DIREITO DE PROPRIEDADE
EDIFICAÇÃO URBANA
DEMOLIÇÃO DE OBRAS
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE CONSTRUÇÃO URBANA
Sumário

I – Os direitos reais, nomeadamente o direito de propriedade, não têm natureza absoluta, pesando sobre eles determinados limites ou limitações, impostas por lei, umas fundadas em razões de interesse público ou de utilidade pública e outras em razões de interesse privado ou de utilidade privada.
II – Entre as que tutelam interesses de ordem pública estão as que se traduzem na fixação de regras mínimas a observar na construção de edifícios, por razões de segurança, salubridade e higiene e ainda de ordem estética, ligadas, nomeadamente, à boa ordenação urbanística das povoações.
III – As limitações estabelecidas nos arts. 73º e 75º do RGEU são ditadas por razões de interesse público, como a salubridade e a estética urbanística.
IV – As regras estabelecidas nestes dispositivos legais regulam as condições a observar em edifícios a construir, e não as condições em que ficarão os prédios vizinhos pré-existentes.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I – R intentou contra I a presente acção, como processo ordinário, pedindo a condenação deste:
a) A demolir parcialmente a obra edificada e a repô-la dentro dos limites anteriormente existentes;
b) A pagar uma indemnização a título de danos patrimoniais em consequência da desvalorização do imóvel do autor, computada em montante não inferior a € 12.500,00;
c) E a título de indemnização de danos não patrimoniais a quantia de € 3.000,00.
Alegou, em síntese, ser dono de prédio que confina a sul com o estabelecimento pertencente ao réu onde existia um anexo ilegal, no qual este fez obras de ampliação que retiraram ao prédio do autor toda a luminosidade que antes possuía, diminuindo o seu valor comercial e causando ao autor grande ansiedade e nervosismo.
Contestou o réu, pedindo a absolvição do pedido.
Realizou-se a audiência de julgamento, no final da qual houve decisão sobre os factos levados à base instrutória e, subsequentemente, foi proferida sentença que absolveu o réu do pedido.
Apelou o autor, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:
a) Na resposta aos artigos 13º, 14º e 15º da base instrutória, no que concerne aos dois primeiros deu apenas como provado que as situações neles descritas apenas se verificam da parte da manhã, quanto ao art. 150 deu o mesmo como não provado.
b) Ora e salvo o devido respeito não atendeu a Meritíssimo Juiz a quo aos depoimentos prestados pelas testemunhas L e A, as quais prestaram os seus depoimentos na primeira sessão de julgamento, realizada a 23 de Outubro de 2009.
c) Do depoimento da testemunha L que se encontra de 10:26:30 a 11:35:04 do suporte audio, resulta que quando instada sobre se frequentava a casa do Apelante e quais as consequências da edificação da obra levada a cabo pelo Apelado afirmou, do que efectivamente se lembrava era de que havia sido construída uma marquise e que a (sic) nas suas palavras "a luminosidade era diferente", facto que se notava muito durante o dia, o que tornava a casa mais sombria.
d) Quando instada sobre se a casa terá ficado mais desconfortável a resposta foi peremptoriamente afirmativa.
e) Ora do depoimento desta testemunha a alteração de luminosidade antes e depois da obra era notória, facto que se reflectia durante todo dia e não apenas da parte da manhã, como ficou provado.
f) O mesmo se alcança do depoimento da testemunha A, depoimento também ele prestado na primeira sessão de julgamento e que consta a 10:50:33 - 1103:12.
g) A razão de ciência desta testemunha decorre do facto de ter sido companheira do Apelante e com ele ter residido no imóvel antes e depois da construção levada a cabo pelo apelado.
h) Afirma genericamente que já existia uma construção prévia no local onde o Apelado veio a edificar o seu "anexo", construção que se encontrava ao mesmo nível da casa do Apelante. Com a construção esta avançou cerca de um metro em altura e um metro em profundidade.
i) Afirmou com segurança e convicção que a construção retirou por completo luminosidade à casa, esclarece que a casa dada a sua localização era batida pelo sol logo pela manhã, e que embora o sol dê a volta havia luz todo dia.
j) A construção retirou por completo a luminosidade à casa, o que a tornou mais desconfortável.
k) “Até mesmo em termos estéticos, é completamente diferente ir à janela e ver quintais ou deparar com um prédio.”
