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ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário
1. A liberdade de expressão, nela incluindo o direito de crítica, é também uma forma de exercício da tão necessária participação activa na vida em sociedade e constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, podendo no entanto criar situações de conflito com bens jurídicos como o da honra pessoal. 2. Nas sociedades democráticas, a crítica a personalidades conhecidas, v.g. que exercem funções no dirigismo desportivo, seja a nível nacional ou local, quando agem nessa qualidade, tem limites mais amplos (do que a de um particular), na medida em que os seus actos estão sujeitos a um controlo atento das pessoas que compõem a respectiva comunidade, na qual exercem as suas funções
Texto Integral
(…) 4. Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, como vem sendo reafirmado, constante e pacificamente, pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores (cfr., por todos, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2ª Ed., Editorial Verbo, pág. 335; e Ac. do STJ de 24-03-99, in CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247), sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
E, de acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente, definindo o objecto da cognição deste Tribunal, cumpre fazer exame da questão de saber se os factos julgados provados configuram a prática, pelo arguido, do crime de difamação através da imprensa, que lhe vem imputado.
Sem embargo, como se advertiu em exame preliminar, entende-se que o recurso é de rejeitar, por manifesta improcedência (artº 420º, nº 1, do CPP).
Apreciemos pois, com a contenção recomendada no nº 3 do mesmo artº 420º, do CPP.
Ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, afigura-se evidente que a sua argumentação não pode proceder.
Vejamos.
Sem manifestar discordância relativamente ao julgamento sobre a matéria de facto efectuado na instância, o recorrente defende, em síntese, que o tribunal recorrido incorreu em erro no julgamento (de direito) da questão de saber se a conduta do arguido configura a prática de um crime de difamação através da imprensa.
Vejamos os interesses que, sendo bastas vezes conflituantes, importa, caso a caso, sopesar.
O artº 26º, nº 1, da Constituição consagra, entre os vários direitos de personalidade, o direito “ao bom nome e reputação”.
O bem jurídico-constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) de par com um lado social (a reputação ou consideração), fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros.
A tutela penal desse direito é, como sabido, assegurada, maxime, pelos arts. 180º e 181º, do C. Penal.
Dispõe o nº 1 do artº 180º, do C. Penal, que, quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido (...), sendo a pena agravada quando o crime for cometido através de meio de comunicação social (artº 183º, nº 2) e ainda quando, como é o caso, a vítima for presidente da Federação de … de Portugal, pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública, no exercício das suas funções ou por causa delas [arts. 184º, 132º, nº 2, al. j) e 386º, nº 1, al. c)].
Na lição do Prof. Beleza dos Santos, “a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ter um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração, ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos, de o não julgar um valor negativo” (In “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 92º, pág. 166. Cfr. A. Silva Dias, “Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias”, 1989, pp. 17/18; Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, 1996; J. Figueiredo Dias, “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal de Imprensa Português”, RLJ Ano 115º, pp. 100 e segs.; José de Faria Costa, “A informação, a honra, a crítica e a pós-modernidade (ou os equilíbrios instáveis do nosso desassossego)”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 11º, fasc. 1º, pp. 144 e segs. e no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, 1999, pp. 629 e segs.) – vale por dizer que o bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, sendo o seu conteúdo preenchido, basicamente, pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.
Está em causa, mais do que tudo, a pretensão de se não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.
Como assim, não pode considerar-se penalmente relevante a mera susceptibilidade pessoal. E não pode confundir-se a injúria com a indelicadeza, com a falta de polidez, com a grosseria, comportamentos que relevam não mais do que na dita falta de educação. Uma conduta pode ser censurável em termos éticos, de relação, até profissionais e não ser censurável em termos penais, pois que não integra a tipicidade de qualquer crime, designadamente dos crimes contra a honra aqui em questão.
