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FALSAS DECLARAÇÕES
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE
INSTRUÇÃO CRIMINAL
Sumário
I-O crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto no artº 359º do Código Penal e 97º do Código do Notariado, tutela um valor supra individual- a realização da justiça- sem, contudo, estar excluído que se possa encontrar tutela para interesses ou bens jurídicos de cariz individual, como acontece, se o agente com a falsidade de depoimento causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa. II-No caso concreto da norma do artigo 97º do Código do Notariado (que constitui um tipo legal autónomo, definindo os elementos constitutivos do crime de falsas declarações, sendo a remissão, apenas, para as penas aplicáveis ao crime de falsas declarações do artigo 359º do CP), a par da tutela da credibilidade do documento no tráfico probatório, protegem-se os interesses jurídicos dos particulares prejudicados com a falsa declaração. III-Assim, se alguém que foi contemplado em testamento como herdeiro da quota disponível e na habilitação de herdeiros foi excluído, nela se fazendo constar que o de cujos “não outorgou testamento nem doação por morte”, o herdeiro denunciante da falsa declaração tem legitimidade para se constituir assistente. IV-O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, sob pena de ser rejeitado por inadmissibilidade legal (cfr. nº 3 do artº287º, do CPP).
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 1440/10.3 TACSC, corre termos pelo 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal da Comarca de Cascais, N…, devidamente identificada nos autos, na sequência da notificação do despacho do Ministério Público (fls. 124 e segs.) que determinou o arquivamento do inquérito iniciado por uma denúncia por si apresentada, veio requerer a sua constituição como assistente e, simultaneamente, a abertura de instrução (requerimento a fls. 130 e segs.).
Porém, a Sra. Juíza de instrução, não só não admitiu a denunciante a intervir como assistente mas também rejeitou o requerimento de abertura de instrução, por considerar esta inadmissível por falta de objecto.
Não se conformou a denunciante e recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “No douto despacho a quo aMeritíssima Juiz indeferiu a requerida constituição de assistente alegando que estando em causa um crime de falsas declarações p. e p. pelos artigos 359.º n.º 1 do CP e 97.º do CN, não poderia haver constituição de assistente por se tratar de um crime que visa tutelar a boa realização da justiça, tratando-se de um crime público.
2. Sucede que de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do CPP podem constituir-se assistente os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
3. Neste caso o interesse titulado pela ora Recorrente traduz-se nos prejuízos sofridos pela actividade delituosa da arguida que a omitiu no testamento realizado com a intenção de a prejudicar.
4. O interesse que preside à constituição de assistente é sempre de natureza privada.
5. Assim, ao indeferir a requerida constituição de assistente, violou a decisão recorrida a disposição citada.
6. Mais indeferiu a Meritíssima Juiz o requerimento de abertura de instrução com o fundamento de que o requerimento de abertura de instrução haveria de ter estrutura semelhante à da acusação e que continha factos que constituíam alteração substancial da acusação o que era proibido pelos artigos 303.º e 309.º do CPP.
7. Acontece que nos termos do artigo 287.º n.º 2 do CPP o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a quaisquer formalidades mas deve conter, em sumula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o Juiz leve a cabo.
8. O n.º 3 do mesmo artigo refere que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz, ou por inadmissibilidade legal da instrução.
9. Da sua simples leitura se verifica a discordância com o despacho de arquivamento proferido, requerendo-se no artigo 14.º prova testemunhal essencial para imputar o crime ao agente.
10. Não se pode é confundir um requerimento de abertura de instrução com uma acusação particular pois neste caso, e se for caso disso, a verdadeira acusação é feita pelo Juiz no seu despacho de pronúncia nos termos do artigo 308.º do CPP.
