PROPAGANDA POLÍTICA
GRAFFITIS
FALTA DE CONSCIÊNCIA
ILICITUDE
CRIME DE DANO
Sumário

I - Não constitui crime de dano, o acto de pintar vários desenhos e expressões de cariz político no muro exterior de uma escola, quando não se provou que os arguidos agiram cientes que a sua conduta era proibida por lei criminal, ainda que soubessem ser tal conduta proibida e punida pela Lei 97/98, como contra-ordenação.
II - E vindo provado que a Câmara Municipal procedeu à sua remoção, o que importou um custo de valor não concretamente apurado, nunca os factos seriam susceptíveis de integrar o tipo legal qualificado.

Texto Integral

1ª secção criminal
Proc. nº 4/14.6PMPRT.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:
No processo comum (tribunal singular), do Juiz 1 da secção Criminal da Instância Local do Porto, Comarca do Porto os arguidos B…, C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J… e K…, foram submetidos a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Pelo exposto, decido:
● Absolver B…, C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, K…, da prática, em co-autoria material, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art. 213° n.º 1, als. a) e c), do Código Penal.
● Sem tributação criminal.
● Julgo improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo Município N… e em consequência absolvo os demandados do pedido.
● Custas cíveis a cargo do demandante, sem prejuízo do disposto noart. 4º, n.º 1, al. n), do RCP.
● Após trânsito: extraia certidão da presente sentença, de fls. 3 a 7, do processo apenso e de fls. 3-4, 9-10 dos autos, e remeta à CMP para instrução do processo de contra-ordenação.
(…)
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
Os factos dados como provados na douta sentença recorrida integram os elementos objectivos do crime de dano qualificado, p. e p., pelos arts. 212º., e 213º., nº. 1 . als. a) e c) , do Cód. Penal.
2ª.
Na verdade, integra o conceito de desfigurar a alude o citado art. 212º., o acto de pintar e, no caso, concreto, o acto de pintar um muro.
3ª.
E, porque o muro em causa é o muro exterior de uma escola que pertence à Câmara Municipal N…, destinava-se ao uso e utilidades públicos.
4º.
Não foi, manifestamente, intenção do legislador, ao regular, nos termos em que o fez, o regime legal da afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda (Lei nº. 97/88, de 17/08) e, designadamente, tendo em conta o teor dos seus arts. 4º. e 10º., tomar posição no sentido da descriminalização de determinado tipo de acções, que expressamente qualifica contra-ordenação, acções essas que preenchem também todos os elementos do tipo objectivo do crime de dano, previsto no art. 212º., do Cód. Penal.
5º.
Para além da análise comparativa da norma do art. 212º., do Cód. Penal com o regime jurídico consagrado na Lei nº. 97/88, de 17/08, este mesmo sentido se retira da leitura da Reunião Plenária da V Legislatura, de 27/01/1988, in Diário da Assembleia da República, I Série, pag. 4542/3 e, do Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre o projecto de lei n.° 25/V (condiciona a afixação da publicidade ou de propaganda, bem como a realização de inscrições ou de pinturas murais), in DAR, I Série, pag. 393 e segs..
6º.
O critério para distinguir uns casos dos outros, ou seja, para distinguir se estamos perante a prática do crime de dano ou apenas de uma contra-ordenação, só pode ser o da maior danosidade social da acção, numa análise casuística.
O tribunal “a quo” apreciou, salvo o devido respeito, erradamente a prova produzida em julgamento, na medida em que deu como não provado o facto de os arguidos terem agido cientes que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
7º.
Concluir que os arguidos preencheram com a sua conduta o elemento subjectivo do crime de dano, resultou da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, a partir dos factos dados como provados na douta sentença recorrida, num raciocínio lógico e dedutivo.
8º.
A douta sentença recorrida apreciou, salvo o devido respeito, erradamente a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento ao dar como não provado que os arguidos ao agirem estivessem cientes que a sua conduta constituía um ilícito criminal.
9º.
E, violou, o disposto nos arts. 212º. e 213º., nº. 1, al. c), ambos do Cód. Penal.