Por outro lado, tem de reconhecer-se a relatividade que envolve a acção típica, pois que, à luz do que vem de expor-se, o carácter injurioso de determinada palavra, frase ou acto, está fortemente dependente do lugar, do ambiente em que ocorre, das pessoas entre as quais ocorre, do modo como ocorre. Está dependente, até, da classe social do arguido e do ofendido, do respectivo grau de educação e de instrução, do seu relacionamento, dos seus hábitos de linguagem.
Dispõe o artº 30º, da Lei de Imprensa (Lei nº 2/99, de 13/01) que:
“1 - A publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.
2 - Sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
A liberdade de expressão e de informação merece, de igual modo, consagração constitucional.
Com efeito, nos termos do disposto no artº 37º, nº 1, da Constituição, “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
Por outro lado, o artº 38º, nºs 1 e 2, da Constituição, garante a liberdade de imprensa, que implica, desde logo, a liberdade de expressão e de criação, por parte dos jornalistas.
Como acima se deixou advertido, são frequentes as tensões e as tricas entre, de um lado, o direito à honra e, do outro, os direitos de expressão do pensamento e de informação, sendo certo que todos configuram direitos fundamentais das pessoas, como tal inscritos na sistemática constitucional.
E a própria Constituição reconhece a existência de limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como ao exercício do direito de informar e, por tal via, ao exercício da liberdade de imprensa, preceituando (artº 37º, nº 3) que as infracções cometidas no exercício destes direitos (de expressão e de informação) ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente.
A respeito deste segmento normativo, salientam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Volume I, 4ª edição revista, 2007, pág. 575, que, “do nº 3 conclui-se, porém, que há certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a punição criminal ou administrativa. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal. Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom nome e reputação (cfr. art. 26º); a injúria e a difamação ou o incitamento ou instigação ao crime (que não se deve confundir com a defesa da descriminalização de certos factos) não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de expressão ou de informação”.
E, não se pode esquecer, como tem vindo repetidamente a afirmar o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática” (caracterizada ainda pelo “pluralismo, tolerância e espírito de abertura”) “e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um” [cfr. entre outros, os acórdãos do TEDH de 28-09-00, no caso Lopes da Silva c. Portugal (que pode ser consultado quer na RPCC, Ano 11º, fasc. 1º, pp. 131-155, com anotação de José Faria Costa que participou como conselheiro do Governo Português, quer na RMP nº 84, Out/Dez 2000, pp. 179-191, com comentário de Eduardo Maia Costa); de 30-03-04, no caso Radio France e outros c. França; de 29-02-00, no caso Fuentes Bobo c. Espanha; de 21-03-02, no caso Nikula c. Finlândia; de 29-11-05, no caso Urbino Rodrigues c. Portugal; e de 18-04-06, no caso Roseiro Bento c. Portugal (consultados em www.echr.coe.int)].
Uma das manifestações da liberdade de expressão é precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica, nomeadamente, a nível desportivo.
Manuel da Costa Andrade, in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma Perspectiva Jurídico-Criminal”, Coimbra Editora, 1996, pág. 269, destaca na “liberdade de expressão o direito que a todos assiste de participar e tomar posição (designadamente sob a forma de crítica) na discussão de todas as coisas e de todas as questões de interesse comunitário”.
Aliás, a liberdade de expressão, nela incluindo o direito de crítica, é também uma forma de exercício da tão necessária participação activa na vida em sociedade.
Certo que o “exercício do direito de crítica” pode criar situações de conflito com bens jurídicos como o da honra pessoal.
Mas, envolvendo o exercício da liberdade de expressão, reconhecido a qualquer pessoa, deveres e responsabilidades, entre eles, no domínio dos direitos de personalidade, o respeito pelo bom nome e reputação da pessoa visada, há a obrigação de evitar expressões gratuitamente ofensivas ou desproporcionadas atento o contexto global em que são proferidas.
