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ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
1. A competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em o autor estruturou o pedido e a causa de pedir. 2. Se o facto lesivo constituir simultaneamente acidente de trabalho e acidente de viação, o lesado pode intentar duas acções – uma no foro laboral e outra no foro cível – optando posteriormente pela indemnização que mais lhe convier. 3. A tal não obsta a circunstância de a responsabilidade pelo acidente de viação ser imputada à entidade patronal da vítima por deficiente manutenção do veículo interveniente no acidente, por esta ser demandada na qualidade de proprietária do veículo, e não de entidade empregadora, sob pena de uma dupla injustiça: a exoneração da responsabilidade do proprietário do veículo e sua seguradora relativamente ao acidente de viação, por um lado, e, por outro, a impossibilidade de o lesado no acidente de viação obter a reparação integral do dano. 4. Compete aos tribunais cíveis conhecer das acções intentadas pelos pais do sinistrado, contra a entidade patronal que é simultaneamente proprietária do veículo interveniente no acidente de viação e respectiva seguradora do ramo automóvel, peticionando uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por óbito do filho falecido em consequência desse acidente. (sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório
A e R, residentes em Lisboa, intentaram acção declarativa, com processo ordinário, contra TLdª, com sede em Belas, e Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa, pedindo a condenação:
a) da R. T, Ldª, no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados aos autores e emergentes do acidente de viação do qual resultou a morte de S; e
b) da R. Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de seguradora do veículo interveniente no acidente, o pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais causados aos AA. no valor de € 180.350,40, acrescidos de juros de mora contados desde a citação até ao integral e efectivo pagamento; e de € 75.000,00, acrescidos de juros de mora contados desde a citação até ao integral e efectivo pagamento;
c) subsidiariamente, caso o tribunal entenda não existir culpa da entidade patronal na produção do acidente, a condenação da 2ª R., com base na responsabilidade civil pelo risco decorrente da actividade comercial exercida pela 1ª, no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais (€ 180.350,40) e não patrimoniais (€ 75.000,00) provocados pelo acidente de viação do qual resultou a morte do filho dos autores, no valor total de € 255.350,40, a que deverão acrescer os juros de mora contados desde a citação até ao integral e efectivo pagamento.
Alegam para tanto, e em síntese, que são os pais e únicos herdeiros de S, falecido em consequência de acidente de viação, quando conduzia veículo pertencente à 1ª R., sua entidade patronal, no seu interesse e sob suas ordens, em virtude de ao fazer a curva, não ter conseguido manter a direcção do veículo, por falta de aderência à estrada, devido à circunstância de os pneus da viatura se encontrarem lisos.
E que o falecido contribuía mensal e regularmente com pelo menos ¼ da sua retribuição para o sustento da família, integrada pelos AA. e uma irmã com uma deficiência de 80%.
A título de danos não patrimoniais pretendem ser indemnizados pelas dores físicas e morais sofridas pela vítima, pelos danos morais por si sofridos e pelo dano morte.
Contestaram as RR., tendo a 1ª R. excepcionado, no que ao recurso interessa, a excepção de incompetência absoluta do Tribunal Cível por ser competente o Tribunal do Trabalho.
Replicaram os AA., defendendo a competência do foro cível.
Por despacho de fls. 295-7, as RR. foram absolvidas da instância por se ter considerado o Tribunal Cível incompetente para conhecer do pedido formulado pelos AA., por se entender ser competente o Tribunal do Trabalho.
Inconformados, recorreram os AA., apresentando alegações com as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso visa impugnar a decisão do tribunal "a quo" que se pronunciou, pela sua incompetência material para o conhecimento dos presentes autos – decisão que consente censura.
2. Tal decisão julgou, procedente, em sede de sentença, a excepção dilatória de incompetência material invocada pelas rés, absolvendo-os da instância, nos termos do disposto nos artigos 101º, 102°, 105°, n° 1, 288°, n° 1, al. a), 493°, n° 2, e 494°, al. a), todos do CPC.
3. Ou seja, o Tribunal "a quo" entendeu erradamente que por existir uma relação laborai entre o falecido filho dos recorrentes e a 1ª ré, não seria competente para conhecer da acção.
