DIVÓRCIO LITIGIOSO
VIDA EM COMUM DOS CÔNJUGES
FIM CONTRATUAL
CULPA
Sumário

No âmbito duma acção de divórcio em que o autor alegou a culpa da ré na génese da ruptura da vida em comum, não tendo aquele logrado provar a factualidade inerente a essa culpa, como lhe competia, deverá ser decretado o divórcio sem atribuição de culpas a qualquer dos cônjuges.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa,
I – RELATÓRIO
Na acção declarativa sob a forma de processo especial de Divórcio Litigioso que
B... moveu contra C..., pediu aquele que seja decretado o divórcio entre ambos.
Alegou, em síntese, que autor e ré deixaram de viver juntos em 2000 e que o autor não pretende restabelecer a vida em comum.
Foi realizada a conferência sendo que na falta de acordo, a ré foi notificada para contestar.
Em contestação, a ré impugnou os factos alegados pelo autor, referindo ter sido este quem saiu de casa, para viver com outra pessoa. Mais alegou que não pretende manter a vida em comum, pelo que pediu que seja decretado o divórcio com culpa exclusiva do autor e que este, em consequência, seja condenado a pagar-lhe uma indemnização no valor de 10.800,00 euros, bem como no pagamento de uma prestação de alimentos no valor de 300,00 euros.
O autor respondeu concluindo em suma como na petição inicial, relativamente ao pedido de divórcio.
Quanto ao pedido de indemnização, alegou que a ré é que foi culpada da separação, pelo que não deve ser paga nenhuma indemnização da sua parte.
Relativamente ao pedido de alimentos, o autor respondeu que a ré não necessita de pensão de alimentos, uma vez que trabalha e tem um bom salário, que suporta as suas despesas.
Na sua réplica, o autor requereu ainda a ampliação do pedido, para que a ré seja
condenada a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de 15.000,00 euros.
Foi proferido despacho saneador, que absolveu o autor do pedido de pensão de alimentos e que absolveu autor e ré dos pedidos recíprocos de indemnização.
            Realizou-se julgamento, com observância de todo o formalismo legal.
Respondeu-se à matéria de facto dada por provada, não se tendo registado qualquer reclamação.
Proferiu-se sentença onde, na parte decisória, se decidiu:
Pelo exposto, julgo procedente, por provada, esta acção e reconvenção, em consequência, decreto o divórcio entre B... e C... e declaro dissolvido o casamento que entre si celebraram em 30 de Setembro de 1970
Custas por ambos em partes iguais
Valor tributário:  40UC.
Inconformada com tal decisão, veio a Ré recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões:
            A. A crise da relação matrimonial fica a dever-se tão-só à conduta do ora Recorrido, negando-se a cumprir o dever de coabitação entre ambos degenerando tal situação na irreversível impossibilidade de vida em comum.
B. O ora Recorrido veio, em sede de réplica, a imputar à ora Recorrente comportamentos alegadamente por esta cometidos, que por si só, seriam justificadores do abandono do lar conjugal.
C. O ora Recorrido apresentou como prova testemunhal em sede de audiência de
julgamento, apenas os filhos do casal, que testemunharam o abandono do lar por parte do Recorrido.
D. Da leitura da factualidade assente decorre que o ora Recorrido não logrou provar qualquer facto que alegou.
E. “Em concreto quanto à matéria dos quesitos 2 a 9 nenhuma prova foi produzida ou a prova produzida foi em sentido contrário àquele que estava quesitado, dai que a resposta tenha sido negativa.”
F. O ora recorrido não justificou o abandono lar conjugal.
G. Sendo certo que ora Recorrido abandonou no pretérito ano de 2000 o lar conjugal sem que para tal tivesse qualquer motivo que lhe fosse dado pela R.
H. O abandono do lar conjugal – ou seja, a violação do dever de coabitação – é um comportamento exclusivamente imputado ao Apelado, e integrativo do juízo positivo de culpa.
I. Deixou de existir a “comunhão plena e de vida” princípio e fundamento do casamento.
J. E tal aconteceu pelo abandono do lar de forma continuada e consciente.
K. O Tribunal recorrido não interpretou os factos provados nem procedeu a uma correcta apreciação/aplicação da norma jurídica violada ao caso, na medida em que desvalorizou a violação do dever conjugal de coabitação por parte do ora Apelado.