Face ao exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, substituindo-se a douta sentença recorrida por outra que condene os arguidos B…, C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J… e K…, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de dano qualificado, p. e p., pelos arts. 212º., nº. 1 e 213º., nº. 1, als. a) e c), ambos do Cód. Penal, pois só assim se fará
(…)

Os arguidos responderam, pugnando pela improcedência do recurso.
O demandante Município N… respondeu pugnando pela procedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
1. No dia 31 de Maio de 2014, pelas 16h50m, os arguidos que pertencem à Juventude L… (…), actuando concertadamente e em conjugação de esforços e vontades, com vista a expressarem a sua opinião política e a fazer propaganda política, servindo-se de tintas de várias cores de que previamente se muniram, pintaram vários desenhos e expressões de cariz político, como, “Avante com Abril”, “L…”, “35 anos/1979-2014/Juventude L…”, “Pôr fim ao desastre”, “Derrota o Governo e a Politica de Direita”, vulgografitos, no muro exterior da Escola M…, sita na Rua …, no Porto, tal como se mostra retratado a fls. 9-10 e 390, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. A referida escola pertence à Câmara Municipal N… e destinava-se ao uso e utilidade públicas, como os arguidos bem sabiam.
3. Com tal conduta, os arguidos, desfiguraram, ofenderam a estética do muro exterior da supra referida Escola M…, o qual antes da intervenção daqueles encontrava-se apenas pintado de branco.
4. A Câmara Municipal N… - Departamento Municipal do Ambiente e Serviços Urbanos – procedeu à remoção dos grafitos, o que importou um custo de valor não concretamente apurado.
5. Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, de forma concertada, em conjugação de esforços e vontades com vista a expressarem a sua opinião política e a fazer propaganda política, na execução de um plano previamente delineado, bem sabendo que os grafitos executados alteravam a estética do aludido muro exterior da escola da Escola M…, bem sabendo que tal muro delimitava a área pertencente à Escola M… e que se destinava ao uso e utilidade públicas.
6. Sabiam também que o muro em causa lhes não pertencia, porque público, e que actuavam sem o conhecimento e consentimento da Município N…/Câmara Municipal.
7. Mais sabiam, assim, que a conduta levada acabo era proibida e punida pelaLei n.º 97/88, de 17.08.
8. A arguida B… é solteira; vive com a mãe e uma irmã, em casa arrendada; é estudante, frequentando o último ano do curso superior de sociologia; não tem rendimentos próprios; nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
9. A arguida C… é solteira; vive com os pais, em casa própria; é bióloga, encontrando-se a tirar o mestrado; não tem rendimentos próprios, pelo que beneficia do auxílio material de seus pais; nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
10. A arguida D… é solteira; vive com os pais, em casa própria; é estudante, frequentando o 4º ano do curso superior de medicina; não tem rendimentos próprios; nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
11. A arguida E… é solteira; vive com os pais; é jurista, encontrando-se na 2ª fase do estágio da advocacia; não tem rendimentos próprios, pelo que beneficia do auxílio material de seus pais; nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
12. O arguido F… é solteiro, vive com dois amigos em casa arrendada, pelo que mensalmente paga a título de renda de casa cerca de 163 euros (490/3); é funcionário da Juventude L…, auferindo cerca de 500 euros/mês; completou o 12º ano de escolaridade e frequentou o 1º ano do curso superior de sociologia; nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
13. A arguida G… é solteira; vive com os pais, em casa própria; é estudante, frequentando o 4º ano do curso superior de medicina; não tem rendimentos próprios; nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
14. O O arguido H… é solteiro, vive num quarto arrendado, pelo que mensalmente para 130 euros; é funcionário da Juventude L…, auferindo cerca de 500 euros/mês; frequentou o 4º ano do curso superior de escultura; beneficia do auxílio material dos pais; nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
15. O arguido I… é solteiro; vive com a mãe e uma irmã, em casa própria; é engenheiro, auferindo mensalmente cerca de 1200 euros; toca numa banda, pagando mensalmente 30 euros pelo espaço que ocupam para tocar e ensaiar; nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
16. A arguida J… é solteira; vive com os pais, em casa própria; é estudante, frequentando o 3º ano do curso superior de filosofia; não tem rendimentos próprios; nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
17. O arguido K… é solteiro; vive com os pais, em casa própria, contribuindo para as despesas da casa com uma quantia variável entre os 50 e os 100 euros/mês; é engenheiro, auferindo mensalmente cerca de 700 euros; toca numa banda; nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
Factos não provados.
Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados nos autos ou em audiência, nem outros, não escritos, contrários ou incompatíveis com os provados, nomeadamente que:
a) Os arguidos ao agirem nos termos descritos na factualidade provada estivessem cientes que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal, constituído, assim, tal conduta, um ilícito criminal.
b) O valor global do custo da remoção do mural e referido em 4), foi de €5.175,79€ (cinco mil cento e setenta e cinco euros e setenta e nove cêntimos).
c) O custo suportado pela Câmara Municipal N… - Departamento Municipal do Ambiente e Serviços Urbanos -, tenha ocorrido em consequência directa e necessária da conduta dos arguidos.
Motivação.
O decidido fundamenta-se na análise crítica e comparativa da prova por declarações dos arguidos, da prova testemunhal e documental produzida em audiência, a saber:
Desde logo valoraram-se os documentos de fls. 4, 7-8, 9-10, 390, bem como os certificados de registo criminal de cada um dos arguidos, todos juntos aos mais. Mais se valoraram os documentos de fls. 5 a 7 do processo apenso.
Todos os arguidos prestaram declarações, no mesmo sentido, ou seja que pertencem à Juventude L… (…), e que no dia 31 de Maio de 2014, pelas 16h50m, estavam a fazer um mural no muro da Escola M…, ou seja num muro público, com vista a expressarem a sua opinião política e a fazer propaganda política, servindo-se de tintas de várias cores para o efeito.
Confirmaram o teor de fls. 4 e 9-10.
Afirmaram que, quando apareceu a autoridade policial, explicaram que estavam a exercer um direito, nomeadamente um direito de expressão política e de manifestação política, tendo inclusive exibido a Lei n.º 97/88, de 17.08 que regula a afixação e inscrições de propaganda política, como forma de sustentar a licitude da sua conduta.
Ora, os arguidos na admissão dos factos objectivos que fizeram e ao invocarem expressamente aLei n.º 97/88, de 17.08, não podem alegar desconhecimento quanto à proibição da sua conduta, porquanto é a própria Lei que invocaram que qualifica como contra-ordenação (art. 10º) a violação ao seu art. 4º, pelo que tal alegado desconhecimento e a invocação da licitude da conduta revela-se, no caso em apreço, absolutamente contrária às regras da experiência comum e aos juízos de normalidade.
O assumir daqueles objectivos factos e o invocado conhecimento da Lei n.º 97/88, de 17.08, implica, conforme o modo normal de agir livre, consciente e deliberado de um ser humano adulto, a segura conclusão que os arguidos agiram de forma dolosa relativamente à prática da contra-ordenação supra referida.
O…, Director do Departamento de Ambiente e Serviços Humanos da CMN…, referiu que o mural, com cerca de 24 metros, foi pintado no muro exterior da Escola Pública M…. Para remoção do mural foi necessário pintar, por três vezes, o dito muro, o que durou um dia e foi realizado por uma equipa própria da CMN…. Mais explicou que o documento de fls. 7-8 é uma mera estimativa.
Assim por apurar ficou o valor exacto gasto pela CMN… na remoção do mural, pois que meras estimativas mostram-se insuficientes para se poder afirmar o real e verdadeiro custo suportado.
P…, limpador de fachadas a exercer funções para a CMN… referiu que ele próprio mais três colegas removeram o mural, pintando o muro, de novo, de branco, sendo que foi necessário três mãos de tinta para tapar todo o mural.
A prova assim produzida apenas permite concluir pela veracidade dos factos vertidos na factualidade provada e nada mais.
Com efeito, perante o declarado pelos arguidos e a sua provada conduta, impõe-se invocar o regime legal da afixação de propaganda política, que, em nosso entender, prevê a conduta dos arguidos como contra-ordenação, e que eles próprios tanto apregoaram perante a autoridade policial.
Assim, mesmo chamando à colação as regas da experiência comum e os juízos de normalidade, temos que nenhuma prova cabal foi feita que permita concluir, com a segurança constitucionalmente exigida, terem os arguidos agido cientes que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal, constituído, assim, tal conduta um ilícito criminal.