11. Não se compreende como se pode falar de uma decisão instrutória nula por pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial daqueles que foram vertidos no requerimento de abertura de instrução, quando nele se refere que a arguida tinha de facto conhecimento do testamento, artigo 5.º, que a visou prejudicar ao omitir a sua qualidade de herdeira, artigo 6.º,que é falso que desconhecesse o testamento quando omitiu a existência da denunciante perante o notário, artigo 13.°, factos mais do que suficientes para subsumir o comportamento da arguida ao crime por que se mostra denunciada.
12. Sempre com o dever de respeito e pelo exposto não é legítimo à Meritíssima Juiz considerar a instrução dos autos inadmissíveis por falta de objecto e muito menos rejeitar o requerimento de abertura de instrução nos termos no n.º 3 do artigo 287.º do CPP.
13. Sem conceder, não há possibilidade de elaborar "despacho liminar" na fase de instrução em processo penal.
14. Se realmente no decurso da instrução não for produzida a prova conducente ao crime o caminho a seguir será o da prolação de um despacho de não pronúncia e nunca de um despacho de rejeição da instrução fora das condições legais.
15. Foi assim violado o disposto no artigo 287.º n.º 3 do CPP.
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Apenas o Ministério Público apresentou resposta à motivação da recorrente em que manifesta o entendimento de que tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa prejudicada com as falsas declarações prestadas numa escritura de habilitação de herdeiros, mas “bem andou a Mma Juiz de Instrução ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal”.
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Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do artigo 416.º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que, aderindo, no essencial, «aos termos e fundamentos da “resposta” à motivação apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância», se pronuncia pela procedência do recurso na parte em que impugna a decisão no segmento em que indeferiu o requerimento de constituição como assistente da denunciante, mas pela manutenção da decisão recorrida na parte em que rejeitou o pedido de abertura de instrução.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta da recorrente.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
Sabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente.
A Sra. Juíza de instrução não admitiu a denunciante a intervir como assistente, decisão com que esta não se conforma, considerando-a “por demais peregrina”, pois entende que o crime tipificado no artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal também protege o património e ela é ofendida.
Por outro lado, considera a recorrente que o requerimento instrutório contém “factos mais que suficientes para subsumir o comportamento da arguida ao crime por que se mostra denunciada”.
Assim, o objecto do recurso centra-se nas seguintes questões:
§ se a denunciante tem legitimidade para se constituir assistente e, portanto, se deve ser admitida a intervir no processo nessa qualidade;
§ se o requerimento de abertura de instrução satisfaz as exigências legais ou se, pelo contrário, havia razões para o rejeitar liminarmente, como aqui aconteceu;
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A legitimidade para intervir como assistente
Nos termos do disposto no art.º 68.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal os ofendidos, ou seja, os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Durante largo tempo, prevaleceu na jurisprudência o entendimento de que o art.º 68.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal consagra o conceito restrito de ofendido: este seria, apenas, o titular do interesse, directa, imediata ou predominantemente tutelado pela norma incriminadora em causa. Aqueles que sejam considerados titulares de direitos ou interesses (só) reflexa ou indirectamente protegidos por determinada infracção criminal não teriam legitimidade para intervir como assistentes[i].
Era com base neste entendimento que se negava aos particulares o direito de intervirem como assistentes em processos que tivessem por objecto crimes de falsificação de documentos, de falsidade de depoimento ou declaração, de denúncia caluniosa, de insolvência dolosa, etc. [cfr., entre outros, o acórdão do STJ de 12.06.1998 (CJ/Acs. STJ, VI, T. II, 214), da Relação do Porto, de 26.04.2000 (CJ XXV, T. II, 242) e acórdão da Relação de Coimbra, de 03.05.2000 (BMJ 497.º, 449), acórdão da Relação do Porto, de 28.03.2001 (CJ XXVI, T. II, 218) e acórdão da mesma Relação do Porto, de 24.10.2001, publicado, com uma anotação de Isabel São Marcos, na Revista do Ministério Público, n.º 91, 171 e segs.].
