ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
POSSE
DETENÇÃO
USUCAPIÃO
REGISTO
Sumário

1. A qualidade de possuidor, maxime para efeitos de sustentar a aquisição originária do direito de propriedade por via de usucapião, não se confunde nem pode confundir-se com qualquer situação de mera detenção.
2. O imóvel em causa nos autos encontra-se registado a favor dos AA., tal como registada estava a aquisição do mesmo a favor dos familiares dos AA., a quem estes sucederam. E nos termos do art. 7º do C.R.Predial o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
3. Presunção que não foi elidida no caso concreto.
4. Assim, e porque os possuidores precários também não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, a não ser que se ache invertido o título de posse, mas uma vez que também nada se provou quanto a esta matéria não pode ser legitimada a ocupação do imóvel pelo Réu, nem ser reconhecido a este, enquanto mero detentor precário, a aquisição de qualquer direito a título de usucapião.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

I – Relatório:

1. A e Marido
e
B e Mulher

Intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

C
Pedindo que:
a) Sejam os AA. reconhecidos como donos e legítimos proprietários do imóvel ocupado pelo Réu e identificado nos autos;
b) Seja o Réu condenado a entregar, livre e devoluto, o imóvel ilegitimamente ocupado – 3º andar do prédio – em prazo que o Tribunal fixar e não superior a 60 dias;
c) Seja o Réu condenado a pagar aos AA., a título de indemnização pela ocupação ilícita do imóvel, a quantia mensal de 400,00 €, desde a data de citação até efectiva entrega do imóvel.
Alegam, para o efeito e em síntese, que são proprietários do prédio, encontrando-se tal propriedade registada a favor dos AA., desde 20/04/2007, e justificada por uma sucessão de registos.
O imóvel veio à posse dos AA. através do inventário que correu seus termos em 2002.
Acontece porém que o Réu encontra-se a ocupar ilegitimamente o 3° andar do referido prédio, sem qualquer título ou autorização, quer dos actuais quer dos anteriores proprietários, não possuindo qualquer contrato de arrendamento verbal ou escrito que legitime tal ocupação.
Pelo que devem ser condenados a entregar aos AA. o referido imóvel livre e devoluto.

2. O Réu contestou argumentando, em síntese, que há mais de 20 anos que reside naquele local com a sua família, exercendo uma posse pública, pacífica e de boa-fé.
Assim, e porque sempre se comportou como proprietário de tal andar, chegando mesmo a fazer obras na fracção e providenciando a iluminação do seu lanço de escadas, adquiriu, por usucapião, a referida fracção.
Pede em reconvenção que seja deOdo que adquiriu o direito de propriedade por usucapião e que os AA. sejam condenados a reconhecer esse seu direito.
Quanto ao pedido de indemnização formulado pelos AA. contrapõe referindo que, uma vez que os AA. não alegaram factos de onde resulte o valor indemnizatório peticionado deve também improceder tal pedido.

3. Os AA. responderam às excepções deduzidas pelo Réu na sua contestação e ao pedido reconvencional alegando, em resumo, que:
- O Réu litiga com manifesta má fé;
- Os AA são os legítimos proprietários do imóvel aqui em causa conforme resulta das certidões apresentadas da respectiva Conservatória do Registo Predial, as habilitações e partilhas feitas, quer por óbito do primitivo titular, quer de outros que posteriormente lhe vieram a suceder;
- Em 1919, os herdeiros do anterior proprietário, já falecido, arrendaram o imóvel a D que ali se manteve durante vários anos;
- O Réu passou a ocupá-lo sem qualquer arrendamento ou outro título que legitime a ocupação, encontrando-se ali à revelia de qualquer autorização quer dos anteriores quer dos actuais proprietários;
- Os AA. só agora descobriram tal facto por causa das mortes sucessivas e do que ocorreu posteriormente com a demora na legalização de todo o processo de habilitação e herdeiros;
- Mais: os AA. sabem que o Réu nem sequer ali reside, pois não gasta água nem luz, nem o imóvel tem condições de habitabilidade.
Assim, não estão reunidos os pressupostos de usucapião alegada pelo Réu em reconvenção, pelo que deve a presente acção proceder com a consequente improcedência da reconvenção.

4. Após realização da audiência de discussão e julgamento o Tribunal “a quo” exarou sentença na qual:
1. Julgou improcedente, na totalidade, a reconvenção deduzida pelo Réu.
2. Julgou procedente a acção e, consequentemente:
a) Declarou que os AA. são os legítimos proprietários do 3° andar do prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial, inscrito na matriz predial urbana da mesma Freguesia sob o art.;
b) Condenou o Réu a restituir o referido andar aos AA., no prazo de 60 dias, livre e devoluto de pessoas e bens;
c) Mas absolveu o Réu do pedido de indemnização formulado pelos AA.

