VEÍCULO AUTOMÓVEL
AQUISIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
Sumário

Sendo a presente acção fundada exclusivamente no reconhecimento da aquisição do direito de propriedade com base na usucapião, o não decurso do prazo de dez anos contados desde o início da posse, considerando-se que se trata dum móvel sujeito a registo e de que este não se encontra efectuado em favor do peticionante, implica a improcedência do pedido.
Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
Intentou A. acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra os Réus B.. Lda. e C… SA.
Alegou essencialmente que :
Em Março de 2005 o A. adquiriu à Ré B… Lda. uma viatura usada, de marca Mercedes-Bens, modelo , com a matrícula… , pelo preço de € 24.600,00.
Para pagamento do preço, o A. entregou uma viatura antiga de sua propriedade, a que foi atribuído e aceite pelas partes o valor de € 5.000,00, sendo a restante parte do preço de € 19.000,00 paga através de subscrição pelo A. de um crédito pessoal de igual valor.
Todo o processo de crédito foi conduzido pela Ré, tendo vindo a ser aprovado e concedido através do contrato nº ... da BC. ..S.A..
O valor mutuado de € 19.000,00 foi entregue à Ré B…Ldª. para pagamento da restante parte do preço.
Logo após a aquisição e pagamento do veículo, a 1ª Ré emitiu uma declaração para o veículo circular, declaração essa que entregou ao A., e que seria válida até à obtenção dos documentos de transferência de propriedade para seu nome.
O tempo foi passando e apesar de várias insistências da A., nunca foram entregues os documentos da viatura, sendo somente substituídas as declarações para circulação, tendo a última sido emitida em Julho de 2007.
Desde a data da aquisição, Março de 2005, que o A. circulava com o veículo, tendo o respectivo seguro e imposto de circulação em seu nome.
O que aconteceu até Abril de 2008, data em que o veículo teria que ser sujeito a uma inspecção obrigatória.
Não tendo o A. o veículo registado em seu nome, não pode efectuar tal inspecção, razão pela qual e em consequência não pode mais circular com o veículo adquirido, o que aconteceu por culpa única e exclusiva da Ré C. ao não ter efectuado a transferência de propriedade como deveria ter feito.
O A., desde a data da aquisição tem tentado por todos os meios ao seu alcance que a Ré transfira para a sua propriedade o veículo que adquiriu em Março de 2005, o que ainda não aconteceu.
O veículo ainda se encontra registado a favor do segundo Réu.
Desde Março de 2005 que o A. circulou e tem ainda hoje o veículo na sua posse na convicção de que o mesmo lhe pertence o que fez e faz sempre desde aquela data até hoje, praticando todos os actos de pleno proprietário, sem a menor oposição de quem quer que seja, de modo público e pacífico, sem lesar o direito de quem quer que seja.
Conclui pedindo que fossem os RR. condenados a reconhecê-lo como proprietário do veiculo automóvel, marca Mercedes Benz, com a matricula.
Regularmente citados, os Réus não apresentaram contestação, nem constituíram mandatário.
Foi proferida sentença julgando improcedentes os pedidos formulados, com a consequente absolvição da Ré ( cfr. fls. 25 a 28 ).
Apresentou o A. recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação ( cfr. fls. 43 ).
Juntas as competentes alegações, a fls. 31 a 34, formulou o apelante, as seguintes conclusões:
1ª - Faltando título como acontece na aquisição unilateral, em que não existe qualquer colaboração do anterior possuidor na constituição da nova posse, cfr. artigo 1263º, do Código Civil, presume-se, em caso de dúvida, que o possuidor possui em nome próprio ou como se diz no artigo 1252º, nº 2, do Código Civil, “ presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto… “ como se verifica no pedido do ora recorrente.
2ª - Que, desde 2005 detém quer o “ animus “, quer o “ corpus “, no sentido de desde aquela data que o vem utilizando como seu sem a menor oposição de quem quer que seja, assumindo-o como coisa própria sua.
3ª - Nos termos do artº 1298º, do Código Civil, estando o possuidor de boa fé e tendo título deve considerar-se suficiente quatro anos equiparando-o assim ao possuidor de má fé e não dez dado que no presente caso de modo algum seria possível proceder ao registo a favor do recorrente dada a falta de colaboração de qualquer dos RR. que confessando o pedido como fizeram devem sim dar título ao ora recorrente para registar a seu favor a propriedade do veículo automóvel de matrícula 12-41-HX por verificação da usucapião.
Não houve resposta.

