DOAÇÃO
REVOGAÇÃO
INDIGNIDADE
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário

I - As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, devem ser apreciados em função do texto e discurso lógico nela desenvolvida, não se confundindo com os erros na apreciação da matéria de facto, e possíveis ilações dela retirada, ou com a errada aplicação das normas jurídica aos factos dados como apurados, que constituem erros de julgamento.
II - Enquanto a doação não for aceite, pode o doador livremente revogar a sua declaração negocial. Uma vez aceite, a mesma torna-se irrevogável, a não ser que se verifique a ingratidão do donatário.
III - Quando se fala em ingratidão, ou mesmo indignidade, estão em causa conceitos jurídicos, legalmente preenchidos, que não possuem a extensão ou o significado usualmente considerado.
IV – O sentido a atender encontra-se vertido em preceitos legais, reportando-se a uma situação que se configurada quanto a um herdeiro seria qualificada como justificativa de indignidade, nos termos do art.º 2034, ou de deserdação, art.º 2166, ambos do CC.

(Sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

           

I - Relatório

            1. A demandou B, pedindo que seja ordenada a revogação da escritura pública, da doação da A. ao R. da nua propriedade da fracção autónoma ali identificada, seja o R. condenado a entregar o objecto da doação, livre de pessoas e bens, ordenando-se o cancelamento de todo e qualquer registo já efectuado ou que venha a efectuar-se sobre o prédio referenciado, tanto a favor do R. como de terceiros, e declarando-se nula e de nenhum efeito toda e qualquer transmissão do questionado prédio, efectuada pelo R. posterior à aludida doação.

            2. Alega para tanto ser mãe do R. tendo por escritura pública, em 16 de Janeiro de 1997, lhe doado a nua propriedade da fracção autónoma identificada, reservando para si e para o seu marido o usufruto vitalício, sendo que este último renunciou ao aludido usufruto por escritura de 13 de Novembro de 2003, constituindo o imóvel em causa a casa de morada de família dos litigantes e do marido e pai dos mesmos, respectivamente.

Cerca do ano 2000, a partir dos 16 anos de idade o R. começou a ter um comportamento rebelde, arrogante, cruel e agressivo para com a A. bem como  uma vida desregrada, coagindo-a a dar dinheiro para as suas extravagâncias, agredindo-a verbal e fisicamente, expulsando-a de casa, e por isso deixado de ali residir em 7 de Julho de 2003.

A partir de então a A. acompanhou o marido às escondidas do R., deslocando-se a casa quando este não estava, até que em finais de Setembro aquele a expulsou violentamente de casa, deixando a partir de Dezembro de ali ir periodicamente, sendo a casa frequentada pelo R e amigos, provocando distúrbios e destruindo o apartamento e os bens nele existentes.

Apesar do comportamento do R., a A. vem suportando as despesas de frequência num externato, e todas as despesas do apartamento com água, luz, condomínio e outras.

A conduta do R. é indigna para com a A., estando reunidos os pressupostos que fundamenta a revogação da doação, nos termos do art.º 974, do CC.

3. Citado o R. editalmente, veio o mesmo intervir nos autos arguindo a falta ou nulidade da citação, sendo proferido despacho que considerou válida a citação edital, mantendo todo o processado após a petição inicial, e designando dia para a realização do julgamento.

4. Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo o R. de todos os pedidos formulados.

5. Inconformada, veio a A. interpor recurso de apelação, formulando, essencialmente, nas suas alegações as seguintes conclusões:

§ É muito simples a questão que vimos trazer à consideração deste Venerando Tribunal Superior; Assim,

§ Em nossa modesta opinião e com o devido respeito por proficiente entendimento em contrário, em face dos factos provados e assentes, a conduta do Recorrido é indigna e ingrata para com a Recorrente.

§ E estão reunidos os pressupostos que fundamentam a revogação da aludida doação da Recorrente ao Recorrido, nos termos do art.º 974, do CC por ingratidão;

§ Do exposto, sempre com o devido respeito por proficiente entendimento em contrário, de tudo o exposto resulta, na parte que julga a acção improcedente, enferma de contradição e oposição com os fundamentos de facto e de direito que a fundamentam, nos termos das al. b) c) e d) do n.º1, do art.º 668, do CPC.

§ Os apontados vícios implicam a nulidade ou revogação da proficiente sentença, nos temos do citado dispositivo, devendo ser revogada na parte em que julgou improcedente a acção por não provada, como se afigura de inteira JUSTIÇA.

         6. Não houve contra-alegações.

7. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

*

            II – Os factos

            Na sentença sob recurso foram considerados como provados os seguintes factos:

1. A A. é mãe do R.

2. Por escritura de doação, celebrada em 16 de Janeiro de 1997, a A. doou ao R. a nua propriedade da fracção destinada para habitação: fracção autónoma correspondente ao andar dum prédio urbano.