1) Pelo que o que e fase (sic) aos depoimentos das testemunhas os artigos 13, 14, e 150, deveriam ter sido dados como provados.
m) Vistas as questões atinentes ao recurso da matéria de facto, importará agora pugnar pela aplicação do direito face à matéria de facto que se pretende ver provada e, caso assim não se entenda, subsidiariamente e sem conceder, atentar sobre o direito aplicado na douta sentença de que se recorre.
n) Considerou o douto tribunal a quo, que da matéria de facto dada como provada e da aplicação do direito a tal factualidade resulta totalmente improcedente por não provada a acção e em consequência decidiu pela absolvição do Réu de todos os pedidos.
o) Ora no presente pleito pugna o Apelante pela existência de ofensa ao seu direito de propriedade em consequência da obra realizada pelo Apelado no que resulta em prejuízo quer de natureza patrimonial, quer não patrimonial.
p) Da matéria de facto dada como provada não resulta, salvo melhor opinião a improcedência in totum dos presente autos, porquanto e conforme dispõe dispõe o arto 73º do RGEU aprovado pelo Decreto Lei no 38382 de 07 de Agosto de 1951, que as janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no Arto 75o, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do pavimento do compartimento com o mínimo de 3 metros, Além disso não deverá haver a um e a outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 m., devendo garantir-se, em toda a sua largura, o afastamento mínimo de 3 metros fixado.
q) Verifica-se a presente situação na medida em que a edificação levada a cabo pelo Apelado constitui um obstáculo à iluminação do imóvel de que o Apelado é proprietário, porque situado a distância inferior a dois metros da janela do Apelante.
r) Para tanto basta atentar no projecto apresentado junto da Câmara Municipal, e mais concretamente a planta do Rés do Chão, tendo em conta a escala utilizada, para verificar que também no projecto tal distância não se encontra assegurada.
s) Ora tal violação de uma norma do RGEU consubstancia uma violação do direito de propriedade do Apelante, nesse sentido vide acórdão da Relação de Lisboa de 14/11/1996 (in Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, 1996, Tomo V, página 96 a 103) que dispõe o seguinte: "Por estas razões nos parece hoje de acolher uma interpretação que veja nas normas respeitantes ao direito das edificações a protecção de interesses públicos e particulares, não considerando a tutela destes apenas de uma forma indirecta ou mediata em função daquele. Podendo assim, no âmbito administrativo, o interessado solicitar a anulação da deliberação camarária, não lhe devendo ser excluída, à priori, em razão da matéria, a possibilidade de, com sucesso, impor nos tribunais comuns o respeito dessas normas."; e ainda, "Assim, as referidas normas (Art0 73 e 750 do RGEU), tutelando interesses públicos, protegem também interesses particulares, podendo o seu desrespeito constituir os infractores em responsabilidade civil extracontratual nos termos do Art0 4830 do CC se se verificarem todos os pressupostos incluindo os prejuízos decorrentes da sua violação. A desvalorização das propriedades contíguas, por força da construção dos edifícios desrespeitados esses preceitos constitui um dos prejuízos atendíveis".
t) Também o Art0 13050 do CC preceitua que "O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas"
u) A infracção ao disposto no arto 730 do RGEU, não só prejudica o gozo da coisa, na medida em que lhe diminui a luminosidade, afectando a sua salubridade, mas prejudica igualmente as faculdades de fruição e disposição, de acordo aliás com factualidade provada em sede de audiência de Julgamento e constitui igualmente o Apelado na obrigação de indemnizar uma vez que se verifica a desvalorização do imóvel, como aliás ficou manifestamente provado através de prova pericial junta aos presentes autos.
v) Em síntese verifica-se pois que a obra levada acabo pelo Apelado, resulta numa ofensa ao direito de propriedade do Apelante, o que lhe causou um prejuízo, o que se encontra quantificado em virtude da prova pericial que se encontra junta aos autos.