II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provado nos autos que :
Todos os factos articulados na petição inicial e referenciados supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
É a seguinte a única questão jurídica que importa dilucidar :
Da pretendida aquisição do direito de propriedade sobre o veículo automóvel fundada no instituto da usucapião de móveis sujeitos a registo.
Passemos à sua análise :
Consta da decisão recorrida :
“Pede o Autor que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel de matrícula , invocando a sua aquisição por meio de usucapião.
O direito de propriedade é um direito real, absoluto, de gozo e caracteriza-se pelo gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição que à coisa se podem referir.
Como afirma Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Reais, pg.448, “a propriedade é o direito real que outorga a universalidade dos poderes que à coisa se podem referir.”
Assim, recai sobre todas as pessoas uma obrigação de respeito por tal direito real, devendo ser omitidos quaisquer comportamentos que ponham em causa o gozo pleno das referidas faculdades de uso, fruição e disposição.
A usucapião é uma forma de aquisição de originária de direitos reais em geral, e do direito de propriedade em particular.
Como decorre do art.1287º do Código Civil, a usucapião é o “modo de constituição de direitos reais que pressupõe a manutenção da posse de certa coisa, durante um determinado lapso de tempo, desde que o exercício corresponda ao que seria o exercício de certo direito real de gozo” (cfr.José Alberto Gonzalez, in Direito Reais (parte geral) e Direito Registral Imobiliário, pg.97 e segs).
A usucapião justifica-se, pois, como o prémio dado àquele que promove o aproveitamento económico da coisa, mesmo não sendo titular de qualquer direito sobre a mesma, permitindo ainda a coincidência entre titularidade efectiva e a posse.
A usucapião tem como pressupostos o exercício da posse efectiva durante um determinado lapso de tempo, que variará consoante a natureza móvel ou imóvel dos bens sobre os quais a posse incide e conforme os caracteres de que esta se reveste. Terá, no entanto, de ser sempre uma posse pública e pacífica, ou seja, o seu exercício tem de ser feito em termos de poder ser conhecido dos interessados.
Considerando o disposto no art.1251º do Código Civil, a posse pode ser definida como a situação jurídica que se exterioriza pelo exercício de faculdades inerentes a certo direito independentemente de ser acompanhada da sua titularidade.
A posse é, assim, composta por dois elementos: o corpus, ou seja, a coisa terá de se manter no âmbito de actuação da vontade do sujeito, e o animus, a vontade de actuar como titular do direito.
Quanto às características da posse – ser de boa o má fé, titulada ou não titulada, estar ou não inscrita no registo – influenciarão o prazo necessário à usucapião.
No que respeita à boa ou má fé do possuidor, diz-se que este se encontra de boa fé quando desconhece que, ao adquirir posse, está a usar direito alheio (cfr.art.1260 do Código Civil), desconhecimento este que deve ser desculpável e não censurável.
É ainda de ponderar que a posse tem de ser pública e pacífica, o que significa que o seu exercício tem de ser feito em termos de ser conhecido dos interessados.
Em relação à existência ou não de título, a posse é titulada quando a sua aquisição suponha a existência de um acto jurídico translativo ou constitutivo de um direito real que, a ser válido, seria causa da posse. Tal acto jurídico tem, no entanto, de observar a forma legal (cfr.art.1259º, nº1 do Código Civil, a contrario).
Por outro lado, a posse será não titulada quando aquisição se não fundar num acto com referida eficácia translativa ou constitutiva ou quando se se fundar num acto existente, com eficácia translativa ou constitutiva de um direito real mas formalmente inválido.
Nestes termos, e quanto aos bens móveis, há que distinguir se se trata bens móveis sujeitos ou não a registo.
Na primeira hipótese, bens móveis sujeitos a registo, havendo título de aquisição e registo deste, a posse tem de ser exercida por 2 anos, estando o possuidor de boa fé, e por 4 anos se estiver de má fé (cfr.art.1298º do Código Civil).
Não havendo registo, a posse terá de ser exercida por 10 anos, independentemente da boa fé do possuidor e da existência de título.
No caso de se tratar de bens móveis não sujeitos a registo a usucapião dá-se quando a posse, de boa fé e fundada em título justo, for exercida por 3 anos, devendo, em caso contrário, ser exercida por 6 anos (cfr.art.1299º do Código Civil).
Ora, nos presentes autos o Autor adquiriu, em Março de 2005, mediante um contrato de compra e venda, o veículo automóvel em causa, tendo este de imediato entrado na sua posse.