3. Na referida escritura de doação a A. reservou para si e para o seu marido, C o usufruto vitalício da referida fracção autónoma.

4. Por instrumento público, em 13 de Novembro de 2003, o marido da A. e pai do R. renunciou ao usufruto sobre a aludida fracção autónoma.

5. A fracção autónoma foi a casa de morada de família do R. da A. e do seu marido, onde residiu todo o seu agregado familiar até data não concretamente apurada do Verão de 2003.

6. Cerca do ano de 2000, a partir dos 16 anos de idade, o R. começou a ter um comportamento rebelde e agressivo com a A. sua mãe.

7. O R. nunca trabalhou e foi sempre estudante.

8. Em data não concretamente apurada do Verão de 2003, o R. pôs a A. fora de casa.

9. Perante tal atitude do R. a A. dirigiu-se ao apartamento de uma amiga, onde pediu auxílio.

10. A A. apresentou queixa crime contra o R.

11. A A. deixou de residir na fracção autónoma, desde a data não concretamente apurada do Verão de 2003.

12. …...

13. A. arranjou uma empregada para dar assistência ao marido.

14. A A. procurava ir a casa quando o R. não se encontrava, a fim de evitar ser vítima da violência deste.

15. O marido da A. ausentava-se frequentemente de casa…...

16. A referida casa tem vindo a ser frequentada pelo R. e outros amigos e amigas, onde fazem frequentemente noitadas até altas horas da madrugada, com música e barulhos altos, que incomoda e desassossegam os vizinhos.

17. Em data não concretamente apurada de 2004, a A.  foi a casa, acompanhada pelo irmão, tio do R.

18. O R. dirigiu-se à porta da entrada e, de viva voz e reiteradamente, começou a dizer: “ está aqui a puta da minha mãe” e lhe dizia “põe-te na rua”, tendo o referido tio se indisposto com o R.

19. O R. vem tendo gatos na fracção autónoma.

20. Os gatos sujam o apartamento.

21. O R. está a estudar.

22. É a A. que vem suportando o pagamento da respectiva mensalidade, no valor de 400,00€.

23. Também é a A. quem suporta o pagamento de todas as despesas do referido apartamento, com água, luz, condomínio e outras.

*

III – O Direito
Como se sabe o objecto do recurso é definido pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, importando em conformidade decidir as questões[1] nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com excepção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, 660.º, n.º 2, e 713.º, todos do CPC.

Nessa consideração, pretende a Apelante que a sentença enferma de nulidade, no atendimento do disposto no n.º1, b), c) e d) do art.º 668, do CPC, pese embora mencione tão só expressamente a contradição entre os fundamentos de facto e de direito que fundamentam (alínea c)[2]) a decisão sob recurso.

Conhecendo, diga-se que tal vício existe quando os fundamentos, factuais e normativos, invocados pelo juiz deveriam, logicamente, conduzir a resultado oposto ao que vem a ser expresso na sentença, evidenciando-se um manifesto e real vício de raciocínio do julgador, não se podendo confundir uma verdadeira desconformidade lógica entre as razões de facto e de direito que fundamentaram a decisão proferida, e esta última, com a discordância que a parte possa ter quanto às mesmas. 

Com efeito, retenha-se que as nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, devem ser apreciados em função do texto e discurso lógico nela desenvolvida, não se confundindo com os erros na apreciação da matéria de facto, e possíveis ilações dela retirada, ou com a errada aplicação das normas jurídica aos factos dados como apurados, que constituem erros de julgamento, a sindicar noutro âmbito.

Na análise da sentença sob recurso verifica-se que apontadas as causas da revogação da doação, considerando como as apenas indicadas no art.º 974, do CC[3], e tendo em conta o factualismo apurado, entendeu-se não se verificarem quaisquer das situações legalmente enunciadas, pelo que pese embora considerando a conduta do Recorrido passível de censura, concluiu-se inexistir fundamento legal para a pretendida revogação.

Inexiste, deste modo qualquer desconformidade lógica entre as premissas do raciocínio explanado, configurando a arguida nulidade, que assim se tem por afastada, importando sim ponderar se estamos perante um erro de julgamento, questão esta de constitui o efectivo objecto do presente recurso.

Vejamos.

Não se questionando que em causa está uma doação efectuada pela Recorrente a favor do Recorrido, importa ter presente que estamos perante um contrato pelo qual alguém, por espírito de liberdade, e à custa do seu património, dispõe, gratuitamente, de uma coisa, ou de um direito, ou assume uma obrigação em benefício do outro contratante, art.º 940, configurando-se assim, sobretudo como um acto pelo qual se atribui a outrem uma vantagem patrimonial, com uma efectiva diminuição do património do doador, num verdadeiro espírito de liberalidade, isto é, em termos de simples generosidade ou espontaneidade, sem qualquer outra intenção[4], importando apenas sacrifícios económicos para o mesmo[5].

