. Objecto da apelação:
1. A sentença de fls. 252 a 260, pela qual a acção foi julgada improcedente.
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1.4. Enunciado sucinto das questões a decidir:
1. Da natureza do contrato.
2. Do regime jurídico do seu incumprimento.
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2. SANEAMENTO:
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que cumpre apreciar e decidir.
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3. FUNDAMENTOS:
3.1. De facto:
Factos que este Tribunal considera provados:
Os constantes de fls. 256 a 259, para os quais se remete, nos termos do art. 713º nº 6 do C.P.C., em virtude de não terem sido impugnados nem serem de alterar, oficiosamente, por este Tribunal.
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3.2. De direito:
1. Da natureza do contrato.
2. A primeira questão que importa apurar é a da natureza do contrato, uma vez a posição das partes é diametralmente oposta: para o A., está-se em presença de um contrato definitivo de compra e venda; enquanto que para a R., está-se em presença de um contrato-promessa de compra e venda.
3. Por virtude da matéria de facto mandada ampliar, por decisão anterior desta Relação, e da resposta que tal matéria recebeu, não ficam dúvidas de que o contrato celebrado entre o A. e a R. é um contrato definitivo de compra e venda.
4. Isso mesmo resulta do facto XV da sentença que tem o seguinte teor: A ré, no exercício da sua actividade comercial, declarou vender ao A., que lho declarou comprar, o barco de marca Cranchi, modelo Zaffiro 342 XKAD 43P/DP, com pintura anti-vegetativa e com o equipamento constante do escrito de fls. 11, denominado por “Documento Factura”, pelo valor de Esc. 29.499.999$00.
5. Em face do teor deste facto e do disposto no art. 874º do C.Cv., segundo o qual compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, não ficam dúvidas de que o contrato celebrado entre as partes foi um contrato de compra e venda do referido barco Cranchi.
6. Na verdade, dele consta a declaração de venda, a declaração de compra, a identificação do objecto transaccionado, e a estipulação do preço.
7. E tudo isto sem qualquer referência a uma promessa de realização dos termos constantes do contrato, ou seja, sem a promessa de realização de um contrato futuro, esse sim, definitivo.
8. Quanto ao pagamento do preço resultou provado que as partes acordaram no seguinte: quando se deu a declaração de compra e venda do barco Cranchi, registou-se a entrega do barco C 240 e toda a documentação e palamenta pelo A. à R. (facto XVI), tendo tal entrega do A. à R. sido feita por forma a iniciar-se a entrega à R. do valor constante do facto XV, ou seja, do preço acordado de Esc. 29.499.999$00 (facto XVII). A este propósito ficou ainda provado que as partes avaliaram em Esc. 8.000.000$00 a entrega do barco C feita pelo A. à R. (facto IV).
9. Quanto ao remanescente do preço – Esc. 21.499.000$00 – ficou provado que as partes acordaram em diferir a entrega desta importância para o momento da entrega do barco Cranchi, na água, por o A. não dispor dessa quantia, na altura (facto V e XVIII).
10. Assim sendo, embora quanto à realização da prestação preço tivesse ficado acordado que se realizaria em dois tempos, nem, por isso, o contrato celebrado pode ser qualificado como um contrato-promessa, nem tal facto obstacula à sua qualificação do contrato como contrato definitivo.
11. Finalmente, no sentido de ineludivelmente o contrato celebrado ter a natureza de definitivo aduz-se o argumento retirado de ter ficado provado que a entrega do barco C do A. à R. ter sido feita por forma a iniciar-se a entrega à R. do valor constante do facto XV (facto XVII) e não a qualquer outro título, nomeadamente, de sinal.
12. Julga-se, deste modo, procedente a posição do Recorrente, neste particular.
13. Do regime jurídico do seu incumprimento.
14. Importa agora analisar as consequências jurídicas do incumprimento do contrato cuja definição ficou feita acima.
15. Na verdade, ficou também provado, e é assumido pelo A. desde a petição inicial até às alegações do presente recurso, que este não cumpriu a segunda parte da sua prestação, ou seja, não pagou o remanescente do preço, no montante de Esc. 21.499.000$00, por se ter visto impossibilitado de o fazer (facto VII).
