INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PEDIDOS INCOMPATÍVEIS
Sumário

I - Não se vislumbra incompatibilidade total entre um pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um automóvel e a declaração de nulidade dos actos praticados em nome de uma sociedade fictícia e dissolvida.
II – A cumulação que gera a ineptidão da petição, nos termos da c) do nº 2 do art. 193º do C.P.C. é a que resulta de causas de pedir, entre si, ou de pedidos, entre si, substancialmente incompatíveis, e não de causas de pedir com pedidos. Esta, por contradição, encontra-se prevista na alínea b) do mesmo preceito.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:
1.1.1. Agravante: 1º - BANCO.
1.1.2. -Agravada: 1º - INCERTOS.
1.2. Acção e processo:
Acção declarativa com processo ordinário.
1.3. Objecto do agravo:
1. A decisão de fls. 111 a 112, pela qual foi declarada inepta a petição inicial.
1.4. Questões a decidir: enunciado sucinto:
1. Da ineptidão da petição inicial.
2. SANEAMENTO:
A decisão recorrida foi mantida.
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que cumpre apreciar e decidir.

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3. FUNDAMENTOS:
3.1. De facto:
Factos que este Tribunal considera provados:
1. Na presente acção, a A. formulou os seguintes pedidos: 1. Declarar-se constituído a favor do A. o direito de propriedade sobre o veículo automóvel ligeiro de passageiros, a gasóleo, marca BMW, modelo 346L; 2. Declararem-se nulos os actos praticados em nome da fictícia e dissolvida Sociedade, Lda.
2. Alegou, para fundamentar os seus pedidos, o seguinte: o A. dirigiu-se à firma J Lda. tendo aí adquirido o veículo ligeiro de passageiros, a gasóleo, marca BMW, modelo 346L (art. 4º).
3. O A. pagou o veículo, passou a usufruir e dispor dele como seu legítimo proprietário (art. 8º).
4. Comportando-se pública e notoriamente como proprietário que é do veículo (art. 10º).
5. A guia emitida pela Direcção Geral de Viação identifica o importador do veículo como sendo a Sociedade, Lda. (art. 16º).
6. A Sociedade Lda. é uma sociedade fictícia, tendo sido intentada pelo Ministério Público a respectiva acção de declaração de nulidade do contrato de sociedade, tendo o Tribunal declarado a nulidade do contrato constitutivo da Sociedade (art. 24º, 25º e 26º).
7. O A. requer o reconhecimento da posse e propriedade do veículo (art. 39º).
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3.2. De direito:
1. A única questão que importa apreciar é a de saber se os pedidos são substancialmente incompatíveis entre si, como se decidiu no despacho recorrido, ou se não são, como se defende nas alegações de recurso.
2. Dispõe o art. 193º nº 2 c) do C.P.C., disposição invocada como violada para o efeito da decisão recorrida, que a petição é inepta quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3. Nesta acção, o A. formulou dois pedidos: um, declarar-se constituído a favor do A. o direito de propriedade sobre o veículo automóvel; outro, declararem-se nulos os actos praticados em nome da Sociedade, Lda.
4. Entre si, não se vislumbra qualquer contradição nos pedidos formulados, porque a procedência de um não é impeditiva da procedência do outro. É admissível que ambos os pedidos obtenham procedência, se para tanto se provarem os factos que a eles conduzam.
5. Quanto às causas de pedir respectivas importa distinguir.
6. O primeiro pedido, de declaração de constituição a favor do A. do direito de propriedade sobre o veículo, está alicerçado sobre factos de aquisição derivada, visto que o A. invoca a compra que fez do veículo a certa sociedade, a qual por sua vez o terá adquirido a outra, e esta por sua vez à Sociedade, Lda.
7. Para a compleição desta causa de pedir poder conduzir à procedência do respectivo pedido era necessário que o A. gozasse do benefício do registo a seu favor, o que não acontece, pois é exactamente a superação dessa dificuldade que pretende com esta acção.
8. Também não alegou factos suficientes para obter a procedência do pedido por aquisição originária, pois não só não se refere ao tempo pelo qual possui, como o que resulta dos documentos juntos não é suficiente para a aquisição por usucapião (art. 1298º b) do C.Cv. dez anos).
9. Por isso, para já, sem entrar ainda na comparação das causas de pedir, o que se pode concluir é que a causa de pedir invocada para a procedência do primeiro pedido é insuficiente quer se considere a vertente da aquisição derivada quer a da aquisição originária.
10. Mas poderá o A. ver julgado procedente o seu pedido com base no disposto no art. 1268º nº 1 do C.Cv. segundo o qual o possuidor goza da presunção da titularidade do direito. Se não se verificarem factos que afastem essa presunção, o primeiro pedido deverá ser julgado procedente. Isto porque foram abundantemente alegados factos próprios da posse.
11. Quanto ao segundo pedido, o de declaração de nulidade dos actos praticados em nome da Sociedade, Lda., ele baseia-se na sentença transitada em julgado a declarar nulo o contrato de constitutivo da Sociedade Lda., retirando daí as respectivas consequências.
12. Comparando uma e outra causas de pedir não se vislumbra incompatibilidade total entre si, dado que, como se disse, a causa de pedir relativa à aquisição derivada se mostra incompleta e sempre teria de se julgar insuficiente para obter o seu desiderato – a procedência do primeiro pedido – sendo certo que os factos relativos à posse podem ser suficientes para obter a procedência do primeiro pedido com base na referida presunção de titularidade do direito nos termos do art. 1268º do C.Cv.
13. Por outro lado, importa precisar, a cumulação que gera a ineptidão da petição, nos termos da c) do nº 2 do art. 193º do C.P.C. é a que resulta de causas de pedir, entre si, ou de pedidos, entre si, substancialmente incompatíveis, e não de causas de pedir com pedidos. Esta, por contradição, encontra-se prevista na alínea b) do mesmo preceito.
14. Julga-se, assim, procedente a posição do Recorrente embora por outros fundamentos.
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4. DECISÃO:
1. Por tudo o exposto, concede-se provimento ao agravo, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida.
2. Sem custas (art. 2º nº 1 o) CCJ).
Lisboa, 12 de Junho de 2007.
Relator (Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
1º Adjunto (Eurico José Marques dos Reis)
2º Adjunto (Paulo Jorge Rijo Ferreira)