w) Por essa razão mal andou o douto tribunal quando considerou improcedente a acção intentada contra o Apelado, nos precisos termos em que o fez.
x) a Apelante aceitou ainda que com reserva a obra levada acabo pela apelada o que na realidade não se verificou.
y) A Apelante não aceitou, nem podia formalmente aceitar uma obra que nunca considerou como concluída, fase aos defeitos que apresentava, e apresenta,
z) Tanto mais que ao contrário do descrito nas facturas apresentadas pela Apelada, determinados serviços que se encontram facturados não foram sequer prestados por si, mas pagos directamente pela Apelante a quem os realizou.
aa) A Apelante, viu-se confrontada com a realidade de ter que iniciar a sua actividade, ou continuar a suportar custos fixos de uma actividade que nada gerava e consequentemente confrontar-se com a perda da clientela.
bb) Por outro lado viu-se ainda confrontada a Apelante com a inércia da Apelada em eliminar os defeitos que a obra apresentava, resguardando-se num significativo silêncio que nem a interpelação formal da Apelante conseguiu romper, razão pela qual pugna a apelante pela redução do preço,
cc) Tanto mais que a Apelada, não reconheceu a existência de tais defeitos.
dd) A Apelante deve ainda ser ressarcida dos danos causados pelo cumprimento defeituoso da obra tanto que a mesma deveria estar concluída em Agosto de 2004 em Fevereiro de 2005 a mesma ainda não se encontrava concluída, razão pela qual a Apelante se viu forçada mesmo assim a iniciar a laboração em consequência dos encargos a que estava sujeita sem que para os suportar estivesse a facturar.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pelo recorrente nas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso.
Deve notar-se, porém, que se deve a manifesto lapso do apelante a transposição para estes autos do exposto nas conclusões x) a dd) que, respeitando manifestamente a outro caso, nada tem a ver com a matéria objecto deste processo.
Não serão, naturalmente, tidas em consideração.
Há que saber, pois, se:
- existe fundamento para alterar a decisão proferida sobre os pontos 13º, 14º e 15º da b. i.;
- se a aplicação dos direito aos factos provados leva à procedência dos pedidos formulados pelo autor.

II – Na sentença, descrevem-se como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrita a favor do autor a aquisição da fracção “C”, que corresponde ao 1º andar frente do prédio urbano descrito sob o nº  na Conservatória do Registo Predial de… – A) da matéria de facto assente.
2. Encontra-se inscrita a favor do réu a aquisição do prédio urbano descrito sob o …..na  Conservatória do Registo Predial, sito na Rua…., composto por edifício de rés-do-chão, 1º e 2º andares – B) da matéria de facto assente.
3. O prédio referido em A) confina a sul com o prédio referido em B) explorando o réu neste último um estabelecimento comercial - alínea C) da matéria de facto assente.
4. Em 2003, o réu obteve da Câmara Municipal o alvará de obras de construção n° 208/03 - alínea D) da matéria de facto assente.
5. No prédio onde funciona o estabelecimento comercial, pertença do réu, existia previamente um anexo, construído no quintal, com a função de complemento do espaço comercial - artigo 1º da Base lnstrutória.
6. Em Março de 2002, na sequência de pedido formulado pelo réu, o autor deu o seu consentimento a que aquele procedesse à realização de obras de reconstrução do anexo referido em 1° - artigo 2º da Base lnstrutória.
7. Com o decurso das obras, constatou o autor que com as mesmas se procedia a uma ampliação do primitivo anexo - artigo 3º da Base lnstrutória.
8. A nova edificação excede a estrutura pré-existente, aumentando um metro em altura e na parte mais a tardoz da referida edificação - artigo 4º da Base lnstrutória.
9. A construção consiste numa estrutura ao nível do primeiro andar do prédio confinante, ocupando toda a área do quintal do prédio - artigo 6º da base lnstrutória.