5. Inconformado o Réu Apelou tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:

1. O Tribunal “a quo afirma que o R., ora recorrente, "não demonstrou a inversão do título da posse, pelo que esta sempre se manteve precária, como mera detenção, sem "animus possidendi”, e por não estarem preenchidos os pressupostos da usucapião condenou o R. nos termos da sentença recorrida.
2. Contudo, foram dados como provado os factos que constam dos nºs 10 a 15 da matéria de facto, através dos quais se vê que o Réu vive lá desde meados de 1987, nas condições aí descritas.
3. O Tribunal recorrido interpretou mal e esvaziou de conteúdo o instituto da usucapião, pois a circunstância de o imóvel em causa estar registado, desde 2007, a favor dos AA, não obsta à aquisição por usucapião a favor do R.
4. O Réu desde Maio de 1987 (há mais de 20 anos), exerceu   o poder de facto sobre o andar em causa, de forma pública, pacifica e de boa fé.
5. O nosso ordenamento jurídico consagra uma concepção subjectivista da posse, sendo esta constituída por dois elementos, o corpus possessório e o animus possidendi. E na sentença recorrida, o Tribunal "a quo" considerou não estar preenchido o requisito do "animus". Mas face à matéria de facto dada como provada é forçoso concluir que o Recorrente sempre actuou de forma pública e reiterada, e como sendo o proprietário do imóvel em causa.
6. E ainda que dos factos dados como provados não resultasse Omente que o Recorrente sempre actuou com a convicção de ser o proprietário do referido imóvel, a verdade é que não tinha que fazer tal prova.
7. Na verdade, considerando a dificuldade, se não mesmo a impossibilidade de fazer prova da existência do animus, estabeleceu-se uma presunção legal no art. 1252º, nº 2, do CC; assim, “Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art. 1257º” que no caso em apreço, é o Recorrente!
8. Nos termos da citada presunção legal do nº 2 do art. 1252º do CC., era aos AA., aqui recorridos, que se arrogam o direito de propriedade, que competia provar que o recorrente não é possuidor, ou seja, cabia aos mesmos elidir a referida presunção – neste sentido, cf. o Acórdão do S.T.J., uniformizador de jurisprudência, datado de 14/05/96, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
9. E como os AA. não lograram ilidir a presunção estabelecida na norma citada, é forçoso concluir que se encontram preenchidos os dois elementos integradores da posse: o corpus e o animus, desde Maio de 1987.
10. Ou seja, há mais de 20 anos que o Recorrente se comporta como o verdadeiro proprietário do imóvel em questão, tendo, desde essa data, praticado todos os actos materiais correspondentes ao direito de propriedade, de forma pública, nos termos do art. 1263º, al. a), do CC.
11. O ora Recorrente exerce uma posse pública, pacífica e de boa fé sobre o referido imóvel há mais de 20 anos.
12. Pelo que o Tribunal recorrido fez imprópria aplicação do direito à matéria de facto provada, violando, entre outros, os arts. 1251°, 1252°, 1265°, nº 1 do art. 1268°, 1260°, 1287º, 1288°, 1290°, 1296° e al. c), do art. 1317°, 1414° a 1416° e 1418°, todos do Código Civil.
13. Assim, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decida pela total improcedência dos pedidos formulados pelos AA. e pela procedência dos pedidos reconvencionais deduzidos pelo Réu/Recorrente, deOndo-se que o Réu adquiriu por usucapião o direito de propriedade do 3º andar identificado nos autos, com todas as consequências legais.

6. Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

7. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.


II – Os Factos:

- Mostram-se provados os seguintes factos:

