I - Embora destituído de personalidade jurídica dispõe o estabelecimento individual de responsabilidade limitada (EIRL), porque património autónomo e por força do artigo 6 do CPC de personalidade judiciária.
II - Para que um estabelecimento comercial ou industrial seja considerado EIRL, terá de constituir-se por escritura e a sua firma incluirá sempre a expressão "estabelecimento individual de responsabilidade limitada " ou a sigla "EIRL".
III - Na EIRL o titular está bem determinado – é o comerciante em nome individual; no n.º 1 do art.º 1º do DL n.º 248/86, de 25 de Agosto, estipula-se claramente que “(qualquer) pessoa singular que exerça ou pretenda exercer uma actividade comercial pode constituir para o efeito um estabelecimento individual de responsabilidade limitada” e, no n.º 3 do mesmo normativo, que “(uma) pessoa só pode ser titular de um único estabelecimento de responsabilidade limitada”.
IV - O objectivo que se pretende alcançar com esta situação jurídica (estabelecimento individual de responsabilidade limitada é o enunciado no comando normativo citado em primeiro lugar (n.º 1 do art.º 11º do DL n.º 248/86), a saber: limitar os riscos decorrentes da álea inerente a uma concreta actividade comercial ao exacto e concreto património afectado a essa actividade ou estabelecimento.
FG
O processo é o próprio e encontra-se isento de nulidades que total ou parcialmente o invalidem.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias.
Excepção dilatória de ilegitimidade passiva.
A R., na contestação defende-se por excepção, invocando a excepção de ilegitimidade passiva.
Alega, para o efeito, que na proposta de minuta de contrato de concessão de incentivos, bem como dos restantes documentos juntos aos auto pelo A. resulta que os contraentes são o A. e “Ana EIRL”, pessoa colectiva como o n.°973434457, constituída por escritura pública de 08/01/1996.
Defende, por isso, que a acção deveria ter sido intentada contra Ana EIRL e não contra Ana, pessoa singular e particular, devendo a contestante ter sido citada na qualidade de gerente e legal representante do referido EIRL.
Invoca, para o efeito, o disposto nos artigos 5° e 6° do Cód. de Processo Civil.
Invoca doutrina que defende que o EIRL, pese embora o facto de constituir um património autónomo, não possui personalidade judiciária, pelo que não é susceptível de ser parte processual nomeadamente assumindo a posição de réu, pelo que a demanda do EIRL conduziria à procedência da excepção dilatória de falta de personalidade judiciária
Ainda que se admitisse a demanda do EIRL, continuaria a não se verificar o pressuposto previsto no artigo 6.º alínea a) do Cód. de Processo Civil, isso é, a indeterminação do património autónomo.
E de acordo com o n.º 2 e 3 do artigo 26.º o interesse em contradizer exprime-se pelo prejuízo que advenha da procedência da acção, sendo que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo A.
No caso o A. invoca, como fundamento do pedido formulado, a celebração de contrato com a R. de 13 de Agosto de 1997 denominado de "concessão de incentivos" (IDL).
O A. junta o contrato em referência do qual decorre que a
PROPOSTA DE MINUTA DE CONTRATO DE CONCESSÃO DE INCENTIVO (IDL)
Banco Comercial Português, pessoa colectiva no 501525882, com sede na Rua Júlio Dinis, 705,719 Porto, representada por Francisco António Caspa Monteiro e Francisco Pardal Correia, na qualidade de procuradores, adiante apenas designado por Banco
E
Ana, pessoa colectiva no 973434457, constituída por escritura pública de oito de janeiro e mil novecentos e noventa e seis, lavrada nas notas do Cartório Notarial de Oeiras, com sede na Avenida D. José I, 43 cv, Oeiras, com o capital social de Esc: 400.000$00, e totalmente realizado, representada por Ana, na qualidade de Gerente, e no uso de poderes legais para este acto, consoante prova bastante que exibiram... "
A relação jurídica configurada pelo A. na p.i tem como sujeitos o A: “Banco Comercial Português” e Ana pessoa colectiva no 973434457, constituída por escritura pública de oito de Janeiro e mil novecentos e noventa e seis, lavrada nas notas do Cartório Notarial de Oeiras, com sede na Avenida D. José I, 43 cv, Oeiras, com o capital social de Esc: 400.000$00, e totalmente realizado, representada por Ana, na qualidade de Gerente, e no uso de poderes legais para este acto.
Logo, de acordo com a relação jurídica configurada pelo A, a R. enquanto pessoa singular é parte ilegítima na presente acção.
No entanto, justifica o A, na réplica a propositura da presente acção contra Ana, por a demanda do EIRL conduzir à procedência da excepção dílatória de falta de personalidade judiciária.