No entanto, uma outra corrente defendia que, encarando-se o bem jurídico-penal como um valor corporizado ou encabeçado no seu concreto portador, em quase todos os crimes é possível ver “uma dupla referência do bem jurídico à comunidade e ao portador individual, de sorte que, tratando-se de crimes em que o interesse jurídico protegido possui uma estrutura plural ou complexa (…) não haverá, de facto, razão bastante para recusar aos particulares em que o valor tutelado pelo tipo (ainda e também) se objectiva a qualidade de titular do bem jurídico, logo de ofendido para efeitos da sua constituição como assistente”[ii].
Foi esta a solução acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2003, em que se faz notar que só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar se é admissível a constituição como assistente, pois a “análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente”[iii].
No caso, considerou-se (no despacho recorrido, tal como no despacho de arquivamento do inquérito) que os factos denunciados eram, em abstracto, subsumíveis à previsão incriminadora dos artigos 359.º, n.º 1, do Código Penal e 97.º do Código do Notariado.
O citado artigo 359.º inicia o capítulo dos crimes contra a realização da justiça.
Por isso, não pode haver dúvidas de que com essa incriminação se tutela um valor supra individual – precisamente a realização da justiça.
Mas, como é geralmente reconhecido, não está excluído que em qualquer dos tipos incriminadores agrupados sob aquela designação (“crimes contra a realização da justiça”) se possa encontrar tutela para interesses ou bens jurídicos de cariz individual.
Assim foi entendido no acórdão do STJ, de 12.07.2005 (CJ/Acs. STJ, XIII, T. II, 238) em que se pondera que, sendo a falsidade de depoimento um crime contra a realização da justiça, “o prejuízo de terceiro condiciona a moldura penal abstracta e a possibilidade de dispensa de pena, através da retractação”, pelo que, “se num caso concreto, o agente com a falsidade de depoimento causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente”[iv].
Mas no caso em apreço há que ter, ainda, em consideração que a norma do artigo 97.º do Código do Notariado não é puramente remissiva, antes define os elementos constitutivos do crime de falsas declarações, como, facilmente, se pode verificar pelo seu teor:
“Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura”.
Trata-se, pois, de um tipo legal autónomo, sendo a remissão, apenas, para as penas aplicáveis ao crime de falsas declarações (do artigo 359.º do Código Penal), em que, à semelhança do que acontece no crime de falsificação de documentos, a par da tutela da credibilidade do documento no tráfico jurídico probatório, se protegem os interesses jurídicos dos particulares prejudicados com a falsa declaração.
Estas são, cremos, razões bastantes para reconhecermos legitimidade à denunciante para se constituir assistente neste processo, pois foi contemplada em testamento como herdeira da quota disponível da herança de M.C.M. e na habilitação de herdeiros em causa foi excluída, pois nela se fez constar que o de cujus “não outorgou testamento nem doação por morte”.
Nesta parte, não pode manter-se a decisão recorrida.
Vejamos se à mesma conclusão deve chegar-se quanto à decisão de rejeitar, liminarmente, o requerimento de abertura de instrução.
A decisão impugnada
Para uma correcta decisão da questão equacionada, importa conhecer a decisão posta em crise, que é do seguinte teor (na parte que agora interessa):
“O exercício da acção penal compete ao MºPº (art. 48º do CPP), que, findo o inquérito determinará o arquivamento se tiverem sido recolhidas provas de não se ter verificado o crime, de o arguido o não ter praticado ou for legalmente inadmissível o procedimento e, ainda, se não houver indícios bastantes da sua verificação ou de quem foram os agentes (art. 277º, nºs 1 e 2 do CPP); se, pelo contrário, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, deduzirá acusação contra este (art. 283º, nº 1, do CPP).
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1 do CPP), podendo ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o MºPº tiver deduzido acusação; e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o MºPº não tiver deduzido acusação (art. 287º, nº 1, als. a) e b) do CPP).