4. Contudo, os recorrentes sustentaram a sua acção declarativa de condenação, primeiro na responsabilidade civil por facto ilícito, nos termos do artigo 483° do CC, e em segundo, na responsabilidade pelo risco, ao abrigo do artigo 503°, do CC,
5. e não na legislação especial sobre acidentes de trabalho,
6. já que não possuem a qualidade de sinistrados nem foram reconhecidos como beneficiários legais no processo por acidente de trabalho que corre termos no Tribunal do Trabalho de Lisboa.
7. Numa acção destinada à efectivação da responsabilidade civil por acidente de viação, como esta, é o próprio acidente, enquanto evento juridicamente plurissignificativo, que integra a causa de pedir, sendo de presumir que ao aludir a uma responsabilidade assente na culpa, exclusiva ou concorrente, do lesante, os aqui recorrentes não excluíram a responsabilidade pelo risco da 1ª ré.
8. A acção intentada pelos recorrentes é uma acção típica de responsabilidade civil, onde estes vêm, legitimamente, pedir a condenação das rés no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e por danos não patrimoniais, nos termos do disposto no artigo 483.° do CC, e subsidiariamente, no artigo 503.° do CC.
9. A qualificação do acidente como de trabalho não está em causa,
10. é a perda de rendimentos/alimentos que o sinistrado proporcionava aos recorrentes, no cumprimento de uma obrigação natural, e é a dor sofrida pelos pais com a morte do filho, em decorrência do acidente, que constituem fundamentos para que aqueles, na qualidade de pais, peçam a condenação da entidade patronal no pagamento de uma indemnização por tais danos, pedido esse baseado na responsabilidade subjectiva e objectiva da 1ª ré.
11. Nos termos do disposto nos artigos 495º, 496°, 562°, 566° e 564°, todos do CC, os recorrentes, em virtude da morte do seu filho, têm direito a ser indemnizados por danos patrimoniais sofridos e também pelos danos não patrimoniais.
12. O grupo de familiares a que se refere o n° 2 do artigo 496° do CC deve ser considerado como titular originário do direito à indemnização, e nele se integram os pais do falecido.
13. Temos, assim, como assente que o pedido e a causa de pedir estão identificados, sendo certo que são estes os elementos que norteiam o destino da acção para efeitos de apuramento da competência material.
14. O Tribunal recorrido errou ao decidir que no caso em apreço é aplicável, em razão da competência material do tribunal, o artigo 85°, al. c) da Lei da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, que dispõe o seguinte. "Compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível: (...) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais".
15. Isto porque, entendeu o Tribunal a quo que estava perante uma relação laboral, o que não é de todo verdade.
16. Com efeito, os recorrentes não foram reconhecidos como beneficiários legais no âmbito da acção especial emergente de acidente de trabalho.
17. Como tal, não tendo essa qualidade, não podem os recorrentes beneficiar da aplicação da Lei 100/97.
18. Nem podem, por isso, os recorrentes peticionar, no Tribunal do Trabalho, indemnização pelos danos decorrentes do acidente que vitimou o seu filho.
19. Pois que, nos temos e para os efeitos do direito laborai, e mais concretamente dos acidentes de trabalho, é necessário apurar se os recorrentes são tidos como beneficiários conforme decorrer dos artigos 1° a 20° da citada Lei 100/97.
20. O artigo 1° acima referido tem a seguinte redacção: "1. Os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos previstos na presente lei e demais legislação regulamentar.
21. O artigo 20°, n° 1, do mencionado diploma indica taxativamente quem são os beneficiários legais com direito a reparação decorrente de um acidente de trabalho, em caso de morte. E ali encontram-se contemplados, desde logo na respectiva alínea c), os ascendentes do sinistrado, desde que tenham as condições ali mencionadas.
22. A competência do Tribunal do Trabalho é, assim, desde logo definida com base, por um lado, na ocorrência de um acidente de trabalho, por outro, na qualidade de beneficiário legal.
23. A saber, o processo de acidente de trabalho é um processo especial que visa averiguar da existência do acidente de trabalho e das suas sequelas e definir o conteúdo da reparação e pessoa singular ou colectiva responsável pela reparação.
24. Mas, o processo de acidente de trabalho, está estruturado por forma a nele intervir apenas os sinistrados ou os beneficiários legais e a entidade patronal ou a seguradora para quem está transferida a sua responsabilidade a fim de se obter uma célere reparação do acidente.
