ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
REGRAS DE SEGURANÇA
VIOLAÇÃO
SINAL DE STOP
COBERTURA
CAUSA EXCLUSIVA
Sumário

I - As razões e finalidades da responsabilidade civil decorrente da circulação rodoviária distinguem-se das que são inerentes à responsabilidade por acidentes de trabalho, em particular no que diz respeito à problemática inerente à descaracterização destes.
II - Para a verificação da causa de descaracterização do acidente prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009 não está em causa a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim apenas as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física.
III - A descaracterização do acidente de trabalho, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14 da Lei nº 98/2009, exige a demonstração de que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado e, ainda, cumulativamente, que essa sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo acidente.
IV - Como a descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito reclamado pelo autor, compete ao réu a prova da materialidade integradora dessa descaracterização, na dupla vertente mencionada em III.
V - Estando demonstrado que o sinistrado, ao chegar a um entroncamento, não parou o veículo que conduzia apesar do sinal de “STOP” existente no local, prosseguindo a sua marcha e cortando assim a linha de trânsito do veículo que seguia nessa via, essa sua conduta negligente, gratuitamente temerária e irresponsável, apesar de grosseira, não deve ser tida como exclusiva do acidente se estiver demonstrado que o outro veículo circulava a uma velocidade não inferior a 80 km/h quando a velocidade máxima permitida no local era de 60 km/h.
VI - Na verdade, à luz de critérios de credibilidade, razoabilidade e experiência comum, sendo válida a afirmação de que o embate não teria ocorrido se o sinistrado tivesse imobilizado o veículo antes de entrar na outra via, não o será menos a conclusão de que esse embate também não teria ocorrido se o condutor do outro veículo circulasse, como estava também obrigado, a uma velocidade que respeitasse os limites permitidos para o local, pois que se assim fosse esse veículo não se encontraria ainda no local da via em que veio a ocorrer aquele embate.

Texto Integral

Apelação 779/12.7TTVIS.P1
Autores: B... e outros
Ré: C... – Companhia de Seguros, S.A.,
_______
Relator: Nélson Fernandes
1ª Adjunta: Des. Rita Romeira
2ª Adjunta: Des. Teresa Sá Lopes
_______________________

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Instaurado processo especial para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, não se obtendo conciliação na sua fase administrativa, B..., D... e E... deram início à respetiva fase contenciosa, contra C... – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento: de € 6.745,12 a título de diferença na indemnização por ITA, a pagar na proporção de 1/3 cada; € 25.922,70 a título de pensão anual, com início em 30.03.2014 e devida até 22.11.2014 – dia em que o sinistrado faleceu –, a pagar na proporção de 1/3 cada; de € 5.426,13 de subsídio de elevada incapacidade permanente, a pagar aos Autores na proporção de 1/3 cada; de € 461,14 mensais de prestação suplementar para assistência de terceira pessoa a partir de 30.03.2014 e até à data do falecimento do sinistrado, a pagar à Autora; de € 1.846,50 a título de despesas de funeral, a pagar à Autora; de € 5.533,70 a título do subsídio por morte, a pagar à Autora; de € 15.092,40 a título de pensão anual, vitalícia e atualizável, com inicio em 23.11.2014, dia seguinte ao do falecimento do sinistrado, a pagar à Autora.
Para tanto alegaram, em síntese, serem herdeiros de F..., que no dia 28.09.2011, cerca das 20h00, quando atuava nas funções de administrador da G..., SA e aquando de uma deslocação a clientes, foi vítima de um acidente de viação, quando foi embatido por outro veículo que seguia em excesso de velocidade. Mais referiram que do aludido embate resultaram para o Sinistrado diversas lesões incapacitantes para o trabalho (em termos temporários e permanentes), vindo ulteriormente a falecer, sendo a Ré responsável pelo pagamento das quantias pedidas, face ao contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a empresa de que o Sinistrado era administrador.

1.1. Regulamente citada, a Ré, na contestação, pugnou pela improcedência da ação, invocando que o sinistro se deveu ao comportamento do próprio Sinistrado, que não parou num sinal de STOP antes do cruzamento onde se deu o embate, cortando a trajetória ao outro veículo que interveio no embate, razão pela qual, e por ter violado as mais elementares regras de segurança estradal, incorrendo na prática de uma contraordenação muito grave, ocorre a descaracterização do acidente como de trabalho, nos termos das als. a) e b) do nº 1, n.ºs 2 e 3 do art. 14º da Lei nº 98/2009 de 04 de Setembro.