O requerimento para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar (art. 287º, nº 3, do CPP).
O processo penal tem estrutura acusatória, sendo o seu objecto fixado pela acusação, que assim delimita a actividade cognitória e decisória do Tribunal; esta vinculação temática do Tribunal tem a ver fundamentalmente com as garantias de defesa, protegendo o arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e possibilitando-lhe a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório.
Deduzida acusação, o arguido fica a saber qual o objecto do processo, quais os factos que lhe são imputados.
Requerida a instrução pelo assistente relativamente a factos de que o MºPº se tenha abstido de acusar, o respectivo requerimento tem de enunciar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, “que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e a elaboração da decisão instrutória (crfr. Maia Gonçalves, CPP Anotado).
A actividade cognitória do juiz de instrução está limitada, pois, pelo objecto da investigação (no caso de não ter havido acusação, pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a necessidade da respectiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização.
Na realidade, como sublinha o Dr. Souto de Moura (in “Jornadas de Direito Processual Penal”, p. 120) “se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber quais são os factos que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser muito vasto. O juiz de instrução não prossegue uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do MºPº a partir da matéria indiciada no inquérito...”.
No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Germano Marques da Silva (in “Do Processo Penal Preliminar”, p. 264): “O juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação do MºPº...”.
O requerimento para abertura de instrução formulada pelo assistente constituiu, substancialmente, uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MºPº) que, dada a divergência com a posição assumida pelo MºPº, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Deve, pois, dar cumprimento ao disposto no art. 283.º, n.º 3 do CPP.
Que assim é resulta do disposto nos arts. 303º e 309º do CPP, onde se prevê a alteração não substancial e substancial dos factos constantes do requerimento para abertura de instrução, cominando-se com nulidade a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos ... no requerimento para abertura de instrução”.
No caso sub júdice, a requerente, ao invés de descrever a conduta da denunciada passível de incriminação, indicando os factos concretos ocorridos, data e local e com base na averiguação dos quais se poderia concluir pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal, limita-se a referir os pontos pelos quais discorda das conclusões e decisão do MºPº, referindo factos genéricos, os quais não são passíveis de serem comprovados em sede de produção de prova, nem de serem rebatidos pela própria arguida.
Ademais, não indica a requerente os elementos subjectivos do crime que pretende ver imputado à arguida.
Tal significa que nunca a denunciada, poderia ser pronunciada com base no requerimento para abertura de instrução tal como está formulado pela assistente.
Conclui-se, pois, de todo o exposto, que a presente instrução é inadmissível por falta de objecto, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no art. 287º, n.º 3 do CPP, rejeito o requerimento de abertura de instrução, determinando o oportuno arquivamento dos autos”.
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O Inquérito – encerramento – como reagir ao despacho final do Ministério Público
O processo penal inicia-se e desenvolve-se mediante impulsos provocados pelos participantes processuais.
Começa com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público, quer directamente ou por comunicação dos órgãos de polícia criminal (que é a situação mais frequente), quer através de denúncia de uma qualquer entidade pública ou de um particular (art.º 241.º do Cód. Proc. Penal).
Com a notícia do crime (ou melhor, do facto susceptível de consubstanciar um ou mais crimes), inicia-se a fase de investigação do processo, designada de inquérito, de que o Ministério Público é o dominus, e que irá terminar com um despacho, ou de arquivamento, ou de acusação[v] (art.º 276.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Atribui-se, pois, a uma entidade pública, a um órgão do Estado a competência para investigar a notitia criminis e para, apurando-se que efectivamente foi praticado um crime e quem foi o seu agente, submeter o facto criminoso a julgamento (cfr. artigos 219.º da Constituição e 262.º do Cód. Proc. Penal).
Consagra-se, assim, o princípio da oficialidade, que comporta desvios ou excepções: além de outras situações que aqui não interessa considerar, estando em causa crimes semi-públicos ou particulares, a promoção do processo pelo Ministério Público depende, desde logo, do exercício do direito de queixa pelo respectivo titular.