1. Encontra-se inscrita a favor dos AA. a propriedade sobre o prédio urbano descrito na  CRP, inscrito na matriz predial urbana da mesma Freguesia sob o art.  descrito com a composição de 4 andares e águas furtadas, datando tal inscrição de 20/04/2007 – tendo como causa acordo subsequente a partilha, e figurando como sujeitos activos os AA. e sujeitos passivos F, M, O, R e N (cfr. doc. de fls. 10 a 15);
2. Pela Ap. de 09/06/1906, resulta que sobre tal imóvel se encontrava registada a aquisição por compra a favor de P e pela Ap. de 20/04/2007 a aquisição por partilha, em que figuram como sujeito activos F, O, E (na proporção de 2/15 avos, cada), L, M e R (na proporção de 5/15 avos o 1° e 2/15 avos as demais) e em que figura como sujeito passivo o referido PM;
3. Pela Ap. de 20/04/2007, e tendo como causa uma doação de 2/15 avos, na proporção de 1/75 cada, figuram como sujeito activos: F, R, O e M, e na proporção de 6/75 L, e como sujeito passivo E;
4. Pela Ap. de 20/04/2007, foi inscrita aquisição e causa divisão de coisa comum, tendo sido adquirida 2/15 avos, figuram como sujeitos activos: L, F, O, M e R;
5. Pela Ap. de 20/04/2007, tendo como causa a partilha, e aquisição de 7/15 avos, figurando como sujeitos activos N, B, T, S, A e R, e sujeito passivo L que foi casado com T;
6. Pela A. de 20/04/2007, tendo como causa a partilha, a aquisição de 7/30 avos, figurando como sujeitos activos N, B, A, U e V, e sujeito passivo T;
7. Pela Ap. de 20/04/2007, aquisição tendo como causa acordo subsequente a partilha, figurando como sujeitos activos B  e como sujeitos passivos: F , M, O , R , N , S , U e V;
8. O imóvel em causa foi relacionado no âmbito do inventário que correu termos no  Juízo Cível, sob o nº, instaurado por óbito de MA, O  e F, tendo tal imóvel sido adjudicado no âmbito desses autos aos AA., e homologado por sentença (cf. doc. de fls. 21 a 47);
9. O Réu ocupa o andar do referido prédio;
10. Em meados do ano de 1987, o Réu passou a ocupar o 3° andar do prédio identificado nos autos, mediante o pagamento ao ocupante do mesmo, à data, da quantia de 500.000$00;
11. Desde Maio de 1987 que o Réu reside no 3° andar do prédio, o qual é independente e tem saída própria para as escadas;
12. O Réu desde aquela data que sempre utilizou o 3° andar como habitação própria e da sua família;
13. E é no mesmo andar que desde aquela data que recebe os seus amigos e faz a sua vida social e familiar;
14. A ocupação pelo Réu do 3° andar desde aquela data era um facto conhecido quer pelos vizinhos, quer familiares e amigos e sem oposição de quem quer que seja;
15. O Réu desde aquela data sempre efectuou obras no 3° andar, limpou as escadas junto de tal andar e providenciou a iluminação do lanço das mesmas.


III – O Direito:

1. Os AA. propuseram a presente acção pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel que identificam, alegando que o R. o ocupa sem título legítimo.
O R. defendeu-se argumentando que habita o andar há mais de 20 anos e, em reconvenção, pretende ver reconhecido o seu direito de propriedade por entender que a sua posse é pública, pacífica e assim se manteve durante todos esses anos, devendo ser reconhecida pelo Tribunal.
A sentença recorrida entendeu que não estavam preenchidos os pressupostos legais da usucapião e, consequentemente, julgou a reconvenção improcedente e procedente a acção, condenando o R. no pedido.

Destarte, o objecto do presente recurso centra-se na seguinte questão:
- Saber se estão preenchidos os requisitos legais da usucapião e se o Réu adquiriu, por essa via, o andar que habita.

E desde já se adianta que a pretensão do Réu não pode proceder.

Vejamos porquê.
 
2. Resulta provado nos autos, de forma inequívoca, que a propriedade do prédio em que se insere o apartamento ocupado pelo R. está registada a favor dos AA., que, assim, se presumem seus proprietários.
A elisão de uma tal presunção, em relação ao espaço ocupado pelo R., careceria da prova de factos reveladores da sua qualidade de possuidor durante um período temporal suficiente para adquirir a propriedade por usucapião.
Ora, a matéria de facto provada, quer analisada autonomamente, quer tendo como contraponto a matéria de facto alegada, não demonstra a verificação daquele pressuposto básico da aquisição originária.