1.2. Após convite do Tribunal aos Autores para que apresentassem nova petição inicial em que colmatassem insuficiências, veio a ser proferido despacho saneador, elencando-se, seguidamente, os factos assentes e os que integrariam a base instrutória.

1.3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, após decisão sobre a matéria de facto controvertida foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:
“Em face de todo o exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
- condenar a Ré C... – Companhia de Seguros, SA a pagar:
1. aos Autores B..., D... e E..., na proporção de 1/3 cada:
a) a quantia correspondente à pensão anual e vitalícia de € 30.184,80 devida ao Sinistrado F... desde 08.11.2013 até 22.11.2014, sem prejuízo da actualização anual;
b) a quantia de € 5.533,70 a título de subsídio de elevada incapacidade permanente;
c) a quantia mensal, a título de prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, de € 463,45, devida desde 08.11.2013 até 22.11.2014;
2. à Autora B...:
a) a quantia de € 1.846,50 a título de subsídio por despesas de funeral;
b) a quantia de € 5.533,70 a título de subsídio por morte;
c) a pensão anual e vitalícia de € 15.092,40, devida desde 23.11.2014, sem prejuízo da actualização anual;
3. juros de mora sobre as prestações pecuniárias supra atribuídas e em atraso, aos respectivos titulares, vencidos e vincendos à taxa legal, até integral pagamento;
- absolver a Ré C... – Companhia de Seguros, SA do demais contra si peticionado pelos Autores.
Custas na proporção de 1/7 a cargo dos Autores B..., D... e E... e de 6/7 a cargo da Ré C... – Companhia de Seguros, SA (n.ºs 1 e 2 do art. 527º do Código de Processo Civil, aplicável por força da al. a) do nº 2 do art. 1º do Código de Processo do Trabalho).
Fixa-se à acção o valor processual de € 236.012,02 – art. 120º do Código de Processo do Trabalho.
Registe e notifique (art. 24º do Código de Processo do Trabalho).
Oportunamente, cumpra-se o disposto no nº 1 do art. 137º do Código de Processo do Trabalho.”

