FALSIFICAÇÃO DE CHEQUE
DEVER DE DILIGÊNCIA
RISCO NAS OBRIGAÇÕES
RESPONSABILIDADE
BANCO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DEPÓSITO BANCÁRIO
FALSIFICAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário

I- Não incorre em incumprimento do dever de diligência o  depositante bancário que envia para o estrangeiro por via postal um cheque para pagamento, aliás de montante reduzido, de modo a responsabilizá-lo pela falsificação entretanto operada, que consistiu em forjar outro título com base naquele que foi remetido.
II- Pelo contrário, é à entidade bancária que cumpre assegurar-se de que o cheque que lhe é apresentado para pagamento não é um título falsificado, não podendo sequer considerar-se ilidida a presunção de culpa uma vez provado que a falsificação seria detectada se o cheque tivesse sido sujeito ao controlo de máquina de digitalização de que dispõe, para o efeito, a instituição bancária (artigo 799.º do Código Civil).
III-  Ainda que a aludida presunção fosse ilidida, certo é que o risco, relativamente a quantias de que o Banco seja detentor por lhe terem sido entregues em depósito, deve recair sobre o banco sacado enquanto entidade depositária conforme resulta do disposto nos artigos 796.º/1 , 1114. e 1206º todos do Código Civil.
IV- A responsabilidade da entidade bancária ficarias afastada provado que aquela ocorrência (falsificação) seria imputável ao titular da conta por não ter agido com a diligência devida na guarda do cheque, no seu acondicionamento ou em relação ao dever de reserva de outros elementos do cheque, assumindo, por acção ou por omissão, comportamentos adequadamente causais do prejuízo, não o sendo o envio do cheque para pagamento por via postal.

(SC)

Texto Integral


I - M.[…], S.A.,
intentou a acção declarativa, com processo ordinário contra
[…] BANK SUCURSAL em PORTUGAL,
pedindo se declare que a R. não é titular de qualquer crédito sobre a si, designadamente pelo pagamento que serviu de base ao débito na sua conta e que se condene a comunicar ao Banco de Portugal que não existe nem nunca existiu qualquer crédito sobre a A. vencido e não pago.
Para tanto, alegou ter-lhe sido furtado um cheque sobre a sua conta aberta no Banco R., a partir do qual foi contrafeito um outro que a R. pagou. Tratava-se de um documento falso, mas que foi pago porque a R. não cumpriu os seus deveres de fiscalização, de conferência e de análise cuidadosa.
A R. agiu de forma negligente e descuidada, devendo suportar o prejuízo daquele pagamento indevido, não podendo exigir da A. o seu pagamento ou comunicar ao Banco de Portugal a existência de um crédito por regularizar, de forma a causar-lhe prejuízo ao bom-nome comercial e crédito.

A R. contestou e alegou que sempre cumpriu os seus deveres contratuais e que o cheque foi pago sem se pôr em dúvida a sua autenticidade, pois as anomalias não eram detectáveis a olho nu. Foi a A. quem deu causa a que a falsificação pudesse ter ocorrido, pois não tomou os cuidados devidos quando remeteu um cheque por via postal, o qual serviu para ser forjado o cheque falso. A A. tem, por isso, de suportar o prejuízo, pagando-lhe a quantia em causa, para o que formulou o respectivo pedido reconvencional.

Na réplica a A. manteve no essencial a posição assumida na petição e reafirmou que nada deve ao R.

Foi proferida sentença que julgou procedente a acção.

Apelou a R. e concluiu que:
Quanto à decisão da matéria de facto:
a) A sentença deve ser revogada, na medida em que não andou bem o Tribunal a quo quer na apreciação crítica das provas que efectuou, quer na aplicação do direito aos factos que deu como não provados.
b) A matéria constante dos quesitos 21° e 22° deveria ter sido dada como provada, pois as divergências existentes no cheque não eram detectáveis a olho nu por um funcionário da R., apenas sendo detectáveis através de uma análise técnica.

c) De todo o modo, caso algumas dúvidas subsistam, o esclarecimento da verdade poderá ser atingido através da junção aos autos do cheque contrafeito, devendo ser requisitado ao tribunal onde pende o processo-crime.

Quanto à matéria de direito:
A. A prova produzida nos autos sugere que não só a R. afastou a presunção de culpa, como a conduta da A. determinou incumprimento das obrigações contratuais que para si derivam do contrato de cheque, sendo ainda manifestamente negligente.
B. Em primeiro lugar, decorre claramente do teor da contestação que analisou cuidadosamente os requisitos do cheque que lhe foi apresentado para compensação, não tendo, a olho nu, detectado quaisquer divergências com quaisquer outros cheques.
C. As divergências de que padecia o cheque não foram detectadas pelo funcionário do Banco […] que o recebeu para depósito, nem mesmo pela máquina de digitalização para depósito utilizada nessa instituição bancária.
D. Por outro lado, ao enviar cheques pelo correio, apesar de ser uma prática desaconselhada pelas instituições bancárias, a A. incumpriu com o seu dever de guardar cuidadosamente os cheques, dando, assim, azo a que falsificações como a que sucedeu.
E. Essa conduta foi ainda agravada pelo facto de não ter controlado a efectiva apresentação a pagamento do cheque que emitiu e enviou pelo correio para Itália em 9-1-03.
F. Com efeito, durante todo o mês de Janeiro, a A. não verificou os extractos que diariamente recebia da R., nem mesmo na conferência mensal que promoveu no final desse mês detectou que, não obstante decorridos mais de 20 dias, tal cheque havia sido apresentado a pagamento. Comportamento que manteve no mês de Fevereiro, só tendo a A. reagido ao pagamento do cheque em 7-3-03.
G. As circunstâncias em apreço determinariam que a A. comunicasse à R. a eventual perda do cheque.
H. Conclui-se, pois, que, para além de incumprir os seus deveres contratuais, a conduta da A. foi manifestamente negligente.

Houve contra-alegações.
A A. opôs-se à pretendida requisição do original do cheque que foi forjado.

II – Impugnação da decisão da matéria de facto:
1. Pretende a Ré que se dê resposta positiva aos quesitos 21º e 22º, com a seguinte redacção:
21º
As diferenças enunciadas nas als. J) a Q) e nos items 11º a 14º não eram detectáveis a olho nu por um funcionário do banco Réu?
22º
Apenas sendo detectáveis através de análise técnica que passa por uma análise na área da impressão gráfica e na área de impressão informática?