Claro que, nas sociedades democráticas, a crítica a personalidades conhecidas, v.g. que exercem funções no dirigismo desportivo, seja a nível nacional (como é o caso da crítica feita ao Presidente da Federação de …(modalidade desportiva) de Portugal, ou local, quando agem nessa qualidade, tem limites mais amplos (do que a de um particular), na medida em que os seus actos estão sujeitos a um controlo atento das pessoas que compõem a respectiva comunidade, na qual exercem as suas funções [neste sentido, embora versando a crítica política, entre outros, Ac. do TEDH de 8-07-86, no caso Lingens c. Áustria; Ac. do Tribunal Constitucional nº 113/97, acessível em www.tribunalconstitucional.pt; e Ac. do STJ de 13-01-05, in RMP nº 101, Jan-Mar 2005, pág. 141-159 (com comentário de Eduardo Maia Costa). Também, Costa Andrade, ob. cit., pág. 308, salienta, que “o controlo público das public figures é o fundamento irrenunciável da vida política em liberdade. Tudo aqui se conjuga no sentido de uma mais acentuada redução da dignidade penal e da carência de tutela penal da honra”].
Revertendo ao caso em apreço.
A questão coloca-se em torno das expressões utilizadas pelo arguido quando, ao referir-se ao assistente, na qualidade de presidente da Federação de …de Portugal, escreve no artigo intitulado “O absurdo no …”: “…português chegou a um absurdo absolutamente inaceitável (…). S., o presidente da Federação, tem um trabalho de mérito e isso ninguém lhe tira. Mas já não estamos no tempo dos déspotas iluminados e já ninguém está para aturar decisões deste calibre a poucos meses de o país receber o Mundial da modalidade”; e mais à frente “S. exorbita dos seus poderes de forma evidente. Já não haverá neste país nenhuma autoridade acima do presidente da Federação Portuguesa de …”. E no artigo, subordinado ao título “O destino dos ditadores”: “O presidente da Federação é um pequeno ditador que fez o percurso clássico: primeiro conseguiu ser um factor de união e desenvolvimento mas, como percebeu os sinais dos tempos, pelo medo de perder todo o poder, vai assistir à queda inevitável do seu império. (…), mas o seu império só pode ter os dias contados”.
O tribunal “a quo” ponderou nos seguintes (transcritos) termos:
“Conforme resulta dos factos provados o arguido escreveu os ditos artigos de opinião num contexto de um fortíssimo conflito, que se vinha arrastando desde há tempo, entre a Federação de …de Portugal a Liga Profissional de …e os Clubes seus fundadores, potenciado pela aproximação do Mundial de …que veio a ocorrer em Janeiro de 2003. Conflito esse, que esteve na origem de inúmeros artigos e intervenções na comunicação social, por parte de jornalistas, dirigentes desportistas e atletas, com vozes a pugnar pela intervenção directa do Governo no que chegou a ser considerado um escândalo público e conduziu a manifestações de pessoas e entidades ligadas ao mundo do desporto e à intervenção do poder politico, transparecendo o entendimento comum de que tal estado de coisas podia afectar a modalidade, o trabalho das selecções e o Mundial de 2003. Na base do conflito estavam vários aspectos, tais como o processo de criação/formação da Liga Profissional de …a dificuldade na obtenção de verbas por parte de algumas Associações de …junto da Federação de …de Portugal, a metodologia para apurar quem iria representar Portugal na Liga dos Campeões 2003/2004 a não inscrição dos Clubes fundadores da Liga na Federação com os reflexos daí decorrentes nomeadamente na não participação no Mundial de …de atletas prestigiados. Frequentemente, nas diferentes intervenções então ocorridas na comunicação social, com origem em jornalistas, dirigentes e personalidades ligadas ao meio desportivo, incluindo atletas, surgia o assistente na qualidade de Presidente da Federação como o protagonista do conflito que opunha a Federação à Liga e aos Clubes seus fundadores, nas quais se destacava a referência à sua inflexibilidade.