2. Inconformada, interpôs o Ré recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
“1 – A recorrente entende que, salvo o devido respeito, atendendo à matéria de facto provada, designadamente, nos pontos I., J., AP., AQ., AR., AS. e AT., o Tribunal a quo deveria ter descaracterizado o acidente dos autos como de trabalho por integração no disposto n.º 1 als. a) e b) e n.ºs 2 e 3 do art.º 14º da Lei 98/2009 de 04/09.
2 – Entende-se pois que o acidente proveio exclusivamente de negligência grosseira da vítima encontrando-se preenchidos os dois requisitos que a lei exige para que se verifique a causa de exclusão da reparação do acidente. Por um lado um comportamento temerário inútil e indesculpável por outro, a exclusividade da sua culpa.
3 – O inditoso sinistrado igualmente violou sem causa justificativa as condições de segurança previstas na lei estradal, nomeadamente art.º 21º B2 e Quadro XXIII do Dec. Regulamentar n.º 22-A/98, praticando uma contraordenação muito grave, que se acha prevista na al. n) do art.º 146º do Código da Estrada.
Posto isto, vejamos:
4 – No dia 28/09/2011, cerca das 20H00, o sinistrado conduzia o seu veículo automóvel ZI e interveio num embate com o veículo pesado HQ;
5 – O veículo ZI circulava na estrada que faz a ligação do IP3, saída de ...-sentido Viseu-Coimbra e o veículo HQ circulava na EN ... e seguia no sentido Coimbra-Viseu;
6 – A colisão entre os veículos deu-se ao chegar ao cruzamento que dá acesso ao local ...;
7 – Ao aproximar-se do cruzamento que dá acesso do IP3 à EN ..., o sinistrado avançou sem antes imobilizar a viatura junto de um sinal vertical com a menção STOP, aí existente;
8 – E cortou a linha de trânsito ao veículo HQ que seguia na EN ...;
9 – O condutor do veículo HQ não conseguiu evitar o embate com a frente do seu veículo na parte lateral frontal esquerda do veículo ZI;
10 – A via onde o sinistro se deu tinha o piso em asfalto, que estava conservado.
11 – Com efeito o acidente foi provocado pelo sinistrado, pela não imobilização da viatura que conduzia, junto do sinal vertical STOP, que lhe impunha a paragem obrigatória.
12 – O comportamento do malogrado sinistrado foi temerário, inútil, e indesculpável e revelador de incumprimento da mais elementar diligência e, por isso, integra o conceito de negligência grosseira, já que, foi voluntariamente por si praticado, não obstante ser do seu conhecimento a perigosidade do que fazia
13 – Na verdade se o sinistrado tivesse parado no sinal STOP e deixado passar a viatura que seguia na EN ..., o acidente não teria ocorrido.
14 – A matéria de facto provada mostra bem que a atuação do sinistrado foi a única causa do acidente.
15 – O sinistrado, ao agir daquele modo, não tomou as necessárias e mínimas cautelas expondo-se temerariamente a um perigo grave que se configurava como de muito provável, aliás porque se trata de uma zona de muitos acidentes, o que infelizmente se concretizou.
16 – Com o devido respeito, rejeita-se a fundamentação do Mm.º Decisor, ao desculpabilizar o comportamento da vítima pelo facto de já ter 71 anos de idade e por conseguinte apresentar diminuição das capacidades de concentração e de resistência, por cansaço e até por pura distração.
17 – Independentemente da situação chocante que se nos depara com a perda irreparável de uma vida humana, que lamentamos profundamente, não nos parece que seja feita justiça ao desculpar atos que não podem de todo ser desculpáveis, tanto mais que a sinistralidade no nosso país é demasiado alta, para o continuarmos a fazer.
18 – E não se venha dizer que o condutor do veículo HQ seguia a pelo menos 80km/h numa estrada em que o limite máximo era de 60Km, violando ele próprio as regras estradais.
19- A ser verdade este facto, o certo é que o veículo HQ seguia na sua mão, não sendo expectável que a outra viatura, provinda de um cruzamento com um sinal de STOP, cortasse a sua linha de trânsito
20 – Uma coisa é indubitável, se o sinistrado tivesse parado no STOP, o acidente não teria ocorrido.
21 – Mas a conduta do sinistrado configura igualmente uma violação sem causa justificativa das condições de segurança previstas na lei estradal, acima referidas, incumprindo-as conscientemente, sabia que essa atitude constituiria um risco.
22 – O sinistrado ao não imobilizar a viatura que conduzia junto do sinal STOP desconsiderou e descuidou riscos e perigos previsíveis e elevados, violando um dever de cuidado que devia e podia ter acautelado.
23 – Não surgiu qualquer situação de emergência que justificasse a violação da regra estradal.
24 – No caso dos autos, o risco de acidente existia e era absolutamente previsível, colocando-se o sinistrado de forma voluntária mas desnecessária numa situação de enorme perigo, com manifesto desprezo pelo risco iminente, que poderia ter evitado se cumprisse a lei.
25- O sinal vertical de STOP obrigava o sinistrado a parar antes de entrar no cruzamento e a ceder a passagem aos veículos que transitassem na via onde ia entrar – assim abrangendo o veículo HQ.
26 – Sinal este, como refere o Tribunal a quo “cuja compreensão é basilar para qualquer condutor habilitado a conduzir”.
27 – Ficou assim claramente demonstrado que o acidente em apreço ficou a dever-se à conduta perfeitamente temerária e indesculpável do sinistrado, causa única e exclusiva do acidente de que foi vítima,
28 – Que igualmente importou violação, sem causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei estradal, designadamente o art.º 21º B2 e Quadro XXIII do Dec. Regulamentar n.º 22-A/98 de 01/10.
29 – E, consequentemente, não pode dar direito à sua reparação como acidente de trabalho, já que se encontra descaracterizado
30 – Ao decidir como decidiu, caracterizando o acidente como de trabalho, a douta decisão recorrida fez uma incorreta e indevida interpretação e aplicação da lei, nomeadamente do disposto no art.º 14 n.º 1 al. a) e b) e n.ºs 2 e 3 do art.º 14º da Lei 98/2009 de 04/09.
Termos em que se requer a V. Ex.ªs decidam de conformidade com o alegado, descaracterizando o acidente dos autos como de trabalho e absolvendo a Ré do pedido, tudo com as demais consequências legais, pois, assim se fará JUSTIÇA”