2. Para efeitos de reapreciação da decisão da matéria de facto, pretende a R. que se requisite ao Tribunal onde pende o processo-crime instaurado na sequência da falsificação do cheque o original desse documento.
A tal pretensão se opõe a A.
Nos termos do art. 706º do CPC, a junção de documentos em sede de alegações de recurso (a que pode equipar-se a requisição de documentos, por iniciativa das partes que se encontrem inseridos noutro processo judicial) não constitui um direito ilimitado. Ao invés, apenas é legítimo confrontar o Tribunal ad quem com documentos que não foram oportunamente apreciados pelo tribunal a quo quando se verifique uma situação de superveniência subjectiva ou objectiva ou quando a junção apenas se revelar necessária em virtude do julgamento da 1ª instância.
No caso concreto, a requisição é solicitada com o fito de modificar a resposta a dois quesitos cruciais para a tese defendida pela R. Nestes termos, para além de não existir superveniência objectiva ou subjectiva, a sua eventual utilidade para a decisão da matéria de facto já era visível antes de ter sido proferida a decisão impugnada. Aliás, a própria R., no art. 18º da sua contestação, protestou juntar documento extraído do processo-crime, sem que, contudo, tivesse concretizado essa intenção até final da audiência de julgamento.
Acresce ainda que tendo a A. requerido ao tribunal a quo a requisição daquele documento, a R. se opôs a tal pretensão, como decorre do requerimento de fls. 220, com a justificação de que estavam juntos aos autos diversos exemplares de cheques genuínos.
Sem embargo dessa oposição, o tribunal a quo acabou por solicitar a sua requisição. Contudo, não foi obtida resposta, findando o julgamento com a apresentação de alegações sem que alguma das partes tivesse suscitado a questão.
Por fim, verifica-se que se encontra junta aos autos cópia do referido documento e cópia do duplicado do cheque genuíno com base no qual foi feita a falsificação, assim como exemplares de cheques genuínos, com os quais as testemunhas puderam ser confrontadas.
Por todos esses motivos, mas acima de tudo, por falta de verificação dos requisitos previstos no art. 706º do CPC, indefere-se a pretendida requisição do cheque.

3. Passando para a reapreciação dos meios de prova produzidos na primeira instância sobre os quesitos 21º e 22º.
Invoca a apelante os depoimentos das testemunhas Ana […], directora comercial da empresa gráfica de onde saíram os cheques da R., de Carlos […], chefe da direcção da R. no Porto, e de Maria Teresa […], funcionária da R. Todos eles afirmaram que as diferenças entre o cheque falsificado e os originais não eram detectáveis a olho nu, declarando que a falsificação só foi confirmada mediante a utilização de meios técnicos adicionais (lupa, reagentes, infravermelhos).
Ouvidos os respectivos depoimentos, verificam-se que não existem motivos para pôr em causa a experiência referida por cada uma das testemunhas relativamente à análise de cheques, tendo em conta as razões de ciência que invocaram. No entanto, na valoração dos depoimentos, não podemos deixar de ponderar também, como o fez o tribunal a quo, que nenhuma das testemunhas teve intervenção no momento em que o cheque foi depositado ou apresentado ao R. para compensação bancária, discorrendo a partir da análise a posteriori realizada quando já se haviam consumado os efeitos da falsificação.
Além disso, sobre os aspectos que referiram tais testemunhas também depôs Paulo […], director financeiro da A., sendo o seu depoimento enriquecido pelo facto de ter sido um dos intervenientes numa reunião realizada nas instalações da R., depois de ter sido detectada a falsificação, onde estiveram também dois colaboradores da R. que, no entanto, não foram arrolados como testemunhas: o gestor de conta, Dr. Luís […], e o seu assistente, o Sr. R […].
Quanto à “qualidade” da falsificação e quanto à perceptibilidade das diferenças, essa testemunha apresentou uma versão que não foi coincidente com a das testemunhas indicadas pela R., afirmando, designadamente, que, “mal tomei contacto com o cheque apercebi-me de uma série de diferenças que eram perfeitamente perceptíveis para quem manuseia os cheques com a frequência que eu manuseio”. Declarou ainda que a referida percepção foi comum a todos os presentes e que a sujeição do cheque a infravermelhos apenas foi feita depois disso, para confirmar aquilo de que já se tinham apercebido. Declarou também que “nós detectámos as diferenças e no fim, por sugestão deles, foi-se buscar a máquina para reconfirmar tudo aquilo que nós tínhamos ali já confirmado por uma série de identificação de características de não coincidência com outros cheques”, insistindo que “só no fim é que veio a máquina para confirmar”. Além disso, identificou diferenças perceptíveis, entre as quais, o picotado do cheque (mais grosso), o tipo de papel (mais fino) e a tonalidade da cor (mais esbatida), referenciando também diferenças relativamente à identificação da empresa gráfica constante do verso do documento.
É verdade que também esta testemunha apenas teve contacto com o cheque depois de concretizada a falsificação, estando, tal como as demais testemunhas, especialmente alertada para eventuais diferenças que, porventura, noutras circunstâncias, poderiam também passar-lhe despercebidas.
Mas, incidindo a polémica, não sobre uma putativa versão da A. de que “as diferenças eram perceptíveis a olho nu”, antes sobre a versão da R. de que tais diferenças “não eram perceptíveis a olho nu”, do confronto que necessariamente tem que se estabelecer entre os referidos depoimentos que, subjectiva e objectivamente, acabam por ter valor semelhante, não existem motivos para pender para a versão apresentada pelas testemunhas indicadas pela R. sobre quem, em termos subjectivos, recaía o ónus da prova.
O confronto entre os depoimentos de sentido inverso não permite que se atribua a qualquer deles uma especial credibilidade.
Além disso, a comparação que, a partir dos elementos juntos aos autos, se pode estabelecer entre o que seria o cheque original (encontrando-se juntos diversos especímenes de cheques genuínos e a fotocópia do duplicado do cheque original) e aquele que foi falsificado (cuja cópia também foi junta) permite concluir, aliás, como o fizeram as testemunhas que sobre a matéria foram inquiridas, que existia bastante semelhança entre ambos. Mas não ao ponto de permitir asseverar, mediante resposta positiva aos quesitos 21º e 22º, que os elementos diferenciadores não eram detectáveis a olho nu, como a R. alegou. Ao invés, a simples comparação entre a fotocópia do duplicado do cheque que se encontra a fls. 30 (ou os originais de outros cheques genuínos) e a cópia do cheque forjado que consta de fls. 31, revela, pelo menos, algumas diferenças em relação aos elementos personalizados do cheque, indiciando a sua digitalização.
Por todos os motivos referidos, os autos não consentem a afirmação, sustentada em padrões de segurança adequados, da prova dos mencionados factos. Ao invés, atento o disposto no art. 346º do CC, uma vez que sobre a R. recaía especificamente o ónus da prova, com o objectivo de, na sua tese (que não na deste Tribunal), afastar a sua responsabilidade, impõe-se a manutenção da decisão do tribunal a quo.
 