Na jurisprudência publicada sobre a matéria, no Ac. do T. da Relação de Lisboa de 1999/02/13 (in www.dgsi.pt) defende-se, que o EIRL, embora destituído de personalidade jurídica, porque património autónomo e por força do artigo 6° e 7° do Cód. de Processo Civil e 3° n° 3 e 3 do Dec.-Lei n.º 248/86, de 25 de Outubro, dispõe de personalidade judiciária.
E na consulta feita não detectámos decisão que contrariasse do decidido no acórdão citado que data de 1992.
Por outro lado, Miguel Teixeira de Sousa defende a possibilidade de o EIRL, enquanto património autónomo ser dotado de personalidade judiciária (in Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, 1997,2" Ed., 138-139) ainda que apoiado na decisão proferida no citado acórdão
A ilegitimidade passiva singular é insanável a sua procedência conduz à absolvição do R. da instância (cfr. art.288° alínea d), 494.º alínea e) do Cód. de Processo Civil).
Nestes termos e com tais fundamentos julgo procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva em consequência absolvo a R. da instância.
Custas a cargo do A. (cfr. art. 446.º n.º 1 e 2 do Cód. de Processo Civil)» (sic - fls 100 a 102 dos autos).
Inconformada, a sociedade bancária Autora deduziu recurso contra essa decisão, pedindo que seja «…dado provimento ao presente recurso e, em consequência
- ser revogada a douta sentença;
- ser a Ré considerada parte legítima nos presentes autos» (fls 122), e formulando, para tanto, as 6 conclusões que se encontram a fls 122, nas quais, em síntese, invoca que:
“A) O património autónomo não tem personalidade jurídica e apenas goza de personalidade judiciária caso se enquadre na previsão do art. 6º do Cód. Proc. Civil;
B) Nos termos do art. 6º do CPC, o património autónomo para ter personalidade judiciária tem de ter o seu titular indeterminado.
C) No caso de EIRL (?) o titular está determinado – é a Ré aqui agravada, sendo certo que aquele encontra-se encerrado/dissolvido (cfr. documento n.º 8 junto com a contestação pela Ré)
…
F) …a douta sentença violou o disposto no art. 5º, 6º e 288º todos do Cód. Proc. Civil...” (sic).
A Ré apresentou contra-alegações (fls 128 a 134), pugnando pela confirmação da decisão recorrida, e a fls 140 o Mmo Juiz a quo sustentou o despacho agravado.
2. Considerando as conclusões das alegações da recorrente (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso – n.º 3 do art.º 668º do CPC e artºs 671º a 673º, 677º, 678º e 684º, maxime nºs 3 e 4 deste último normativo, e 661º n.º 1, todos do mesmo Código) a única questão a decidir nesta instância de recurso é a seguinte:
- os Estabelecimentos Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRL) gozam ou não de personalidade judiciária ?
E sendo esta a questão que compete dirimir, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por terem sido cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 749º e 700º a 720º do CPC).
3. A decisão recorrida encontra-se transcrita, na íntegra, no ponto 1. do presente acórdão, sendo os factos a considerar nesta instância de recurso os enunciados nesse despacho saneador/sentença, para o qual se remete.
4. Discussão jurídica da causa.
Os Estabelecimentos Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRL) gozam ou não de personalidade judiciária ?
4.1. Ao iniciar a discussão jurídica da causa, importa clarificar duas questões, uma delas essencial para a definição do objecto do recurso cujo mérito cumpre apreciar:
a) o acórdão da Relação de Lisboa citado na decisão recorrida está datado de 13 de Fevereiro de 1992, como é referido no 5º parágrafo de fls 102, e não de 1999 como, por manifesto lapso, se escreveu no 4º parágrafo;
b) na réplica, a Autora não invoca, como agora faz nas suas alegações de recurso (e na conclusão C) das mesmas, que a legitimidade processual da Ré adviria do facto de o EIRL por ela constituído estar encerrado/dissolvido (sendo certo que, o que se sublinha, a compreensão/extensão lógica desses dois conceitos jurídicos não é coincidente).
Ora, como é consabido e constitui Jurisprudência esmagadoramente uniforme, a circunstância de uma determinada matéria ou argumentação só ter sido invocada em sede de recurso, não tendo sido objecto de pronúncia na 1ª instância, obsta terminantemente a qualquer tomada de posição do Tribunal Superior quando ao fundo material da questão, uma vez que, não tendo sido invocado que o despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia (que não é), às Relações cumpre sindicar o que foi apreciado e decidido nos Tribunais de 1ª instância e não o que o não foi.
Deste modo, o que irá ser julgado nesta Relação é se, pelo facto de o contrato dos autos ter sido celebrado pela Ré na qualidade de representante legal de EIRL por ela constituído e tão só por este motivo, esta se torna ou não parte ilegítima para ser demandada no processo.