2.1. Os Autores contra-alegaram, constando das conclusões que formularam, no que se refere ao acidente, o seguinte:
“(…) 3 – A sociedade Ré recorreu da sentença em causa, por considerar que o acidente sofrido pelo sinistrado, se mostra descaracterizado, pelo facto do mesmo ter violado regras estradais e agido com negligência grosseira.
4 – A sentença recorrida considerou que o acidente sofrido pelo sinistrado não se mostra descaracterizado, sendo que os recorridos concordam com a referida sentença, que não merece qualquer reparo, senão vejamos:
5 - Com interesse para a análise do recurso em causa, ficaram provados no âmbito dos presentes autos, os seguintes factos:
(…)
6 – Ora, de acordo com o artigo 14º da Lei número 98/2009, o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador;
b) provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 – Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 – Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
7 - A primeira parte da alínea a) do número 1 pressupõe não apenas o acto determinante do sinistro, mas ainda que o agente deseje ou se conforme com todas as suas consequências. A segunda parte inclui os casos em que o acidente provém de um acto ou omissão da vítima, que viola, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal, em que se possa atribuir ao sinistrado uma espécie de culpa qualificada.
8 – Ora, no caso dos presentes autos, não ficou demonstrada uma actuação propositada por parte do sinistrado, o que afasta desde logo a possibilidade de preenchimento da primeira parte da alínea a) do número 1 do artigo 14º da Lei número 98/2009.
9 – Por outro lado, e em relação à segunda parte da alínea a) do número 1 do mesmo dispositivo legal, a violação de uma regra estradal pode dar-se pelas mais variadas razões e não necessariamente ser consequência de uma actuação dolosa.
10 – Para além disso, na disposição legal apenas cabem as regras específicas da empresa ou legais que digam respeito à própria execução do trabalho – especiais condições de segurança - e cuja violação justifica que a entidade responsável deixe de ter obrigação de reparar.
11 – Ora, no caso dos autos, as regras estradais não se relacionam com o exercício da actividade do sinistrado, que era administrador da empresa e não um condutor profissional.
12 – Por outro lado, era sobre a Ré que recaia o ónus da demonstração da factualidade passível de preencher a hipótese legal da alínea a) do número 1 do artigo 14º da Lei número 98/2009 – número 2 do artigo 342º do Código do Trabalho, pelo que o acidente aqui em causa não se mostra descaracterizado ao abrigo da mesma.
13 – Quanto à alínea b) do número 1 do artigo 14º da Lei número 98/2009, o legislador excluiu do espaço da negligência grosseira comportamentos alicerçados numa habituação ao risco, na confiança na experiência como factor de controlo do risco inerente à actividade profissional e aos usos e costumes da profissão.
14 – Para além disso, estando em causa a violação de um dever geral de cuidado ou diligência, exige-se a exclusividade da causalidade, isto é, uma inexistência de concorrência de culpas.
15 – Pese embora a classificação legal da contra-ordenação praticada pelo sinistrado como muito grave, vem-se entendendo não ser bastante, por si só, para descaracterizar o acidente como sendo de trabalho com base na negligência grosseira do sinistrado.
16 – O acidente dolosamente provocado pela vítima é aquele em que a vítima pratica não só o acto determinante do acidente, mas em que também o deseja ou se conforma com todas as suas consequências.
17 - Com efeito, a factualidade apurada é insuficiente para qualificar a conduta do sinistrado como temerária em alto e relevante grau, o resultado de um acto verdadeiramente inútil e indesculpável, que contraria e mesmo desafia as mais elementares regras de cuidado.
18 – Mas ainda que assim não fosse, a Ré tinha de provar a exclusividade da culpa causal por banda do condutor, isto é, que para a produção do sinistro era de afastar, com segurança, qualquer culpa de terceiro interveniente no acidente.
19 – E também neste aspecto não foi feita a necessária prova, porque o condutor do veículo HQ seguia a pelo menos 80 Km/h numa estrada em que o limite máximo de velocidade era de 60 Km/h, violando, ele próprio, regras estradais, pelo que o condutor do veículo pesado contribuiu também para a eclosão do embate.
20 – Até porque um veículo pesado tem inerente um perigo incomparavelmente superior ao que é inerente a um veículo ligeiro, atendendo ao seu maior peso e volume, sendo potencialmente causador de efeitos danosos superiores, o que reclama que o respectivo condutor se rodeie de particulares cautelas na condução estradal.
21 – Também aqui a Ré não logrou fazer prova, como lhe competia, da prática de uma factualidade passível de afirmar, mesmo a considerar-se como temerária a conduta negligente do sinistrado, como exclusivamente causal do embate, não se encontrando preenchida a hipótese legal da alínea b) do número 1 do artigo 14º da Lei número 98/2009.
22 – Esta é a posição unanimemente defendida pela jurisprudência mais actual dos tribunais superiores portugueses, em situações idênticas às dos presentes autos, de que são exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 09/06/2010, proferido no âmbito do processo número 579/09.1YFLSB- 4ª Secção, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 20/10/2010, proferido no âmbito do processo número 1127/08.6TTLRA.C1.S1 – 4ª Secção, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 09/11/2011, proferido no âmbito do processo número 924/03.3TTLRA.C1.S1 – 4ª Secção.
23 – O acórdão invocado pela Ré nas suas alegações de recurso, apesar de dizer respeito a um acidente ocorrido no mesmo local em que se deu o acidente aqui em causa, não pode ser tomado em consideração, uma vez na situação em análise naquele outro processo, ficou provado que a não paragem do sinistrado no cruzamento foi causa exclusiva do mesmo, o que não sucedeu no caso dos presentes autos.
24 – Com efeito, e conforme supra referido, nos presentes autos ficou provado que a velocidade máxima permitida no local e à data do acidente, era de 60 Km/h, quando o condutor do veículo pesado HQ seguia pelo menos à velocidade de 80 Km/h, pelo que o mesmo também contribuiu para a eclosão do embate.
25 - Assim, a sentença ora sob recurso não merece qualquer reparo, tendo sido proferida a única decisão possível, face à prova documental e testemunhal produzida em 1ª instância.
Nestes termos, deverão V. Exas. negar provimento ao presente recurso, devendo a sentença do Tribunal da Comarca de Aveiro – Juízo Do Trabalho de Águeda ser mantida, por legalidade, julgando a acção aqui em causa parcialmente procedente, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final.
Só desta forma, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”