II – Factos provados (ordenados de forma lógica e/ou cronológica):
1. A A. tem por objecto da sua actividade o comércio a retalho de pronto-a-vestir, sapatos e, de um modo geral, todo o tipo de vestuário, incluindo desportivo – A).
2. Em 15-11-00 foi celebrado entre a A. e a R. um contrato de abertura de conta (a que se deu o nº […]), na delegação da R. no Porto, que se rege pelas condições gerais juntas a estes autos – B).
3. Em 17-11-00 foi celebrado entre A. e R. um contrato de abertura de crédito “em multidivisas até ao montante de PTE 200.482.000$00 ou o respectivo contravalor nas divisas indicadas no nº 1 da cláusula primeira pelo prazo de 6 meses” – C).
Consta da cláusula primeira de tal contrato, além do mais, que “o crédito poderá ser utilizado … por cheques, ordens de pagamento e ordens de transferência” (fls. 21).
4. Em 18-1-01 foi acordado um aditamento a este contrato, nos termos do qual o montante do crédito foi elevado até ao limite de PTE 300.723.000$00 – D).
5. A A. celebrou com o R. uma convenção de cheque, ficando autorizada a dispor das quantias depositadas através de ordens de pagamento dadas através de cheques – E).
6. A A., desde a abertura da conta, apenas emitiu cheques sacados sobre aquela a favor de empresas do ramo do vestuário e pagamento de impostos, raramente de valor elevado e nunca para empresas do ramo alimentar ou congéneres – 1º e 2º.
7. Em 9-1-03 a A. emitiu o cheque nº […], no montante de € 85,70, para pagamento de artigos de vestuário que adquiriu à empresa italiana Maglicio ITES, SPA, e enviou tal cheque (cujo duplicado está fotocopiado a fls. 30, ao alto) pelo correio para Itália – 4º e 5º.
8. O cheque referido em 7. foi furtado – 6º.
9. Na posse do número da conta da A., do número do cheque e da assinatura dos responsáveis da A., foi fabricado um documento correspondente ao cheque referido em 7. (cuja cópia consta de fls. 31), impresso em papel com características diferentes do utilizado pelo R. e que foi preenchido com o valor de € 180.000,00 e a data de 31-01-2003  – 7º a 9º.
10. Em 5-2-03 a R. procedeu ao pagamento de um “cheque “ no montante de € 180.000,00 sacado sobre a conta da A., à ordem de B.[…], Ldª - F).
11. O dito “cheque” havia sido depositado na conta da identificada empresa no Banco […] e apresentado através da compensação à ora R. – G)
12. A conta da A. no Banco R. tinha, à data, um saldo credor superior – H).
13. A R. não contactou a A. e procedeu ao débito na conta com base no “cheque” que lhe foi apresentado – I).
14. Os cheques apenas são analisados por máquinas de digitalização para depósito no momento da apresentação para depósito e não no momento da compensação – Z).
15. A R. enviava à A. extractos bancários diários e assim aconteceu em 6-2-03 – U).
16. A A. reagiu ao pagamento do “cheque” em 7-3-03 – V).
17. A serrilha do “cheque” referido em 10. é diferente da dos cheques da R. – J)
18. No documento na base do qual a conta da A. foi debitada, junto ao quadrado onde é aposta a quantia em Euros e os dizeres interbancários, existe uma mancha azul que não aparece nos cheques – L).
19. As bolas e quadrados que existem no fundo dos cheques da R. F.[…] são de cor diferente das que constam do documento contrafeito que serviu de base ao débito da conta – M).
20. A própria textura do papel do documento é diferente da dos cheques, já que o papel em que estes são impressos é de uma gramagem superior ao do documento contrafeito, que era menos espesso – O).
21. O contraste de água do papel do documento referido em 10. é diferente do dos cheques da R. F. […] Bank – P).
22. O carimbo no verso da litografia Contiforme está desfocado e com uma impressão diferente da dos cheques – Q).
23. A cor do papel do documento é diferente da dos cheques, pois o bege liso e o granitado liso não são idênticos, ou seja, não são da mesma tonalidade – N).
24. A tonalidade do cheque pode variar consoante a impressão – 23º.
25. O extenso, o local de emissão e a assinatura não apresentavam o baixo relevo inerente a uma escrita feita com caneta ou esferográfica – 13º.
26. Em Março de 2003, foi verificado na delegação do Porto do F.[…] Bank, na presença do gestor de conta Luís […], se as máquinas de digitalização para depósito detectariam a falsificação e verificou-se que o documento não era “aceite como bom” pelas referidas máquinas – R).
27. Após a análise do documento referida em 26. todos os presentes na reunião estiveram de acordo em que o documento apresentava anomalias – 27º.
28. Para detectar as anomalias referidas em 17. a 23. e que se tratava de cheque contrafeito bastava ter passado o documento pela máquina que o R. tem para o efeito e referida em 26. – 10º.
29. Com a data de 22-3-04 a R. enviou à A. a missiva junta a fls. 134, comunicando-lhe que o contrato de abertura de crédito datado de Outubro de 2000 seria cancelado no próximo vencimento de Abril de 2004 e que as responsabilidades da A. junto do R. deveriam estar integralmente regularizadas até essa data – S).
30. Na data em que a R. denunciou o contrato, a conta de depósitos à ordem da A. apresentava um saldo negativo de € 187.938,16 – 24º.
31. Com a data de 13-5-04 a R. enviou nova carta à A., solicitando a regularização do saldo negativo que ascendia a € 188.567,14 euros (capital, juros e imposto de selo), no prazo máximo de 5 dias, sob pena de, não o fazendo, recorrer às vias judiciais para efeitos de recuperar o crédito – T).
32. Após a entrada em circulação do Euro o envio de cheques pelo correio para pagamento de facturas passou a consubstanciar prática habitual das empresas sediadas na C.E. – 15º.
33. Devido aos riscos que comporta (nomeadamente falsificação) a prática referida em 33. é desaconselhada pelo sistema bancário – 16º.
34. Nos termos do art. 15º das Condições Gerais do contrato de abertura de crédito o titular da conta deve apresentar as reclamações relativas à execução/inexecução de uma ordem em 15 dias – X).

III – Quanto à matéria de direito:
1. Delimitação do objecto do recurso:
1.1. A conta bancária da A. junto da R. foi debitada pela quantia inscrita num “cheque” que foi forjado a partir de um cheque verdadeiro sacado pela A. e que esta remetera para Itália por via postal.
Na sentença foi considerado que a responsabilidade pela situação é exclusiva da R., considerando, por um lado, que a A. não teve culpa na ocorrência e, por outro, que a R. não conseguiu ilidir a presunção de culpa no incumprimento contratual, nos termos do art. 799º do CC. Considerou-se, aliás, que a R. não adoptou as providências necessárias para controlar a genuinidade do documento antes de debitar na conta da A.