Como já se referiu, um dos desfechos possíveis do inquérito é o seu arquivamento[vi] e contra ele pode reagir o assistente (o ofendido já investido nessa qualidade ou outra pessoa que, tendo legitimidade para tanto, requeira a sua intervenção como assistente).
Pode fazê-lo por uma de duas vias: através de reclamação hierárquica ou mediante requerimento de abertura de instrução. Mas a opção por uma ou outra destas vias não é deixada ao livre arbítrio do assistente. Há que fazer a opção adequada tendo em conta o escopo legal da instrução.
Para uma corrente doutrinária, a instrução é uma fase (judicial) que, além de ser de comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público no termo do inquérito, tem uma componente de investigação complementar, é “um suplemento de investigação autónoma, feita pelo juiz de instrução”[vii].
No entanto, a doutrina dominante rejeita esse papel de “complemento do inquérito” ou “suplemento autónomo de investigação” e caracteriza a instrução como um mecanismo de controlo, com uma finalidade bem definida: a de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem à decisão de levar, ou não, o caso a julgamento[viii].
Na verdade, a fase de investigação por excelência é o inquérito que, nos termos do art.º 262.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas”.
Contrariamente ao que acontecia no Código de Processo Penal de 1929, em que a instrução contraditória tinha por fim, além do mais, “esclarecer e completar” a prova obtida na fase de investigação (a instrução preparatória, no processo de querela), a filosofia subjacente ao actual Código de Processo Penal é a de que a instrução é um momento processual de comprovação, um mecanismo de controlo judicial da decisão final tomada no inquérito, não visando completar, ampliar ou prolongar o inquérito, ou, muito menos, realizar outra investigação dos factos, agora pelo juiz de instrução, diferente da do Ministério Público.
Lendo a motivação do recurso, a ideia que transparece é que a recorrente parece reconhecer que na fase de inquérito não foi, realmente, recolhida prova indiciária bastante para deduzir acusação contra a pessoa denunciada e seria na fase de instrução que essa falha seria suprida, pois afirma que requereu (no requerimento instrutório) “prova testemunhal essencial para imputar o crime ao agente”.
Não se compreende porque é que a denunciante não indicou no momento oportuno a “prova essencial para imputar o crime”; se houve insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito, essa insuficiência é sindicada hierarquicamente por via de reclamação. A errada valoração dos indícios recolhidos na investigação é que é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 752).
Nesta linha, escreveu-se no Acórdão do TC n.º 27/2001 (DR, II, de 3.03.2001) que “a instrução não é um suplemento de investigação e nem tem em vista a substituição do Ministério Público pelo Juiz na investigação. Tudo quanto em sede de instrução se faça no sentido de investigar terá de ter sempre como horizonte o vir ou não a comprovar-se judicialmente a decisão acusatória ou de arquivamento, que esse é sim o escopo legal da instrução. Posto isto, dir-se-á que se a requerente entende que o inquérito foi insuficiente, ou mal conduzido, no sentido de terem sido desastradas as diligências de recolha de prova, mas sem que se ache habilitada a, contrariamente ao Ministério Público, fundar (inclusivamente) a imputação de factos concretos à arguida (não podendo senão limitar-se a dela suspeitar, mais ou menos fundadamente), então o mecanismo correcto e próprio (para isso a lei o prevê) teria sido o recurso à intervenção hierárquica, nos termos do artigo 278.º do Código de Processo Penal”.
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Requerimento de abertura de instrução - estrutura e conteúdo.
O requerimento de abertura de instrução é a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação, que define o objecto do processo e limita os poderes de cognição do juiz[ix].