10. Dista cerca de um metro do prédio do autor – artº 7º da Base lnstrutória.
11. Situando-se em frente a uma das suas janelas - arte 8º da Base Instrutória.
12. E a meio metro do prédio vizinho, sito no n° 31 da mesma rua – artº 9º da Base lnstrutória.
13. Ao autor apenas foi comunicado que se tratava da reconstrução do anexo já existente - art. 10º da Base Instrutória.
14. A concordância que o autor manifestou na altura dizia respeito à reconstrução desse anexo e não à ampliação do mesmo - artigo 11º da Base Instrutória.
15. A licença camarária abrangia apenas a reconstrução e não a ampliação - artigo 12º da Base Instrutória.
16. A construção efectuada retira luminosidade à habitação do autor - artigo 13º da Base Instrutória.
17. Por força da construção na parte da manhã existe menos sol na fracção do autor - artigo 14º da Base Instrutória.
17. Por força da construção parte da vista da fracção do autor encontra-se tapada pela parede da construção, provocando uma sensação de emparedamento - artigo 16º da Base Instrutória.
18. A realização da obra tem causado ao autor ansiedade e nervosismo - artigo 17º da Base Instrutória.
20. A construção diminuiu o valor comercial do imóvel do autor entre os 5.000,00 euros e os 7.500,00 euros - artigo 18º da Base Instrutória.
21. 0 que dificulta a venda do mesmo.
22. Feitas as medições da área aprovada para obra, verificou-se que sobrava uma faixa de terreno que não aparecia descrita na inscrição do logradouro no cadastro na Câmara Municipal de A... - artigo 20º da Base instrutória.
23. Verificadas as confrontações, nomeadamente com o logradouro da fracção, detectou-se que existia no terreno uma "terra de ninguém", que não estava descrito em nenhum levantamento toponímico - artigo 21º da Base Instrutória.
24. Por essa razão foi requerido novo Projecto de Alterações, que obteve a aceitação e confirmação das confrontações com as propriedades de J de E - artigo 22º da Base Instrutória.
25. E que teve por objectivo a correcção de medições e a alteração da construção - artigo 23º da Base Instrutória.
26. A edificação anterior já confinava com a fracção do autor, mediante a existência de uma parede de encosto à sua marquise.

Acerca da decisão proferida sobre os factos:
É posta em causa pelo apelante na parte em que julgou os pontos 13, 14 e 15 da base instrutória, sustentando que, ao invés do decidido, tais factos deveriam ter sido julgados como provados na sua integralidade.
E para o efeito invoca o depoimento das testemunhas L e A.
Nestes pontos da b. i. perguntava-se o seguinte:
13º - A construção efectuada retira toda a luminosidade que antes existia na habitação do autor?
14º - Incide sobre ela muito menos sol?
15º - O que a tornou mais fria e desconfortável?
Como consta de decisão proferida a fls. 151 e segs., ao primeiro deles respondeu-se, como se vê do facto acima descrito sob o nº 16, que a construção efectuada retira luminosidade à habitação do autor.
Quanto ao segundo, cuja resposta consta agora do facto nº 17, julgou-se provado que, por força da construção, na parte da manhã existe menos sol na fracção do autor.
E o terceiro deles mereceu a resposta de não provado.
E para a formação desta convicção[1] contribuíram, como se escreveu na respectiva fundamentação, os depoimentos testemunhais, devidamente conjugados, as fotografias juntas aos autos e a inspecção ao local, realizada em sede de audiência de julgamento.
A propósito da valoração dos elementos colhidos nesta última diligência probatória diz-se, nomeadamente, o seguinte: “Foi visível em sede de inspecção ao local que por força desta elevação[2] em altura da construção existe menor luminosidade na fracção do autor e que lhe é tapada a vista, produzindo a tal sensação de emparedamento e quanto a exposição solar, tendo em conta que a parede em causa se situa a nascente, a mesma apenas retira exposição solar, na parte da manhã, dada a natural rotação solar. O que já não resultou provado e tendo em conta que a varanda do autor é toda ela voltada a nascente, que por força da elevação da parede, a casa esteja mais fria, já que antes desta elevação, esta varanda e consequentemente esta parte da casa do autor, já não beneficiava de grande exposição solar, a não ser logo pela manhã.”
