ARTICULADOS
EXPRESSÃO OFENSIVA
RISCAR EXPRESSÕES OFENSIVAS
RESPONSABILIDADE CIVIL
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
NEXO DE CAUSALIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I. Após a reforma do Código de Processo Civil de 1995/96 desapareceu o poder de o tribunal mandar riscar expressões ofensivas contidas nos articulados.
II. O primeiro requisito para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é, pois, que o agente tenha assumido uma conduta culposa, que seja merecedora de reprovação ou censura em face do direito constituído. Como sucederá, em termos gerais, se o agente, na situação concreta, podia, e devia, ter agido de modo a não cometer o ilícito e não o fez.
III. O segundo requisito para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é que exista um nexo causal entre o facto praticado pelo agente e o dano, segundo o qual ele fica obrigado a indemnizar todos os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º).
IV. Admitindo-se que os lesados com o decesso de uma familiar devido a negligência médica sofreram danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e que se verificou conduta omissiva do Estado em produzir legislação que obstasse à prescrição do procedimento criminal, conduzindo a que não fossem julgados os pretensos causadores da morte por negligência da aludida familiar, não se verifica, todavia, nexo de causalidade entre a conduta negligente do Estado e os danos morais sofridos pelos lesados.
V. Com efeito, a conduta omissiva do Estado não foi causa nem condição dos danos sofridos pelos lesados, que teriam padecido esses mesmos danos se tal conduta se não tivesse verificado, sendo que a mesma conduta em termos abstractos não se mostrava adequada a produzi-los.
VI. A conduta do Estado apenas se poderia haver como causa adequada para não terem sido julgados criminalmente os eventuais responsáveis pelos danos que os lesados sofreram e pelos quais reclamaram indemnização. Mas não é por aqueles não terem sido julgados em processo-crime que os danos se produziram, até porque antes disso já se tinham verificado.
VII. Nem foi por aqueles não terem sido julgados em processo-crime que os lesados deixaram de poder reclamar a indemnização a que se julgam com direito, por lhes restar recurso à via cível, onde o direito à indemnização do mesmo modo podia ser invocado e justificado.
(PR).

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, A, B e C, todos com os sinais dos autos, intentaram a presente acção, sob a forma ordinária, contra Estado Português, pedindo a condenação deste a pagar-lhes a quantia que vier a ser liquidada.
Para tanto, e em síntese, alegaram que:
A esposa do 1º autor e mãe dos 2º e 3º autores, D, foi internada no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, a fim de ser sujeita a exames abdominais.
Na sequência destes exames D sofreu perfuração abdominal, geradora de peritonite, causada pela perfuração do intestino provocada pelo clister opaco, peritonite que foi a causa directa e necessária da morte daquela em 25 de Novembro de 1993.
O 2º autor apresentou, em 26 de Novembro de 1993 na Directoria de Lisboa da PJ, denúncia pela morte da mãe, que pensava dever-se a negligência médica, e declarou pretender procedimento criminal contra os responsáveis.
O inquérito que correu no seguimento daquela denúncia acabou arquivado em 16 de Novembro de 1998, sendo, porém, reaberto após junção aos autos do Parecer do Conselho Médico - Legal e, de novo arquivado, em 24 de Novembro de 1998, por despacho do M. P.
O 2º autor requereu a abertura de instrução e deduziu acusação contra 3 médicos.
O requerimento de abertura de instrução foi indeferido in limine pelo Juiz de Instrução que considerou prescrito o procedimento criminal, com base na doutrina dos Assentos nº 1/98 e 1/99, do STJ.
O 2º autor, assistente naqueles autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a que foi negado provimento, nos mesmos termos que em 1ª instância o Juiz do TIC o fizera, tendo os autos sido arquivados em definitivo.
Entendem os autores que tal resultado só foi possível porque o Estado não fez a necessária articulação entre o C. Penal de 1982 e o novo CPP de 1987, mormente no que tange à prescrição do procedimento criminal, deixando em vigor, ainda que só no papel, o art. 120º nº 1 alínea a) do C. Penal.
E dando origem à controvérsia entre se inquérito e instrução preparatória eram uma e a mesma coisa, ou coisas distintas, a qual veio a ser resolvida, no campo jurisprudencial, por dois acórdãos do STJ, os Assentos nºs 1/98 e 1/99, no sentido de que na vigência do C. Penal de 1982, redacção originária, a notificação do arguido para primeiras declarações no inquérito não interrompia a prescrição do procedimento criminal.
Em 1995 entrou em vigor a alteração ao C. Penal de 1982, procedendo-se à articulação deste diploma com o CPP, em matéria de prescrição do procedimento criminal, mas a necessária observância do disposto no nº 4 do art. 2º daquele diploma legal, que impõe a aplicação ao agente do regime mais favorável, determinou a prescrição do procedimento criminal em inúmeros casos, nomeadamente aquele a que se reportam estes autos.
Tal só sucedeu porque o Estado, em tempo, não curou de alterar o art. 120º do C. Penal de 1982, versão originária, permitindo, por desarticulação entre os diplomas, que muitos crimes ficassem por punir.
A omissão do Legislador - Estado, traduzida em permitir que a Lei Nova (CPP de 1987) não se harmonizasse com a Lei Penal, determinou o arquivamento de inúmeros processos, causando prejuízos aos seus administrados e aos autores em particular, que tinham o direito de fazer julgar os responsáveis pela morte de sua esposa e mãe, a qual só sobreveio por grave negligência profissional dos médicos, que identificam, que acabaram por ficar impunes pela omissão legislativa do Estado.
Os autores reclamam indemnização por danos não patrimoniais da falecida e próprios, cuja liquidação remetem para execução de sentença.
Em sede de contestação veio o Estado Português, e desde logo, excepcionar a prescrição do direito dos autores por haverem decorrido mais de três anos sobre a data em que os autores tomaram conhecimento dos direitos que alegadamente lhes assistem.
No mais, defendeu a tese de que no ordenamento jurídico português não existe enquadramento legal que permita responsabilizar civilmente o Estado por actos ou omissões imputáveis ao legislador. Mas, ainda que tal fosse possível, sempre a condenação do Estado em indemnização não poderia proceder porquanto falta um pressuposto da responsabilidade civil, qual seja, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Replicaram os autores procurando afastar a excepção da prescrição e, no mais, mantiveram a posição assumida na petição.
O réu veio apresentar requerimento alegando que os autores usaram a réplica para se pronunciarem sobre questões que não podiam.
A fls. 253/254 foi proferido despacho considerando assistir razão ao réu e desatendendo o alegado pelos autores nos arts. 35º a 218º da réplica.
Deste despacho foi interposto recurso, recebido como de agravo, com subida diferida e efeito meramente devolutivo, tendo os Recorrentes apresentado doutas alegações com as seguintes conclusões:
1a. O Réu, ora Agravado, veio defender-se na contestação invocando a excepção da prescrição e impugnando os factos alegados pelos AA, ora Agravantes.
2a. Contudo, na parte da impugnação, o Réu veio também defender-se com excepções inominadas, tendo todas e cada uma delas o mesmo objectivo que é fazer extinguir ou impedir o efeito jurídico dos factos alegados pelos AA.