Foi neste quadro que o arguido, que acompanhava de perto o estado de “cisma” instalado naquele ramo de desporto nacional, contestando a postura que considerava centralizadora, prepotente e desadequada do Presidente da Federação escreveu os referidos artigos deixando claro que os métodos e decisões adoptadas pelo mesmo conduziriam inevitavelmente ao desmoronar de um império, de uma época porque os tempos de mudança não eram compatíveis com tal estado de coisas, sem, contudo, deixar de salientar em ambos os artigos o papel relevante e mesmo de mérito que o assistente tinha desempenhado à frente da Federação.
À data, estava ao alcance de qualquer leitor do “X.”, jornal desportivo, perceber o sentido dos ditos artigos de opinião que não surgiam desgarrados, antes se inseriam numa temática que estava na ordem do dia, com grande ressonância, a ser objecto de intervenção dos mais variados quadrantes, desde os desportivos aos políticos, com manifestações públicas de preocupação pela modalidade e pela imagem do país.
Ora, ocupando o assistente o cargo de Presidente da Federação e sendo uma das figuras que surgia mais controversa em todo o processo que opôs a Federação à Liga, é manifesto que o seu desempenho estaria sempre sujeito a sindicância por parte dos variadíssimos sectores e como tal à critica, designadamente dos que preconizavam um diferente “caminho” para a modalidade, como era o caso do arguido, que estava muito longe de se mostrar isolado nesse seu entendimento. É inevitável que quem desempenha determinadas funções de interesse ou utilidade públicos se sujeita a ver a sua actividade profissional e/ou institucional sindicada pelos cidadãos, que tem de ter o direito de os escrutinar e criticar porque tal pertence ao núcleo irredutível do direito fundamental de expressão do pensamento.”Em qualquer Estado de direito democrático é constitucionalmente garantido a todo o cidadão o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio, bem como o direito de informar sem impedimentos nem discriminações, direitos que se traduzem na liberdade de criação, discussão e critica” – cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 24.3.2004, CJ, Ano XXIX, T. II, p. 46 e ss.
Como refere Costa Andrade “Também o exercício do direito de critica, intimamente associado à liberdade de imprensa, tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra e cuja relevância jurídico – penal está à partida excluída por razões de atipicidade.
Tal vale designadamente para os juízos de apreciação e valoração critica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc. ou sobre prestações conseguidas no domínio do desporto e do espectáculo. Segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva – isto é: enquanto a valoração e censura criticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores – aqueles juízos caem já fora da tipicidade de incriminações como a Difamação. Já porque não atingem a honra pessoal do cientista, artista ou desportista, etc., já porque não atingem com a dignidade penal e a carência da tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Num caso e noutro, a atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do critico, não havendo, por isso lugar à busca da cobertura de uma qualquer dirimente da ilicitude” – cf. Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p. 232 e ss.
Citando o mesmo autor pode ler-se no recente Acórdão do STJ de 18.1.2006 “Mais entende aquele insigne Mestre de Coimbra que a atipicidade da critica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho politico de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento. Por outro lado, entende que a atipicidade da critica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de critica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do critico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva. Defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da critica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração critica seja adequada aos pertinentes dados de facto” – cf. CJ, ASTJ, Ano XIV, T. I, p. 166 a 168 e no mesmo sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24.3.2004, CJ, Ano XXIX, T. II, p. 46 e ss.
No caso em apreço já nos referimos ao contexto em que surgiram os artigos de opinião do arguido, os quais longe de se mostrarem desgarrados aparecem no seio do crescendo de contestação de que foi alvo, também, o Presidente da Federação de …de Portugal, na dialéctica que opôs a Federação à Liga. Vale, por isso, dizer que qualquer leitor minimamente atento aos assuntos desportivos atingia o alcance dos artigos escritos pelo arguido (profissional do jornalismo que vinha acompanhando de perto o assunto), inseridos numa corrente de opinião que denunciava a condução de aspectos relevantes do “processo” relativo ao referido desporto (assunto que estava na a ordem do dia) por parte do Presidente da Federação, designadamente pela intolerância e inflexibilidade que, no entendimento daqueles, demonstrava.