O valor predominante atribuído pelo tribunal de 1ª instância a este elemento probatório não é de modo algum posto em causa pelo apelante que se limita a invocar dois depoimentos testemunhais, sendo que apenas um deles, pelo seu conteúdo, poderia ter contributo relevante para resposta diferente da que foi adoptada.
O declarado por L e destacado pelo recorrente – em síntese, que, por força da nova construção levada a cabo pelo apelado, a luminosidade na casa do autor é diferente, o que se nota durante o dia, tornando a casa mais sombria e desconfortável – é absolutamente consentâneo com as respostas restritivas dadas aos pontos 13º e 14º; apenas no respeitante à matéria do ponto 15º afirma existir agora na casa do autor um desconforto que a decisão não teve como provado
O depoimento de A – dizendo, em síntese, que a construção retirou por completo a luminosidade à casa do autor, tornando-a mais desconfortável – poderia concorrer, de facto, para as respostas propostas pelo apelante.
Mas tais elementos, por si só, são absolutamente insuficientes para pôr em causa a convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância com base na inspecção ao local que realizou - em combinação com as demais provas colhidas -, onde contactou de perto com os elementos físicos e ambientais do prédio do autor e do anexo do réu, e assim acedeu, por percepção directa, à realidade dos factos.
Não bastando eles para evidenciar a existência de qualquer erro de julgamento relativamente aos factos em causa, não existe fundamento para alterar a correspondente decisão, pelo que está votada ao insucesso esta parte do recurso.

Sobre o mérito da decisão:
Os fundamentos que estiveram na base da emissão de decisão de improcedência do pedido do autor foram, em síntese, os seguintes:
- O autor tem direito a ter na sua habitação um nível de luminosidade conveniente à sua saúde, bem-estar e conforto – art. 9º, nº 1 da Lei nº 11/87, de 7.04;
 - Os factos provados – nºs. 16 e 17 – não permitem concluir que a extensão da privação da exposição aos raios solares seja de tal ordem que afecte aquele seu direito; o autor não logrou demonstrar que a exposição aos raios solares e o nível de luminosidade com que ficou não garantam minimamente a sua qualidade de vida, dentro das limitações legais, já que nenhuma habitação goza da prerrogativa da exposição total ao sol, pelo que a diminuição dessas condições provocada pela construção do réu há-de ser considerada como uma consequência normal e necessária da transformação lícita do prédio vizinho;
- Pese embora o descrito nos factos 9 a 11, está-se perante a construção de um eirado que deita directamente para o prédio do autor, situando-se em frente a uma das suas janelas; ora, não tendo sido alegado nem provado que tal eirado seja servido de parapeito, não existe a invocada violação do art. 1360º, nº 2, do C. Civil, preceito legal que visa a protecção do prédio da “devassa” do prédio vizinho.
- Os factos apurados, descritos nos nºs 9 a 11, não permitem concluir pela existência da invocada violação das regras dos arts. 73º e 75ª do RGEU.
- Não havendo facto ilícito praticado pelo réu, não é ele civilmente responsável pelos danos causados ao autor, sendo certo que nesta matéria não existe responsabilidade pelo risco; por isso improcede a acção.
Aceitando a afirmada inexistência de violação, por parte do réu, quer do disposto no nº 2 do art. 1360º do C. Civil, quer do direito que a seu favor institui o art. 9º, nº 1 da Lei nº 11/87, de 7.04, o apelante continua a sustentar, ao longo das conclusões m) a w), que o apelado, com a sua actuação, viola a segunda parte do art. 73º do RGEU, assim pondo em causa o seu direito de propriedade, com prejuízo do gozo da coisa – visto a construção diminuir a luminosidade do seu prédio e afectar a sua salubridade - e da sua disposição.
