REVOGAÇÃO
CHEQUE
RECUSA DE PAGAMENTO
ALEGAÇÕES
MATÉRIA DE FACTO
Sumário

Não pode, pois, ser atendida a alegação de matéria de facto feita em sede de alegações, nem podem ser admitidos os documentos oferecidos para prova dessa alegação.
Sendo seguro que, nos termos do art. 32 da LUCH, a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo, é igualmente seguro que
A revogação do cheque pelo sacador, com invocação de falta ou vício na formação da vontade, não é fundada em justa causa.
A recusa de pagamento de um cheque dentro do prazo de apresentação, fundada em simples revogação, é ilícita. O entendimento de que estaria na disponibilidade do Banco sacado acatar, ou não, a ordem de revogação não é compatível com a letra do referido art. 32.º da LUCH, nem com a dos demais artigos da mesma Lei que regulam os procedimentos relativos à apresentação dos cheques a pagamento, nem com qualquer outra norma ou princípio jurídico.
(Sumário o Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A, Lda., com sede na Amora, propôs a presente acção declarativa sob a forma ordinária contra B, Lda., e Banco, S.A..
Pediu a condenação da 1.ª R. no pagamento da quantia de € 21 231,61, acrescida de juros de mora calculados à taxa de juro comercial, no valor de € 1 216,65 e de juros vincendos até efectivo e integral pagamento e a condenação da 2.ª R., solidariamente com a 1.ª, no pagamento da quantia de € 9 695,22, acrescida de juros de mora calculados à taxa de juro comercial no valor de € 301,47 e nos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese:
- No exercício da sua actividade e a solicitação da 1ª R., vendeu e entregou diverso material, no valor de € 21 231,61;
- Para pagamento deste montante, a 1ª R. emitiu vários cheques, tendo todos eles sido devolvidos com fundamento em falta ou vício na formação da vontade;
- Apesar de ter sido diversas vezes instada para pagar o referido material discriminado nas facturas que junta, a 1ª R. nada pagou;
- Três dos cheques, perfazendo o montante de € 9 695,22, foram apresentados pela A. dentro do prazo de oito dias contados das datas neles apostas;
- Considerando que a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação, não podia a 2ª R. recusar o pagamento desses três cheques;
- A recusa de pagamento dos referidos cheques, no momento da apresentação, gerou o não recebimento dos valores deles constantes.
Regularmente citada, a R. B, Lda, não contestou.
Por seu turno, o R. Banco, S.A. contestou, opondo, em síntese:
- Existe coligação ilegal de réus, pois que são autónomas, em termos de factos e de direito, as causas de pedir invocadas em relação a cada um deles.
- A petição inicial é inepta, pois que são cumulados pedidos substancialmente incompatíveis.
- A recusa do pagamento dos cheques foi fundada numa ordem de proibição/cancelamento de pagamento dada pela sacadora por motivo de alegada falta ou vício na formação da vontade.
- O contestante não estava obrigado a acatar a ordem de revogação dos cheques, mas era-lhe lícito fazê-lo, sendo aquela ordem de revogação da exclusiva responsabilidade de quem a emitiu.
- O dano resultante para a autora da falta de pagamento dos cheques não corresponde ao valor inscrito nos cheques, em relação aos quais a Autora manteve o seu direito de acção contra a sacadora.
- Esse dano há-de ser traduzido nos incómodos, maiores despesas, lucros cessantes, e no maior risco causado.
A A. replicou.
No despacho saneador foi julgada improcedente a arguição de ineptidão da petição inicial, mas foi julgada verificada a excepção de coligação ilegal de RR., tendo a Autora, para tanto notificada, requerido que fosse apreciado o pedido deduzido contra o R. Banco, S.A.
Após os autos prosseguiram para julgamento, realizado com registo da prova produzida.
No seu decurso, a Autora ampliou o pedido para o montante de € 21 231,61, mantendo a causa de pedir.