L. Se o tivesse feito, tal conduziria à valoração positiva de um juízo de culpa do Apelado, tal como impõe o artº 1779 do Código Civil.
M. A sentença ora Recorrida dá como provada a violação do dever de coabitação mas não reprova o modo e o tempo, as circunstâncias em que se operou o abandono do lar por parte do ora Apelado.
N. Assistia ao Tribunal “a quo” julgar pela dissolução do casamento, atendendo para o efeito ao comportamento do ora Apelado, por acção e por omissão como consequência dos deveres conjugais aos quais estava obrigado.
O. Pois tal não fez. Tendo dissolvido o casamento sem estipular o grau de culpabilidade do ora Apelado.
P. O enquadramento jurídico exarado pela Mertª Juíza na sentença verte “Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio, se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação pela sua gravidade ou reiteração comprometa a possibilidade de vida em comum. Além disso, qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio com o fundamento em separação de facto por mais de três anos consecutivos – cfr 1781º al. A) do Código Civil. Esta situação não exige a verificação de culpa dos cônjuges, tratando-se antes de uma causa objectiva autónoma.”
Q. Continuando “É separação de facto, a ausência de vida em comum e o desejo de pelo menos um deles não a retomar. No presente caso, autor e ré deixaram de coabitar em 2000.”
R. Ora, não ficou provado que o motivo que levou o A. a abandonar o lar conjugal tenha estado relacionado com qualquer conduta da ora Recorrente.
S. Ora é pois aqui, que possui a máxima relevância a matéria dada como provada na resposta à base instrutória no que respeita aos quesitos.
T. Quesito 11º-A:“ O A saiu de lar conjugal para ir viver com outra pessoa com que já anteriormente mantinha relações íntimas?
U. Quesito 11º-B: “E que apresentava como sua companheira?
V. Ora, na resposta à base instrutória a Mertª. Juíza expor “Quanto ao quesito 11º-A, a resposta foi negativa, porque a nosso ver não se provou que o autor tenha saído de casa para ir viver com alguém com quem já mantinha relações íntimas. A testemunha
D... referiu que soube pela ré que o autor saiu de casa para ficar com outra pessoa, mas na verdade não seria ninguém com quem teria tido qualquer tipo de relação. Além disso, o que esta testemunha soube foi através da ré, pelo que um conhecimento directo de qualquer situação de molde a permitir convencer o Tribunal deste facto. Pelo mesmo motivo não pudemos pois considerar este depoimento como forma de nos convencermos do facto referido em 11ºA, para além do que ficou provado.” (sublinhado nosso)
W. Continua a Mert. Juíza “Quanto à resposta no quesito 11º-B, a resposta dada ficou a dever-se ao depoimento da testemunha E... que declarou ter conhecido a companheira do autor, há cerca de dois anos atrás e a testemunha F... que há cerca de 5 anos viu o réu numa feira com uma senhora que lhe foi apresentada como sua companheira.”
X. Ora dado como provado que o ora Recorrido foi visto há cerca de 5 anos numa feira com uma senhora que foi apresentada como sua companheira, tal facto tem de ser relevado para efeitos de entendimento dos motivos pelo qual o ora Recorrido abandonou o lar conjugal.
Y. De acordo com a experiência comum, não se concebe como tais factos, dados como provados pela Mert. Juíza não tivessem sido valorados na decisão ora recorrida.
Z. Continua o enquadramento jurídico exarado pela Mertª Juíza na sentença ora recorrida “Não existem elementos para determinar o culpado da separação de facto cfr 1782, nº 2, do Código Civil. Na verdade não se provaram os fundamentos invocados pelas partes para que se pudesse concluir pela existência de culpa por parte de algum dos cônjuges.”
AA. Ora, salvo o devido respeito, tal justificação não colhe por discordante com a jurisprudência dominante.
BB. Foi provado, e ficou como matéria de facto assente que ora Recorrido abandonou o lar conjugal no pretérito ano de 2000.
CC. Cabia ao ora Apelado vir à lide fazer prova da culpa da ora Alegante na violação dos deveres conjugais que tenham servido de fundamento ao abandono do lar conjugal.