3. Com efeito, como é sabido, a doutrina dominante entende que a noção de posse, acolhida no art. 1251º do Código Civil, e que constitui o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, deve ser entendida segundo a concepção subjectivista, integrando no seu conceito jurídico quer o corpus quer o animus possidendi.
         E assim, na análise de uma situação de posse devem distinguir-se dois elementos:
         - Um elemento material – o corpus da posse – que se identifica com os actos materiais e se traduz no poder de facto sobre a coisa manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, v.g., a detenção e/ou fruição da coisa, o exercício efectivo de poderes materiais sobre a coisa ou a possibilidade física desse exercício;
         - Um elemento psicológico – o animus possidendi – que se traduz na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto e de se comportar, v. g., como seu proprietário.
         Impera igualmente o entendimento doutrinário de que a presença e relevância deste elemento psicológico – o animus – não poderá ser recusada quando a actividade em que o corpus se traduz seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real. [1]
        
         Doutrina que se encontra plasmada em diversos arestos jurisprudenciais, onde, ao ser efectuada a interpretação do art. 1251º do Código Civil, se pode ler o seguinte:
         “A posse está definida no art. 1251º, nº 1, do Código Civil, segundo a adopção subjectivista da iuris possessio de tradição romanista, pela conjugação dos dois elementos: o corpus e o animus.
         O corpus expressa-se pela prática de actos materiais sobre a coisa; pelo exercício de poderes de facto sobre ela; pela apreensão material, física, sobre a coisa; é uma afirmação traduzida em actos materiais e jurídicos a que a ordem jurídica atribui efeitos.
         O animus é retratado pela intenção do agente, exteriorizada pela prática desses actos, de actuar como titular do direito a que o exercício do poder de facto sobre a coisa corresponda” – Neste sentido veja-se, por todos, o Acórdão da Relação de Évora, de 25/1/1994, in BMJ, 433º/650.
         Por sua vez no Ac. da Relação do Porto, de 20/9/1994, in BMJ, 439º/652, reitera-se que o art. 1251º do C. Civil acolheu o sistema subjectivo da posse, reportando-se ao corpus a expressão «quando alguém actua» e referindo-se ao animus a expressão «por forma correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real».
        
4. Tendo presente que a posse é o poder que se manifesta quando alguém age em relação a determinada coisa como seu dono ou como titular de outro direito real de gozo, da análise da prova produzida constata-se que não se pode dar tal posse por verificada.
É certo que se provou que o R. ocupa o apartamento desde meados do ano de 1987, fazendo dele a sua habitação e de sua família, facto que era do conhecimento dos vizinhos, familiares e amigos e sem oposição de quem quer que seja. E que se provou que foi o R. quem efectuou obras no andar, encarregou-se da limpeza do lanço de escadas de tal andar e providenciou pela iluminação do lanço das mesmas.
Contudo, a posse não pode ser confundida com toda e qualquer situação de detenção, quer provenha de uma relação jurídica propiciadora de um direito pessoal de gozo, quer de uma permissão dada pelos verdadeiros proprietários, quer de uma situação de mera tolerância ou de indiferença em face da ocupação.
É para distinguir a situação de posse de outras realidades que importa e se impõe descobrir nas situações que sejam alegadas para sustentar a eventual aquisição do direito de propriedade, para além do elemento temporal necessário, a existência dos dois elementos citados: o corpus e o animus.

Ora, desde logo, falta no caso concreto o elemento objectivo, porquanto nada na matéria de facto permite afirmar que ao agir como agiu durante este período, desde 1987, o R. se tenha assumido como detentor de poderes inerentes ao proprietário.
Antes pelo contrário.
Confrontando a matéria de facto provada com a matéria de facto alegada, logo se repara quão longe ficou de uma situação de posse aquilo que efectivamente se conseguiu apurar em relação à ocupação que o R. veio fazendo desde 1987.
O facto de se ter provado que o R. fez obras no andar e que se encarregou da limpeza do lanço de escadas e da iluminação reflecte tão-somente a actuação de qualquer ocupante não possuidor que queira fazer de um espaço num prédio urbano o seu local de habitação.
Assim acontece, designadamente, com o arrendatário, com o comodatário ou indistintamente com qualquer detentor precário.
Não sendo legítimo, por conseguinte, extrair desses factos outros efeitos.

5. Por outro lado, no caso concreto, uma vez que o Réu nem sequer pagava aos proprietários qualquer contrapartida pela referida ocupação, não é de estranhar que tenha sido o R. a ocupar-se das despesas que envolveu a realização de obras (cuja amplitude, características e valor nem sequer foram alegadas) ou com aspectos tão prosaicos como a limpeza de um lanço de escadas correspondente ao andar que ele próprio ocupado ou com a respectiva iluminação das escadas.
A realidade verificada através dos factos provados – bem longe da que o R. pretendia provar quando apresentou a contestação/reconvenção – é compatível com uma série de situações jurídicas que não se confundem de forma alguma com a propriedade.
Tendo o Réu recebido o andar das mãos do anterior ocupante, sem que se perceba que qualidade detinha esse ocupante em relação ao memo andar, durante o período subsequente não passou de mero detentor, situação que encontra na matéria de facto uma explicação para a sua verificação durante tantos anos e que está relacionada com a indefinição jurídica que pairou sobre o prédio envolvido em vários problemas sucessórios que tiveram de ser ultrapassados e que levaram ao registo dos direitos em nome dos AA. – cf. art. 1253º, alíneas a) e b) do CC.