A final foi proferida a decisão de facto que consta de fls. 183/184, a que se seguiu a sentença, com a seguinte:
«IV - DECISÃO:
Face ao exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência, decido:
A) Condenar o R. Banco, S.A. a pagar à A., a quantia de € 18 637,77 (dezoito mil seiscentos e trinta e sete Euros e setenta e sete Cêntimos) acrescida de juros de mora vencidos incidentes sobre a quantia de € 7 538,22, desde 05/05/2006 e sobre a quantia de € 11 099,55, desde 10/06/2006, e vincendos, calculados à taxa legal de juros aplicável a operações comerciais, até efectivo e integral pagamento
B) Absolver o R. do demais peticionado.

Inconformado, o R. apelou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

1. A A/recorrida na petição inicial começou por pedir apenas a condenação do Banco no pagamento de três cheques, que o mesmo terá devolvido, por revogação da sacadora com o fundamento em falta ou vício na formação da vontade;
2. Posteriormente, e em sede de julgamento, a A. ampliou o pedido em relação ao Banco apelante pedindo a condenação do mesmo no pagamento dos demais cheques identificados nos autos, sendo que quatro desses cheques têm datas de emissão posteriores à data da apresentação a pagamento;
3. Sendo a data do cheque um requisito essencial e não proibindo a lei que o cheque seja passado e entregue ao portador com data de emissão posterior ao da entrega deve, contudo, a provisão para o seu pagamento ser feita dentro do prazo de oito dias da data do cheque. (Cf. Ac. do S.T.J. de 10-04-1944, In Bol., 4°:194). Do confronto do disposto no art°.s 28°. e 29°. da L.U.LH, depreende-se que o cheque pode deixar de ser pago no dia da apresentação, se ainda não houver provisão por parte do sacador, devendo, então, esperar-se que, no prazo de oito dias da data do cheque se faça a provisão;
4. No caso em apreço, os cheques não foram pagos por a sacadora ter emitido ao Banco uma ordem de revogação. Ora, se a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo da apresentação e se o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias a contar do dia indicado como data de emissão (§ último do art° 29° in fine), não se pode considerar, sem mais, e sem contradição nos termos, que não podia ser recusado o pagamento de cheques revogados apresentados a pagamento muito antes da data de emissão neles inscrita;
5. É que, salvo melhor entendimento, para funcionar a previsão a que se reporta o artº 28º teria de ser alegado e provado que os cheques embora tendo sido apresentados a pagamento em data anterior à sua emissão tinham provisão suficiente;
6. A questão primeira e fundamental consiste em saber se um Banco pode e em que circunstâncias, no período de apresentação a pagamento, recusar o pagamento de um cheque com base em revogação do cheque pelo sacador, invocando falta ou vício na formação da vontade, ou outro vício de vontade, e na negativa se ao recusar o pagamento com tal fundamento incorre ou não em responsabilidade civil extracontratual violando o artigo 32°, primeira parte, da Lei Uniforme Sobre Cheques, o artigo 14º, proémio, segunda parte, do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927, e o artigo 483° do Código Civil.
7. Incumbe ao lesado o ónus de alegação e de prova dos factos integrantes dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual — o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este e aquele, que se têm de verificar cumulativamente (artigos 342°, n° 1, 483°, n° 1, 487°, n° 1, 562° e 563° do Código Civil);
8. O que se passou na hipótese vertente foi precisamente a "revogação" do mandato "com justa causa", urna invocada "falta ou vício na formação da vontade", expressão aquela, de resto, correntemente utilizada nos regulamentos, circulares e instruções do Banco de Portugal e que melhor se coaduna com a terminologia civilística aplicável ao contrato de mandato (conf. art° 1170° do C. Civil).
9. E será justa causa «qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual, todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim»;
10. Não há entre o Apelante e a Apelada, portadora, qualquer relação jurídica, cambiária ou outra; a relação jurídica derivada da convenção de cheque só envolve o primeiro e o sacador, pelo que, no caso vertente, não podia imputar-se o ónus de prova da inexistência da falta ou vício de vontade na emissão dos cheques.