DD. Pois o abandono voluntário da casa da família, sem quaisquer explicação é injustificado, constituindo uma violação culposa do direito de coabitação. Neste sentido Acórdão TRL 10.05.2007 (in www.dgsi.pt).
EE. Não obstante, a sentença recorrida não considerou a violação culposa do dever de coabitação.
FF. O dever conjugal de coabitação, considerado o mais importante dos deveres pelo sentido comunitário que inspira – Antunes Varela, ibidem, pag 345 – envolve a obrigações dos cônjuges viverem em comunhão de leito, mesa e habitação.
GG. É na decorrência do dever de coabitação que aparece a residência da família, escolhida de comum acordo pelos cônjuges, artº 1673 do Código Civil.
HH. Em regra o dever de coabitação cumpre-se na residência da família que seja adoptada e só mesmo razões ponderosas poderão justificar um comportamento contrário daquela regra, cfr artº 1672, nº 2 do Código Civil.
II. Acontece que o ora Apelado deixou a casa de morada de família, sem dar qualquer explicação, passando a viver desde essa data num outro local.
JJ. Trata-se, com efeito, de um facto voluntário e sem justificação, que não seja a própria vontade.
Pelo exposto, deve ser julgado procedente o presente recurso de Apelação, sendo, aliás, a douta sentença recorrida, aqui impugnada, revogada, devendo ser dissolvido o casamento com culpa exclusiva do ora Recorrido.
Termos em que, e nos mais de Direito aplicável, deverá ser dado integral provimento ao presente recurso, com as legais consequências supra referidas, assim fazendo, V. Exas.,
Venerandos Desembargadores, a costumada
JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões suscitadas pela apelante, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil.
Antes de indicarmos qual a questão que a Ré pretende ver apreciada por este Tribunal, convirá deixar aqui expressa uma nota prévia.
Com efeito, após a leitura das alegações e das respectivas conclusões, resulta claro que a apelante apenas pretende pôr em causa a decisão de direito, dado que não se vislumbra que tenha existido válida impugnação da matéria de facto nos termos previstos nos artgs. 690.º-A e 712.º do Código de Processo Civil.
Na realidade, as alusões que são feitas sobre a relevância das testemunhas inquiridas, designadamente a mencionada E..., não se encontram estruturadas de forma a preencherem os requisitos exigíveis pelos apontados artgs. 690.º-A e 712.º do Código de Processo Civil (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida), para poderem levar a uma possível impugnação da matéria de facto com subsequente possível modificação da mesma.
Assim sendo, temos pois como única questão a apreciar no âmbito deste recurso, a seguinte:
-Relevância Jurídica da saída da casa de morada de família por parte do A..    

III – FUNDAMENTOS
1.         De facto
Foram os seguintes os factos dados por provados na sentença:
a) Autor e ré contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, no dia 30 de Setembro de 1970.
b) No Verão de 2000, o autor saiu do lar conjugal.
c) Após estar separado da ré, o autor apresentou como sua companheira uma pessoa.
d) A ré não tem o propósito de restabelecer a vida em comum com o autor.
2. De direito
Apreciemos agora a questão supra indicada.

-Relevância Jurídica da saída da casa de morada de família por parte do A
Entende a recorrente que a sentença recorrida peca pelo facto de não ter sido imputada ao A. a culpa pela dissolução do casamento, pois que, na sua óptica, deveria o tribunal ter valorado a saída do A. do lar conjugal, como representando a violação da sua parte do dever de coabitação. Acrescenta ainda que cabia a ele fazer a prova de que a sua saída não se tinha ficado a dever a comportamento culposo por parte da Ré.
Afigura-se-nos não assistir razão à apelante.
Em primeiro lugar há que ter presente que a acção foi intentada pelo ora apelado, sendo certo que a causa de pedir por si apresentada se funda na separação de facto por três anos consecutivos (art.º 781.º, n.º 1, al. a) do Código Civil), pedido esse que veio igualmente a ser secundado pela Ré na sua reconvenção. Em qualquer dos casos as partes invocaram a culpa da contraparte na base da factualidade inerente a tal fundamento.