Sem que tenha de obedecer a esta ordem, o requerimento instrutório apresentado pelo assistente deve conter:
§ uma exposição que, em síntese, contenha as razões, de facto e de direito, da discordância em relação à decisão de arquivamento (assim possibilitando o controlo da actividade do Ministério Público no inquérito)[x];
§ a narração dos factos e a sua subsunção jurídico-penal, ou seja, a indicação das normas que os prevêem e punem como crime(s);
§ a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.
O ponto fundamental é a narração dos factos imputados ao(s) arguido(s) e a indicação das respectivas normas incriminadoras.
Com efeito, essa narração no requerimento instrutório “não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena” (Acórdão do STJ, de 25.10.006, www.dgsi.pt; Relator: Cons. Oliveira Mendes).
É o conteúdo do requerimento de abertura de instrução que vai definir as bases de facto (e de direito) da questão a submeter ao juiz e, portanto, que vai estabelecer os limites da vinculação temática, ou seja, tal como uma verdadeira acusação, vai condicionar e limitar a actividade do juiz e a decisão instrutória[xi].
Assim sendo, como é, o requerimento instrutório deve conter uma descrição factual que permita considerar preenchidos, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo do(s) ilícito(s) criminal(is) imputado(s) ao(s) arguido(s), constituindo motivo bastante de indeferimento do requerimento a omissão de factos atinentes ao(s) elemento(s) subjectivo(s) das infracções imputadas[xii].
Com todo o respeito devido, está manifestamente equivocada a recorrente quando afirma (conclusão 13.ª) que “a verdadeira acusação é feita pelo juiz no seu despacho de pronúncia”.
A recorrente alega que refere no requerimento de abertura de instrução “factos mais do que suficientes para subsumir o comportamento da arguida ao crime por que se mostra denunciada” e concretiza dizendo que esses factos estão descritos nos artigos 5.º, 6.º e 13.º daquele requerimento.
Vejamos, então, o teor desses artigos:
“5. A arguida tinha de facto conhecimento da existência do testamento que instituía a ora denunciante como herdeira do falecido M.D.M. quando celebrou no Cartório Notarial de Cascais escritura de habilitação de herdeiros”.
6. Visando prejudicá-la ao omitir a sua qualidade de herdeira.
13. Pelo que é totalmente falso que a arguida desconhecesse o testamento quando omitiu a existência da denunciante perante o Notário”.
Como bem se faz notar no despacho recorrido, a recorrente não descreve “a conduta da denunciada passível de incriminação, indicando os factos concretos ocorridos, data e local e com base na averiguação dos quais se poderia concluir pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal”.
Basta atentar na descrição do tipo legal incriminador que atrás se reproduziu.
A única objecção que nos merece a decisão recorrida é quanto à omissão de factos susceptíveis de preencher o elemento subjectivo do crime de falsas declarações.
Como se vê pela transcrição efectuada, a recorrente indicou factos que materializam o (necessário) dolo da denunciada, ainda que, claramente, insuficientes para preencherem, na íntegra, o tipo subjectivo daquele ilícito penal.
Cabe, por último, referir que está, ainda, errada a recorrente quando afirma (conclusão 13.ª) que «não há possibilidade de elaborar “despacho liminar” na fase de instrução em processo penal”.
Se o n.º 3 do art.º 287.º do Cód. Proc. Penal prevê como motivos de rejeição do requerimento de abertura de instrução a sua extemporaneidade, a incompetência do juiz e a inadmissibilidade da instrução e se está fixada jurisprudência no sentido de que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento instrutório (Acórdão do STJ n.º 7/2005, de 12.05.2005, DR, I-A, n.º 212, de 04.11.2005), é bom de ver que tal requerimento pode ser liminarmente rejeitado com algum desses fundamentos, como aqui aconteceu.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao presente recurso e, em consequência:
A) admitir N... a intervir no processo como assistente;
B) confirmar, no mais, o despacho recorrido, concretamente, a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.