Ora, a qualidade de possuidor, maxime para efeitos de sustentar a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião, não se confunde nem pode confundir-se com qualquer situação de mera detenção, sendo que os actos que o R. praticou em relação ao apartamento (que não em relação ao prédio em que se insere) são compatíveis com uma multiplicidade de outros vínculos, quiçá como comodatário, mas sem a força que emerge da assunção dos poderes de verdadeiro proprietário.
Pode assim dizer-se, a título conclusivo, que a matéria de facto provada não demonstra a existência de qualquer forma de aquisição da posse, nem por via da transferência da mesma de anterior possuidor, nem por via da inversão do título de posse em face dos verdadeiros proprietários, nem sequer por via da prática sucessiva de actos correspondentes à aquisição paulatina.
A tal conclusão impede também o disposto no art. 1290º do CC.

6. Mas não é só o elemento objectivo ou material – o corpus da posse – que se mostra em falta.
Se acaso se entendesse de forma diversa sempre se encontraria, se necessário fosse, na falta do elemento subjectivo ou psicológico – o animus – um outro motivo relevante para se concluir pela improcedência da reconvenção deduzida pelo Réu e da Apelação interposta por este.

Com efeito, também o elemento subjectivo se encontra em O situação deficitária quando se aprecia a matéria de facto provada, pois nem sequer se conseguiu apurar que o R., como alegara, tenha agido na qualidade de proprietário ou que como tal se tenha apresentado perante os AA. ou seus antecessores.
É o que resulta da prova produzida porquanto a matéria do quesito 6º obteve a resposta de “Não Provado” e a matéria que integrava os quesitos 5º e 7º na parte em que perguntava se “o Réu sempre se comportou como dono do 3º andar e como tal era conhecido” (matéria do quesito 5º) bem como a inserida no quesito 7º obtiveram da parte do Tribunal “a quo” respostas restritivas, com a eliminação, nas respostas dadas, de qualquer referência que permitisse associar o Réu à qualidade de “dono” ou “proprietário”.

Acresce que o imóvel encontra-se registado a favor dos AA., tal como registada estava a aquisição do mesmo a favor dos familiares dos AA., a quem estes sucederam, conforme resultou provado.
E nos termos do art. 7º do C.R.Predial o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Presunção que o Réu não elidiu.
Neste contexto, não pode considerar-se procedente a alegação do R. no sentido de ser considerado proprietário do andar (o que sempre suporia a verificação dos pressupostos da aquisição do mesmo como fracção autónoma, o que, como vimos não aconteceu), prevalecendo, por isso, a presunção que emerge do registo predial a favor dos AA. e que não foi ilidida.
E não dispondo o Réu de qualquer título que legitime a sua ocupação terá forçosamente que proceder a acção com as respectivas consequências legais daí decorrentes.

IV – Em Conclusão:

1. A qualidade de possuidor, maxime para efeitos de sustentar a aquisição originária do direito de propriedade por via de usucapião, não se confunde nem pode confundir-se com qualquer situação de mera detenção.
2. O imóvel em causa nos autos encontra-se registado a favor dos AA., tal como registada estava a aquisição do mesmo a favor dos familiares dos AA., a quem estes sucederam. E nos termos do art. 7º do C.R.Predial o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
3. Presunção que não foi elidida no caso concreto.
4. Assim, e porque os possuidores precários também não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, a não ser que se ache invertido o título de posse, uma vez que também nada se provou quanto a esta matéria não pode ser legitimada a ocupação do imóvel pelo Réu, nem ser reconhecido a este, enquanto mero detentor precário, a aquisição de qualquer direito a título de usucapião.


V – Decisão:

- Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se, in totum, a douta sentença recorrida.



- Custas a cargo do R.

     Lisboa, 02 de Julho de 2009.

  Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)

  António Manuel Valente

Ilídio Sacarrão Martins

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[1] Neste sentido cf., entre outros, Profs. Pires de Lima e A. Varela in "Código Civil Anotado", III vol., págs. 5 e segts., Mota Pinto in "Direitos Reais", págs. 180 e segts., Henriques Mesquita in "Direitos Reais", págs. 66 e segts. e Penha Gonçalves in "Direitos Reais", págs. 243 e segts.