A expressão “déspota iluminado” quando utilizada no século XXI aplicada a uma personalidade coeva, é claramente metafórica.
Uma metáfora traduz a comparação de uma imagem com um conteúdo implícito conhecido.
Dado o desfasamento entre o tempo natural do conceito de “despotismo iluminado” (século XVIII) e o momento concreto da sua utilização no artigo em causa, trata-se claramente de uma formulação desse tipo, de natureza literária, não real mas meramente intelectual.
No caso a imagem psicológica que se toma por objecto de comparação é a de uma personalidade existente. A metáfora é a do déspota iluminado.
Convém por isso olhar o conteúdo desta última.
A figura do déspota iluminado – no caso metaforicamente convocada – é a do governante que exerce o poder de que dispõe na convicção de que o faz no sentido de atingir a verdade, ou, se se quiser, na convicção de que tal caminho é o único correcto para a atingir. A verdade significa aqui a perfeição, a qual em termos políticos ou sociais se identifica com o bem supremo comum. Foi este o modelo político característico de várias monarquias europeias do século XVII e XVIII, entre as quais a portuguesa na segunda metade do século XVIII.
O despotismo iluminado não significa portanto, que o detentor do poder o exerça de modo arbitrário. O déspota só é déspota porque está convencido de que apenas existe uma única verdade (bem comum possível). Não pode por isso transigir com outras verdades, em nome do interesse do povo e por isso impõe o seu poder. É iluminado porque entende que essa verdade é o resultado da reflexão (inteligência) que o ilumina e lhe chega por esforço pessoal ou através do apoio de conselheiros, mas não como resultado de caprichos ou egoísmos pessoais. Em suma: o déspota iluminado não pode ser visto, nem de longe nem de perto como um bandido ou um opressor, mas apenas alguém que está genuinamente convencido de que o interesse dos outros deve ser prosseguido dentro de certo caminho. Quando o liberalismo terminou com o despotismo iluminado, fê-lo, não porque discordasse dos seus pressupostos intelectuais mas apenas porque entendeu que a verdade deveria ter como intérprete o povo, que escolhia os seus representantes sendo estes e não o rei, a fazer as leis. Recusava o rei como intérprete da verdade, mas não recusava a ideia de base. Recusou a expressão “despotismo iluminado” porque ao poder originário individual e não eleito, preferiu o poder originário de base colectiva e eleito. Tudo o resto ficou muito igual.
No artigo em causa trata-se de uma metáfora que no máximo consentiria a interpretação de que o assistente enquanto Presidente da Federação era pessoa convicta de que a sua verdade era absoluta e que tal convicção fora obtida com base em reflexão pessoal. Só num plano intelectualmente menorizado se poderia aceitar que chamar a alguém déspota iluminado era insulto. Quando muito um liberal democrata poderá não gostar do conceito por óbvias razões políticas. Mas, alguém, moderno sentir-se insultado por o acusarem de mandar com forte convicção de que a sua verdade é a correcta e se funda na razão, é pouco aceitável.
Quanto à referência a ditador, no contexto em que foi utilizado, não é mais do que uma repetição do sentido de déspota. Trata-se de alguém que manda, ouvindo pouco ou nada os que clamam contra o seu mando. Estes, na verdade, criticam o regime, não o título e sendo o título legítimo, o exercício politicamente pode ser criticado. E em regimes democráticos quem exerce cargos políticos (os cargos em organizações de pessoas são sempre políticos), ainda que a nível menor, deve saber que pode ser confrontado com os discordantes de modo tão feroz quanto a lei o não proíba.