1.2. Em face do objecto do recurso, importa apreciar se, pressuposta uma situação de responsabilidade contratual, deve considerar-se elidida a presunção de culpa que decorre do art. 799º do CC e se, como também sustenta a R., a culpa do evento deve ser inteiramente atribuída à A.
Mas, considerando que, em matéria de qualificação jurídica, os poderes de intervenção do Tribunal não se esgotam nas posições assumidas pelas partes importa também ponderar, ainda que em termos complementares, se estamos deveras perante uma situação que deva ser apreciada à luz das regras da responsabilidade contratual ou se, ao invés, sobreleva o risco da actividade bancária que deva ser suportado pelo banqueiro.

2. Da qualificação do relacionamento estabelecido entre as partes e enunciação dos deveres daí emergentes:
2.1. A A. era titular de uma conta à ordem, na sequência de um contrato de abertura de conta celebrado com a R., a que se encontrava associada uma convenção que a autorizava a sacar cheques sobre a referida conta (cfr. doc. de fls. 18 e 19). Quase em simultâneo, acordaram as partes na outorga de um contrato de abertura de crédito, mediante o qual a A., dentro do plafond concedido, foi autorizada a emitir ordens de pagamento, nestas se incluindo o saque de cheques sobre a sobredita conta.
Trata-se de uma realidade que se integra no quotidiano das instituições bancárias e das empresas.[1] Para as primeiras, um dos vectores fundamentais da sua actividade assenta na concessão de crédito, de par em par com a aceitação de poupanças, sendo o lucro representado, em parte, pelo diferencial entre a remunerações devidas pelos depósitos que recolhem e as que recebem pelos créditos que concedem.
Uma das marcas fundamentais do sistema bancário é a segurança que rodeia a actividade, proporcionando aos interessados a guarda dos fundos confiados. Outra é o rigor proporcionado por um apertado sistema de controlo e de supervisão, dando suficientes garantias de que a mobilização dos fundos ou a realização de outras operações apenas são realizadas dentro do condicionalismo expressa ou tacitamente acordado. Afinal, vectores que encontram eco no direito positivo, designadamente nos arts. 73º e 74º do Regime Geral das Instituições de Crédito (republicado pelo Dec. Lei nº 201/202, de 26-9), onde se prevê que as instituições bancárias “devem assegurar aos clientes, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, dotando a sua organização empresarial de meios materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência”, estando obrigadas também ao dever de diligência. [2]
Simões Patrício, referindo-se essencialmente ao segmento da actividade relacionada com os depósitos bancários, afirma que “a segurança é procurada pela clientela das instituições financeiras para as suas poupanças, os seus valores ou mesmo a sua fortuna. Pode tratar-se da segurança física de um cofre forte, ou da confiança psicológica ou solvabilidade da empresa depositária ou somente na honorabilidade e/ou competência dos seus gestores ou empregados, mas o que em todos os casos motiva quem se dirige ao banco é confiar-lhe, depositar nas suas mãos, dinheiro ou bens que deseja pôr a recato ...”.[3]
Exercendo os bancos uma actividade que se traduz, além do mais, na guarda de numerário e de outros valores, são responsáveis pela conjugação de meios humanos e materiais que evitem os efeitos de comportamentos ilícitos, tanto mais que, tendo em conta o modo como se encontra organizada a actividade bancária, a gestão dos recursos, a verificação do formalismo das operações bancárias e contabilísticas e o controlo de erros ou fraudes constituem tarefas da sua exclusiva responsabilidade.

2.2. Do relacionamento contratual que se estabeleceu entre as partes e que ficou sintetizado é possível concluir que a A. ficou vinculada, através da convenção de cheque, além do mais, ao dever de zelo e diligência [4] relativamente à guarda e uso dos cheques, além de deveres de prevenção que a obrigariam a avisar a R. ante a constatação de alguma ocorrência anormal.[5]
Já em relação à R., por força das normas, das obrigações contratuais ou dos usos e práticas bancárias a que está sujeita, pode afirmar-se a assunção de deveres que, além do mais, implicariam que a conta à ordem apenas pudesse ser debitada por via de operações autorizadas pela A., designadamente de cheques por esta sacados. Outrossim, deveres de diligência e de controlo, através de meios técnicos ou dos recursos humanos ao seu dispor, a fim de impedir a execução de saques ilegítimos ou de débitos não sustentados em ordens emitidas pela A. Em concreto, era legítimo imputar à R. o especial dever de verificar se os cheques apresentados a desconto, por depósito directo ou por via de compensação bancária, eram ou não eram forjados ou se, sendo o impresso genuíno, alguns dos elementos fundamentais (assinatura, quantia, etc.) eram falsificados.[6]
Como refere Alberto Luís, no exame da genuinidade do título o banco não deve limitar-se sequer “à verificação da conformidade da assinatura do sacador à do espécime por ele fornecido; o banco deve estar atento a todas as particularidades susceptíveis de o alertar para a existência de qualquer anomalia …”.[7]

3. Do alegado incumprimento do dever de diligência da A.:
3.1. A R. invoca que a A. agiu com negligência, uma vez que remeteu um cheque para Itália por via postal e que não exerceu sobre o mesmo o adequado controlo, de modo a impedir a falsificação que veio a verificar-se.
Trata-se de argumentação que não pode ser acolhida.
Importa considerar, desde logo, que não se tratou de preenchimento e desconto ilícito de um cheque original relativamente ao qual a A. tivesse deixado de exercer deveres de vigilância ou de diligência para acautelar a sua entrada em circulação. A A. limitou-se a preencher um cheque de montante reduzido, remetendo-o para o respectivo credor. Foi a partir dos elementos nele inscritos que alguém forjou um documento parecido em todos os aspectos menos no montante.
Diz a R., no entanto, que a A. foi imprevidente quando utilizou a via postal para a remessa do cheque, dando, assim, azo à falsificação.
Vejamos:
Provou-se, é verdade, que aquela prática era desaconselhada pelo sistema bancário. Todavia, desconhecem-se que “conselhos” partiram directamente da R. em relação à A., ao abrigo da referida convenção de cheque, a fim de obviar a tal prática. Também inexistia qualquer proibição quanto ao envio do cheque por via postal, facto que, aliás, encontra fácil justificação no baixo valor da quantia nele inscrita, em conexão com os maiores custos que acarretaria aquela opção.
Além disso, também se encontra provado que a remessa de cheques por via postal constitui uma prática habitual no espaço da União Europeia, a qual nem sequer é desincentivada pelos bancos, uma vez que, como é conhecido, estes remetem para o domicílio dos clientes livros de cheques que acabam depositados nas caixas de correio, constituindo alvos bem mais fáceis de extravio ou de uso ilegítimo.