11. Quanto à pretendida responsabilização da entidade bancária sacada vem-se perfilhando a orientação segundo a qual ao portador do cheque não assiste direito de acção, nem cambiária nem de responsabilidade civil delitual, contra o sacado que não pagou o cheque no prazo legal por ter obedecido a recomendações do sacador;
12. Pode, é certo, «o portador demandar o sacador, os endossantes e os demais coobrigados quando, tendo apresentado, em tempo útil, o cheque a pagamento, este lhe não for pago e a recusa for verificada: ou por um acto formal de protesto; ou por uma declaração do sacado, datada e exarada sobre o cheque, ou por uma declaração equivalente de uma câmara de compensação – artº 40° da LUch;
13. E, de qualquer modo, o portador só poderá responsabilizar o sacador, quer cambiária, quer civil, quer criminalmente, - pela ordem de proibição do pagamento do cheque - desde que se verifiquem os demais pressupostos da obrigação de indemnizar;
14. O Apelante logrou, por seu turno, provar - mediante a prova da proibição, pelo sacador, do pagamento dos cheques em causa - a ocorrência de "justa causa" justificativa da sua recusa, não podendo assim ser responsabilizado, pelo portador dos cheques, pelo não pagamento das quantias pelos mesmos tituladas.
15. A actuação do Banco (de não pagamento dos referidos cheques) mostra-se, por seu lado, em conformidade com o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI) – Instrução do Banco de Portugal nº 125/96 – onde na Parte VII se lê, sob a epígrafe "Cheque revogado - por justa causa": "quando, nos termos do nº 2 do artigo 1170° do Código Civil, o sacador tiver transmitido instruções concretas ao sacado, mediante declararão escrita, no sentido de o cheque não ser pago por ter sido objecto de ... falta ou vício na formação da vontade..., o motivo concretamente indicado pelo sacado, no registo lógico, deve ser aposto no verso do cheque pelo banco tomador";
16. Apesar de o referido Regulamento não constituir fonte de direito vinculativa para o Tribunal não pode o mesmo para efeitos de verificação de conduta culposa (no sentido de que age com culpa aquele que adopta conduta merecedora de reprovação ou censura do direito) deixar de ser tido em conta em todo o processo de formação da decisão com vista à formulação ou não desse juízo de reprovação ou censura;
17. Tanto a primeira parte do proémio do artigo 14° do Decreto n° 13004, como a segunda foram tacitamente revogadas, já por contrariedade com o artigo 32° da Lei Uniforme Sobre Cheques, já por substituição ou de sistema do respectivo regime por aquele preceito e pelo regime geral dessa lei, em conformidade com os princípios actualmente constantes do artigo 7°, n° 2, do Código Civil;
18. Por outro lado, e como menciona Menezes Cordeiro "a responsabilidade do banqueiro não corresponde ao valor dos cheques em causa, mas aos incómodos, maiores despesas, lucros cessantes e, no limite, ao acrescido risco que o seu comportamento ilícito cause ao tomador do cheque";
19. Por virtude do contrato de depósito, o Banco Apelante, que figura como mandatário, ficou vinculado a cumprir as instruções do mandante, e, no que concerne aos cheques em causa, a proceder ao respectivo pagamento, de harmonia com ordem envolvida pela respectiva emissão (artigo 1161, alínea a), do Código Civil). O portador dos cheques não é titular, por virtude deles, de direitos cambiários no confronto do banco sacado, cingindo-se essa titularidade em relação ao sacador e a outros obrigados que haja;
20. O portador do cheque é titular de direitos de crédito contra o sacador, que são tutelados pela Lei Uniforme Sobre Cheques e, eventualmente, pelo artigo 798° do Código Civil;
21. E é contra o sacador, apesar da ordem de não pagamento, traduzida naquela comunicação ao Banco de revogação do cheque, que o portador do cheque pode exercer os seus direitos cambiários.