Convirá ter presente que os fundamentos do divórcio integram dois grupos distintos, consagrados em normas também diferentes:
- a violação culposa dos deveres conjugais, previsto no art. 1779.º, n.º 1, do Código Civil , fundamento do chamado divórcio-sanção;
- a ruptura da vida em comum, como prevenido nas al. a) e b) do art. 1781.º e n.º 1 do art. 1782.º do CC, causa do divórcio-remédio.
O primeiro grupo alicerça-se numa causa subjectiva, na medida em que o direito potestativo extintivo do vínculo conjugal que se propõe fazer valer, assenta na violação ilícita e culposa de, pelo menos, um dos deveres conjugais: respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
O segundo grupo, tem na sua génese uma causa objectiva, porquanto a sua relevância é independente de qualquer violação dos deveres conjugais que eventualmente lhe esteja subjacente e é justificada pela situação de ruptura da relação jurídica matrimonial por ela originada, derivada de separação de facto por três anos consecutivos e o propósito de, pelo menos um dos cônjuges, não pretender restabelecer a vida em comum (art.º 1781.º, al. a) e 1782.º, n.º 1, ambos do Código Civil).
Neste último caso, ainda assim, o legislador previu a possibilidade de haver declaração de cônjuge culpado, quando a mesma se verifique (art.º 1782.º, n.º 2 e 1787.º, do Código Civil.
Trata-se no entanto de causas distintas e autónomas de divórcio, alicerçadas em pressupostos diferentes (pois que o primeiro grupo carece sempre dum comportamento ilícito e culposo por parte dum dos cônjuges).
Ora, no caso presente, pese embora A. e Ré tenham nos respectivos articulados alegado factos indiciadores da culpa do outro na génese da ruptura da vida em comum, o que é facto é que nem um (A.), nem outra (Ré), os lograram provar, tendo-se apurado apenas que “no Verão de 2000, o A. saiu do lar conjugal”.  
A circunstância de se ter também apurado que “após estar separado da ré, o autor apresentou como sua companheira uma pessoa”, não é de molde a permitir a conclusão que a separação do casal se tenha ficado a dever a esse facto, desconhecendo-se ainda quer o momento (mês, ano) em que tal ocorreu, quer o modo como tal se terá processado.
Contrariamente ao que a Apelante refere, competia-lhe a si comprovar a factualidade que sugerisse a importância desse facto para a separação, à semelhança do que acontece com a parte sobre quem recai o ónus da prova da violação do dever de coabitação, atento o consagrado no assento n.º 5/94[1] (hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência nos termos do art.º 732-A do Código de Processo Civil), sendo a seguinte a doutrina do mesmo:
“No âmbito e para os efeitos do n.º 1 do art.º 1779.º do Código Civil, o Autor tem o ónus da prova de culpa do cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação.”
A não prova do circunstancialismo fáctico que envolve e subjaz à ruptura da vida em comum, não permite a especulação por parte do tribunal, sendo abusiva a afirmação feita pela apelante de que este deveria com base na experiência normal de vida, ter dado como provada determinada factualidade reveladora da conduta do A..
A apelante, se pretendia impugnar a matéria de facto dada por provada deveria tê-lo feito adequadamente, como já referimos supra, sendo certo que não tendo tal acontecido, não pode agora, em sede da apreciação de direito, vir questionar a motivação inerente à fundamentação que esteve na base das respostas dadas aos quesitos por parte da Meritíssima Juíza do processo.
Assente que se mostra tal factualidade, dúvidas não temos de que o direito que no caso foi aplicado é aquele que, na nossa óptica, melhor leitura faz da lei, pois que tendo-se provado a separação de facto por três anos consecutivos, havendo o propósito de não a restabelecer e desconhecendo-se a existência de factos concretos que possam ser imputados a qualquer deles, a título de culpa pela criação de tal situação, outra coisa não restava à Meritíssima Juíza que não fosse decretar o divórcio sem atribuição de culpas.
Consideramos assim que a sentença deverá ser confirmada.
IV – DECISÃO
Desta forma, perante todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, assim se mantendo a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Apelante.
Lisboa, 15 de Outubro de 2009.
(José Maria Sousa Pinto)
(Jorge Vilaça Nunes)
(João Vaz Gomes) 

[1] Publicado no DR I série A, de 24/03/94