25. Concluindo, os recorrentes na qualidade de pais do sinistrado, podem peticionar o ressarcimento dos danos patrimoniais e morais sofridos com a morte do filho,
26. direito esse a exercer no Tribunal Cível, atenta a ausência da sua qualidade de beneficiários legais, fixada pela Lei dos Acidentes de Trabalho.
27. Neste conspecto, ao contrário do veiculado pelo Tribunal "a quo", no caso em apreço não tem aplicação o disposto no artigo 85°, al. c) da Lei 3/99, de 13 de Janeiro,
28. mas antes, o artigo 77º, n.° 1, al. a) do mesmo diploma, que atribui competência material ao Tribunal recorrido para apreciar e decidir a acção apresentada pelos recorrentes.
29. Nesta senda, nunca poderia o tribunal a quo decidir-se pela procedência da excepção de incompetência alegada pelas rés, e em consequência decretar a absolvição destas da instância.
30. No entanto, poderia o tribunal recorrido ter optado por suspender a instância até à data do trânsito em julgado da sentença a proferir no âmbito da acção emergente de acidente de trabalho que se encontra a correr no Tribunal do Trabalho.
31. E ainda que, nessa acção laborai se venha a decidir que os recorrentes são beneficiários legais do sinistrado, e lhes seja atribuída uma pensão por morte,
32. sempre terão, os recorrentes, direito a ver apreciada a presente acção civil para reparação dos danos morais sofridos com a morte do filho,
33. uma vez que na acção especial emergente de acidente de trabalho, estes danos não patrimoniais não foram peticionados, e a eles têm direito, ainda que não se prove a culpa da entidade patronal na produção do acidente de que resultou a morte do filho dos recorrentes.
34. Mais, a não ser dado provimento ao presente recurso, nos termos do disposto no artigo 32° da Lei 100/97, o direito de acção dos recorrentes há muito que terá caducado, uma vez que esse mesmo direito (relativamente às prestações fixadas naquela lei) caduca no prazo de um ano a contar da morte do sinistrado.
35. Ora, o sinistrado, filho dos recorrentes, faleceu em 25/02/2007, e os recorrentes cuidaram de intentar a acção cível em causa atempadamente, em 22/02/2008.
36. A decisão recorrida vai, portanto, causar prejuízos irreparáveis para os recorrentes, o que não se coaduna com o princípio de tutela jurisdicional efectiva, nem com os princípios de Estado de Direito Democrático, tutelados constitucionalmente pelo artigo 2° da Lei Fundamental, nomeadamente no respeito e na garantia de efectivação de direitos e liberdades fundamentais.
37. Estará também em contradição com o dever de não lesar os seus cidadãos no que concerne à garantia de acesso à justiça e de efectivação dos seus direitos, corolário também do princípio de "non liquet",
38. o que vem a acontecer quando a decisão do tribunal recorrido se declara materialmente incompetente para conhecer do litígio.
39. Pelas razões supra expostas, pela gravidade da violação das regras de competência em razão da matéria, deve ser dado provimento ao presente recurso.
40. E, consequentemente, deve ser anulada a decisão proferida e substituída por outra que considere o Tribunal Cível de Lisboa o competente para conhecimento do pedido formulado na acção».
Não houve contra-alegações. 2. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 685 A, nº 1, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se em saber qual o tribunal competente para conhecer do pedido formulado pelos recorrentes: se o tribunal cível, como pretendem os recorrentes, se o Tribunal do Trabalho, como entendeu o Mmº Juiz a quo.
Constitui entendimento corrente da doutrina e da jurisprudência que a competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.
Nas palavras de Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pg. 91,
«A competência do Tribunal - ensina REDENTI - afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.»
Segundo Salvador da Costa, no acórdão do STJ de 2008.12.15, www.dgsi.pt.jstsj, proc. 08B3962, «Para determinação da competência do tribunal em razão da matéria importa ter em linha de conta, além do mais, a estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na acção, no momento em que a mesma é intentada, independentemente da natureza estritamente civil ou laboral das normas jurídicas aplicáveis. Dir-se-á, assim, que a competência em razão da matéria se determina pelo pedido e os factos que lhe servem de causa de pedir.»