22. Há um ponto incontornável que urge pôr em evidência: a obrigação de indemnizar só existe se houver dano. E quanto a este pressuposto, a Autora limitou-se a sustentar que o banco Réu se constituiu na obrigação de a indemnizar pelo prejuízo causado pelo não pagamento dos cheques e que "este é coincidente com o valor dos cheques" (n°s 33° e 34° da petição inicial);
23. Além disso, como a sacadora não dispunha de fundos na sua conta de depósitos para o pagamento dos cheques, como decorre dos documentos que se juntam sob os n°s. 1 a 5, junção que se torna necessária em virtude do julgamento em P. instância, nos termos do disposto no n.º 1, in fine, do art°. 706°. do C.P.Civil, não havia por parte do Apelante obrigação de pagar à Apelada o valor neles inscrito;
24. Efectivamente, mesmo a considerar-se que o dano coincide com o valor dos cheques, como entende a A. e a sentença em apreço, a acção improcederia porque, como se demonstra a revogação dos cheques não foi a causa do dano: esse dano já resultava do facto de a conta não estar provisionada, não sendo, em tal caso, o banco obrigado a pagar os cheques – art. 3.º da LUCH.;
25. Resulta, assim, do exposto não revelarem os factos provados que a atitude do Apelante de não pagar os referidos cheques à Apelada a esta provocasse, em termos de causalidade adequada, algum prejuízo, alem do mais porque para tal pagamento não havia provisão de conta. Isto porque o dano não se presume, demonstra-se e sem prova do dano não se pode estabelecer o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o prejuízo sofrido;
26. Por isso, na pressuposição de que o dano é o valor dos cheques, com o que não concordamos, nem sequer há nexo causal entre o facto da aceitação da revogação dos cheques e os danos invocados porque fica demonstrado que, mesmo que a aceitação da revogação dos cheques dada pelo sacador fosse ilícita, o dano resultaria sempre do facto de a conta não estar provisionada.

A sentença sub judice violou, entre outras normas que V.Exas. doutamente suprirão, o disposto nos art°. 3°., 28°., 29°., 40°. da LUCH, os art°s. 342°., 483°., 487°., 562°., 563°. e 1170°. todos do C.Civil e o art°. 668°., n°. 1 ai. b), d) do C.P. Civil.

A Apelada contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado e a não admissão, por extemporaneidade, dos documentos cuja junção apenas foi requerida com as alegações.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões, está em causa na presente apelação saber se um Banco pode recusar o pagamento de um cheque no período de apresentação a pagamento, com base na revogação do cheque pelo sacador, fundada na alegação de falta ou vício na formação da vontade e, na negativa, se ao recusar o pagamento com tal fundamento, o Banco incorre ou não em responsabilidade civil extracontratual, violando o artigo 32°, primeira parte, da Lei Uniforme Sobre Cheques, o artigo 14º, proémio, segunda parte, do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927, e o artigo 483° do Código Civil.
E se concorrem, no caso, os demais pressupostos da obrigação de indemnizar. - (cf. as conclusões sexta e sétima).
O que passa pela apreciação das seguintes questões:
- Se podem ser admitidos os documentos cuja junção foi requerida com as alegações.
- Se o cheque pode ser livremente revogado antes da data nele inscrita para pagamento.
- Se a alegação de “falta ou vício na formação da vontade” constitui causa justificativa da revogação do cheque.
- Se o Banco não pode ser responsabilizado por acatar a revogação do cheque, designadamente por a sua actuação ser conforme ao Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI).
- Se o dano a reparar não corresponde ao valor dos cheques em causa.
- Se o dano já resultava da falta de provisão da conta sacada.