3.2. Numa avaliação a posteriori é fácil (demasiado fácil, aliás) concluir que se acaso a A. tivesse optado por sacar um cheque sobre o estrangeiro ou se tivesse adoptado qualquer outra forma de transferência monetária, o risco de falsificação seria atenuado.
Todavia, nada permite concluir que, ao agir como agiu, a A. tenha incumprido o dever de diligência a que estava vinculada, tendo em conta as circunstâncias referidas. Afinal, o referido cheque foi apenas um dos numerosíssimos cheques que quotidianamente circulam dessa mesma fora, dentro do país ou no estrangeiro.
Acresce que nem sequer se pode concluir que o cheque foi desviado antes de chegar ao seu destino em Itália.
Com efeito, a matéria de facto apenas nos diz, por um lado, que a A. “enviou o cheque pelo correio para Itália” e, por outro, que “foi furtado”, desconhecendo-se, porém, quando, onde e como se verificou o extravio, não estando, por exemplo, afastada a possibilidade de o mesmo ter ocorrido quando afinal o cheque já chegara ao seu destino.
Por outro lado, o modo como foi realizada a falsificação, através de digitalização dos elementos constitutivos e da sua integração em impresso com características estruturais semelhante (papel, cor, dizeres, etc.), indicia o uso de meios técnicos e humanos qualificados nesse tipo de ilícitos, sendo legítimo inferir que os riscos da sua ocorrência não estavam necessariamente dependentes daquele envio por via postal: bastava que, por qualquer outro meio, houvesse acesso aos elementos pertinentes.
Em suma, para além da constatação de que, no caso concreto, a falsificação foi feita a partir de um cheque de que alguém indevidamente se apropriou, não se encontra alegada ou provada a ocorrência de qualquer outro facto que possa qualificar-se como incumprimento causal de deveres de diligência que incidissem sobre a A.

3.3. Tão pouco pode imputar-se o débito de uma tão elevada quantia ao facto de a A. não ter exercido controlo superveniente sobre o cheque.
O envio do cheque original ocorreu em 9-1-03 e o saque do cheque forjado consumou-se em 5-2-03, não sendo exigível, relativamente a um cheque que seria apresentado a pagamento em Itália e que, por isso, estaria sujeito a operações bancárias de transferência de fundos ou de compensação mais morosas do que as habituais, uma especial vigilância entre um e outro momento.
Além disso, o facto de a A. apenas ter reagido ao desconto ilegítimo em 7-3-03 não exerceu qualquer influência no evento que já se tinha consumado em 5-2-03, não tendo, por isso, em relação ao evento qualquer conexão causal.

3.4. Neste contexto, se é verdade que, como se diz no Ac. do STJ, de 10-11-93, CJSTJ, tomo III, pág. 131, através da convenção de cheque, o cliente assume perante o banqueiro o dever de guardar cuidadosamente os cheques e de avisá-lo logo que dê pela sua falta, dentro dos diversos deveres a que é possível vincular a A. em face do relacionamento contratual com a R. (v.g. diligência, zelo, prevenção, colaboração, boa fé, etc.), não se detecta a existência de qualquer comportamento culposo que, em relação ao evento, esteja ligado por nexo de causalidade adequada.

4. Da responsabilidade da R.:
4.1. Em primeiro lugar, a matéria de facto provada permite-nos afirmar que o cheque descontado era totalmente forjado, sendo por isso, nulo.[8]
Além disso, como decorre da decisão da matéria de facto, obtiveram resposta negativa os quesitos que integravam factos alegados pela R. no sentido da inevitabilidade da ocorrência, tendo em conta a qualidade da falsificação.
Por outro lado, para além de existirem objectivas diferenças relativamente aos cheques genuínos que a R. entregou à A. (picotado, mancha azul, bolas e quadrados do fundo, cor, textura e gramagem do papel, contraste ou marca de água ou identificação da empresa gráfica) e de inexistir o baixo-relevo inerente à utilização de caneta ou esferográfica para inserção do extenso, do local de emissão e da assinatura do sacador, verificou-se que a sujeição, a posteriori, do cheque forjado a uma máquina de digitalização de cheques redundou na sua recusa.
Desconhece-se se o cheque foi ou não sujeito a essa observação técnica na ocasião em que foi apresentado para depósito no balcão de outro banco, o BBVA. Certo é que, como a posteriori se verificou, se tal diligência tivesse sido executada, fácil teria sido a detecção da falsificação, apesar da perfeição que revelava.
A mesma conclusão se retiraria se acaso, independentemente do que ocorreu ou deveria ter ocorrido a montante do desconto, o cheque forjado tivesse sido submetido a controlo técnico pelos serviços da R. antes da concretização desse desconto.

4.2. Alega a R., para arredar a sua responsabilidade, que a sujeição do cheque a controlo técnico apenas teria de ser executada quando o cheque foi entregue noutra instituição bancária.
Trata-se de uma defesa que não procede contra a A.
Os procedimentos adoptados quer na instituição onde o cheque foi depositado, quer na R. que procedeu ao seu desconto integram-se numa prática a que a A. é totalmente alheia e em relação à qual não podia ter exercido qualquer interferência. Deve, pois, refutar-se tal argumento apresentado pela R. para caucionar uma actuação menos rigorosa das entidades bancárias intervenientes no controlo do cheque quanto à verificação dos elementos constitutivos e quanto à regularidade da relação cambiária de saque, com prejuízo para os clientes.[9]
Para tanto há que ponderar designadamente que a operação de compensação interbancária é da exclusiva responsabilidade das entidades que exercem a actividade bancária. Por isso o afrouxamento das defesas contra actos abusivos de terceiros não pode ser invocada contra terceiros, maxime contra os respectivos clientes.
O eventual incumprimento de deveres de diligência a montante da compensação bancária é inoponível à A. e nem sequer serve de causa de justificação para o não exercício de deveres de diligência já anteriormente referidos. Independentemente do que ocorreu quando o cheque foi aceite em depósito pelo BBVA, cabia à A. assegurar-se que o cheque que imputou ao contrato de abertura de crédito celebrado com a A. e que debitou na respectiva conta bancária reunia todas as condições do saque, fosse através da passagem por uma máquina de digitalização, fosse mediante uma mais aturada observação que permitisse detectar os defeitos.[10]
Com efeito, se nas numerosas operações que diariamente são executadas em cada agência pode justificar-se um aligeiramento de certas formalidades quando estão em causa pequenas quantias, quando os intervenientes são conhecidos dos funcionários ou quando se verifica uma certa relação de confiança (sendo, por isso, diminuto o risco suportado pelo banqueiro, em face dos custos inerentes a uma opção de generalizado rigor), nas concretas circunstâncias (atento o valor do cheque e o facto de o saque, aparentemente ordenado por uma empresa do ramo têxtil, favorecer uma empresa do ramo alimentar) impunha-se o accionamento de meios de controlo mais rigorosos que pusessem a R. e a A., sua cliente, a salvo das consequências que se verificaram.[11]
Sofia Galvão, reportando-se a situações de falsificação, refere que para aferição do cumprimento do dever de fiscalização do Banco devem ponderar-se especialmente os casos em que se verifiquem “indícios sólidos e significativos”, dando precisamente como exemplo o montante do cheque, se este se revelar “excepcionalmente elevado, numa apreciação relativa em função do saldo e da história da conta”. De qualquer modo, não deixa de concluir que “o cliente nunca pode ser prejudicado por um abrandamento no cumprimento das obrigações do banco que seja, meramente, ditado por objectivos de redução dos custos ou de celeridade do trânsito”.[12]
No mesmo sentido se inclina Menezes Cordeiro quando refere que “o banqueiro deve actuar com diligência e profissionalismo, nos diversos aspectos atinentes ao manuseio dos cheques”, devendo, designadamente, “verificar com cuidado a assinatura do cliente” e, na “dúvida, ser cauteloso, recusando o pagamento de cheques menos claros”.[13]