Ainda quanto ao valor da remoção do mural e já que se impõe chamar à colação o regime legal da afixação de propaganda política, temos que a própria lei prevê que não podem os órgãos executivos autárquicos mandar remover material de propaganda colocado em locais classificados ou proibidos por lei sem primeiro notificar e ouvir o infractor (arts. 5º n.º 2 e 6 n.º 2, da referida Lei n.º 97/88), dando assim a possibilidade de ser o próprio infractor a proceder à remoção suportando os inerentes custos que, como nos ditam as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, revelam-se inferiores aos custos que CMN… suportaria e/ou suportou ao proceder a tal remoção.
Nenhuma outra prova foi produzida.
(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
Erro de Julgamento;
e os factos cometidos pelos arguidos, integram o crime de dano p.p. pelo artº 212º nº1 e 213º nº1 al.a) e c) do CP;
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
O tribunal recorrido absolveu os arguidos da prática de um crime de dano p.p. pelo arº 213º nº1 al.c) do CP por considerar que a conduta provada integra uma contra-ordenação punida no artº 10º da Lei nº97/88 de 17/8 com a seguinte fundamentação:
A magistrada recorrente alega em síntese que “ para distinguir se estamos perante a prática de crime de dano ou apenas de uma contra-ordenação, só pode ser o da maior danosidade social da acção, numa análise casuística”, sendo a factualidade imputada aos arguidos na acusação integradora do crime de dano p.p. pelo artº 213º nº1 al.a) e c) do CP .
Face às questões colocadas no recurso e por uma questão de precedência lógica começamos por apreciar a questão do alegado erro de julgamento na apreciação da prova produzida e vício do artº 410º nº2 do CPP.
Alega o recorrente MP que “o tribunal apreciou erradamente a prova produzida em julgamento, na medida em que deu como não provado o facto de os arguidos terem agido cientes que a sua conduta era punida por lei criminal.”conclusão 6 e em sede de impugnação diz impugnar o facto provado sob o ponto 7 da matéria de facto provada, “Mais sabiam que a conduta levada a cabo era proibida e punida pela Lei nº 97/88 de 17/8” .
Muito embora o recorrente refira que impugna tal matéria de facto, a verdade é que não procede à impugnação da matéria de facto tal como a mesma se encontra prevista legalmente, no artº 412º nº3 e 4 do CPP, pois que embora indique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados jamais indica as concretas provas que impõem uma diferente decisão, e muito menos as concretas passagens por referência ao consignado na acta, conforme a interpretação afirmada no Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 3/2012, 8 de Março de 2012 publicado no DR 1º série de 18 de Abril de 2012, o qual fixou jurisprudência no sentido de que “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para efeitos do disposto no artº 412ºº nº3 alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.
Não há pois impugnação.
Invoca contudo o recorrente o artº 410º nº2 c) do CPP, parecendo ter em mente a invocação do vício do erro notório na apreciação da prova, quando invoca o recurso às presunções legais, e alega que quando o tribunal escreve na fundamentação de facto que “O assumir daqueles objectivos factos e o invocado conhecimento daLei n.º 97/88, de 17.08, implica, conforme o modo normal de agir livre, consciente e deliberado de um ser humano adulto, a segura conclusão que os arguidos agiram de forma dolosa relativamente à prática da contra-ordenação supra referida.…”, então “se esta conclusão se mostra absolutamente linear e lógica, necessariamente tem que conduzir a uma outra, também ela linear e lógica, que se resume ao facto de que, quem invoca uma determinada lei e diz conhecer o seu alcance, tem necessariamente que saber que destruir, desfigurar e tornar não utilizável coisa alheia, constituí um crime e que, a acção de pintar um muro, integra, necessariamente, o conceito de desfigurar; e, mais, não pode deixar de saber que a referida acção, pela danosidade social que comporta, ao afectar de forma relevante valores patrimoniais e ambientais, tutelados constitucionalmente, não pode deixar de merecer também tutela penal. ….”
Vejamos:
Como se escreveu em acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confecção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
Acresce que a existência de todos os vícios previstos no nº 2 do artº 410º do CPP tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. – cfr., por todos, ac. do STJ, de 19/12/90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este preceito.
Com o devido respeito por posição contrária, entendemos que no caso dos autos não se verifica o invocado vício de erro notório na apreciação da prova.