3a. Os AA na réplica responderam à excepção de prescrição bem como a todas as outras excepções inominadas e não identificadas pelo Réu.
4a. Tendo-se oposto o Réu decidiu o Juiz a quo que "O R. (...) apenas deduziu excepção de prescrição e impugnou parte da matéria de facto alegada pelos  AA.  (...) fez a sua apreciação da acção do ponto de vista de subsunção jurídica. (...) Os AA apenas podiam ter-se pronunciado acerca da excepção de prescrição".
5a. Pelo que mandou desatender o alegado nos art.s 35° a 218° da réplica apresentada pelos AA.
6a. Contudo, os AA, ora Agravantes, na sua réplica responderam a verdadeiras excepções deduzidas pelo Réu.
7a.  Assim, o Tribunal a quo, ao desatender aos art.s referidos da réplica, violou o art.° 502° n° 1 do CPC.
8a. Ao contrário, o mesmo art.° 502° n° 1 do CPC deveria ter sido aplicado no sentido de admitir a réplica em toda a sua extensão.
9a. Por outro lado, o Juiz a quo mandou desentranhar, por falta de fundamento legal, que não indica, um documento que foi junto com a réplica.
10a. Condenando os AA em custas pelo incidente anómalo a que deram causa.
11a. Tal documento foi junto para prova do alegado na réplica nos termos do art.° 523° n° 1 do CPC.
12a. Acresce que a junção é justificada por não se tratar de um facto de que o Tribunal devesse ter conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
13a. Com efeito, trata-se de uma sentença proferida por outro Tribunal de 1a Instância.
14a. Assim, ao não admitir a junção aos autos do documento, ordenando o seu desentranhamento, o Juiz a quo violou os art. 523° n° 1 e 514º n°2, 1a parte, à contrario.
15a. Deveria ter interpretado e aplicado os mesmos artigos em sentido diametralmente oposto, isto é, no sentido de ser admitida a junção do documento em causa.
16a. Deve, pois, o documento manter-se nos autos sem que os AÃ sejam condenados em custas pelo incidente anómalo porque a junção é legal.
17a. Finalmente, o alegado pelo Réu, nos art.s 175 e 178° da contestação, constitui ausência de ética e uma suspeita sobre a integridade pessoal e profissional do anterior mandatário dos AA.
18a. Por essa razão, os AA requereram que fosse mandado riscar o alegado pelo Réu naqueles art.s 175° e 178°
19a. O ali alegado é totalmente desnecessário e injustificado para a defesa do Réu e constitui uma ofensa da honra e do bom nome do anterior Mandatário dos AA.
20a. O Juiz a quo indeferiu o requerido, mau grado admitir que as palavras utilizadas possam não ser felizes bem como o sentido que lhes é dado.
21a. Ao indeferir o requerido, o Juiz a quo violou o disposto no art.° 265° n° 1, com referência ao art.° 266-B n° 2 ambos do CPC.
22a. Pois deveria ter garantido a aplicação do art.° 266-B n° 2 repondo a correcção a que as partes estão obrigadas por forca do citado artigo.
Nos termos do disposto no art.° 744° do CPC, pode o Juiz a quo reparar o agravo, o que desde já se requer, no sentido de,
- as excepções identificadas pelos AA como tal serem reconhecidas e admitir-se a réplica nos precisos termos em que foi apresentada, por aplicação do art.° 502° n° l do CPC;
- manter-se o documento nos autos, sem que os AA sejam condenados em custas, porque a junção é legal e tempestiva, nos termos dos art.s 523° nº 1 e 514° n°, 1.ª parte, à contrario, ambos do CPC;
- ser ordenado que seja riscado o alegado pelo Réu nos art. 175° e 178° da contestação, por violação do art.° 266-B n° 2 do CPC.
Termos em que:
• devem ser reparados os despachos recorridos nos termos acima expostos e, caso assim não se entenda,
• deve ser dado provimento ao presente recurso de agravo, revogando-se despachos recorridos, admitindo-se a réplica com o Doc. n° 1 da mesma e ordenando-se a que sejam riscadas as expressões dos art.s 175° e 178° da contestação.
O Estado Réu contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador, especificada a matéria assente e elaborada a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo o réu do pedido.
Inconformados com a decisão, vieram o A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1a.  No dia 23/11/93, a D foi submetida, no Hospital Curry Cabral, a um exame ao abdómen - clister opaco.
2a.  Veio a falecer nesse Hospital em 25/11/93.
3a. A sua morte não foi devida a causas naturais mas teve como causa directa e necessária peritonite em consequência de perfuração no intestino provocada pelo clister opaco, o que permitiu a invasão da cavidade peritonial pelo bário utilizado no exame.
4a. O 2.° Apelante, em 26/11/93, apresentou na Directoria da Polícia Judiciária, em Lisboa, denúncia-crime por considerar que a D fora vítima de negligência médica - alínea F) da matéria assente e da fundamentação da sentença.
5a. A 16/11/98 os AA, ora Apelantes, foram notificados do despacho de arquivamento do inquérito, sem prejuízo de obtenção de melhor prova.
6a. O parecer, solicitado, do Conselho Médico-Legal foi junto aos autos em 23/11/1998.
7a. Nesse mesmo dia, o Ministério Público ordenou a reabertura do inquérito por considerar haver fortes indícios da prática pelos arguidos do crime de homicídio negligente p. e p. no art.° 136.° do CP/82 e propôs uma medida cautelar de detenção a fim de os médicos arguidos serem presentes ao JIC para 1.° interrogatório judicial, prestação de caução e aplicação de medida de coacção mais gravosa que o simples TIR já prestado.
8a. Esta pretensão foi indeferida pelo JIC e em 24/11/98 o Ministério Público, pela 2.a vez, ordenou o arquivamento dos autos, atento a junção tardia do parecer médico legal e o teor do Assento n.° 1/98 de 29/7/98.
9a. O 2.° Apelante requereu abertura de instrução e o JIC decidiu estar prescrito o procedimento criminal contra os arguidos por não ter ocorrido qualquer causa de interrupção ou suspensão da prescrição, mau grado terem sido constituído arguidos e terem prestado declarações, nessa qualidade.
10a. O 2.° Apelante recorreu desse despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento ao recurso fundamentando-se na Jurisprudência dos Assentos 1/98 e l/99doSTJ.
11a. O Estado é o único titular do jus puniendi e só ele pode legislar em matéria criminal e processual criminal.
12a. O Estado tem o dever constitucional de fazer leis que garantam aos administrados segurança, justiça, certeza no direito, garantindo aos administrados/ cidadãos que, uma vez violado o seu direito, eles possam recorrer aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos - art.° 20.° n.os 1 e 5 da CRP.
13a. E o Estado deve garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito - art.° 9.° alínea b) da CRP.
14a. O Estado, ao não legislar, harmonizando, como lhe competia, o Código Penal de 1982 com as inovações trazidas pelo novo Código de Processo Penal de 1987, em matéria de interrupção da prescrição do procedimento criminal, não alterando a redacção do art.° 120.° do CP de 1982, praticou um acto ilícito e culposo.
15a. O Estado é civilmente responsável por omissões praticadas no exercício das suas funções de que resulte violação dos direitos, liberdade e garantias - art.° 22.° da CRP.