Previu também a lei, no art.º 958, que o doador possa reservar para si ou para terceiro o usufruto dos bens doados, sem prejuízo, claro está, da aceitação em termos gerais, pelo donatário da nua propriedade, conforme o art.º 945, n.º1, sabendo-se relativamente às doações puras, isto é, as que não têm encargos, que quanto àqueles que por incapacidade não podem contratar, a lei dispensa a intervenção dos respectivos representantes, ou aceitação do incapacitado – menor, interditado ou inabilitado – pois produzem efeitos, independentemente dessa aceitação, em tudo o que aproveitar a tais donatários, art.º 951, n.º2.

Ora, se enquanto a doação não for aceite, pode o doador livremente revogar a sua declaração negocial, art.º 969, uma vez aceite, a mesma torna-se irrevogável, a não ser que se verifique a ingratidão do donatário, art.º 970, explicitando o art.º 974, que a doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação.

Importa reter que quando se fala em ingratidão, ou mesmo indignidade, estão em causa conceitos jurídicos, legalmente preenchidos, que não possuem a extensão ou o significado usualmente considerado[6]. Com efeito o sentido a atender encontra-se vertido noutros preceitos legais, reportado a uma situação que se configurada quanto a um herdeiro seria qualificada como justificativa de indignidade, nos termos do art.º 2034, ou de deserdação, art.º 2166[7].

Em conformidade, a doação pode ser revogada, por ingratidão, verificadas as situações de indignidade enunciadas no art.º 2034, isto é, o donatário ter sido condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado contra o doador, o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, ter o donatário sido condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza, ter o donatário, por meio de dolo ou coacção, induzido o doador a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impedir, ter o doador dolosamente subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido o testamento, antes ou depois da morte do doador, ou se ter aproveitado desse facto.

Também poderá a doação ser revogada, por ingratidão, nos casos previstos no art.º 2166, a saber, ter o donatário sido condenado por algum crime doloso contra a pessoa, bens ou honra do doador, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que o crime corresponda a pena superior a seis meses de prisão, ter sido o donatário condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, ter o donatário, sem justa causa, recusado ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos, quer por ser uma das pessoas obrigadas a prestá-los, nos termos do art.º 2009, quer por se ter transmitido para o donatário tal obrigação, nos termos do n.º2, do art.º 2011.

  Fora destas situações taxativamente enunciadas fica vedado ao doador a possibilidade de revogar a doação[8], acolhendo-se assim entendimento marcadamente restrito e específico em comparação com o sentido comum da terminologia usada no normativo aplicável.

Reportando-nos aos autos, salientando-se como se fez menção na sentença sob recurso, que o comportamento apurado do Recorrido é desconforme com o que seria expectável no concerne à sua interacção com a Recorrente, sua mãe, certo é que, que os factos apurados não são enquadráveis em qualquer dos casos acima referenciados e desse modo susceptíveis de integrar um dos fundamentos apontados que possibilitassem a revogação pretendida, e isto sem prejuízo da censurabilidade, que em termos comuns possa ser feita de tal conduta, mas ainda assim insuficiente para o merecimento da pretensão da Recorrente,

Improcedem, decorrentemente, e na totalidade, as conclusões formuladas.

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IV – DECISÃO

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.

*

Lisboa, 16 de Junho de 2009

    Ana Resende

   Dina Monteiro

  Isabel Salgado     

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[1] O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está o mesmo sujeito às razões jurídicas invocadas também pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.
[2] A alínea b) reporta-se à não indicação dos fundamentos de facto e direito que justificam a decisão, enquanto a alínea d) se reporta ao excesso ou omissão de pronúncia.
[3] Diploma a que a partir de agora se referirá, se nada mais for dito.
[4] Cfr. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol III, pag. 194 e segs.
[5] Não existe qualquer contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens ou da assunção das dívidas, não se verificando a onerosidade mesmo no caso da doação com encargos, nos termos do art.º 963, do CC, que segundo o Autor acima referenciado, não constituem contrapartidas da atribuição patrimonial do doador, mas meras restrições à liberalidade (fls. 198)
[6] Assim no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, diz-se de ingratidão, a qualidade daquele que não agradece os favores ou ajudas, falta de reconhecimento a um benefício recebido. Por sua vez, indignidade é a qualidade de quem age ou se comporta sem brio ou de uma forma contrárias às normas sociais vigentes, ou qualidade de quem é incorrecto.
[7] Naquilo que Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, II vol, a fls. 269, referem como a conveniente coordenação que se impunha entre as liberalidades donativas e a sucessão por morte.
[8] Cfr. Luís Menezes Leitão, in obra referida, a fls. 259.