Por ter decaído, pagará a recorrente as custas do processo, fixando-se em cinco UC´s a taxa de justiça (artigos 515.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Cód. Proc. Penal, 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).
Lisboa, 13 de Dezembro de 2012
Neto de Moura
Alda Tomé Casimiro
----------------------------------------------------------------------------------------- [i] De acordo com esta orientação, este conceito restritivo de ofendido, não só é o que melhor assegura a distinção entre ofendido e lesado pela prática do crime, como é o que melhor respeita a natureza pública do processo penal e a regra de que a titularidade da acção penal cabe ao Ministério Público, na medida em que reduz o protagonismo dos particulares como sujeitos processuais, protagonismo esse que constituiria um factor de perturbação, já que deles não será de esperar a objectividade, a imparcialidade e o distanciamento que imperam em processo penal. [ii] Isabel São Marcos, na referida Anotação, 183 [iii] Esta orientação colhe o apoio de autores como Augusto Silva Dias (“A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, 2004, p. 55 e segs.), do Professor Figueiredo Dias para quem “o carácter supra-individual do bem jurídico não exclui a existência de interesses individuais que com ele convergem”, já que “a verdadeira característica do bem jurídico colectivo ou universal reside (…) em que ele deve poder ser gozado por todos e por cada um, sem que ninguém deva poder ficar excluído desse gozo: nesta possibilidade de gozo reside o interesse individual legítimo na integridade do bem jurídico colectivo” (“Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2004, 138), de Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 204) e, se bem que hesitante (“parece que deve entender-se…”), Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, I, 6.ª edição, Verbo, 357. [iv] Em sentido contrário, o acórdão da Relação de Guimarães, de 18.12.2006, disponível em www.dgsi.pt [v] Estes são os desfechos, digamos assim, mais comuns, mas pode o MP optar pela suspensão provisória do processo, nos termos do art.º 281.º do Cód. Proc. Penal. [vi] Nos termos do n.º 1 do art.º 277.º, do Cód. Proc. Penal, “o Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento”. [vii] Assim, Anabela Miranda Rodrigues, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 77), Ivo Miguel Barroso, “Estudos sobre o objecto do processo penal”, VisLis Editores, 2003, 135, e M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, II, 158. [viii] Cfr. Jorge Figueiredo Dias (“Os princípios estruturais do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Fasc. 2.º, Abril-Junho de 1998, 211), J. Souto Moura (“Inquérito e Instrução”, Jornadas de Direito Processual Penal”, CEJ, Almedina, 1989, 125), Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 129 e segs.) e Gil Moreira dos Santos (“O Direito Processual Penal”, ASA, 357).
Na jurisprudência, cfr., entre outros, o Ac. do STJ, de 24.09.2003 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pt. [ix] Cfr. os acórdãos do STJ de 08.10.2008 (Relator: Cons. Soreto de Barros) e de 24.09.2003 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), acessíveis em www.dgsi.pt/jstj. [x] Como escrevem M. Simas Santos, M. Leal-Henriques e João Simas Santos em “Noções de Processo Penal”, Rei dos Livros, 2010, p. 395), “pretendendo-se infirmar ou neutralizar um despacho que pôs termo ao inquérito, há que, pelo menos, lhe apontar defeitos que justifiquem a inversão decisória requerida. Defeitos que só se poderão descortinar se o requerente fornecer ao juiz de instrução, no seu requerimento, dados para se apurar onde e como o M.P. errou”. [xi] Fala-se, a este propósito, em “acusação implícita” (Germano Marques da Silva, Op. Cit., 167) e em acusação alternativa, ou seja, aquela que, segundo o assistente, devia ter sido deduzida (e não foi) pelo Ministério Público (cfr. acórdãos do STJ, de 07.12.2005 e de 07.03.2007, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). [xii] Assim, entre outros, os acórdãos do TRP, de 21.06.2006 e de 11.10.2006, e do STJ, de 07.05.2008 e de 22.10.2003 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).