4.3. Assim, no caso concreto, mais do que afirmar, para efeitos do art. 799º do CC, que a R. não conseguiu elidir a presunção de culpa na execução dos contratos de abertura de conta, de convenção de cheque e de abertura de crédito, é legítimo concluir que os respectivos serviços incumpriram os deveres de prevenção e de zelo dando causa adequada ao desconto ilegítimo do cheque sobre a conta bancária da A.
Efectivamente, a R. não só detinha tecnologia que permitia detectar a falsificação, como estava obrigada a zelar por que fosse feito o controlo da regularidade do cheque mediante essa tecnologia (que facilmente detectaria a falsificação) ou através dos seus colaboradores naturalmente habilitados a lidar com situações semelhantes.
É por isso aplicável a doutrina exposta no Ac. do STJ de 11-5-93, in Novos Estilos, Sep. da Revista Sub Judice, nº 5, de Maio de 1993, segundo o qual “actua com culpa o banco que paga indevidamente um cheque falsificado por os seus funcionários não terem detectado a falsificação das assinaturas: é que o banco deverá ter ao seu serviço, no exame de cheques apresentados a pagamento, pessoas altamente preparadas para detectar a falsificação”, sintetizando-se no sumário que “pelo pagamento de um cheque que havia sido falsificado, só o banco, em princípio, é que é atingido, e não o depositante, que tem o direito de reaver o montante igual ao depositado”.
Ou também no Ac. do STJ de 21-5-96, CJSTJ, tomo II, pág. 82, em cujo sumário se diz que, “em princípio, desde que se não verifique actuação irregular quer do depositante, quer do depositário, propiciadora do surgimento de irregularidades, a responsabilização pela integridade do depósito impende sobre o depositário. Não obstante a semelhança entre a assinatura aposta no cheque e a assinatura do depositante existente nos ficheiros do banco, persiste a responsabilidade deste pelo valor de conta do depositante, desde que se não demonstre a culpa deste no irregular levantamento da quantia depositada”.
Por seu lado, no Ac. do STJ, de 21-5-96, CJ, tomo II, pág. 82, decidiu-se que a responsabilização pela integridade do depósito impende sobre o depositário, se não se verificar uma actuação irregular tanto do depositante como do depositário. Não obstante a semelhança entre a assinatura do depositante e aquela que foi aposta no cheque que foi descontado, entendeu-se que persistia a responsabilidade do banco pela manutenção do valor de conta do depositante, salvo se tivesse sido demonstrada a culpa do depositante no irregular levantamento da quantia depositada.
O mesmo entendimento foi assumido no Ac. do STJ, de 2-3-99, CJSTJ, tomo I, pág. 133, segundo o qual, no caso de pagamento de cheque falsificado, o Banco só se liberta da responsabilidade provando que não teve culpa e que o pagamento foi devido a comportamento culposo do depositante, sendo necessário que a culpa do depositante se sobreponha ou anule a responsabilidade do banco.[14]
Também no Ac. da Rel. de Lisboa, de 17-3-83, CJ, tomo II, pág. 114, se decidiu que o banco não pode transferir para o cliente, alheio à emissão do cheque, o prejuízo resultante do seu pagamento. Os prejuízos que suportou devem ser reembolsados pelo agente da falsificação, e não pelo cliente, considerando que esse facto ilícito deve reflectir-se no património do banco, como emanação ou risco próprio do seu domínio.[15]

4.4. Nestes termos, tendo em conta, por um lado, a total ausência de culpa da parte da A. e, por outro, a prova da verificação de comportamento negligente da parte da R., o recurso não pode deixar de ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida tanto na parte em que deu procedência à acção, como naquela em que julgou improcedente a reconvenção.

5. Da ponderação do risco da actividade bancária:
5.1. A falsificação do cheque e o levantamento do numerário desenrolaram-se na estrita esfera de actuação do banco R., sem a menor intervenção da A. Por isso, a mera conjugação entre o evento e o risco profissional decorrente da actividade exercida pela R.[16] converge subsidiariamente para a improcedência da apelação.
Não se pretende, por esta via, criar para a R. a uma nova fonte de responsabilidade civil objectiva, antes ponderar que o exercício de uma qualquer actividade importa determinados riscos que devem ser assumidos, em primeira via, pelo próprio, a não ser que possam imputar-se à actuação culposa e causal de terceiros.