E, clarificadas estas questões, cabe, então, determinar se pode ou não manter-se, como foi afirmado na decisão que aqui cumpre sindicar, que está verificada nos autos a excepção de ilegitimidade passiva invocada na contestação.
4.2. Pode ler-se no n.º 1 do art.º 11º do DL n.º 248/86, de 25 de Agosto, que “(pelas) dívidas resultantes de actividades compreendidas no objecto do estabelecimento individual de responsabilidade limitada respondem apenas os bens a este afectados”.
E é exactamente a possibilidade limitar a responsabilidade do comerciante em nome individual pelas dívidas contraídas na exploração da sua empresa que está na base e constitui o objectivo da «inovação legislativa» (para citar o preâmbulo do DL n.º 248/86, de 25 de Agosto – ponto 3) consubstanciada no aludido Decreto-Lei.
Mas, como é claramente afirmado nesse Preâmbulo, sem atribuir ao «novo instituto» (idem – pontos 1 e 10) personalidade jurídica, concebendo-o, antes, como um «património autónomo ou de afectação especial» (idem - ponto 7).
Antes de prosseguir, convirá recordar o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Fevereiro de 1992 citado na decisão recorrida (n.º convencional JTRL00009472 – relator Martins Ramires), o qual é o seguinte:
“I - Embora destituído de personalidade jurídica dispõe o estabelecimento individual de responsabilidade limitada (EIRL), porque património autónomo e por força do artigo 6 do CPC de personalidade judiciária.
II - Para que um estabelecimento comercial ou industrial seja considerado EIRL, terá de constituir-se por escritura e a sua firma incluirá sempre a expressão "estabelecimento individual de responsabilidade limitada " ou a sigla "EIRL".
III - Não admitida pela nossa lei a constituição de sociedades unipessoais vedada está a figura da sociedade irregular unipessoal.”
A este entendimento opõe a doutrina o texto da alínea a) do art.º 6º do CPC – “Têm ainda personalidade judiciária …(a) herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado”.
E na EIRL, sem margem para dúvidas, o titular está bem determinado – é o comerciante em nome individual; no n.º 1 do art.º 1º do DL n.º 248/86, de 25 de Agosto, estipula-se claramente que “(qualquer) pessoa singular que exerça ou pretenda exercer uma actividade comercial pode constituir para o efeito um estabelecimento individual de responsabilidade limitada” e, no n.º 3 do mesmo normativo, que “(uma) pessoa só pode ser titular de um único estabelecimento de responsabilidade limitada”.
É a essa apenas aparente contradição que cabe dar resposta.
4.3. As regras de que o julgador tem obrigatoriamente que servir-se para proceder à interpretação das normas que, todas e em conjunto, compõem o Ordenamento Jurídico do país, encontram-se nos três números do artigo 9º do Código Civil, sendo logicamente incoerente, rectius, inaceitável afirmar que uma é mais importante que as outras.
Ou seja, vale tanto exigir que a conclusão que se pretende ser a do Legislador tenha na letra da Lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa (n.º 2), como impor que “(na) fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º 3).
A solução do caso pode e deve ser encontrada na “Exposição de motivos/Preâmbulo” do já antes referido DL n.º 248/86, de 25 de Agosto.
E, lendo com atenção esse texto, o que se verifica é que o objectivo que se pretende alcançar com a criação do novo instituto é o enunciado no comando normativo citado em primeiro lugar (n.º 1 do art.º 11º do DL n.º 248/86), a saber: limitar os riscos decorrentes da álea inerente a uma concreta actividade comercial ao exacto e concreto património afectado a essa actividade ou estabelecimento.
Não foi sem razão que o Legislador optou por dar a esta situação jurídica a denominação estabelecimento individual de responsabilidade limitada e não empresa individual de responsabilidade limitada (v. ponto 10 do preâmbulo do DL n.º 248/86, de 25 de Agosto).
E para alcançar esse desiderato não se torna necessário (isto é, não se justifica eticamente à luz da boa fé, dos bons costumes e dos fins social e económico do direito em causa – art.º 334º do Código Civil) atribuir personalidade judiciária a estes inequívocos patrimónios autónomos.
4.4. Nestes termos e com estes fundamentos, merece total provimento o agravo deduzido pela Autora contra o despacho de fls 100 a 102 que cumpria sindicar, o qual aqui se revoga, decretando, em sua substituição que a Ré é parte legítima para ser demandada nos presentes autos, devendo a acção prosseguir em conformidade com o que aqui se determina.
O que, sem necessidade de uma mais profunda argumentação justificativa, lógica ou jurídica, aqui se declara e decreta.
Custas pela agravada ANA MARIA ARRABAÇA PEREIRA DE OLIVEIRA DIAS.
Lisboa, 2007/12/04
(Eurico José Marques dos Reis) (Paulo Jorge Rijo Ferreira)
(Afonso Henrique Cabral Ferreira)