Na decisão recorrida foi considerada a seguinte matéria de facto, que não vem impugnada:
a) A 1.ª Ré, emitiu e entregou à Autora os cheques: - nº. ..., datado de 30/04/2006, no valor de € 6 366,21; - n°. ..., datado de 30/04/2006, no valor de € 1 172,01; - n°. ..., datado de 30/06/2006, no valor de € 2 263,12; - n°. ..., datado de 26/06/2006, no valor de € 2 261,00; - n°. ..., datado de 19/06/2006, no valor de € 2 261,00 - n°. ..., datado de 31/05/2006, no valor de € 2 157,00; - n°. ..., datado de 12/06/2006, no valor de € 2 157,43; - n°. ..., datado de 17/05/2006, no valor de € 1 612,74; - n°. ..., datado de 24/05/2006, no valor de € 963,10 - (al. A) dos factos assentes);
b) O cheque n.º .... foi apresentado a pagamento em 03/05/2006 e devolvido em 04/05/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (al. B) dos factos assentes);
c) O cheque n.° ... foi apresentado a pagamento em 03/05/2006 e devolvido em 04/05/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (al. C) dos factos assentes);
d) O cheque n°. ... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (al. D) dos factos assentes);
e) O cheque n°. ... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (a1. E) dos factos assentes);
f) O cheque n°. ... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (ai. F) dos factos assentes);
g) O cheque n°. ... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (ai. G) dos factos assentes);
h) O cheque n°. ... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (ai. H) dos factos assentes);
i) O cheque n°.... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (ai. 1) dos factos assentes);
j) O cheque n°. ... foi apresentado a pagamento em 07/06/2006 e devolvido em 09/06/2006, com a menção de falta ou vício na formação da vontade - (ai. J) dos factos assentes);
k) Em 28/04/2006, a sacadora dos cheques referidos supra entregou no Banco sacado um comunicado solicitando a anulação dos cheques n°s. ... e ... – (al. K) dos factos assentes);
l) Em 15 de Maio de 2006 a sacadora entregou ao Banco uma declaração solicitando a anulação dos cheques supra descriminados, entre eles o cheque nº. ... - (al. L) dos factos assentes);
m) A Sintramat, Lda. entregou os cheques a que se alude em a) para pagamento de materiais de canalização, melhor descritos nas facturas juntas aos autos, n°s. 1143, 1504, 1505, 1506, 1545, 1568, 1585, 1586, 1647, 1658 e 1771, efectuado pela Autora, sendo que tais cheques destinavam-se ainda ao pagamento do fornecimento de materiais melhor descritos nas facturas n°s. 1548, 1559, 1562, 1670, 1753, 31, 32, 59, 60, 79, 82, 102, 153, 64, 1427, 1428, 1440, 1443, 1457, 1458, 1459, 1552, 1543, 1547, 1548, 516 e 517, juntas aos autos - (resposta ao ponto 1° da base instrutória);
n) Até hoje a Autora não recebeu o valor titulado pelos cheques - (resposta ao ponto 2° da base instrutória).

A matéria de facto assim fixada não suscita reparos relevantes. Em todo o caso, não é inteiramente exacto o que consta da al. l), uma vez que não se mostra documentado nos autos o pedido de anulação do cheque com o número...., que não está incluído no escrito referido nessa alínea, junto a fls. 101 e 102 dos autos.
Não está, assim, demonstrada a existência de pedido de anulação em relação a este cheque.

Ainda em sede de matéria de facto, as alegações apresentadas suscitam a apreciação de outra questão, que se prende com a possibilidade de, nesta sede, ser ampliada a matéria de facto da causa.
Como se viu, nas suas alegações, o Apelante alegou a inexistência de provisão na conta sacada, o que sempre impediria o pagamento dos cheques em referência e seria a causa real dessa falta de pagamento, pretendendo fazer prova desse facto através de documentos cuja junção requereu. Documentos cuja admissibilidade a parte recorrida questionou, por extemporaneidade.
Assim, antes de mais, importa saber se aquele facto pode ser atendido e, entrando na apreciação da primeira questão do recurso acima identificada, se podem ser admitidos nos autos os documentos cuja junção foi requerida para prova do mesmo.
A resposta a estas duas questões é, segundo se julga, simples e isenta de dúvidas. Os factos relevantes para a causa têm de ser alegados nos respectivos articulados, designadamente na petição inicial – no que respeita aos fundamentos da acção – e na contestação – no que respeita aos da defesa. Sendo que, nos termos do art. 489.º do CPC, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, salvos os casos de defesa separada, superveniente, ou relativa a matérias de conhecimento oficioso.
No caso está em causa um facto – inexistência de provisão na conta sacada – que, sendo do conhecimento do ora Apelante na data da contestação, só poderia ter sido alegado neste articulado. Pois que, ostensivamente, não está em causa matéria de defesa separada, superveniente, ou de conhecimento oficioso.