5.2. Os fundos que as instituições de crédito recebem do público constituem disponibilidades monetárias fungíveis que se tornam propriedade do banqueiro, podendo deles dispor entretanto como elementos do seu património.[17]
Como refere Menezes Cordeiro, “o banqueiro, como titular dos fundos, corre, em geral, o risco das falsificações que possam ocorrer: em rigor, já não se trata de mera responsabilidade”.[18] Noutro local afirma que “o risco do que possa ocorrer na conta do cliente, quando não haja culpa deste, cabe ao banqueiro” e que “também pelo banqueiro corre o risco do aparecimento de cheques falsificados, com a assinatura muito semelhante à autêntica”.[19]
Trata-se de entendimento muito próximo do de Simões Patrício para quem “não terá sentido útil aludir ao risco de perda de algo que deixou de ter individualidade própria (coisa específica) para se (con)fundir na massa patrimonial do accipiens, fazendo nascer uma obrigação de restituir tão só in genere e, assim, impossibilitando de raiz a própria questão do risco”.[20]
A mesma doutrina é expressamente assumida por José Maria Pires quando, a respeito do saque de cheques falsificados, refere que “o banco depositário assume a responsabilidade pelos danos resultantes de um levantamento indevido derivado de documento falsificado, a não ser que o mesmo banco possa provar que o depositante agiu com dolo ou negligência”.[21]
Mais incisivo é ainda Alberto Luís quando conclui que “se a ordem (de pagamento) é falsa, por não trazer a assinatura do ordenador, ela é para ele juridicamente inexistente, recaindo sobre o banco o risco do pagamento. O mesmo se diga da falsificação de alguns elementos da ordem, em regra a soma ou a pessoa do beneficiário: não podem recair sobre o ordenador consequências de facto que lhe é estranho”. Diz ainda que “não sendo válida a obrigação respeitante à falsa assinatura do sacador, o banco não pode pretender que o pagamento efectuado valha relativamente a ele”.[22] Conclui que “o risco da falsidade deve recair sobre o banco sacado como normal risco profissional e como exigência da tutela do cliente, contra o qual não deve reconhecer-se a eficácia obrigatória de uma ordem escrita que dele não provém”.[23]
A assunção do risco relativamente a quantias de que o banco seja detentor por lhe terem sido entregues em depósito decorre directamente da conjugação do art. 796º, nº 1, com o art. 1044º e com o art. 1206 do CC, normas que directamente abarcam os chamados depósitos irregulares, mas que, por maioria de razão se impõem numa situação, como a dos autos, em que o saque ilegítimo foi o resultado de uma mera operação contabilística interna que levou a R. a creditar a conta bancária da A. ao abrigo do contrato de abertura de crédito. [24]-[25]

5.3. A R. aceitou como “bom para desconto” um documento que aparentava ser um dos cheques que emitira a favor da A. mas que, na realidade, não passava de uma falsificação feita a partir de um cheque verdadeiro.
Porque se tratava de um cheque falsificado, faltavam todos os requisitos do saque:
- não era nenhum dos impressos de cheque que a R. entregou à A. ao abrigo do contrato de abertura de conta;
- o preenchimento do documento que a R. aceitou como se fosse um cheque sacado pela A. foi feito por terceiro não identificado;
- a assinatura e o carimbo imputados à A. não eram desta, tendo sido forjados;
- a quantia que foi inscrita não foi da responsabilidade da A.;
- enfim, não foi a A. quem deu à R. a ordem de pagamento da quantia de € 180.000,00.
Assim, ao invés do que pretende a R., a imputação do débito do cheque à A. não dependia apenas da elisão da presunção de culpa que sobre si recaía, nos termos do art. 799º do CC, antes da prova de que aquela ocorrência era de imputar ao titular da conta, por não ter agido com a diligência devida na guarda dos cheques, no seu acondicionamento ou em relação ao dever de reserva de outros elementos do cheque, assumindo, por acção ou omissão, comportamentos adequadamente causais do prejuízo.[26]
Consequentemente, uma vez que já acima demos uma resposta negativa à imputação do evento à própria A., o resultado desta acção manter-se-ia ainda que o cheque forjado tivesse sido sujeito à máquina de digitalização de cheques ou a uma análise pormenorizada dos colaboradores da R. que, contudo, não tivesse permitido detectar a falsificação.
A responsabilização é ainda mais evidente quando, como sucedeu no caso, se verificou o incumprimento causal de deveres de diligência e de zelo relativamente à apropriação ilegítima de uma elevada quantia através do uso de um cheque forjado.

IV- Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da R.

Notifique, 26-6-07


(António Santos  Abrantes Geraldes)

(Maria  do Rosário Morgado)   

(Rosa Maria Ribeiro Coelho)