Poder-se-á argumentar que o se deixou dito relativamente ao sentido das expressões utilizadas só está ao alcance dos eruditos e que não serão estes, por via de regra, os leitores mais comuns dos jornais desportivos. Contudo, tendo presente a conjuntura à data em que os artigos foram publicados, a onda de contestação em que se inseriram, com clamores provenientes de diversos sectores da sociedade, o único sentido razoável que lhes podia ser atribuído (no seio dos respectivos artigos) não pode ser outro que não o de um mando convicto, com muitas certezas, pouco ou nada flexível, surdo a vozes divergentes. E para tanto não é preciso erudição! Basta razoabilidade e bom senso.
Por último diremos que o facto de o assistente enquanto Presidente da Federação de …de Portugal estar estatutariamente vinculado às deliberações tomadas em Assembleia – Geral não assume relevância no caso, já que as criticas que vinham a lume, dirigidas à Federação, com justiça ou sem ela, recaiam sobre o seu Presidente, o que é compreensível, na medida em que quando se lidera uma organização, os deméritos, mas também os méritos, com fundamento ou sem ele, acabam por projectar-se no líder.
Finalmente, com razão ou sem ela, não nos cabe a nós sindicar, compreende-se que o assistente enquanto Presidente da Federação de …de Portugal não tenha gostado de ver posto em causa o seu desempenho, mas quem exerce funções públicas ou de interesse público, sendo por isso figura pública, tem de saber conviver com tais ofensas “atípicas” que no mínimo geram incomodidade. “Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é segundo a sã opinião da generalidade das pessoas, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais” – cf. Beleza dos Santos, Algumas Considerações Jurídicas sobre crimes de Difamação e Injúria, RLJ, Ano 92, p. 165 e 166.
Conclui-se, assim, pela atipicidade das expressões em causa nos artigos de opinião escritos pelo arguido, as quais apreciadas no respectivo contexto e na conjuntura em que foram produzidas, dirigidas ao assistente enquanto Presidente da Federação, sendo por conseguinte incontornável a sua natureza de figura pública, se inscrevem no exercício do direito de critica, mais contundente é certo, mas insusceptíveis de causar ofensa jurídico – penalmente relevante, considerando o sentido que à luz dos vários critérios acima explanados, designadamente de razoabilidade e bom senso lhes deve ser atribuído”.
Como acima se deixou referido, atentos os factos sedimentados, como provados, no tribunal recorrido, as asserções que vêm de reproduzir-se afiguram-se inatacáveis e desmerecem mais desenvolvimento a elas se aderindo por inteiro.
Quanto ao pedido cível, como sabido, a indemnização por perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos; sendo a nível processual regulada pela lei processual penal (cfr. neste sentido, entre outros, o Ac. da Relação de Lisboa de 26-10-00, CJ, Ano XXV, Tomo IV, pág. 154).
A competência do tribunal penal para conhecer do pedido cível conexo com a acção penal, decorre apenas de responsabilidade civil extracontratual do agente que pratique facto ilícito e culposo (arts. 129º, do C. Penal e 483º, nº 1, do C. Civil) [cfr. “Assento” nº 7/99, de 17-06-99, in DR, série I-A, de 3-08-99, fixando jurisprudência no sentido de que “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.”].
Para existir responsabilidade civil do agente, têm que estar preenchidos os pressupostos contidos no artº 483º, nº 1 do C. Civil, a saber:
- a existência de um facto (voluntário) do lesante;
- a ilicitude do facto;
- o nexo de imputação do facto ao lesante;
- a existência de dano;
- e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 2ª Edição, Volume I, pág. 403 e segs.; Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 4ª Edição, pág. 364 e segs.; Antunes Varela e Pires de Lima, “Código Civil Anotado”, I vol., 4ª Ed., Coimbra Editora, 1987, pág. 471).
Ora, faltando o pressuposto da ilicitude dos factos praticados pelo arguido, falece a obrigação de indemnizar, impondo-se, como se decidiu na sentença recorrida, a sua absolvição do pedido cível formulado pelo recorrente.
O recurso é, assim, de rejeitar, sendo clara a sua inviabilidade, pelas razões supra expostas.