A nível jurisprudencial e a título meramente exemplificativo, refiram-se os acórdãos do S.T.J., de 2004.11.18, Salvador da Costa, 2004.05.13, Afonso de Melo, 2004.02.12, Araújo Barros, 2004.01.27, Fernandes Magalhães, 2002.03.06, Emérico Soares, 1999.02.09, Garcia Marques, em www.dgsi.pt.jstj.proc. 04B3847, 04A1213, 04B128, 03A4065, 01S3359, 98A1250, respectivamente, e da Relação de Lisboa, de 2006.02.22, em www.dgsi.pt.jtrl. proc. 8083/2005-4, e da Relação de Lisboa, de 2006.02.22, Duro Cardoso, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 8083/200; da Relação de Coimbra, de 2006.03.08, Hélder Roque, www.dgsi.pt.jtrc., proc. 210/06.
Dispõe a alínea c) do artigo 85º da Lei 13/99, de 13.01, que compete aos tribunais do trabalho, em matéria cível, conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
A entidade patronal, enquanto responsável pela indemnização por acidente de trabalho, responde no foro laboral, e apenas pelas prestações decorrentes da lei de acidentes de trabalho (no caso, a Lei 100/97, de 13.09, uma vez que a revogação prevista na alínea g) do nº 2 do artigo 21º da Lei 99/2003, de 27.08, não chegou a operar por não ter sido publicado o diploma que regulamenta os acidentes de trabalho).
Nos termos do artigo 10º da Lei 100/97, de 13.09, a reparação por acidente de trabalho abrange:
a) Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa;
b) Em dinheiro: indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente; pensões aos familiares do sinistrado; subsídio por situações de elevada incapacidade permanente; subsídio para readaptação de habitação, e subsídio por morte e despesas de funeral.
A este propósito, refere o acórdão da Relação de Lisboa, de 2005.11.15, Ferreira Marques, www.dgsi.pt.jtrl, proc.8785/2005, que
«Como resulta claramente da LAT e da NLAT o dano em que se focaliza a atenção destas não é tanto, a lesão, perturbação ou doença e o sofrimento que estas implicam, mas antes a morte ou a redução da capacidade de trabalho ou de ganho resultantes daquela lesão, perturbação ou doença. O centro de gravidade desta zona excepcional da responsabilidade civil desloca-se sensivelmente da protecção do direito à vida ou integridade física, em direcção a uma outra ordem de valores que podemos designar por direito à integridade económica ou capacidade produtiva do trabalhador. Assim, tratando--se de incapacidade permanente, a indemnização traduzida na atribuição de uma pensão vitalícia visa somente compensar o beneficiário do prejuízo económico decorrente da redução na capacidade de trabalho ou de ganho. Nesta situação, apenas é considerado na reparação o grau de desvalorização sofrido pela vítima na sua capacidade de trabalho ou na sua capacidade geral de ganho, nos termos das Bases IX, al. b), XVI, n.º 1, al. c), XXIII, n.ºs 1, 2 e 3, XXIV da LAT e arts. 10º, al. b), 17º, n.º 1, al. c), 26º da NLAT. Não conseguindo a responsável pelo acidente de trabalho fazer a prova de que o dano resultante da redução na capacidade de trabalho ou de ganho sofrida pelo sinistrado foi englobada no aludido quantitativo indemnizatório, e bem assim qual a importância que a essa reparação teria sido afectada, não pode ver reconhecida a seu favor a desoneração prevista na Base XXXVII, n.ºs 1 e 2 da LAT e no art. 31º, n.ºs 1 e 2 da NLAT».
Não se trata, pois, de ressarcir os danos sofridos pelo sinistrado em todas as suas vertentes, como sucede no regime da responsabilidade civil extra-contratual (cfr. artigo 562º CC), abrangendo tão só os danos relacionados com o estado de saúde e capacidade de trabalho do sinistrado e resultantes da perda ou diminuição da capacidade de ganho.
A responsabilidade subjectiva da entidade patronal é excepcional: só haverá responsabilidade por danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade por acidentes de trabalho ocorrendo dolo ou culpa decorrente da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por parte da entidade patronal (artigo 18º, nº 2, da Lei 100/97, de 13.09), caso em que a reparação é feita nos termos gerais da responsabilidade civil.
Assim, em consequência quer da natureza diversa dos interesses tutelados, quer da diversidade dos regimes jurídicos aplicáveis, designadamente quanto à extensão da indemnização, é natural que a indemnização arbitrada por acidente de viação seja superior à que resulta da legislação infortunística.