16a. Os médicos que assistiram D foram constituídos arguidos e prestaram as primeiras declarações perante o agente policial, por delegação de poderes do MP.
17a. O Assento 1/98 e, sobretudo, o Assento 1/99 do STJ, ao interpretar o art.° 120.°, n.° 1, alínea a), do CP de 1982 quanto à interrupção da prescrição do procedimento criminal, veio impor aos Tribunais que a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente como arguido no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompia a prescrição do procedimento criminal ao abrigo do disposto no mencionado artigo 120º.
18a. Em 25/11/98 ocorreu a prescrição do procedimento criminal dos arguidos porque o Estado legislador não alterou, como lhe competia, o art.° 120.° do CP de 1982 para ficar de harmonia com o CPP de 1987.
19a. A CRP, no seu art.° 24.°, consagra o direito à vida como o primeiro dos direitos fundamentais, como um bem inviolável que deve ser protegido e que constitui o pressuposto de todos os outros direitos, que é anterior ao próprio Direito.
20a. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em vigor no nosso País desde 9 de Novembro de 1978, consagra no n.° 1 do art.° 2.° que o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei e ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida.
21a. Da interpretação feita pelos órgãos que aplicam a Convenção, resulta desta norma que as pessoas têm o direito de exigir do Estado as medidas necessárias e adequadas para a protecção da sua vida, nomeadamente a obrigação de incriminar os atentados à vida e de perseguir os autores de homicídios e que a mesma abrange a morte por imprudência.
22a. O Estado é responsável pelos prejuízos causados pela omissão legislativa ao impedir que os Apelantes vissem apurada a responsabilidade criminal dos médicos que, no entendimento dos Apelantes, causaram a morte prematura da D em violação do direito à vida.
23a. A razão para o não apuramento da responsabilidade criminal dos médicos arguidos é a prescrição do procedimento criminal decorrente da irrelevância, como causa de interrupção da mesma, da sua constituição como arguidos atempadamente e da prestação de declarações nessa qualidade, perante agente policial por delegação de competência do MP.
24a. A lei processual penal, no art.° 238.°, exige apenas indícios suficientes de se ter verificado crime para que seja deduzida acusação.
25a. Dos autos de inquérito n.° ..., para o qual remete a fundamentação da sentença como prova documental, resulta que havia fortes indícios de os médicos terem praticado o crime de homicídio negligente - despacho de reabertura do inquérito.
26a. A reabertura do inquérito e requerimento a solicitar ao J1C a passagem de mandados de detenção contra os médicos arguidos demonstra a convicção, segura, de que estes arguidos poderiam ser responsabilizados pela morte prematura de D.
27a. A protecção do direito à vida perante o facto morte que constitui a violação desse mesmo direito só era possível com o apuramento da responsabilidade dos médicos arguidos e, com o apuramento dessa responsabilidade, a imposição de uma pena e o ressarcimento dos danos causados por essa morte.
28a. O apuramento da responsabilidade criminal é dissuadora de comportamentos futuros idênticos e, como tal, assim se protege, também, o direito à vida.
29a. Com esta acção os AA, ora Apelantes, não pretendem, nem nunca pretenderam, a condenação do Estado pela morte de D e o que reclamam do Estado não é uma indemnização pela morte da D.
30a. O que os Autores pretendem é a condenação do Estado pela falta de protecção do direito à vida pela morte da D, protecção essa que após a sua morte só podia concretizar-se pelo apuramento da responsabilidade criminal dos seus autores.
31a. E uma indemnização pela violação do seu direito à tutela do direito à vida da D por omissão legislativa.
32a. O dano, alegado e provado nos autos, é a falta de tutela jurisdicional do direito à vida na esfera jurídica dos Apelantes em relação à morte de D.
33a. A prescrição do procedimento criminal dos arguidos foi a única causa para os AA, ora Apelantes, não terem visto apurada a responsabilidade criminal dos médicos que assistiram D no Hospital Curry Cabral.
34a. Por ter não ter sido interrompida a prescrição com a constituição de arguidos e as declarações prestadas pelos arguidos, quando as restantes condições para o apuramento desse responsabilidade criminal estavam reunidas levando a uma mais que provável condenação.
35a. O nexo de causalidade entre a omissão legislativa, de que o Estado é o único autor, e o dano acima identificado é evidente, porquanto, caso não tivesse existido a prescrição do procedimento criminal, o MP deduzia acusação uma vez que requereu a passagem de mandados de detenção.
36a. O MP não reabre um inquérito que encerrou, sem prejuízo de melhor prova, e não requer mandados de detenção contra arguidos se não pretender deduzir acusação contra esses arguidos.
37a. Foi, pois, a prescrição que impediu a prossecução, fundada, do procedimento criminal.
38a. E a prescrição resultou da omissão legislativa.
39a. O Estado, com o seu comportamento ilícito e culposo, como a sentença reconhece, por não ter harmonizado, em tempo útil, a lei adjectiva com a lei substantiva, esvaziando o conteúdo do art.° 120.° do CP de 82, não deu aos AA, ora Apelantes, a possibilidade, tutelada por lei em obediência ao princípio constitucional do direito à vida, de verem apurada a responsabilidade criminal dos médicos arguidos.
40a. O Estado não podia ignorar que com a sua actuação provocaria, como provocou, danos na esfera jurídica dos Apelantes.
41a. Contrariamente ao decidido na sentença recorrida, estão alegados e provados nos autos os dois pressupostos da responsabilidade civil - dano e nexo de causalidade - que a sentença não reconhece.
Os Apelantes mantêm o interesse na subida do recurso de agravo que, oportunamente, interpuseram.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a sentença e substituindo-a por outra que condene o Estado a pagar aos Apelantes o que vier a ser liquidado em execução de sentença.
O R. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Admitidos os recursos na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento dos mesmos, cumpre decidir.
As questões a resolver são as de saber:
a) Quanto ao Agravo – Se a réplica era de admitir nos termos em que foi apresentada, bem como o “documento” com ela junto e se os artigos 175º e 178º da contestação deviam ser riscados.
b) Quanto à Apelação Se se verificam os necessários pressupostos para responsabilizar o Estado Recorrido pelos danos sofridos pelos Apelantes.
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II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos, que se aceitam, mas expurgada da matéria de direito que abaixo se assinala:
A) D faleceu em 25/11/93, pelas 17H30m.
B) D contraiu casamento com o 1.º autor, em 04/04/54.
C) O 2.º autor, é filho da falecida e do 1.º autor.
D) A 3.ª autora, é filha da falecida e 1.º autor.
E) O Hospital Curry Cabral é propriedade do Estado e está integrado no sistema hospitalar que o réu administra.
F) Em 26/11/1993 o 2.º autor apresentou na Directoria da Polícia Judiciária, em Lisboa, denúncia - crime por considerar que a mãe fora vítima de negligência médica.
G) Logo declarou que pretendia procedimento criminal contra os responsáveis.
H) Autuado como inquérito com o NUIPC ... foi o mesmo confiado à Polícia Judiciária a necessária investigação tendo corrido termos pela Secção – (...) daquela Polícia.
l) Foram ouvidas nos autos todas as pessoas que pudessem saber algo ou que tivessem tido participação.