Na verdade, o facto dado como provado de que os arguidos sabiam ser a sua conduta proibida e punida pela Lei nº97/98 , conjugado com aquilo que foi escrito na motivação de facto de que os arguidos “.Afirmaram que, quando apareceu a autoridade policial, explicaram que estavam a exercer um direito, nomeadamente um direito de expressão política e de manifestação política, tendo inclusive exibido a Lei n.º 97/88, de 17.08 que regula a afixação e inscrições de propaganda política, como forma de sustentar a licitude da sua conduta.”, permite face às regras da experiência concluir que os arguidos estavam convencidos que se movimentavam no quadro de uma ilicitude contra-ordenacional e não de natureza penal. A circunstância de a actividade de inscrição de mensagens de propaganda se encontrar regulada na Lei nº 97/88 de 17 de Agosto, é para um cidadão comum e militante político, suficiente a nosso ver, para criar a convicção que está em causa a expressão de ideias políticas/propaganda através da pintura mural, conduta regulada naquela Lei e não no Código Penal que se prevêem as condutas consistentes na inscrição de mensagens daquele teor, sem que se surpreenda nesta conclusão a violação de alguma regra da experiência.
Tanto mais, que a questão da discussão da linha de fronteira entre matéria contra-ordenacional e criminal, em situações semelhantes à dos autos, pintura de mensagens políticas em muros, não faz parte daquelas condutas, cuja ilicitude seja conhecida de todos, no censo do cidadão comum ou de um militante de um partido.
Isto não obstante, e como é sabido, no que se refere ao elemento subjectivo, fora dos casos de confissão, tal materialidade terá de resultar necessariamente de prova indirecta, por se tratarem de elementos de estrutura psicológica.
Entende-se pois, que a sentença recorrida não enferma do vício do erro notório na apreciação da prova, invocado pelo recorrente.
Improcedente que foi a impugnação e não se detectando a existência de algum dos vícios do artº 417º nº2 do CPP, dá-se por estabilizada a matéria de facto.
A questão da integração no crime e dano p.p. pelos artºs 212º e 213º nº1 a) e c) do CP.
Dispõe o artº 213º nº1 do CP «Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável.
a) Coisa alheia de valor elevado;.
(…)
c) Coisa destinada ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos;»
Trata-se de um ilícito em que o bem jurídico protegido é a propriedade de coisa móvel alheia no caso da alínea a) e “valores ou interesses supra-individuais que nada têm a ver com a propriedade.”.[1]
Efectivamente o crime de dano é um crime de resultado, que exige a verificação de algum acto integrador do “acto de destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou inutilizar a coisa”.
E como escrevem Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayete por referência a Costa Andrade “ Destruir é devastar, desfazer, abater, demolir, derruba, extinguir, despedaçar, destroçar. Determina desde logo a perda da utilidade da coisa e conduz em regra ao sacrifício da sua substância.
Danificar é estragar, deteriorar, avariar. Comporta, em síntese, todos «os atentados à substancia ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição.
Tornar não utilizável é reduzir a utilidade duma coisa «segundo a sua função. Desde que se atinja a atinente corporeidade» ”[2]
No que ao caso releva na acção de Desfigurar compreendem-se segundo Costa Andrade “os atentados à integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, querida pelo respectivo proprietário. Como exemplo de escola: pintar uma estátua. A conduta típica abrange as pinturas nas paredes ou as colagens não autorizadas de cartazes, suposta a ultrapassagem mínima do patamar de danosidade social próprio do crime de Dano.”[3]
Trata-se de um crime doloso que admite o dolo eventual. Sendo que “ O dolo pressupõe o conhecimento de todos os elementos ou circunstâncias que determinam a qualificação do facto”[4]
Sendo um crime doloso, os factos provados só poderiam ganhar relevância penal se dos mesmos constassem quer o conhecimento do carácter ilícito da conduta, - momento intelectual do dolo - ,quer a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, - momento volitivo do dolo-. [5]
Lida a matéria de facto provada e não provada, verificamos que não ficou provado que “Os arguidos ao agirem nos termos descritos na factualidade provada estivessem cientes que a sua conduta era proibida por lei criminal, constituindo, assim, tal conduta um ilícito criminal”.