O acidente integrante da causa de pedir configura-se simultaneamente como acidente de trabalho e acidente de viação – trata-se questão incontroversa, pois, como resulta da acta de tentativa de conciliação de que existe cópia a fls. 158, o acidente foi reconhecido pela entidade patronal e sua seguradora como acidente de trabalho.
A problemática dos acidentes que integram simultaneamente a categoria de acidentes de trabalho e acidentes de viação tem sido exaustivamente abordada pela doutrina e jurisprudência, em especial relativamente ao problema da cumulação das responsabilidades e ao exercício da sub-rogação / direito de regresso do responsável pela indemnização devida pelo acidente de trabalho relativamente ao responsável pela indemnização emergente do acidente de viação (normalmente uma seguradora). Trata-se de situações em que o responsável pelo acidente de viação é um terceiro (não a entidade patronal), e que encontram assento legal no artigo 31º da Lei 100/97, de 13.09.
A questão tem sido equacionada em termos semelhantes quer no âmbito da Lei 1942, de 27 de Julho de 1936, quer da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, ou da Lei 100/97, de 13.09 (embora as duas últimas leis contemplem responsabilidade da entidade patronal por danos não patrimoniais em caso de dolo ou inobservância regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho - base XVII da Lei 2127 e artigo 18º, nº 2, da Lei 100/97, de 13.09).
Do regime estabelecido no artigo 31º da Lei 100/97, de 13.09, resulta um escalonamento de responsabilidade: é dada prioridade à responsabilidade emergente de acidente de viação, atento o direito de regresso do responsável pela indemnização laboral sobre o responsável civil.
Como sublinha Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. I., 10ª edição, pg. 701, no âmbito da Lei 2127, mas com plena actualidade,
«a diversidade de tratamento, que acaba de ser apontada, mostra que a lei não coloca no mesmo plano os dois riscos com os quais o dano se relaciona. O risco próprio do veículo causador do acidente funciona como uma causa mais próxima do dano que o perigo inerente à laboração da entidade patronal».
Este autor remete para a anotação efectuada na RLJ 103º/25, onde se lê, a este propósito, que
«Quando assim seja [quando o acidente de trabalho é simultaneamente um acidente de viação causado por terceiro] é sabido que a ocorrência, situada na zona dos riscos próprios da relação de trabalho, não deixa de onerar a entidade patronal. Mas essa circunstância não impede que, ao mesmo tempo, lhe deva ser aplicável o regime privativo da causa próxima do facto danoso, que é o acidente de viação, devendo facultar-se ao sinistrado a possibilidade legal de reagir não só contra o causador do acidente, como contra as demais pessoas responsáveis pelos riscos próprios dos veículos de circulação terrestre.
As razões que justificam a responsabilidade dessas pessoas tanto colhem no caso de o acidente de viação atingir a vítima fora do círculo da sua actividade profissional, nenhuma relação tendo com os acidentes de trabalho, como na hipótese de ela ser mortalmente atingida ou corporalmente atingida em pleno local de trabalho ou no exercício da sua actividade.»
Mais adiante, a pg. 26, escreve este autor que
«a lei não hesitou em colocar em planos diferentes a responsabilidade do patrão e a responsabilidade do causador do acidente, depois de eficazmente assegurado o direito da vítima à indemnização contra qualquer deles.
O risco da relação de trabalho aparece como uma causa remota do dano, situada num segundo plano; o facto ilícito culposo de terceiro é, por seu turno, a causa próxima ou imediata , destacada para o primeiro plano da responsabilidade no domínio das relações internas entre obrigados».
Segundo o mesmo autor, RLJ 103º/28, em anotação a acórdão proferido no âmbito da Lei 1942, mas com total actualidade,
«Ora, sempre que o facto danoso, além de constituir um acidente de trabalho, envolva responsabilidade de um terceiro, estranho à relação contratual de trabalho, três caminhos diferentes se rasgam perante o lesado que pretenda obter a respectiva indemnização:
a) interpelar a entidade patronal, como responsável pelo acidente de trabalho;
b) requerer a reparação do dano aos terceiros causadores do acidente ou responsáveis pelos seus efeitos;
c) pedir concorrentemente as duas indemnizações, uma ao tribunal de trabalho, outra ao tribunal comum, para optar, em seguida, por aquela que mais lhe convier».