Sendo igualmente claro que o tribunal de recurso está, em relação ao objecto da causa, na mesma posição em que esteve o tribunal recorrido, designadamente em relação ao âmbito da matéria de facto a atender para a decisão. Até porque a instância de recurso também não comporta qualquer fase de discussão, que pudesse ter por objecto factos novos. A discussão admissível em sede de matéria de facto é limitada a reapreciação da prova produzida em 1.ª instância, e aos factos que ali foram, ou deveriam ter sido, julgados provados.
Não pode, pois, ser atendida aquela alegação do Apelante, apenas feita em sede de alegações.
E também não podem ser admitidos os documentos oferecidos pelo apelante para prova de tal facto.
Desde logo, porque, nos termos do art. 513.º do CPC, o objecto da prova é limitado aos factos relevantes para o exame e decisão da causa, e o facto que o Apelante pretende provar com os documentos ora juntos não pode ser atendido.
Depois, porque, mesmo que o facto tivesse sido oportunamente alegado e discutido, a junção destes documentos apenas com as alegações de recurso sempre seria extemporânea, como resulta dos art.s 524.º e 706.º do CPC. Estando em causa extractos de conta, alegadamente respeitantes à conta sacada, são contemporâneos dos factos em discussão nos autos, e sempre teriam estado na disponibilidade do ora Apelante.
Conclui-se, pois, dizendo que não pode ser atendida, no âmbito da presente acção, e do presente recurso, a alegação de que a conta sacada não tinha provisão que permitisse o pagamento dos cheques, e que também não podem ser atendidos os documentos cuja junção também foi requerida com as alegações, para prova daquele facto.

O Direito
Como se viu, no presente recurso está fundamentalmente em causa saber se um Banco pode recusar o pagamento de um cheque no período de apresentação a pagamento, com base na revogação do cheque pelo sacador, fundada na alegação de falta ou vício na formação da vontade e, na negativa, se ao recusar o pagamento com tal fundamento, o Banco incorre ou não em responsabilidade civil extracontratual violando o artigo 32°, primeira parte, da Lei Uniforme Sobre Cheques, o artigo 14º, proémio, segunda parte, do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927, e o artigo 483° do Código Civil.
Como é referido nos autos, esta questão foi objecto de discussão alargada no âmbito do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2008, publicado no DR, 1.ª Série, de 04-04-2008, onde se concluiu que:
«Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29 da LUCH. Com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32 do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos art.ºs 14, 2.ª parte do Decreto n.º 13004 e 483 n.º 1 do C. Civil
É este o entendimento que, em termos mais simples, subjaz à decisão recorrida e que, segundo se julga, não é fundadamente posto em causa nas alegações de recurso, nem no voto de vencido aposto no aludido acórdão pelo Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa, invocado pelo o Apelante.
Assim, no essencial, este Tribunal limita-se a remeter para os termos da decisão recorrida, e para os do referido acórdão uniformizador de jurisprudência, que ambas as partes mostraram conhecer bem.
Salientando-se apenas, o seguinte:
Sendo seguro que, nos termos do art. 32 da LUCH, a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação, é igualmente seguro que a recusa de pagamento de um cheque dentro desse prazo, fundada em revogação é ilícita. O entendimento de que estaria na disponibilidade do Banco sacado acatar, ou não, a ordem de revogação não é compatível com a letra do referido art. 32.º da LUCH, nem com a dos demais artigos da mesma Lei que regulam os procedimentos relativos à apresentação dos cheques a pagamento, nem com qualquer outra norma ou princípio jurídico.
E, a ser fundado, teria efeitos devastadores sobre a confiança que o referido regime legal pretende garantir à circulação do cheque como meio de pagamento. Pois que, se assim fosse, ninguém poderia, à partida, confiar em que um qualquer cheque iria ser pago. Para não o ser bastaria que o sacador o revogasse e o Banco sacado, de acordo com os seus interesses, optasse por acatar a ordem de revogação.