Importa ter presente que sobre as características da construção que o réu vinha edificando e sobre o seu posicionamento relativamente ao prédio do autor, apenas se sabe, como resulta dos factos nºs 9 a 11, que a construção consiste numa estrutura ao nível do primeiro andar do prédio confinante, ocupando toda a área do quintal do prédio, distando cerca de um metro do prédio do autor e situando-se em frente a uma das suas janelas.
Têm o seguinte teor os arts. 73º e 75º do RGEU, aprovado pelo Dec. Lei nº 38382, de 7 de Agosto de 1951:
art. 73º
“As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no art. 75º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do
compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um ou outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda a largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.
art. 75º
“Sempre que nas fachadas sobre logradouros ou pátios haja varandas, alpendres ou quaisquer outras construções, salientes das paredes, susceptíveis de prejudicar as condições de iluminação ou ventilação, as distâncias ou dimensões mínimas fixadas no art. 73º serão contadas a partir dos limites extremos dessas construções.”
Na tese do apelante, a construção edificada pelo réu, a menos de dois metros da janela do prédio do autor, constitui um obstáculo à iluminação deste, com violação da regra consagrada na segunda parte do citado art. 73º.
É sabido que os direitos reais, nomeadamente o direito de propriedade, não têm natureza absoluta, no sentido em que sobre eles “pesam determinados limites ou limitações[3], impostas por lei, umas fundadas em razões de interesse público ou de utilidade pública e outras em razões de interesse privado ou de utilidade privada.
 Entre as que tutelam interesses de ordem pública merecem aqui destaque, pelo seu especial interesse para o caso dos autos, as que se traduzem na “fixação de regras mínimas a observar na construção de edifícios, por razões de segurança, salubridade e higiene e ainda de ordem estética, ligadas, nomeadamente, à boa ordenação urbanística das povoações[4]
Assumem inequivocamente esta natureza as limitações ao direito de propriedade prescritas nos invocados arts. 73º e 75º do RGEU.
Algumas das limitações que visam proteger interesses particulares “estão relacionadas com a maneira de ser de certas categorias de coisas” que são objecto dos direitos reais.
Com efeito, “(…) a contiguidade e a proximidade que frequentemente existe entre ao prédios, sejam rústicos, sejam urbanos, faz com que o exercício de direitos reais sobre um deles se projecte sobre prédios vizinhos ou, com mais rigor, sobre o interesse de quem quanto a eles detém direitos. Por isso se fala, com propriedade, de limitações impostas por relações de vizinhança[5]
São limitações desta natureza as impostas pelo 1360º do C. Civil, onde, com alguma derrogação da faculdade de livremente construir, que seria, em princípio, própria do direito de propriedade, se tutelam os interesses do titular de direito sobre o prédio vizinho, visando-se essencialmente evitar o seu devassamento.[6]
E hão-de ser acatadas por aquele que constrói em prédio de sua pertença – titular do direito limitado – em defesa dos interesses do proprietário do prédio vizinho.
Como se disse já, as limitações estabelecidas no RGEU, designadamente nos seus arts. 73º e 75º, são ditadas por razões de interesse público, como a salubridade e a estética urbanística.
Independentemente da questão de saber se a sua violação pode ser invocada para fundar o ressarcimento de danos particulares, relativos ao direito de propriedade [7], certo é que, à semelhança do que acontece no já citado art. 1360º do C. Civil, as regras estabelecidas nestes dispositivos legais regulam as condições a observar em edifícios a construir – aqui, a construção do apelado -, e não as condições em que ficarão os prédios vizinhos, pré-existentes, como é o caso do prédio do apelante.
É aquele que terá de observar, na edificação a erigir, as limitações aí estabelecidas, não podendo, designadamente, e por força da segunda parte do art. 73º do RGEU, abrir janela, cuja iluminação seja posta em causa por obstáculo situado a menos de 2 metros de um ou outro lado do seu eixo vertical.
No dizer do acórdão do STJ de 5.04.1984[8]como resulta da letra dos próprios textos, os artigos 15º, 58º e 63º do R.G.E.U. só regem as condições de segurança, salubridade e estética dos edifícios a construir, do mesmo modo como o Ac. do S.T.A. de 25.6.1965 (…) também observou que o art. 73º apenas se aplica à edificação a construir. Daí ser inadmissível invocar a ofensa dos artigos 15º, 58º e 63º, a pretexto de a obra licenciada prejudicar a entrada de ar, sol e luz natural, no prédio vizinho”.