O foro cível apresenta-se mais favorável em vários outros aspectos, para além do princípio do ressarcimento integral do dano, consagrado no artigo 562º CC..
Desde logo, a problemática da culpa: no âmbito da lei dos acidentes de trabalho a responsabilidade da entidade patronal pelo ressarcimento dos danos não patrimoniais depende de dolo ou culpa decorrente da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho (artigo 18º, nº 2, da Lei 100/97, de 13.09), contrariamente ao que sucede no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual por acidente de viação, onde, além de beneficiar de algumas presunções de culpa, o lesado pode ser ressarcido nos termos da responsabilidade pelo risco (cfr. Antunes Varela, RLJ cit., pg. 25).
Atendendo, porém, a que o dano é apenas um (embora a responsabilidade possa ter duas fontes distintas), constitui entendimento corrente na doutrina e na jurisprudência que as indemnizações não se cumulam, apenas se completam até ao ressarcimento integral do dano, já que a indemnização visa restituir o lesado à situação em que se encontrava antes da lesão, e não o seu enriquecimento (cfr. Vaz Serra, RLJ 111º/330-1; acórdãos do STJ, de 2006.09.12, Afonso Correia, 2004.11.04, Araújo Barros, 2002.01.24, Garcia Marques, 1993.11.30, Teixeira do Carmo, 1993.10.20, Fernando Simão, em www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A 2244, 04B3062, CJSTJ, 2002, I, 54 e CJSTJ 93, III, 279, respectivamente; da Relação de Lisboa, de 2005.11.15, Ferreira Marques, de 2003.09.24, Paula Sá Fernandes, em www.gdsi.pt.jtrl, proc. 8784/2005, e 314/2003, respectivamente).
Revertendo ao caso do recurso, os recorrentes pretendem com a acção que intentaram nas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa o ressarcimento de danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de acidente de viação em consequência do qual faleceu o seu filho, intentando a acção contra a proprietária do veículo alegadamente causador do acidente (e simultaneamente entidade patronal do malogrado sinistrado), e a seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade civil emergente de acidentes provocados pelo referido veículo.
Atendendo à forma como os recorrentes estruturaram a sua pretensão – uma típica acção emergente de acidente de viação destinada a accionar a responsabilidade do proprietário do veículo por danos patrimoniais e não patrimoniais, é competente o tribunal cível (não necessariamente as Varas Cíveis de Lisboa, em virtude de ter sido suscitada a sua incompetência em razão do território e essa questão não constituir objecto do recurso).
A situação dos autos apresenta, porém, uma particularidade, que foi decisiva para a Mmº Juiz a quo atribuir competência ao foro laboral para apreciação do pedido formulado pelos recorrentes: o proprietário do veículo interveniente no acidente donde resultaram os danos cujo ressarcimento é reclamado pelos recorrentes é a entidade patronal do sinsitrado.
Lê-se na sentença recorrida:
«No caso concreto, como resulta da factualidade alegada na petição inicial, os AA. fundamentam o seu pedido num acto ilícito e culposo da entidade patronal da vítima determinativo de um acidente que reveste a dupla natureza de acidente de viação e de trabalho.
E, assim, existindo uma relação laboral entre o lesante e o lesado, o conhecimento da acção compete exclusivamente à jurisdição de trabalho.
Diferente seria se o facto ilícito e culposo determinativo do acidente, simultaneamente de trabalho e de viação, fosse imputado a terceiros estranhos à relação contratual de trabalho, em que os AA. poderiam pedir duas indemnizações, que se completariam até ao total ressarcimento dos danos sofridos, uma no tribunal de trabalho, interpelando a entidade patronal como responsável pelo acidente de trabalho, e outra no tribunal comum, interpelando os terceiros causadores do acidente.
Conclui-se, pois, que é da competência dos tribunais de trabalho conhecer do pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, emergentes de acidente, simultaneamente de trabalho e de viação, imputável à entidade patronal da vítima»
O litígio foi estruturado pelos recorrentes como acção de responsabilidade civil extra-contratual emergente de acidente de viação, intentada contra o proprietário do veículo e sua seguradora, destinada ao ressarcimento do dano integral que sofreram por via desse acidente que provocou a morte de seu filho.