16. Não ficou provado (nem foi alegado) qual a data da realização do contrato de compra e venda do barco Cranchi, embora se possa considerar que terá sido a 15-3-1998, por ser essa a data da factura constitutiva de fls. 11 destes autos, do mesmo modo que não ficou provado (nem foi alegado) qual a data acordada da entrega do mesmo barco, pela R. ao A., na água, data em que este deveria realizar o remanescente do preço.
17. Ao certo, apenas se sabe que a R., por intermédio do seu Advogado, remeteu à A. a carta de fls. 12, com data de 14 de Abril de 1998, procedendo, através dela, à interpelação admonitória a que se refere o art. 808º do C.Cv., fixando o prazo de cumprimento ao A. até ao final do mês de Abril de 1998, sem o que o acordo seria considerado definitivamente incumprido (ver carta de fls. 12).
18. Apesar da carta admonitória, a verdade é que ficou provado que o A. jamais pagou à R. a quantia de Esc. 21.499.000$00 (facto XII).
19. Perante este quadro factual de incumprimento por parte do A. importa retirar as suas consequências jurídicas.
20. Antes do mais, há que ter presente que, tendo ficado apurado que o contrato celebrado pelas partes assumiu a natureza de um contrato definitivo de compra e venda, há que daí extrair as necessárias consequências jurídicas. Quais são elas?
21. Por força do disposto no art. 879º do C.Cv., são duas as consequências: pelo contrato, operou-se a transmissão do direito de propriedade sobre o barco Cranchi, efeito real; e constituíram-se, por sua vez, duas obrigações, efeito obrigacional: uma impendente sobre a R. vendedora – entregar o barco; outra impendente sobre o A. comprador – pagar o preço.
22. Ou seja, pode dizer-se que, pelo menos, entre a data da celebração do contrato que se considerou ser 15-3-1998 (apesar da falta de elementos mais concretos, dada a sua irrelevância para o caso deste recurso) e a data da resolução do mesmo, dia 1 de Maio de 1998, o A. foi titular do direito de propriedade sobre o barco Cranchi.
23. Por outro lado, dos efeitos obrigacionais apenas ficou provado ter o A. realizado parte da prestação a que ficou vinculado, enquanto entregou o seu barco C à R. como princípio de pagamento do preço devido, não o tendo realizado de todo a R., por não ter entregue o barco Cranchi ao A.
24. Em face deste quadro factual que consequências jurídicas se devem tirar?
25. Dada a natureza da prestação devida pelo A. – dinheiro fungível – não se pode dizer em bom rigor técnico que ela se tornou impossível (a não ser que deixasse de haver curso legal da moeda fixada). Por isso, o caso configura-se sempre como de mora, atraso na realização da prestação (art. 804º nº 2 do C.Cv.). Porém, porque é inadmissível perpetuar o vínculo obrigacional, a lei confere ao credor a possibilidade de fixar um novo prazo admonitório razoável ao devedor, para cumprir a sua prestação, considerando, em ficção jurídica, a obrigação não cumprida para todos os efeitos, ou seja, equiparando este regime ao da impossibilidade definitiva de cumprimento.
26. Ora, para esta hipótese, e, particularmente, para o caso da obrigação ter por fonte um contrato bilateral, como é o caso dos autos, a lei, no art. 801º nº 2 do C.Cv., confere ao credor, a possibilidade de resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro, independentemente do direito à indemnização, conferida para os casos em geral (de obrigações não sinalagmáticas) por força das disposições conjugadas dos art. 801º nº 1 e 798º do C.Cv.
27. Assim sendo, daquele preceito resultam três efeitos pelo não cumprimento culposo do devedor: 1) direito à indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento (interesse contratual negativo); 2) direito à resolução do contrato; 3) direito à restituição da prestação já realizada pelo credor.
28. No caso dos autos, a R. apenas exercitou o segundo efeito, ou seja, o direito à resolução do contrato, não tendo pedido a restituição da sua prestação, porque também a não tinha realizado, nem pediu o direito à indemnização por eventual prejuízo com o não cumprimento do contrato por parte do A.