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[1] Como refere Menezes Cordeiro, em artigo intitulado “Direito Bancário Privado”, inserido na obra “Direito Bancário, Actas do Congresso Comemorativo do 150º Aniversário do Banco de Portugal”, em Suplemento da RFDUL, 1997, pág. 29, “a abertura de conta é sequencial, no sentido de constituir o ponto de partida para a celebração de numerosos outros negócios bancários …”. Num outro local (Direito Bancário, 2ª ed., pág. 501), identifica, como negócio subsequente, precisamente a convenção de cheque, ainda que esta fique sujeita ao assentimento do banqueiro”.
Por seu lado, José Maria Pires refere que, mediante o contrato de abertura de crédito, o banco assume o compromisso de disponibilizar dinheiro quando o beneficiário o exigir (Direito Bancário, vol. II, pág. 207).
[2] A avaliação do grau de diligência devido deve, aliás, ponderar-se a natureza da actividade bancária e o facto de ser exercida por entidades especialmente habilitadas para o efeito (cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 285).
Como refere Alberto Luís, in “O Problema da responsabilidade civil dos bancos por prejuízos que causem a direitos de crédito”, na ROA, ano 59º, pág. 910, a adaptação do critério de apreciação do grau de diligência deve reconduzir-nos não o modelo do bonus pater famílias, antes ao modelo do bonus argentarius.
[3] Direito do Crédito, pág. 13.
[4] Aliás, deveres recíprocos, como refere Sofia Galvão, in “Contributo para o estudo do contrato de cheque”, na ROA, ano 52º, pág. 79.
[5] Cfr. Sofia Galvão, local. cit., quando indica para o cliente a “obrigação de guardar cuidadosamente a caderneta de cheques e de dar imediatamente notícia de uma eventual perda, extravio ou roubo”.
Cfr. também o que, a este respeito, se refere no Ac. do STJ, de 11-3-99, CJSTJ, tomo I, pág. 133.
[6] Cfr. Sofia Galvão, quando refere a obrigação de zelar pelos interesses do cliente e, em concreto, o “dever de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados” (ob. cit., págs. 80 e 81).
Cfr. ainda o que se refere no Ac. do STJ, de 11-3-99, CJSTJ, tomo I, pág. 133.
[7] Ob. cit., pág. 910.
[8] Cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-6-97, CJ, tomo III, pág. 121.
[9] Sobre a matéria, Augusto Athayde, Curso de Direito Bancário, vol. I, pág. 490.
Cfr. ainda Saraiva Matias, Códigos e Normas de Conduta, Suplemento do BFDUL, 1997, sob o tema Direito Bancário, págs. 131 e segs. (150), e Direito Bancário, referindo nesta última obra que “as instituições de crédito devem dispor de meios técnicos adequados ao rigoroso controlo dos actos que praticam” e que “a remuneração dos seus actos já implica e tem em conta o risco que correm” (pág. 92).
Moitinho de Almeida, no local já citado, defende que o banco deve ter ao seu serviço, no exame de cheques apresentados a pagamento, pessoas altamente qualificadas para detectarem eventuais falsificações.
[10] Cfr. Sofia Galvão, quando se reporta ao “dever de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados o que “pode ser decisivo na determinação do suporte do risco de falsificações e de apresentação por um não titular” (ob. cit., pág. 86).
 Sobre o cumprimento de deveres do banqueiro numa situação semelhante, cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-6-97, CJ, tomo III, pág. 121.
[11] Em correspondência com o “dever da mais elevada competência técnica” a que alude Saraiva Matias, Direito Bancário, pág. 84.
[12] Ob. cit., pág. 102.
[13] Manual de Direito Bancário, 2ª ed., págs. 535 e 536.
[14] A obrigação de conferência dos documentos e, designadamente, das assinaturas apostas nos cheques, com as assinaturas do sacador registadas no Banco, constitui um dos elementares deveres de diligência assinalado no Ac. da Rel. de Lisboa, de 9-1-81, na CJ, tomo I, pág. 199, e que, no Ac. do STJ, de 10-11-93, CJSTJ, tomo III, pág. 130, levou a atribuir ao banco a responsabilidade pela reposição de quantia irregularmente levantada.
Cfr. ainda o Ac. do STJ, de 22-5-80, BMJ 297º/368, onde se faz apelo aos princípios gerais da responsabilidade civil, considerando-se o Banco responsável se agiu com culpa, ainda que leve, na verificação da veracidade da assinatura do sacador de cheque.
[15] A mesma solução foi afirmada no Ac. da Rel. de Lisboa, de 22-4-80, CJ, tomo II, pág. 230, num caso de falsificação de cheque.
Também no Ac. da Rel. de Lisboa, de 2-2-79, CJ, tomo I, pág. 129, se considerou ser o banco responsável, salvo se o depositante contribuir voluntária ou culposamente.
Este entendimento já fora assumido no Ac. da Rel. de Lisboa, de 24-7-68, na JR, 1968, pág. 744 e no BMJ 179º/205, aí se referindo que se o banco paga um cheque falsificado, em princípio, é ele que deve suportar o prejuízo resultante de tal pagamento, responsabilidade que só ficará afastada se, além de provar que agiu sem culpa, provar ainda que foi o procedimento culposo do depositante que tornou possível tal pagamento.
[16] Cfr. Alberto Luís, in “O Problema da responsabilidade civil dos bancos por prejuízos que causem a direitos de crédito”, na ROA, ano 59º, pág. 907.
[17] Fernando Conceição Nunes, servindo-se, para o efeito, da norma do art. 155º do Regime Geral das Instituições de Crédito, aprovado pelo Dec. Lei nº 298/92, de 31-12 (Recepção de depósitos e/ou outros fundos reembolsáveis, no Suplemento ao BFDUL, 1997, sob o tema Direito Bancário, pág. 61).
Acrescenta o mesmo autor que os depósitos são uma espécie de fundos reembolsáveis, disponibilidades monetárias cuja recepção origina a constituição de um dever de restituir a cargo da instituição de crédito expresso pelo saldo credor de uma conta aberta mediante contrato celebrado com o cliente. Nestes termos, o contrato de abertura de conta e a conta constituem o enquadramento jurídico e contabilístico dos diversos depósitos, permitindo unificá-los de modo aficarem sujeitos a um regime unitário (pág. 63).
No mesmo sentido Saraiva Matias, Direito Bancário, pág. 98.
[18] Manual de Direito Bancário, 2ª ed., pág. 405.
[19] Ob. cit., pág. 525.
No mesmo sentido Moitinho de Almeida, citado no Ac. do STJ, de 11-5-93, in Novos Estilos, 1993, nº 4, pág. 194, quando, numa situação derivada do desconto de cheques falsificados, afirma que, em princípio, só a instituição bancária é que é atingida e não o depositante que tem o direito de reaver montante igual ao que depositou.
A respeito da operação de transferência electrónica de fundos, com contornos algo semelhantes ao da falsificação de documentos, refere-se na Rev. da Banca, nº 2, de Abril de 1987, pág. 83, que, perante uma situação de fraude, “é difícil ao banco evitar que o prejuízo corra por sua conta se se verificar a existência de um débito na conta do cliente, sem que este tenha realizado qualquer operação. Neste caso, com efeito, o cliente não tem qualquer responsabilidade”. Considera ainda que o banco está em condições de repartir o risco por um “larguíssimo número de operações, enquanto o cliente que sofre um prejuízo excepcional não pode assegurar-se do mesmo modo”.
[20] Ob. cit., pág. 53.
[21] Ob. cit., pág. 335.
[22] Ob. cit., págs. 908 e 909.
[23] Ob. cit., pág. 913.
[24] Relativamente a quantias entregues ao banqueiro em depósito, ver por todos Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, págs. 104 e segs., 117 e segs., e 176 e segs., com citação de vasta doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira.
Cfr. ainda Antunes Varela, CC anot., vol. II, 4ª ed., pág. 862, onde refere que “não há dúvida de que é aplicável o disposto no art. 1144º: as coisas depositadas tornam-se propriedade do depositário”, concluindo que “em virtude da translação do domínio, tornam-se indirectamente aplicáveis ao depósito irregular as normas reguladoras do risco nos contratos de alienação com eficácia real (cfr. arts. 408º e 796º)”.
Simões Patrício, depois de afirmar que a “transferência para o depositário da propriedade (e risco) da coisa depositada” (ob. cit., pág. 18), acrescenta que no depósito irregular a obrigação de guarda é substituída pela obrigação de restituir, para concluir que “o depositante aliena o direito de propriedade e substitui-o pelo simples crédito à restituição do mesmo género e quantidade que entregou” (ob. cit., pág. 21).
[25] Como refere Menezes Leitão, aquele que suporta o risco “continua onerado com a sua contraprestação, de modo que o “seu perecimento não pode importar a extinção do direito à contraprestação (ob. cit., vol. II, pág. 121).
Cfr. ainda Galvão Teles (Direito das Obrigações, 6ª ed., págs. 478/479), para quem o risco transfere-se para o adquirente logo que o alienante lhe proporcione a satisfação do seu interesse, a qual pode consistir na transmissão do domínio ou na entrega do objecto.
[26] Cfr. o Ac. do STJ, de 11-3-99, CJSTJ, tomo I, pág. 133.
Discorda-se, assim, do que se decidiu no Ac. da Rel. de Lisboa, de 28-4-05, CJ, tomo II, pág. 114, quando, a respeito de uma situação semelhante de desconto de um cheque falsificado no valor de 20.000 contos, se afirma que, afastada a presunção de elidida a presunção de culpa que recai sobre o banco, deve ser o titular da conta a suportar os efeitos.