Os recorrentes não intentaram a acção contra a T Ldª (e sua seguradora do ramo acidentes de trabalho), na qualidade de entidade empregadora do falecido sinistrado, mas contra a T Ldª (e sua seguradora do ramo automóvel), na qualidade de proprietária do veículo interveniente no acidente.
A circunstância de a proprietária do veículo ser simultaneamente a entidade patronal do sinistrado não descarateriza a competência do tribunal cível. Quando muito poderia relevar no mérito da causa se se entendesse que a T, Ldª, não pode ser responsabilizada em sede de responsabilidade extra-contratual, nunca em sede de competência material.
Refira-se, aliás, que esta questão já foi abordada quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, concluindo-se que a entidade patronal pode ser demandada no foro cível quando lhe é imputada a responsabilidade por acidente de viação na qualidade de proprietária do veículo.
Antunes Varela (RLJ 103º/23, nota 2) dá-nos conta que a Sá Carneiro, Revista dos Tribunais, 82º, pg. 110, não repugna admitir nestes casos uma espécie de desdobramento da personalidade da entidade patronal, capaz de vencer a noção de terceiro formulada no § 1º artigo 7º da Lei 1942 [correspondente ao artigo 31º, nº 1, da Lei 100/97, que estabelece a responsabilidade nos termos gerais quando o acidente de trabalho for provocado por companheiros da vítima ou terceiros].
Discordando daquela via, mas concluindo no mesmo sentido, Antunes Varela, na mesma nota, afirma de forma elucidativa:
«Quanto ao sinistrado, a circunstância de a entidade patronal ser responsável a mais de um título, pelos danos causados (seja por haver um duplo nexo de imputação do facto ao lesante, seja porque a ilicitude do facto danoso reveste uma dupla natureza) proporcionar-lhe-á a faculdade de optar pela indemnização que mais lhe convier (cfr. o nº 4 do relatório do acórdao do Sup. Trib. Just., de 27-8-1963, no Bol. Min. Just., 125, pág. 293).
Essa, porém, é uma solução que não resulta propriamente do preceituado no artigo 7º da Lei 1942, mas da conjugação das regras aplicáveis aos diferentes sectores da responsabilidade civil (responsabilidade civil por factos ilícitos, por acidentes de viação, por acidentes de trabalho, pela prática de crimes, etc.) e ainda dos princípios básicos do enriquecimento sem causa (que não sancionam a acumulação de indemnizações para o mesmo dano)».
Não admitir que a entidade patronal pudesse ser demandada na qualidade de proprietária do veículo teria uma consequência duplamente perversa: exoneraria injustificadamente a proprietária do veículo (e sua seguradora da responsabilidade extra-contratual), com o consequente prejuízo do lesado que deixaria de beneficiar da possibilidade de ressarcimento integral do dano apenas por que o responsável era a sua entidade patronal.
O acórdão do STJ, de 1993.11.30, Teixeira do Carmo, www.dgsi.pt.jstj, proc. 045470, abordou o recurso intentado por uma seguradora, para quem a entidade patronal e simultaneamente proprietária do veículo tinha transferido a responsabilidade por acidentes de trabalho e a responsabilidade civil extra- -contratual relativamente aos acidentes provocados pelo veículo automóvel interveniente no acidente de viação que vitimou o trabalhador.
Defendia a seguradora que havendo apenas um risco e um património responsável, e tendo sido fixada indemnização por acidente de trabalho no foro laboral, não era devida indemnização por acidente de viação, tese que não obteve acolhimento no STJ.
Ponderou este tribunal que estavam em causa dois riscos (o risco próprio do automóvel e o risco resultante da actividade laboral) e duas responsabilidades diferentes, disciplinadas por regras distintas, e que a circunstância de ser apenas um o património responsável não justificava que se afastasse o princípio do ressarcimento integral do dano.
Concluímos, pois, serem as Varas Cíveis (artigo 97º, nº 1, alínea a), da Lei 3/99), ou o tribunal de comarca (artigo 77º da Lei 3/99), caso inexista tribunal de competência específica), os tribunais competentes para a apreciação do pedido formulado pelos recorrentes. 3. Decisão
Termos em que, julgando procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da acção nas Varas Cíveis de Lisboa, se não ocorrerem outros obstáculos que não a incompetência material.
Custas pela parte vencida a final.
Lisboa, 2009.05.28
Márcia Portela
Carlos Valverde
Granja da Fonseca