Não ficando provado o elemento relativo à consciência da ilicitude da conduta, há porém que avaliar nos termos do artº 17º nº1 e 2 do CP se essa falta de consciência da ilicitude é censurável aos arguidos, uma vez que a falta de consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável.
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias, “Tal falta não será censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, se exprime no facto não se fundamente em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder.”[6]
No caso em análise, os próprios autos elucidam a divergência jurídica sobre o entendimento de a conduta praticada ter ou não o carácter de ilícito penal ou contra-ordenacional, o que no caso concreto nos afasta daquele tipo de ilícitos que como se escreveu no acórdão da relação do Porto de 2/2/2005 são “tipos de ilícito velhos de séculos, cuja ilicitude de todos é conhecida”[7].
Poder-se ia ainda colocar a questão de saber se afirmada que está no ponto 6 da matéria provada, o conhecimento por parte dos arguidos, da proibição legal e da punibilidade da conduta pela Lei nº97/98 de 17/8, se tal não será suficiente para termos por verificado no caso o elemento da falta de consciência da ilicitude.
Entendemos que o conhecimento da ilicitude contra-ordenacional não basta à verificação do tipo penal, perfilhando nessa matéria o entendimento do Prof. Figueiredo Dias quando o mesmo escreve “Em síntese, é nossa convicção que o ilícito penal é portador de uma diferença qualitativa que o singulariza face às demais manifestações de ilicitude. À mera proibição da conduta acresce aqui necessariamente uma qualificação correspondente ao carácter fundamental dos bens jurídicos a proteger e à particular intolerabilidade social das formas de sacrifício tipicamente incriminadas. Nesta linha, a convicção de que uma conduta configura um ilícito civil, disciplinar ou contra-ordenacional não deverá valer, ao menos forçosa e imediatamente, como a consciência do ilícito que releva para a culpa jurídico penal. Assim parece impô-lo a indisfarçável descontinuidade – normativa e axiológico-material que separa aqueles ilícitos do ilícito jurídico penal.” [8]
O que se acabou de dizer não contende com o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei penal, pois que a consciência do desvalor jurídico penal nada tem a ver como esclarece ainda o Prof. Figueiredo Dias, “com o conhecimento pelo agente dos artigos lei ou sobre o que, acerca da questão tenha sido dito ou escrito por penalistas ou outros peritos.”[9]
Assim e concluindo, como concluímos, que a matéria de facto provada não integra o elemento subjectivo do crime de dano, mantém-se pois a absolvição ficando prejudicada a questão da resolução de concurso entre infracção penal e contra-ordenacional.
Nota-se que ainda que assim não se entendesse nunca a matéria provada integraria o crime de dano qualificado, uma vez que não ficou apurado o valor dos prejuízos, -cf. ponto 4 da matéria de facto não impugnado, pelo que para efeitos criminais e por força do princípio in dubio pro reo teria tais prejuízos de se considerar de valor diminuto o que face à remissão do nº3 do artº 213º do CP para o nº4 do artº 203ºCP implicaria a desqualificação do dano.
Improcede pois o recurso do MP, mantendo-se a absolvição dos arguidos pelo crime de dano que lhes vinha imputado, ainda que por fundamentação diferente da sentença recorrida.
Muito embora na resposta o demandante tenha alegado no sentido da condenação dos arguidos no pedido cível, não há que conhecer de tal questão, uma vez que nessa parte não foi interposto recurso pelo demandante.
III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e ainda que com outra fundamentação confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação artº 522º nº1 do CPP.

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 14 de Junho de 2017
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
____
[1] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial Tomo II, pág. 243Coimbra Editora 1999.
[2] Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayete Código Penal Anotado e Comentado pág 570.
[3] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial Tomo II, pág. 222, 242 Coimbra Editora 1999
[4] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial Tomo II, pág. 249Coimbra Editora 1999.
[5] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral tomo I, 2ª edição, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, pág.350, 366.
[6] Figueiredo Dias, ob cit, pág. 635.
[7] Ac. Rel.Porto de 2/2/2005 proferido no processo JTRPOOO37657 (relator António Gama)
[8] Ob.cit pág. 532.
[9] Ibidem.