29. Quais são os efeitos da resolução do contrato?
30. Diz o art. 433º que, na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico.
31. No caso dos autos, não se conhece disposição especial aplicável, razão porque se terá de recorrer às regras relativas à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. E quanto a estas dispõe o art. 289º nº 1 do C.Cv. que tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
32. Aplicando o quadro jurídico acabado de referir ao caso dos autos, resultam as seguintes conclusões: por um lado, o efeito real da compra e venda deixou de se verificar a partir da data da resolução do contrato pela R., ou seja, o direito de propriedade sobre o barco Cranchi voltou à esfera jurídica da R.; por outro lado, importa restituir tudo o que houver sido prestado, ou seja, o barco C que o A. entregou à R. a título de início de realização da sua prestação.
33. Ficou provado que a R. fez seu o barco C, alienando-o posteriormente a outrem (facto XIV).
34. Assim sendo, há que lançar mão do disposto na parte final do citado nº 1 do art. 289º do C.Cv., ou seja, a R. deverá restituir o valor correspondente, isto é, Esc. 8.000.000$00 que foi o valor atribuído ao barco C.
35. Ficou provado que a R. fez seu o barco de marca C terminado o prazo admonitório fixado ao A. sem que este tivesse procedido ao pagamento do preço em dívida ( facto XIV) intenção já constante da carta de fls. 12 (facto XX).
36. A R. agiu desse modo com fundamento no convencimento de que o contrato celebrado com o A. tinha a natureza de contrato-promessa. Porém, como não foi essa a natureza do contrato celebrado, a R. não tem direito a fazer seu tal barco, que o mesmo é dizer não tem direito à prestação que o A. já havia realizado.
37. Na sentença, recusou-se a procedência da acção com base na invocação de que o A. abusara de direito, vindo contra facto próprio. Mas crê-se que sem razão, pois o que o A. pede é o que a lei lhe confere, como se demonstrou acima.
38. O que era devido à R., uma vez restituída a parte da prestação realizada pelo A., era uma indemnização pelos prejuízos que tivesse tido com o incumprimento do contrato, mas não fazer sua a prestação realizada pelo A. Porém, como acima se disse, a R. não formulou pedido indemnizatório, razão porque, nesta acção ele não pode ser reconhecido.
39. Deste modo, também quanto a esta questão julga-se procedente a posição do Recorrente.
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4 DECISÃO:
1. Por tudo o exposto, concede-se provimento à apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se a acção provada e procedente, ou seja, condenando a R. a restituir ao A., Esc. 8.000.000$00 (na sua equivalência em Euros) bem como juros de mora devidos desde 1 de Maio de 1998 até efectivo e integral cumprimento, à taxa legal.
Custas pela R., na acção.
2. Custas pela parte Recorrida, no recurso (art. 446º nº 2 CPC).
Lisboa, 5.6.2007
Relator (Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
1º Adjunto (Eurico José Marques dos Reis) – vencido conforme declaração que segue junto
2º Adjunto (Paulo Jorge Rijo Ferreira)
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Declaração de voto:

Diverge-se relativamente à posição que fez vencimento porquanto, a meu ver, considerando a matéria de facto alegada pelas partes no processo para fundamentar as posições que sustentam e o que nos autos se encontra comprovado, bem como o enquadramento jurídico da questão feito pelo Mmo Juiz a quo, forçoso se torna concluir, que tinha mesmo que improceder a pretensão formulada em sede de recurso pela apelante, havendo, ao invés, que aqui sufragar inteiramente e sem reservas, o julgamento feito em 1ª instância, não sendo a consistência dos raciocínios desenvolvidos pelo mesmo Mmo Juiz ara fundamentar o decreto judicial contido nessa decisão recorrida abalada, nem sequer minimamente, pelos argumentos desenvolvidos pelo apelante nas suas alegações de recurso.
Nestes termos e com estes fundamentos, julgaria a apelação completamente improcedente e manteria, nos termos definidos, o decreto judicial lavrado pelo Tribunal de 1ª instância.