J) Em 10/02/95 o agente investigador elaborou o relatório final.
L) Informou o Sr. Inspector da Secção da P.J. que se "dá esta investigação por finda" e despachou os autos para o DIAP nesse mesmo dia 10 de Fevereiro.
M) Na mesma data o Magistrado do Ministério Público ordenou a devolução dos autos à P.J. para novos interrogatórios a pessoas já inquiridas e fixou o prazo de 60 dias para cumprimento.
N) Em 13/03/95 são ouvidas como arguidos as seguintes pessoas: - técnica de RX; - Dr. … cirurgião; - Dra. … médica nefrologista; - Dra. … médica nefrologista; - Dr. … cirurgião; - Dr. … médico radiologista.
O) Todos foram notificados como arguidos, nos autos de inquérito referenciados e todos são, ou eram, funcionários do Hospital Curry Cabral.
P) O agente notificante actuou no âmbito de competência delegada pelo Ministério Público.
Q) O Magistrado do Ministério Público entendeu que não havia indícios suficientes recolhidos no inquérito e resolveu solicitar parecer ao Conselho Médico-Legal em 18/02/98.
R) Houve insistências do DIAP para receber a resposta/parecer.
S) O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento dos autos em 16/11/98.
T) Em 23/11/98 foi junto aos autos o parecer do Conselho Médico-Legal.
U) O M.P. ordenou a reabertura dos autos de inquérito e requereu ao J.l.C. a passagem de mandados de detenção contra alguns dos arguidos, dos que haviam sido notificados.
V) O JIC indeferiu esta pretensão.
X) Em 24/11/98 o M.P., pela 2.ª vez, ordenou o arquivamento dos autos.
Z) Notificado deste despacho o 2.º autor, assistente naqueles autos, no prazo legal, requereu a intervenção do JIC e deduziu acusação contra os médicos …..
AA) O J.l.C. decidiu estar prescrito o procedimento criminal contra os arguidos.
BB) Deste despacho agravou o assistente para o Tribunal da Relação alegando que o indeferimento liminar do requerimento de abertura de instrução violava o disposto no art. 120º, n.º 1 a) do C.P.
CC) O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão em 10/02/00 fundamentando-se nos Assentos 1/98 e 1/99 do STJ e negou provimento ao agravo tendo os autos sido definitivamente arquivados.
[DD) Pela Lei n.º 24/82 de 23/08 a A.R. concedeu ao Governo autorização legislativa para aprovar o novo Código Penal.
EE) No uso dessa autorização o Governo publicou o Código Penal de 1982, aprovado pelo Dec. Lei n.º 400/82 de 23/09, que entrou em vigor em 01/01/83.
FF) A C.R.P. revogou a situação da fase investigatória estar confiada, até então, ao Ministério Público (art. 14.º do Dec. Lei no 35.007 de 13/10/45) regressando ao sistema estabelecido no C.P.P. de 1929 (art. 159.e).
GG) A legislação avulsa publicada entre o C.P./82 e o C.P.P./87 manteve a figura da instrução preparatória, a qual estava a cargo de um Juiz de Direito, apesar de ter criado o inquérito policial (depois alterado para inquérito preliminar) para a investigação dos crimes menos graves.
HH) No uso de autorização legislativa - Lei n.º 43/86 de 26/09 - o Governo publicou o Código Processo Penal de 1987, que entrou em vigor em 01/01/88.
II) O C.P.P./87 trouxe de regresso a fase de investigação confiada ao Ministério Público tendo ao Juiz ficado reservada a fase de Instrução.
JJ) A denominada "instrução preparatória" desapareceu no actual ordenamento adjectivo.
LL) A redacção do art. 120 nº 1 a) do C.P./82 mantinha a referência a "instrução preparatória".
MM) Na interpretação deste artigo (versão original) alguma doutrina defendeu que "inquérito" era o mesmo que "instrução preparatória".
NN) Outros argumentaram que não poderia ser o mesmo instituto uma vez que o "inquérito" cabe ao Ministério Público e a "instrução preparatória" cabe a um Juiz de Direito.
OO) Esta polémica foi resolvida, no campo jurisprudencial, por dois Acórdãos denominados Assentos no 1/98 e 1/99 do STJ e ficou decidido o seguinte:
"Na vigência do Cód. Penal de 1982, redacção original, a notificação para as primeiras declarações, para conferência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no art. 120.9 n.91, alínea a), daquele diploma".
PP) Em 01/10/95 entrou em vigor o C. P. Revisto que procedeu à articulação com o diploma adjectivo em matéria de interrupção de prescrição do procedimento criminal, designadamente na redacção dada ao art. 121º.
QQ) A disposição do art. 120º do C.P. foi mantida para os processos instaurados até 31/12/87 (art. 11º do Dec. Lei n.º 48/95).][1]
RR) D foi internada, em 22/11/93, no Hospital Curry Cabral, em Lisboa.
SS) Deu entrada, pelas 19 horas desse dia, naquele Hospital, para, uma vez ali internada, se sujeitar a exames abdominais.
TT) Tal internamento, e para aqueles fins, fora indicado pelo seu médico assistente, Dr. .., Nefrologista e a pedido daquela.
UU) A paciente ficou acamada no Serviço de Metrologia (Serviço 8) daquele estabelecimento hospitalar.
W) O internamento de D destinou-se a auxiliar a paciente nos preparativos do exame radiológico abdominal por clister opaco.
XX) No dia 22/11/93 foram feitos os clisteres de limpeza, preparatórios do acto médico a realizar no Serviço de Radiologia do Hospital.
ZZ) No dia 23/11/93 foi a D submetida a esse acto médico pelo Sr. …, Radiologista.
AAA) O qual foi auxiliado por uma técnica de RX, ….
BBB) Esta técnica introduziu na ampola rectal a sonda própria.
CCC) Através da qual correria, como correu, o contraste, uma papa de bário que se destina à visualização radiológica.
DDD) Foram feitas várias "chapas", acompanhadas de manobras mecânicas com a sonda.
EEE) O radiologista ordenou, então, novas "chapas", mas abrangendo o corpo da ampola rectal.
FFF) O radiologista, Dr. …, ao ver as imagens verificou que as mesmas não eram típicas.
GGG) O radiologista, Dr., …., equacionou a hipótese de ruptura do intestino de D.
HHH) D sofria de insuficiência renal crónica.
III) O que este Médico sabia.
JJJ) O radiologista, Dr. …., afastou a hipótese referida na resposta ao quesito 14º da Base Instrutória (alínea GGG), após ter verificado que o material utilizado na realização do exame não era susceptível de causar traumatismo no intestino.
LLL) O médico radiologista, …., não escreveu a sua leitura das várias "chapas" tiradas.
MMM) O Dr. … telefonou para o seu chefe hierárquico, Dr. …
NNN) No telefonema referido na resposta conferida ao quesito 24º da Base Instrutória (alínea MMM), o Dr. … transmitiu ao Dr. … que D tinha sido sujeita a clister opaco e apresentava síndroma doloroso posterior.
OOO) O Dr. Fernando Gomes Ramalho aconselhou o Dr. Luís Botelho a administrar à paciente laxantes orais para a eliminação do bário.
PPP) A enfermeira … e outro colega recusaram-se a administrar outros clisteres de limpeza.
QQQ) O facto referido na resposta conferida ao quesito 28º da Base Instrutória (alínea PPP) ocorreu na madrugada de 24/11/93.
RRR) Pelas 08H00m da manhã desse dia o cirurgião Dr. ... foi ao Serviço 8 ver D.
SSS) Perante o quadro de peritonite, o cirurgião, Dr. …, decidiu intervencionar cirurgicamente a doente D.
TTT) Aberto o abdómen, por laparotomia, verificou que o mesmo continha grande quantidade de massa de bário.
UUU) E concluiu pela perfuração no intestino provocada pelo clister opaco o que permitiu a invasão da cavidade peritonial pelo bário e a consequente peritonite.
VVV) A qual foi causa directa e necessária da morte da D.
XXX) Os Drs. …. têm formação académica de uma Faculdade de Medicina.
ZZZ) Prática hospitalar.
AAAA) De clínica particular.
BBBB) E dispuseram de meios técnicos e humanos.
CCCC) Teor do relatório da policia judiciaria, constante de fls. 155 a 161 dos Autos de Inquérito nº …, que correu termos no Juízo-A do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
DDDD) O Ministério Público determinou um primeiro arquivamento dos autos de Inquérito nº …, com os fundamentos do despacho de fls. 336 a 338 desses autos, sem prejuízo de obtenção de melhor prova, o que veio a suceder com a junção posterior do parecer solicitado ao Conselho Médico - Legal.
EEEE) D sofreu dores com a peritonite.
FFFF) Os AA sentiram-se e sentem-se perturbados.
GGGG) Revoltados.
HHHH) E com sofrimento interior.
IIII) O 2º A estando em França, foi avisado que era melhor vir a Lisboa atento o estado de saúde de sua mãe.
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III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
a) Quanto ao Agravo.
Se a réplica era de admitir nos termos em que foi apresentada, bem como o “documento” com ela junto e se os artigos 175º e 178º da contestação deviam ser riscados.
Importa, antes de mais, chamar à colação o despacho recorrido, que é do seguinte teor:
“Veio o R requerer que fosse julgada não escrita a matéria alegada nos art. 35° e ss da réplica uma vez que, atento do disposto no art. 502° do C.P.C., os AA apenas podem responder à reconvenção (que não foi deduzida neste caso) e à matéria de excepção (no caso em apreço apenas foi deduzida a excepção de prescrição).
Os AA foram notificados e nada disseram.
Dedidindo.
Dispõe o art. 502° do C.P.C.:
1. À contestação pode o autor responder na réplica, se for deduzida alguma excepção e somente quanto à matéria desta; a réplica serve também para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, mas a esta não pode ele opor nova reconvenção. (...)
O art. 487° n° 1 e 2 do C.P.C, dá a noção da defesa por impugnação e a de defesa por excepção.
Como refere Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, 2a ed, 122) defesa por impugnação "é toda a defesa directa, toda aquela que ataca de frente o pedido, contradizendo os factos aduzidos pelo autor como constitutivos do seu direito, ou do efeito jurídico que deles pretende tirar o Autor (inconcludência da petição)" e defesa por excepção "é toda a defesa indirecta; toda a defesa que não seja por impugnação; toda a defesa que não se traduz, portanto, num ataque frontal à pretensão do Autor ( ....), mas tão somente num ataque lateral ou de flanco".
Neste último caso as excepções podem ser dilatórias ou peremptórias. As primeiras consistem na arguição de irregularidades ou de vícios de natureza processual que obtém à apreciação do mérito da causa no processo de que se trata ou no tribunal onde a acção foi instaurada pelo que conduzem à absolvição da instância ou ao reenvio do processo para outro tribunal. As segundas traduzem-se na invocação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor pelo que levam à improcedência total ou parcial da acção - art. 493° do C.P.C..
Vejamos o caso em apreço.
Os AA pedem a condenação do R no pagamento de uma indemnização a liquidar em execução de sentença. Fundamentam tal pretensão na responsabilidade civil do Estado por omissão legislativa.
O R, na sua contestação, não apresentou pedido reconvencional, apenas deduziu excepção de prescrição e impugnou parte da matéria de facto alegada pêlos AÃ. Concomitantemente fez a sua apreciação da acção do ponto de vista de subsunção jurídica.
Os AA, na sua réplica, pronunciaram-se sobre a excepção de prescrição e apresentaram a sua subsunção jurídica dos factos, a qual não é coincidente com a do R.
Assim sendo, e atento o acima referido preceito legal, os AA apenas podiam ter-se pronunciado acerca da excepção de prescrição. Há que desatender o alegado sob o art. 35° a 218° da réplica.
Pelo exposto, desatendo o alegado sob os art. 35° a 218° da réplica.
Notifique
Fls. 190 a 214:
Como é sabido o Tribunal não está vinculado a decisões proferidas noutros autos.
Acresce que incumbe ao Tribunal conhecer a doutrina e a jurisprudência referente às questões que são suscitadas e proferir decisões devidamente fundamentadas.
Assim sendo, e por falta de fundamento legal, não admito a junção aos autos da cópia da decisão proferida no âmbito dos autos n° ... que correram termos na Vara,  secção e ordeno o seu desentranhamento e a sua entrega aos apresentantes.
Custas pelos AA pelo incidente anómalo a que deram causa fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (art. 16° do C.J.J.).
Notifique.
Vieram os AA, na réplica, requerer que se "mande riscar" na contestação o alegado pelo R sob os art. 175° e 178° uma vez que entende que o alegado constitui ausência de ética e uma suspeita sobre a integridade pessoal e profissional do seu advogado.
O R pronunciou-se dizendo que a matéria alegada nesses artigos não se pode descontextualizar do todo de que são parte integrante.
Vejamos.
Admite-se que as palavras utilizadas nos artigos da contestação possam não ser felizes, bem como o sentido que lhes é dado, mas tais frases inscrevem-se num todo que é a contestação, a qual consubstancia a defesa do Estado. Acresce que entendemos que de tais palavras não resulta inequivocamente a conclusão que o Ilustre Mandatário dos AA tira.
Pelo exposto, indefiro o requerido.
Notifique”.
Ora, o despacho recorrido mostra-se correctamente fundamentado e não merece qualquer censura, em qualquer dos segmentos pelos quais foi impugnado.
Na verdade, a 1.ª instância decidiu bem ao mandar desatender o alegado nos art.s 35° a 218° da réplica apresentada pelos AA., uma vez que o Réu apenas deduziu a excepção da prescrição, não tendo apresentado qualquer pedido reconvencional, pelo que apenas a essa matéria da excepção da prescrição os AA podiam responder.
Alegam os AA que para além daquela excepção responderam a excepções inominadas invocadas pelo Réu, tendo todas e cada uma delas o mesmo objectivo que é fazer extinguir ou impedir o efeito jurídico dos factos alegados pelos AA.
Sucede que os Agravantes carecem de razão, pois que, na réplica que apresentaram, após responderem à excepção da prescrição, abriram um longo capítulo de resposta à defesa em matéria de direito deduzida pelo Réu, subdividindo-a em vários capítulos, sob a designação de “excepção inominada” disto e daquilo, de modo a poderem responder ponto por ponto a toda o arrazoado da contestação e ainda aditarem variados comentários sobre diversos temas, nem sempre com precavido a-propósito.
Porém, não é por se designar por excepção determinada argumentação jurídica que a excepção existe.
Com efeito, estamos no âmbito de excepções peremptórias, que, nos termos do art. 493º/3 do CPC, “consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor”.
No caso em apreço não se descortina que o Estado Réu, para além dos factos relativos à prescrição, tenha invocado outros factos integradores de qualquer diferente excepção impeditiva ou extintiva do direito dos AA.
Por outras palavras: os AA ao apresentarem a réplica, nos seus artigos 35° a 218°, não responderam a quaisquer factos que o Réu tivesse alegado e que fossem susceptíveis de consubstanciar factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelos AA na acção. Responderam sim à argumentação de ordem jurídica aduzida pelo Réu no sentido de convencer da improcedência da acção.
Mas a invocação do direito que se entenda por aplicável e determinante da improcedência da acção não tem, necessariamente, que pressupor uma alegação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, porque basta impugnar a veracidade dos factos invocados como causa de pedir para se defender a improcedência da acção ou demonstrar que, embora verdadeiros, não sejam os mesmos conducentes à sua procedência.
In casu o que o Réu fez foi procurar convencer que os factos invocados como causa de pedir não podiam sustentar, em face do direito constituído e do entendimento doutrinário, o pedido formulado.
Em face disso os AA responderam ao direito invocado, arguindo nada menos que 11 (onze) “excepções inominadas” a atacar a argumentação deduzida pelo Réu. A serem verdadeiras tais excepções, todo o direito aplicável ao desfecho da acção ficaria estabelecido pelo conhecimento das ditas excepções no despacho saneador, o que constituiria imbróglio jurídico nunca visto.
Mas entende-se por que é que os AA engendraram tão estranhas excepções. É que os mesmos, afinal, o dizem no final da réplica: “..a uma extensa e repetitiva contestação teve que responder uma também extensa e repetitiva réplica”.
É elucidativo e avaliza a conclusão de que as invocadas excepções inominadas não são verdadeiras excepções, em face do nosso direito processual, pelo que bem decidiu a 1.ª instância ao desatender a matéria alegada nos art.s 35° a 218° da réplica apresentada pelos AA.
Quanto ao desentranhamento do documento:
Alegam os Recorrentes que tal documento foi junto para prova do alegado na réplica nos termos do art. 523°/1 do CPC e que a junção é justificada por não se tratar de um facto de que o Tribunal devesse ter conhecimento por virtude do exercício das suas funções, por tratar-se de uma sentença proferida por outro Tribunal de 1.ª Instância.
Ora, conforme decorre do art. 543º/1 do CPC, o critério que a lei estabelece com vista à não admissão de documentos reside na sua impertinência ou desnecessidade. Assim, juntos aos autos documentos e assegurado o contraditório, o juiz, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, não os admitirá no processo, mandando retirá-los e ordenando a sua entrega ao apresentante.
Assinala A. dos Reis que “cumpre ao juiz recusar tudo o que for impertinente ou meramente dilatório (…) Assim como pode e deve recusar o exame ou a vistoria, se entender que a diligência é impertinente ou dilatória, pode e deve o juiz recusar a junção de documentos que considere impertinentes ou desnecessários.
Documentos impertinentes são os que dizem respeito a factos estranhos à matéria da causa; documentos desnecessários são os relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da acção.
Compreende-se perfeitamente que ao juiz seja dado exercer a fiscalização estatuída nos arts (….); o processo não deve ser uma espécie de barril de lixo em que as partes possam despejar todas as excrecências e resíduos que lhes apraza acumular[2].
A actuação do juiz deve, pois, ter por objectivo obstar a que ao processo sejam trazidos documentos que não sirvam os interesses do mesmo processo, traduzindo-se não só na prática de actos inúteis, como até de actos que acabam por prejudicar o normal desenvolvimento da lide, o que a lei em qualquer dos casos não admite.
Mas a desnecessidade ou impertinência dos documentos terá, todavia, de ser objectiva e manifesta, a fim de não se poder gerar discussão razoável à volta do tema, arredando-se, por isso, qualquer subjectivismo na apreciação. 
Assim, serão impertinentes os documentos que, por sua natureza, não possam ter qualquer influência na decisão da causa, ou por dizerem respeito a factos que lhe sejam estranhos, ou por representarem factos irrelevantes para a decisão, ou ainda por o seu conteúdo ser de tal modo inócuo que dele nada possa resultar.
E serão desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, nada sejam susceptíveis de acrescentar no bom desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostrem devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constem do elenco a apurar na discussão da causa, ou ainda por os autos já se mostrarem instruídos por documentos de igual ou superior relevo.
Ora, no caso vertente os Recorrentes pretenderam juntar aos autos como pretenso documento uma sentença proferida noutro tribunal de 1.ª instância, mas tal junção poderá considerar-se impertinente e desnecessária, por não poder ter qualquer influência na decisão da causa nem sequer algo acrescentar para essa decisão.
Aliás uma decisão judicial, em bom rigor, nem é um documento que possa ser oferecido ao abrigo do regime de junção de documentos previsto nos art.s 523º e 543º do CPC.
Quando muito poderia defender-se a sua natureza de parecer técnico e pedir-se a sua junção ao abrigo do art. 525º do CPC.
Porém, os pareceres técnicos, como tem sido entendido na doutrina[3] e na jurisprudência[4], dizem respeito, por regra, a questões de facto, e destinam-se a esclarecer o tribunal sobre o alcance e significado de determinada facticidade de natureza técnica, cuja interpretação exija conhecimentos específicos, ainda que também possam ter por objecto dilucidar questões de direito, inerentes à interpretação e aplicação da lei.
Em qualquer das situações, o parecer dos técnicos terá que versar e analisar questões em apreço no âmbito da acção, fornecendo ao julgador elementos de informação, coadjuvantes da decisão a proferir, no desiderato de que esta seja acertada.
Todavia, o tribunal não terá de aceitar como parecer o que o não seja. E uma decisão judicial proferida em determinado processo não tem que ser entendida como parecer técnico em relação à decisão a proferir noutro processo, ainda que respeite à mesma questão de direito, por não ter sido produzida com tal finalidade.
Por isso, tendo o juiz recorrido entendido que não havia fundamento legal para a junção, por o tribunal não estar vinculado a decisões proferidas noutros autos, o que tem subentendido ter considerado no caso a junção como impertinente ou desnecessária, nada há a censurar na decisão recorrida, ainda que se saiba que alguns juízes toleram a junção ao processo de sentenças sobre a mesma matéria e daí também não decorre prejuízo de assinalar.
Quanto à matéria que os Recorrentes pretendem ver riscada do articulado da contestação:
Invocam os Recorrentes que o alegado pelo Réu, nos art.s 175º e 178° da contestação, constitui ausência de ética e uma suspeita sobre a integridade pessoal e profissional do anterior mandatário dos AA e por essa razão requereram que fosse mandado riscar o alegado pelo Réu naqueles artigos.
Vejamos os artigos em questão, que são do seguinte teor:
175º - Chegados aqui, pergunta-se: só o Estado é accionado ?... Será que já accionaram os médicos ?... Ou o próprio Hospital ? …
178º - A não ser que os AA., nada dizendo, tenham accionado os médicos em acção cível própria, quiçá o próprio Hospital em processo e tribunal competente, o que, até ao momento, desconhecemos, pelo que, a não ter acontecido, embora surrealista por confronto com a presente acção, quiçá já nada de insólito tem em face do mais que a propósito se disse.
Nos termos do art. 266º-B/2 do CPC “nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições”.
Mas o art. 154º/2 esclarece que “não é considerado ilícito o uso de expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”.
Ora, o teor dos artigos em apreço não parece conter expressões ofensivas da honra ou do bom nome da outra parte e muito menos do seu mandatário. As interrogações do Mº Pº são naturais porque os termos da presente acção as sugerem e certamente tiveram o propósito de provocar um esclarecimento, que não seria descabido. Mas os AA procuram antes ver nisso uma ofensa, mas que se entende não existir.
Em todo o caso importa deixar claro que a presente lei do processo não prevê a faculdade de o juiz mandar riscar quaisquer expressões ofensivas, como se previa no art. 154º/1 do CPC, na redacção anterior à reforma operada em 1995/96.
Após a reforma do Código de Processo Civil de 1995/96 desapareceu o poder de o tribunal mandar riscar expressões ofensivas contidas nos articulados, tal como se defendeu no Ac. da Relação do Porto de 13.12.2001[5].
E desapareceu porque deixou de estar prevista a faculdade de o juiz mandar riscar o que quer que seja nos articulados.
Acresce que a lei anterior previa aquela faculdade com alguma incongruência, ao dizer que o juiz podia mandar riscar as expressões ofensivas, sem prejuízo do disposto na legislação penal, o que não se vê muito bem como conciliar as duas situações. Por um lado riscar, fazendo desaparecer o texto, mas sem prejuízo de a parte ofendida, quiçá em momento posterior, pretender utilizar o que já não estava no processo para procedimento criminal?
Parece ter procedido bem o legislador ao arredar do processo um poder do juiz de duvidosa justificação, porque os operadores judiciários carecem de ser responsáveis pelo uso que fazem do processo e quando haja lugar à sua responsabilização por qualquer excesso é indispensável que persista seu registo para os fins pertinentes.
Do que se conclui que também nesta parte andou bem o tribunal ao não mandar riscar as passagens da contestação aludidas.
Quanto à Apelação.
Coloca-se a questão de saber se se verificam os necessários pressupostos para responsabilizar o Estado Recorrido pelos danos sofridos pelos Apelantes.
Na sentença sindicada, entendeu-se que os danos que se apurou terem os autores sofrido, o sofrimento deles pela morte de D, as dores que esta sofreu e a perda do direito à vida, não resultaram da omissão legislativa, aduzindo-se a seguinte fundamentação:
“Na verdade, a omissão legislativa determinou a prescrição do procedimento criminal e o arquivamento do processo. Os danos indemnizáveis teriam de ser reportados a esta realidade, ou seja, que prejuízos sofreram os autores em razão do arquivamento do processo.
Tais danos, a terem existido, nem sequer foram alegados.
O facto de o Estado não ter, como devia, alterado o CP de 1982 para o adaptar, em matéria de prescrição às novas fases processuais referenciadas no CPP de 1987, não deu causa à morte de D, nem ao sofrimento que esta morte causou aos autores.
O instituto da prescrição, as suas causas interruptivas ou de suspensão, não podem ser invocadas por aqueles a quem a omissão não tenha provocado um prejuízo directo, imediato e causal. Só um prejuízo causado na esfera dos direitos individuais e fundamentais do sujeito lesado poderia ocasionar um pedido de indemnização por omissão de legislação. Não se prefigura como tal a situação apurada nos autos, em que entre o facto ilícito e culposo do réu e os danos sofridos pelos autores não existe qualquer nexo de causalidade.
A não verificação deste pressuposto da obrigação de indemnizar determina a improcedência da acção”.
Os Apelantes, não conformes com aquele entendimento, alegam que, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, estão alegados e provados nos autos os dois pressupostos da responsabilidade civil - dano e nexo de causalidade entre a omissão legislativa, de que o Estado Réu é o único autor, e o dano acima identificado, porquanto, caso não tivesse existido a prescrição do procedimento criminal, o MP deduzia acusação uma vez que requereu a passagem de mandados de detenção, tendo sido a prescrição que impediu a prossecução do procedimento criminal.
Acrescentam que o Estado, com o seu comportamento ilícito e culposo, como a sentença reconhece, por não ter harmonizado, em tempo útil, a lei adjectiva com a lei substantiva, esvaziando o conteúdo do art.° 120.° do CP de 82, não deu aos AA, ora Apelantes, a possibilidade, tutelada por lei em obediência ao princípio constitucional do direito à vida, de verem apurada a responsabilidade criminal dos médicos arguidos, sendo que não podia ignorar que com a sua actuação provocaria, como provocou, danos na esfera jurídica dos Apelantes.
Vejamos.
A obrigação de indemnizar, em sede de responsabilidade civil por facto ilícito, tem como suposição, para além da verificação do facto, que este seja imputável ao lesante a título de culpa e que exista um nexo de causalidade entre o mesmo facto (ilícito) e um resultado (danoso) (art.s 483º e 563º do CC).
O primeiro requisito para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é, pois, que o agente tenha assumido uma conduta culposa, que seja merecedora de reprovação ou censura em face do direito constituído. Como sucederá, em termos gerais, se o agente, na situação concreta, podia, e devia, ter agido de modo a não cometer o ilícito e não o fez.
O nosso Código Civil, no tocante à culpa, quer no âmbito da responsabilidade extra-obrigacional (art. 487º, n.º 2), quer no da responsabilidade obrigacional (art. 799º, n.º 2) manda apreciá-la em abstracto, isto é, segundo “a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”. Assim, existirá culpa sempre que o agente não proceda como procederia, no caso concreto, uma pessoa normalmente diligente.
O segundo requisito para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é que exista um nexo causal entre o facto praticado pelo agente e o dano, segundo o qual ele fica obrigado a indemnizar todos os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º).
A obrigação de indemnizar, em qualquer dos casos, tem por finalidade reparar um dano ou prejuízo, ou seja, “toda a ofensa de bens ou de interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, tanto de carácter patrimonial (desvantagem económica), como de carácter não patrimo­nial (relativos à vida, à honra, ao bem estar, etc.)”[6]. Acresce que o «obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (art. 562º do CC).
Sucede, porém, que a reparação não abrange, indiscriminadamente, todos e quaisquer danos, mas tão-somente os que se encontrem em determinada relação causal com o evento que fundamenta a obrigação de ressarcir. Com efeito, estipula o já citado art. 563º do CC que «a obrigação de indem­nização só existe em relação aos danos que o lesado prova­velmente não teria sofrido se não fosse a lesão».
A nossa lei acolheu, nesta matéria, a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente[7]. Temos, pois, que “a ideia fulcral desta doutrina é a de que se considera causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostra adequa­da a produzi-lo. Torna-se necessário, portanto, não só que o fac­to se revele, em concreto, condição sine qua non do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção”[8].
Na verdade, para se saber se estamos perante uma relação de causalidade adequada, formulou ENNECCERUS-LEHMANN a teoria de que “o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto”[9].
E no ensinamento de A. Varela “a doutrina mais criteriosa, quando a lesão proceda de facto ilícito (contratual ou extracontratual), é a da formulação negativa correspondente ao ensinamento de ENNECCERUS-LEHMANN, será essa a posição que, em princípio, deve reputar-se adoptada no nosso direito constituído”[10].
Verificada a existência de culpa e o nexo causal entre o facto praticado pelo agente e o dano, conclui-se existir obrigação indemnizar, em sede de responsabilidade civil por facto ilícito, pelo que se impõe, então, com vista a determinar o quantitativo indemnizatório, avaliar os danos produzidos e aferir do grau de responsabilidade do autor da lesão, que terá de ser feita em função da sua maior ou menor culpabilidade, da situação económica deste e do lesado e das demais circunstâncias do caso (art. 494º). Note-se que é ao devedor que cabe provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (art. 799º, n.º 1 do CPC.).
E uma vez concluído pela obrigação de indemnizar, tem também de se ter presente que esta compreende tanto os danos emergentes (ou os prejuízos imediatos sofridos pelo lesado), como os lucros cessantes (benefícios que ele deixou de obter em consequência da lesão) ou ainda os danos futuros, determináveis, de imediato ou em ulterior decisão (art. 564º do CC).
Além disso, é extensível aos danos morais, como elucida o n.º 1 do art. 496º do CC, ao dizer que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito», sendo que o n.º 3 do mesmo preceito, reportando-se à mesma indemnização, acrescenta que «o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso as circunstâncias referidas no art. 494º ...», ou seja, ou grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Como refere Galvão Telles, os danos não patrimoniais, também chamados danos morais, são aqueles “prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. O património não é afectado; nem passa a valer menos nem deixa de valer mais.
Há a ofensa de bens de carácter imaterial — desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro. São bens como a vida, a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra, a reputação. A ofensa objectiva desses bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou de natureza moral”[11].
No mesmo sentido alvitra Menezes Cordeiro que há dano moral quando a situação vantajosa prejudicada tenha simplesmente natureza espiritual[12].
 Dentro desta concepção, o ressarcimento por danos não patrimoniais não tem a natureza de uma verdadeira indemnização, dado não ser uma exacta contrapartida pelo dano, representando antes uma compensação a atribuir ao lesado por prejuízos por este sofridos, que não têm reparação directa através de satisfações de natureza pecuniária. Deste modo se justifica que no seu cálculo, se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselha sejam tomadas em consideração[13].
Com a reparação por danos não patrimoniais tem-se em vista compensar de alguma forma o lesado, proporcionando-lhe os meios económicos que constituam, de certo modo, um refrigério para as mágoas e adversidades que sofrera e que, porventura, continue a suportar.
Mas essa efectiva compensação apenas será conseguida se a atribuição em numerário for de algum alcance económico e não meramente simbólica.
Será que no caso em análise se verificam os necessários requisitos para responsabilizar o Estado Recorrido pela indemnização, com fundamento em danos morais sofridos, e que os Apelantes pretendem relegar para posterior liquidação?
Para abreviar caminho, admita-se que os Apelantes com o decesso da familiar D nas circunstâncias em que se verificou e pelas dores que esta sofreu, e por aqueles se sentirem perturbados, revoltados e com sofrimento interior, estamos em face de danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Admita-se também que a conduta omissiva do Estado em produzir legislação que obstasse à prescrição do procedimento criminal conduziu a que não fossem julgados os pretensos causadores da morte por negligência da aludida D e que a conduta do Estado foi uma conduta negligente.
Haverá nexo de causalidade entre a conduta negligente do Estado e os danos morais sofridos pelos Apelantes?
A omissão legislativa terá sido causa adequada desses danos?
Os Apelantes provavelmente não teriam sofrido os danos que invocam na acção se tal omissão do Estado se não tivesse verificado?
Em termos abstractos a falta ou lacuna da lei da natureza da verificada poderá causar danos da qualidade dos sofridos pelos Apelantes?
Em abstracto a conduta omissiva do Estado mostra-se adequada a produzir tais danos e, em concreto, foi condição sine qua non dos mesmos?
Foi sequer condição?
Ora a todas estas perguntas cabe a mesma resposta negativa, sem qualquer hesitação.
Com efeito, a conduta omissiva do Estado não foi causa nem condição dos danos sofridos pelos Apelantes, que teriam padecido esses mesmos danos se tal conduta se não tivesse verificado, sendo que a mesma conduta em termos abstractos não se mostrava adequada a produzi-los.
Os danos sofridos pelos Apelantes terão tido como causa adequada conduta imputável a outros agentes que não o Estado com a sua omissão legislativa.
A conduta do Estado Recorrido apenas se poderia haver como causa adequada para não terem sido julgados criminalmente os eventuais responsáveis pelos danos que os Apelantes sofreram e pelos quais reclamam indemnização a liquidar. Mas não é por aqueles não terem sido julgados em processo-crime que os danos se produziram, até porque antes disso já se tinham verificado.
Nem foi por aqueles não terem sido julgados em processo-crime que os Apelantes deixaram de poder reclamar a indemnização a que se julgam com direito, por lhes restar recurso à via cível, onde o direito à indemnização do mesmo modo podia ser invocado e justificado.
Daí que, sem necessidade de mais considerações, se conclua, como se concluiu na 1.ª instância, que pela não verificação do pressuposto do nexo de causalidade entre a conduta do Apelado e os danos invocados, a acção não podia deixar de soçobrar.
Improcedem, por isso, as conclusões dos recursos, sendo de manter as decisões sindicadas.
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IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento aos recursos e confirmam-se as decisões recorridas.
Custas nas instâncias pelos recorrentes.
Lisboa, 24 de Junho de 2010. 
FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES
               

[1] A matéria vertida pela 1.ª instância  nos pontos DD) a QQ) constitui matéria de direito, que deve considerar-se excluída do elenco factual, não obstante seja verdadeira e com eventual interesse para a causa.
[2] In Cod. Do Proc. Civ. Anot.. IV, pg. 58.
[3] Veja-se A. dos Reis in CPC anotado, IV, pg. 27 e ss.
[4] Veja-se para além do Ac citado, o Ac. do STJ de 30.06.199, acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.

[5] Acessível em http://www.dgsi.pt/jrp.

[6] Vd. M J. Almeida Costa, in Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª ed., pg. 171
[7] Vd. I. G. Telles, in Direito das Obrigações, 7ª ed., pg. 404. e ss.
[8] Vd. M J. Almeida Costa, in Ob. Cit., pg. 172.

[9] Citado por A Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 3.ª ed, pg.761
[10] In Obra Citada, pg. 772.
[11] In Direito das Obrigações, 7.ª edição, pg. 378.
[12] In Direito das Obrigações, 1980, 2.º, pg. 285.
[13] Vd. Vaz Serra in R.L.J., Ano 113º, pág. 104.