Não estando em causa um contrato sujeito a qualquer exigência forma, terá de se considerar que a posse do Autor é uma posse titulada.
Desde a data do referido contrato que o Autor circula com o veículo em causa, tendo o respectivo seguro e imposto de circulação em seu nome.
Terá, pois, de se concluir que o Autor agiu sempre de boa fé.
Porém, e estando em causa um veículo automóvel, é este um bem móvel sujeito a registo, pelo que, e não se encontrando registado o respectivo título de aquisição, a posse terá de ser exercida por 10 anos.
Nestes termos, e independentemente da existência de título e da boa fé do Autor, terá de se concluir que, face à data de aquisição do veículo automóvel e de inicio do exercício da posse, não se mostra ainda decorrido o prazo para a aquisição por usucapião.”.
Apreciando :
Dispõe o artº 1298º, do Cod. Proc. Civil :
“ Os direitos reais sobre coisas móveis sujeitas a registo adquirem-se por usucapião, nos seguintes termos :
a) Havendo título de aquisição e registo deste, quando a posse tiver durado dois anos, estando o possuidor de boa fé, ou quatro anos, se estiver de má fé
b) Não havendo registo, quando a posse tiver durado dez anos, independentemente da boa fé do possuidor e da existência de título “.
Na situação sub judice,
o veículo automóvel que se encontra em poder do A. - desde Março de 2005 - nunca foi objecto do correspondente registo a seu favor.
Logo, ser-lhe-á directamente aplicável o prazo consignado na alínea b) do artº 1298º, do Código Civil, conforme decidido na decisão recorrida.
Sendo a presente acção fundada exclusivamente no reconhecimento da aquisição do direito de propriedade sobre o bem referido com base na usucapião, nada há a censurar quanto ao concretamente decidido.
Com efeito,
Não havendo decorrido ainda o prazo de dez anos previsto no citado preceito, não é logicamente possível considerar adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre o referenciado bem, que se encontra sujeito a registo.
Note-se, ainda, que
o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com excepção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, em conformidade com o que estabelecem os artigos 684.º, n.º 3, e 660.º, n.º 2, e 713.º, todos do CPC.
Sempre se dirá que
Poderia o A. haver recorrido à acção de justificação registral prevista no nº 2, do artº 116º, e nº 2, alínea b), do artº 117º-B, do Código de Registo Predial - justificação para reatamento de trato sucessivo.
Nessa acção, na medida em que se trata unicamente de restabelecer o trato sucessivo desde o último titular inscrito no registo, o A. teria que alegar e provar a usucapião desde que conseguisse reconstituir as transmissões ocorridas desde o último titular inscrito até à sua aquisição.
Por outro lado,
a efectiva aquisição do direito de propriedade em favor da A. resultará, em princípio, da mera celebração do contrato de compra e venda, nos termos gerais do artº 408º, nº 1, do Código Civil.
Com efeito,
O A. concretizou o contrato de compra e venda do veículo com a vendedora, a qual já recebeu a totalidade do preço devido, parte pago à custa do comprador e o sobrante pela financiadora do adquirente.
O registo da viatura em benefício do Réu,.. S.A. data de 18 de Junho de 2004 - anterior à concretização do contrato de compra e venda ( Março de 2005 ) -, não tendo sido posteriormente realizado qualquer outro registo sobre este bem.
Independentemente do cumprimento da obrigação acessória de entrega dos documentos da viatura ao A. de modo a viabilizar a realização do registo em seu favor, bem como a possibilitar a sua plena fruição, em conformidade com as exigências legais inerentes à sua circulação na via pública, o direito de propriedade sobre a referenciada viatura automóvel terá entrado, por essa via, na esfera jurídica do peticionante.
Competirá ao comprador o recurso a outros meios processuais ao seu dispor para forçar a entrega dos documentos da viatura e subsequente registo da aquisição do veículo em seu favor.
Contudo,
Não o poderá obter neste processo face à configuração que imprimiu à causa de pedir e ao pedido que nessa sequência formulou.


IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

V - Sumário elaborado nos termos do artº 713º, nº 7, do Cod. Proc. Civil.
I - Sendo a presente acção fundada exclusivamente no reconhecimento da aquisição do direito de propriedade com base na usucapião, o não decurso do prazo de dez anos contados desde o início da posse, considerando-se que se trata dum móvel sujeito a registo e de que este não se encontra efectuado em favor do peticionante, implica a improcedência do pedido.

Lisboa, 20 de Setembro de 2011.

Luís Espírito Santo
Gouveia Barros
Maria João Areias