Tanto mais, se se admitisse que a ordem de revogação assentava em justa causa quando, como no caso dos autos, tivesse sido justificada com a simples invocação de “falta ou vício na formação da vontade”, um mero conceito abstracto de direito, não fundado em qualquer facto, ostensivamente insusceptível de qualquer valoração jurídica.
A eventual justa causa de revogação teria de ser traduzida em factos concretos que, adequadamente valorados, permitissem essa conclusão. Um mero conceito abstracto nunca poderia ser valorado dessa forma, até porque nada há para valorar. Admitir o contrário seria comprometer definitivamente a confiança na circulação do cheque como meio de pagamento.
Julga-se, assim, ser seguro que a revogação dos cheques dos autos não foi fundada em justa causa, não podendo ser valorado como tal o que foi invocado.
O facto de essa causa de revogação constar do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), não permite limitar a sua invocação ao conceito que a integra. Tal como a previsão das normas legais, aquele conceito só se torna actuante depois de ser preenchido por factos concretos. Seria um absurdo admitir que alguém pudesse fundar a revogação de uma declaração negocial na simples afirmação de que houve falta ou vício na formação da vontade, sem um mínimo de concretização dos factos que poderiam fundar essa alegação, sem qualque possibilidade de controlo pela contraparte ou pelo tribunal.
Deste modo, não se vê que o ora Apelante possa escudar o seu procedimento no teor do referido Regulamento, e julga-se que lhe era claramente exigível que considerasse não fundadas aquelas ordens de revogação dos cheques, por isso ineficazes nos respectivos períodos de apresentação a pagamento.
Também ficou adequadamente justificado na decisão recorrida o entendimento, fundado na norma do art. 28.º da LUCH, de que o período de apresentação a pagamento de um cheque, por isso aquele em que a sua revogação é ineficaz, decorre desde a sua entrega ao portador até oito dias depois da data nele inscrita. Pois que o cheque, apresentado a pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação. A revogação do cheque nesse período cai sob a alçada do art. 32.º, sendo ineficaz.
Por último, desconsiderando a pretensão do ora Apelante fundada na falta de provisão da conta – facto que não foi oportunamente alegado e provado – julga-se que o dano a reparar pelo ora Apelante coincide efectivamente com o montante dos cheques que não foram pagos e de que a Apelada continua desembolsada.
Nos termos da matéria de facto provada, a apelada era efectiva credora do montante de todos os cheques em causa, a título de pagamento do preço de fornecimentos, e esse crédito ainda não foi satisfeito.
É verdade que, não podendo ser atendida, nos termos acima referidos, a alegação de que a conta sacada não tinha provisão para permitir o pagamento dos cheques, também não está provada, nem foi alegada, a existência de provisão que assegurasse esses pagamentos. Mas, estando assente que a existência de provisão não foi verificada por facto imputável ao ora Apelante, que indevidamente acatou a sua revogação pela Sacadora, julga-se que é sobre ele que recaem os efeitos dessa falta. Ou seja, impendia sobre o ora Apelante o ónus de alegar e provar a falta de provisão da conta sacada, impeditiva do pagamento de qualquer dos cheques.
No fundo, não podendo ser atendida, por não estar demonstrada, qualquer causa de não pagamento dos cheques dos autos, importa considerar que o seu não pagamento é exclusivamente imputável ao acto ilícito do Apelante, traduzido no acatamento de ordens de revogação ainda ineficazes.
O dano da Apelada também não é condicionado pelo facto de a mesma continuar credora da sacadora dos cheques por todos os montantes neles inscritos. Pois que, tendo em conta o princípio definidor da obrigação de indemnização, enunciado no art. 562.º do C. Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Esta deve colocar a Apelada na situação em que a mesma estaria se não tivesse sido praticado o acto ilícito. O que, em face da matéria de facto provada, se traduziria no recebimento dos montantes inscritos nos cheques, nas datas em que esses cheques foram devolvidos por falta ou vício na formação da vontade.
Termos em que, remetendo para os termos da decisão recorrida, e também do referido acórdão uniformizador de jurisprudência, se acorda em julgar improcedente a presente apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
Lisboa, 07-05-2009
(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins)