ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
REQUISITOS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Sumário

1. A obrigação de restituição daquilo que produziu o enriquecimento desprovido de razão não emerge se existirem outros mecanismos legais disponíveis para a obtenção de devolução ou ressarcimento (e, face à ausência de distinção ou ressalva, devemos estar perante uma impossibilidade absoluta de recurso a outros meios)
2. Não há direito à restituição quando a lei o negar (já que é dela que ele teria que brotar) ou quando a mesma lei confira distintos efeitos jurídicos ao locupletamento à custa alheia.
3. Não é aceitável tese segundo a qual se preencheria o conjunto de requisitos de aplicação do instituto do enriquecimento sem causa sempre que, tendo a causa existido inicialmente, a mesma tenha deixado de existir com o natural e invariavelmente associado locupletamento, já que tal entendimento não respeitaria o disposto no art. 474.º do Código Civil.
(sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

D, com os sinais constantes dos autos, posteriormente falecida e substituída na sua posição processual por M, intentou contra I e J acção declarativa de condenação com processo ordinário por intermédio da qual solicitou a condenação dos Demandados a devolverem-lhe uma quantia pecuniária e a pagarem-lhe juros a contar à taxa legal desde a citação até integral pagamento, bem como a restituirem-lhe a nua propriedade do imóvel referenciado no primeiro articulado com anulação da escritura nele apontada.
Alegou, para o efeito:
Nasceu em 02.07.1914; não sabe ler nem escrever mas apenas assinar o seu nome; mantinha com a R., sua sobrinha, uma relação familiar de confiança; esta, aproveitando-se da sua idade avançada e do facto de não possuir descendentes directos ou outra pessoa que cuidasse de si, propôs-lhe que lhe deixasse todos os seus bens em troca de amparo prestado por si até à sua morte, proposta à qual acedeu; em 20 de Agosto de 2003, a Demandada levou-a a celebrar uma escritura de compra e venda, pelo preço de 500 Euros, relativa à nua propriedade do imóvel no qual a Demandante residia à data da instauração da acção; o aludido preço não foi pago; tal nua propriedade comunicou-se ao marido da Ré, já que ambos são casados sob o regime de comunhão de adquiridos; nunca foi sua intenção vender ou doar a nua propriedade do dito imóvel à sobrinha; a R., valendo-se da sua relação de amizade e das expectativas de cuidar da A., conseguiu fazer com que esta assinasse um cheque no valor de 36.357,00 €, sacado sobre conta da Caixa Geral de Depósitos, de que a Demandante era titular e que podia ser movimentada também pelos seus sobrinhos J e D, mãe da ora Ré; o referido cheque foi pago pelo Banco à Demandada, que fez sua a quantia por ele titulada, ficando a conta da Autora sem qualquer dinheiro; a R. sabia que era vontade da A. que, durante a sua vida, o referido cheque apenas fosse utilizado caso adoecesse e fosse necessário recorrer a tal quantia para proceder ao seu tratamento e que apenas poderia fazer seu o montante em causa após o falecimento da Demandante, a título de recompensa por ampará-la; apenas no inicio de Setembro de 2004 a A. teve conhecimento que a Ré havia levantado todo o dinheiro que se encontrava na sua conta bancária; após tal actuação, nunca mais os Réus quiseram saber da Autora.
Os RR., citados, não apresentaram qualquer contestação, tendo sido declarados confessados os factos alegados pela Demandante, nos termos constantes do despacho de fl. 46.
Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.
É desta decisão que vem o presente recurso, interposto pela Autora, no âmbito do qual a mesma peticionou a prolação de nova decisão que julgue procedente e provada a acção.
Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões:
O recurso restringe-se ao apuramento da existência de enriquecimento dos RR. à custa do património da A. e da obrigação daqueles de lhe restituírem tudo quanto ilegitimamente dela receberam; o tribunal a quo, absolvendo os Demandados, violou o disposto nos arts. 473.º e seguintes do Código Civil, 342.º, n.º 1, do mesmo diploma, e nos art.s. 516.º e 664.º do Código de Processo Civil; a primitiva Autora, que à data da entrada da presente acção estava viva, era pessoa idosa e sem descendentes directos e acordou com seus sobrinhos, os ora RR, vender-lhes a casa de morada de família, o que se concretizou por escritura pública celebrada no Cartório Notarial em 20 de Agosto de 2003; esta escritura resultou de um acordo estabelecido entre a A. e os RR. no sentido de estes últimos cuidarem da primeira, amparando-a na sua velhice e até à sua morte, sendo que apenas por este motivo aceitou despojar-se de todos os seus bens em favor dos AA. (leia-se «RR.»); a A. era, ainda, a única dona de uma conta bancária na Caixa Geral de Depósitos, na qual se encontrava depositada a quantia de 36.357,00 €; criando a expectativa de que iria cuidar da Autora, valendo-se da relação de amizade e confiança que mantinha com ela, a R. conseguiu fazer com que a A. assinasse um cheque com os seguintes dizeres: "À ordem de I, data de emissão 2003-07-23, Quantia: 36.357,00 €" ; o sobredito cheque foi pago pelo Banco à Ré, que fez sua a quantia nele inscrita sem disso dar conhecimento à Autora; a Demandada sabia estar a apropriar-se de todo o dinheiro da Demandante contra a sua vontade e sem a sua autorização, sabendo ser seu desejo que, durante a sua vida, o referido cheque apenas fosse utilizado caso adoecesse e fosse necessário recorrer a tal quantia para proceder ao seu tratamento e que apenas poderia fazer seu o montante em causa após o falecimento da A., a título de recompensa por tê-la amparado e cuidado até ao fim dos seus dias; os RR. ficaram donos do imóvel e fizeram também seu o dinheiro que levantaram do Banco, este último contra a vontade da A. e sem o seu consentimento; os RR., no entanto, não realizaram o acordado com a sua tia, pois saíram do País com destino ao L não a levando com eles, sem mais dela quererem saber ou cuidar, assim enriquecendo; a A. faleceu em sua casa, cuidada e amparada pela ora Autora habilitada, já no decurso da presente acção; não obstante toda a matéria de facto ter sido dada como provada, entendeu o M.mo Juiz do Tribunal a quo que, in casu, o instituto do enriquecimento sem causa não pode operar porque, sendo este instituto meramente subsidiário, não se verifica, no caso vertente, um dos seus pressupostos, ou seja, o requisito "da inexistência de causa justificativa"; entende que o art. 473.º n.° 1 do Código Civil encerra uma profunda diversidade estrutural entre as diversas categorias de enriquecimento; a cláusula geral do art. 473.º, n.º 1, do aludido Código apresenta-se como aberta, balizando um dos princípios do sistema jurídico, sendo aplicável no quadro de um sistema móvel, em complemento dos regimes de restituição, reembolso e indemnização previstos noutros institutos jurídicos; encarada na perspectiva do enriquecimento sem causa, a situação configurada pela Autora nesta acção só poderá corresponder a um "enriquecimento por prestação", categoria específica que se refere "(...) a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica, para que possa ocorrer por parte deste, a recepção dessa prestação"; sendo evidente ter a situação aqui invocada pela Autora, na sua génese, uma prestação da finada Demandante aos ora RR., importará acrescentar que nestas situações de enriquecimento por prestação "( ... ) o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo por isso referida a uma determinada causa jurídica, ou na definição corrente na doutrina alemã dominante como o incremento consciente e finalisticamente orientado de um património alheio"; "(...) a ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo como a não obtenção do fim visado com a prestação"; no caso em apreço está provado que houve uma deslocação patrimonial; os RR. ficaram donos e possuidores do dinheiro e do imóvel mas não realizaram o previamente acordado com a tia; no dizer dos Mestres Antunes Varela e Pires de Lima, "(a) obrigação de restituir pressupõe (...) que o enriquecimento contra o qual se reage, careça de causa justificativa - ou porque (…), tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido"; no caso vertente, conquanto a causa haja existido inicialmente, a mesma deixou de existir pois os RR. locupletaram-se com o dinheiro da Autora, não o devolvendo e não cumprindo as obrigações a que estavam adstritos e que decorriam do acordado; a obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento à custa alheia exige que alguém tenha obtido uma vantagem de carácter patrimonial sem causa que a justifique e que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição; estes elementos estão presentes no caso em apreço pois existe o enriquecimento dos RR. e o respectivo empobrecimento da autora e inexiste justificação para o enriquecimento.
Os Recorridos responderam a estas alegações, tendo apresentado as seguintes conclusões:
Ao contrário do que alega a Apelante, o Tribunal a quo considerou preenchido o requisito da "inexistência de causa justificativa", quer no que respeita à nua propriedade do edifício, quer no que respeita ao cheque; o cerne da questão quanto à improcedência da acção está precisamente em ter a sentença da 1.ª instância considerado que não obstante a inexistência de causa justificativa para o enriquecimento dos réus, não era aplicável ao caso dos autos o instituto do enriquecimento sem causa, em virtude de este ter um carácter residual e subsidiário e a Apelante não se ter socorrido dos outros meios jurídicos existentes na lei para tutela dos seus direitos; no recurso ora interposto, cabia à Apelante pôr em crise a sentença recorrida na parte em que considerou que não era aplicável o instituto do enriquecimento sem causa; as alegações da Apelante são totalmente omissas quanto a tal questão, pelo que não caberá agora ao Tribunal ad quem apreciá-la; dos factos provados relativos ao cheque (pontos 12 a 28 da fundamentação de facto da sentença), não resulta que não tivesse existido uma causa justificativa para o enriquecimento dos réus; o cheque foi entregue pela A. à R. na sequência do acordo estabelecido entre ambas, sendo que o procedimento criminal instaurado pela A contra a R., por entender que esta tinha feito um uso ilícito do cheque, mereceu despacho de arquivamento, afastando-se, assim, qualquer ilicitude dos Demandados na posse do dinheiro titulado pelo cheque; o facto de a A. não ter alegado que não entregou o cheque à R., conjugado com o facto provado de que o cheque foi depositado em conta bancária da R. é prova suficiente de que houve tradição do cheque e que a doação foi aceite pela R.; tendo existido uma doação verbal de coisa móvel com tradição da coisa doada aceite pelo donatário, tem de considerar-se a doação como plenamente válida e efectuada em vida do doador; se a quantia do cheque se destinasse a ser usada apenas em caso de doença da A., não tinha sido necessário emitir o cheque objecto dos autos pois a conta bancária podia ser movimentada por outras duas pessoas (ponto 14 da fundamentação da sentença); o acordo estabelecido foi integralmente cumprido durante 12 a 13 meses, até Agosto de 2004, e não ficou provado que o incumprimento do encargo de cuidar da A., a partir dessa data, tivesse ficado a dever-se a culpa da R.; foi a Apelante M quem, exclusivamente, auxiliou a falecida A. a partir da data em que esta regressou do L (ponto 28 da fundamentação de facto da sentença), o que significa que a falecida A. tinha quem dela cuidasse em Portugal não necessitando de viajar para um país estranho para continuarem assegurados os cuidados exigidos pela sua avançada idade; resulta da experiência comum que uma mulher com mais de 90 anos e quase analfabeta (pontos 1 e 3 da matéria de facto provada) numa situação de escolha entre viver com uma sobrinha no estrangeiro ou com outra sobrinha na terra onde nasceu e sempre viveu, opte por esta segunda hipótese; a falecida A. apenas poderia pedir a resolução da doação com fundamento no incumprimento do encargo de dela cuidarem até falecer, se tal direito lhe fosse conferido pelo contrato de doação (art. 966.º do Código Civil); não existindo justo fundamento para a resolução da doação, esta mantém-se válida e, consequentemente, constitui a causa para um lícito enriquecimento da R. (art. 966.º do CC); à data da emissão do cheque (23.07.2003) e da venda da raiz (20.08.2003), a intenção da A. era, de facto, a de despojar-se dos bens a favor da sobrinha ora R., sendo que, apenas dois anos mais tarde, terá eventualmente alterado a sua vontade, tendo por testamento lavrado em 2005 instituído outra sobrinha como sua herdeira universal, a ora Apelante; ambos os negócios jurídicos (venda da raiz e doação do valor titulado pelo cheque) são válidos e eficazes, tendo constituído causa justificativa para o correspondente enriquecimento dos réus.
Os Apelados vieram também declarar pretender ampliar o âmbito do recurso, impugnando a decisão proferida sobre os pontos 8, 9, 10 e 11 da fundamentação de facto da sentença, alegando que: «I) (…) a improcedência do pedido deveria antes de mais, ter resultado da não verificação de um dos pressupostos legais do enriquecimento sem causa: a inexistência de causa justificativa. J) Quanto à nua propriedade do imóvel, a causa justificativa para o enriquecimento dos réus consistiu precisamente na venda que lhes foi feita pela A., por escritura pública plenamente válida e eficaz. K) A confissão de factos por efeitos da revelia dos réus - art. 484-1º CC não é suficiente para afastar as declarações produzidas pelos outorgantes em documento autêntico (escritura pública de compra e venda) junto aos autos. L) Na escritura pública, a A. declarou que vendia a raiz do imóvel aos RR. ora Apelados e declarou ainda que tinha recebido o preço ajustado para essa venda, sendo que tais declarações constituem confissão expressa e, por constar de documento autêntico e ser feita à parte contrária, têm força probatória plena, conforme dispõe no art. 358º -2º do CC. M) A confissão dos RR. obtida por falta de contestação da acção (484.º n.º do CPC) é meramente uma confissão judicial não escrita que poderá ser apreciada livremente pelo tribunal mas que nunca prevalecerá sobre a confissão escrita em documento autêntico, como o é a escritura de compra e venda (aplicação conjugada do disposto nos arts. 358-2º, 371-1º 3 364-2º Código Civil) N) Não basta que os RR não tenham contestado a acção e que como tal se considerassem confessados os factos alegados pela A., para que prevaleça o que esta alegou na p.i. em contradição com o documento autêntico que juntou aos autos (a escritura pública de compra e venda) O) A A. não alegou quaisquer factos que pudessem invalidar a escritura nem arguiu a sua falsidade, sendo que nos termos do art. 372-1º CC, “A força probatória dos documentos autênticos, só pode ser ilidida com base na sua falsidade” P) Mesmo que se entenda que a compra e venda da raiz foi feita na expectativa de que a R. cuidaria da A. até à sua morte, tal facto deveria ter constado das cláusulas da venda titulada pelo documento autêntico, o que não aconteceu, pelo que não poderá considerar-se provado que a compra e venda tenha sido feita sob qualquer condição. Q) A A. também não alegou factos que pudessem constituir vício da vontade ou vício da declaração que invalidassem a escritura de compra e venda. R) A A. vendeu de facto a raiz do imóvel e reservou para si o usufruto o que, só por si significa que a A. teve consciência e foi diligente na disposição dos seus bens».
Concluíram pela improcedência deste recurso e pela confirmação da sentença proferida pelo Tribunal a quo e pela ampliação do âmbito da impugnação judicial nos termos do disposto no art. 684.º-A n.º 2, do Código de Processo Civil.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
É a seguinte a questão a avaliar:
Por, no caso em apreço, existirem formas legalmente previstas de tutela dos direitos da Recorrente, invocados, não é possível aplicar, à situação em análise nos autos, o instituto do enriquecimento sem causa, face ao carácter subsidiário da obrigação de restituir dele emergente?

II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Na sua resposta às alegações, os Apelados declararam pretender usar o mecanismo processual emergente do n.º 2 do art. 684.º-A do Código de Processo Civil e impugnar «a decisão proferida sobre os pontos 8, 9, 10 e 11 da fundamentação de facto da sentença», sustentando que tal matéria deveria ter sido declarada não provada porque contrariada por escritura pública de superior valor probatório.
Analisemos, pois, esta vertente de ataque à decisão judicial.
A escritura de compra e venda reproduzida a fls. 17 a 20 é um documento autêntico, nos termos da definição constante do n.º 2 do art. 363.º e 369.º, ambos do Código Civil. Dessa natureza resultam o funcionamento da presunção de proveniência ou autenticidade estabelecida no n.º 1 do art. 370.º e da cláusula legal que lhe atribui força probatória plena, conforme emerge do n.º 1 do art. 371.º, do referenciado encadeado normativo.
E em que termos brota a prova plena produzida?
A resposta está vertida neste último preceito, da seguinte forma: «Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador».
De novo se impõe questionar: em que termos releva esta estatuição?
Analisando a escritura, verificamos que, nela, a Sra. Ajudante Principal do Segundo Cartório Notarial declarou que, perante si, os sujeitos nela referenciados disseram e outorgaram o que descreveu. A prova plena reporta-se, pois, exclusivamente, às suas percepções documentadas. Só com fundamento em falsidade seria possível atacar a declaração pública de percepção ou contacto físico com determinada realidade, aí feita – v.d. n.º 2 do n.º 372.º do mesmo Código.
Ora, atestar que alguém disse que recebeu, é muito diferente de atestar que esse alguém recebeu efectivamente; patentear que uma pessoa declarou vender nada de absolutamente seguro nos diz sobre a sua real vontade.
Poderia, quanto à primeira parte, o oficial provido de fé pública dizer, «foi entregue, por A a B, na minha presença, a quantia de Y». Aí sim, teríamos um conteúdo que se aproximaria do pretendido pelos Apelados. Porém, como se vê, do texto reproduzido e ora sob referência, tal não ocorreu.
Os factos que se pretende pôr em crise incidem sobre esfera distinta. Não se reportam à percepção notarial mas a factualidade bem diversa, a saber: pagaram, não pagaram, quis vender, não quis, teve a intenção X ou Y, foi esta ou aquela a vontade subjacente à elaboração da escritura?
Sobre isso não se pronunciou, nem o poderia fazer, por óbvias limitações físicas e gnoseológicas, a Sra. Ajudante.
Não podem as partes pretender pôr na sua pena ou no seu conhecimento aquilo que nunca lá poderia estar e que agora lhes conviria que estivesse, nem subverter o regime legal das provas.
Nenhuma razão lhes assiste, pois, pelo que tem que ser indeferida esta vertente do peticionado, o que ora se faz.

Ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 713.º do Código de Processo Civil, remete-se, aqui, no que respeita à matéria de facto, para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu.
Fundamentação de Direito
A questão a avaliar centra-se na ponderação da adequação do juízo do Tribunal que proferiu a decisão recorrida, ao declarar que: «existindo uma forma legalmente prevista de tutela dos interesses da Autora, ora através da responsabilidade obrigacional da R, ora pela nulidade da doação por morte, é certo que também falecem os argumentos da A, porque não se poderá aplicar o instituto do enriquecimento sem causa, face à sua subsidiariedade».
É a abrangência deste princípio o que está em causa na impugnação judicial que nos ocupa.
A norma decisiva para a avaliação desta questão é o art. 474.º do Código Civil, que tem o seguinte teor, sob a epígrafe «(Natureza subsidiária da obrigação)»: «Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento».
Uma singela e directa hermenêutica jurídica de raiz semântica e gramatical permite-nos chegar, sem particulares dificuldades, ao âmago da norma e entrever que a obrigação de restituição daquilo que produziu o enriquecimento desprovido de razão não emerge se existirem outros mecanismos legais disponíveis para a obtenção de devolução ou ressarcimento (e, face à ausência de distinção ou ressalva, devemos estar perante uma impossibilidade absoluta de recurso a outros meios, conforme referido pelo Sr. Conselheiro Rodrigues Bastos no texto invocado na sentença).
A parte final da norma é quase tautológica e não apresenta particulares dificuldades interpretativas, sendo que também não releva na avaliação da questão concreta em apreço. Claro que não há direito à restituição quando a lei o negar (já que é dela que ele teria que brotar) ou quando a mesma lei confira distintos efeitos jurídicos ao locupletamento à custa alheia.
Apesar desta clareza, não se deixa de registar, aqui, alguns aportes doutrinais sobre a questão da subsidiariedade.
Em TELLES, Inocêncio Galvão, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, pág. 166, «O enriquecimento sem causa como fonte de obrigação tem carácter subsidiário (art. 474.º). Quer isto dizer que, se alguém obtém um enriquecimento à custa doutrem, sem causa, mas a lei faculta ao empobrecido algum meio específico de desfazer a deslocação patrimonial, será a esse meio que ele deverá recorrer, não se aplicando as normas dos artigos 473.° e seguintes».
Em VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1986, págs. 448 e 449: «Num grande número de casos em que a deslocação patrimonial carece de causa justificativa, a lei faculta aos interessados meios específicos de reacção contra a situação. Assim, quando a deslocação patrimonial assenta sobre um negócio jurídico e o negócio é nulo ou anulável, a própria declaração de nulidade ou anulação do acto devolve ao património de cada uma das partes os bens (ou o valor dos bens, quando a restituição em espécie não seja possível) com que a outra se poderia enriquecer à sua custa (art. 289.º, I). (…) Além disso, são diferentes os efeitos das obrigações de restituir fundadas na invalidade do negócio e no enriquecimento sem causa (cfr. arts. 289.°, de um lado, e 479.°, 2 e 480.°, do outro). À eficácia retroactiva da invalidade contrapõe-se o sentido não-retroactivo, actualista, da correcção operada através do enriquecimento sem causa».
Em COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1979, págs. 336 e 337, a «ausência de outro meio jurídico» é alinhada entre as condições jurídicas ou pressupostos técnicos da emergência da figura do enriquecimento sem causa, nos seguintes termos: «de acordo com esse princípio da subsidiariedade, o empobrecido só poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos. Sempre que a acção normal (de rescisão, de pagamento, de reivindicação, etc.) possa ser exercida, o empobrecido deve dar-lhe preferência. Assim, a vitima de um roubo, que dispõe da acção de reivindicação ou de reparação, não pode agir contra o autor do delito invocando o enriquecimento sem causa».
Finalmente, em BASTOS, Jacinto Fernandes Rodrigues, Notas ao Código Civil, vol. II, Lisboa, 1988, pág. 270: «Para ser relevante a invocação do enriquecimento sem causa, é necessário que a impossibilidade de recorrer a outro meio de ressarcimento dos danos seja absoluta; tal invocação não poderá fazer-se se a impossibilidade for relativa, isto é, se o meio legal existir, mas não puder ser usado pelo lesado por motivos particulares, como acontece nos casos de prescrição e caducidade, ou se o uso dele não produzir a reparação de todos os danos».

O sentido que a Apelante atribuiu, nas suas alegações, ao «enriquecimento por prestação», como genérica «não obtenção do fim visado com a prestação», a ser aceite, determinaria, pela sua extensão e abrangência que, de futuro, não mais fosse necessário invocar o incumprimento contratual, discutir os contornos e inadimplemento de um contrato-promessa de compra e venda, de um arrendamento ou de uma doação. Antes bastaria passar-se a referir que D realizou uma prestação que beneficiou E, sendo que, por não aquele ter obtido o fim visado pela mesma (designadamente o recebimento de um preço, a obtenção de um bem móvel), sempre haveria enriquecimento sem causa.
A tal nos levaria, seguramente, a leitura alargada de enriquecimento feita pela Recorrente, ao considerar preencher-se o conjunto de requisitos de aplicação do instituto sempre que, tendo a causa existido inicialmente, a mesma tenha deixado de existir com o natural e invariavelmente associado locupletamento.
É claro que em todas as situações de inadimplemento contratual há enriquecimento, particularmente se o contexto for ponderado em termos conceptuais emergentes da linguagem comum e da semântica regular.
É manifesto, também, que, não tendo havido a contra-prestação devida, desaparece, em termos materiais, a causa da entrega prévia e, logo, nesse sentido, o enriquecimento ocorre sem causa. Só que, se é assim em linguagem comum facilmente apreensível por qualquer cidadão, tal não tem sobreposição ou decalque na figura jurídica em apreço, que comporta especialidades. Entre estas releva, com particular acuidade, justamente, o preceito que declara que a obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária.
A ser admitida a tese da Apelante nos moldes em que a desenha, transformaríamos a figura de residual em estrutura regra ou padrão. Porém, em tal contexto, não se divisa como poderíamos sustentar continuar cumprido e respeitado o regime emergente do art. 474.º do Código Civil.
Nas suas alegações, os Recorrentes não puseram em causa as qualificações jurídicas feitas pelo Tribunal «a quo» relativas ao negócios jurídicos realizados e vias de tutela legal apontadas. Apenas questionaram os contornos da subsidiariedade legalmente organizada e sua aplicabilidade em concreto.
Neste domínio, a qualificação feita na sentença é aceitável e não merece censura na presente sede.
A situação que se desenha na matéria de facto acolhida deve ser, pois, corrigida fazendo uso dos adequados mecanismos legais que os Apelantes não souberam identificar e usar, apesar de devidamente representados por profissional do foro. De qualquer forma, seguramente que nenhum erro se corrige persistindo nele ou lutando pela sua aceitação.
O recurso não pode proceder, pelas razões acima apontadas.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação totalmente improcedente.
Custas pela Apelante.

Lisboa, 16 de Setembro de 2009

Carlos Manuel Gonçalves de Melo Marinho (Relator)
José Albino Caetano Duarte (1.º Adjunto)
António Pedro Ferreira de Almeida (2.º Adjunto)