E como se escreveu no acórdão do mesmo Tribunal de 29.11.2006[9] “do preâmbulo do R.G.E.U. resulta com clareza que visa apenas as novas construções ou as reconstruções de edifícios já existentes, isto é, as construções e as reconstruções a licenciar nos termos desse diploma: são essas que têm de ser levadas a cabo de harmonia com as suas normas, a fim de se garantir que os edifícios a construir ou a reconstruir tenham condições de salubridade e obedeçam a requisitos de segurança, solidez e de defesa contra riscos de incêndio, bem como a requisitos de ordem estética. Ou seja, salvo quanto aos requisitos de ordem estética, portanto no que respeita à salubridade e segurança, o que o R.G.E.U. tem em vista proteger é apenas o interesse público da salubridade e segurança das novas construções e reconstruções.
Não se destina, pois, o R.G.E.U., a proteger as construções já existentes à data da sua entrada em vigor, por ser manifesto que o que o legislador pretende é garantir que todas as novas construções, mesmo as que venham a substituir as anteriormente existentes, satisfaçam os requisitos que ali prescreve, sem embargo de dessa forma originar também, reflexamente, benefícios para as construções anteriores.
Pelo que os direitos subjectivos dos particulares que aquele Regulamento salvaguarda são apenas, em princípio e em primeira linha, os de quem proceda às novas construções e reconstruções após a sua entrada em vigor, observando tais requisitos: ao impor determinadas obrigações a quem, de futuro, construa ou reconstrua edifícios, é de entender que também a eles, em compensação, reconhece de forma implícita o direito de exigir de prevaricadores o cumprimento das respectivas normas se com o seu incumprimento ficarem lesados.”
[10]
Temos assim que a regra da 2ª parte do art. 73º do RGEU que o apelante diz ter sido violada pelo apelado, com prejuízo para o seu direito de propriedade, se destina a proteger a salubridade da construção que este último vinha erigindo – e não a salubridade e iluminação da casa do apelante -, sendo aquele que no seu edifício não poderia abrir janela com obstáculo a menos de dois metros.
Daí que se não possa imputar ao apelado a violação de tal regra, desde logo, porque não se provou, e nem sequer alegado foi, que tal construção possua qualquer janela nessas condições.
Não podendo concluir-se pela ilicitude da construção edificada pelo apelado, não pode ele ser responsabilizado, como bem se diz na sentença, pelos danos causados ao apelante, nomeadamente a desvalorização do seu prédio.
Assim, não merecendo censura a sentença recorrida, impõe-se a improcedência da apelação.

IV – Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.

Lisboa, 30 de Novembro de 2010

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
Ana Resende
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[1] A atinente às respostas dadas aos artigos 1º a 17º da b. i..
[2] A subida de altura, relativamente à anterior, da construção levada a cabo pelo réu no logradouro do seu prédio.
[3] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1971, pág. 153 e segs.
[4] Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª edição, pág. 201
[5] Ibidem, pág. 207-208
[6] Ibidem, pág. 213-214 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, pág.193, anotação ao art. 1360º.
[7] A título de exemplo: em sentido negativo pronunciou-se a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 24.01.1991 – Relator Flores Ribeiro – C. J. 1991, tomo I, pág. 148-149; em sentido afirmativo, mas com as restrições aí assinaladas, veja-se da mesma Relação o acórdão de 14.11.1996  - Relator Salazar Casanova -, C. J. 1996, Tomo V, pág. 96 e segs.
[8] BMJ 336, pág. 430, conforme referência feita no já citado acórdão desta Relação de 14.11.1996, CJ 1996, Tomo V, pág. 96 e segs..
[9]Acessível em www.dgsi.pt, Proc.  06A3790, Relator Silva Salazar
[10] Cfr. em sentido idêntico os demais arestos aí citados.