2.2. O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito suspensivo (nº 1 do art. 82º, art. 83º e art. 83º-A do Código de Processo do Trabalho).

3. Subidos os autos a esta Relação, o Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da improcedência da apelação.
3.1. As partes não responderam ao parecer.

***
Cumpridas as formalidades legais, cumpre decidir

II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635., n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável ex vi artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a única questão a decidir: saber se o Tribunal errou no julgamento quando não descaraterizou o acidente como de trabalho.

III - Fundamentação
A) Da sentença, no que se refere à factualidade provada, consta:
“2.1. Dos factos considerados assentes
A. F... nasceu no dia 08.03.1940 – cfr. doc. de fls. 27, que se dá por integralmente reproduzido;
B. Faleceu no dia 22.11.2014, no estado civil de casado com B... – cfr. doc. de fls. 227, que se dá por integralmente reproduzido;
C. D... nasceu no dia 08.09.1967, sendo filho de F... e de B... – cfr. doc. de fls. 434, que se dá por integralmente reproduzido;
D. E... nasceu no dia 02.05.1972, sendo filho de F... e de B... – cfr. doc. de fls. 435 v. e 436, que se dá por integralmente reproduzido;
E. Por escritura pública intitulada “habilitação”, datada de 26.11.2014, C... declarou que “... no dia vinte e dois de Novembro de dois mil e catorze (…) faleceu seu marido, F...” bem como que “o falecido não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros legitimários:
I) – A viúva, que é ela declarante (…)
II) - dois filhos:
a) D..., casado sob o regime de comunhão de adquiridos com H... (…)
b) E..., casado sob o regime da comunhão de adquiridos com I... (…)” – cfr. doc. de fls. 230 e ss., que se dá por integralmente reproduzido.
F. Por decisão de 28.09.2015 foram julgados habilitados herdeiros de F..., B..., D... e E... – cfr. decisão de fls. 279 e 280, que se dá por integralmente reproduzida;
G. Em 28.09.2011 F... era administrador da G...[1], SA, auferindo € 2.600,00 x 14 meses, acrescida de € 5,50 x 22 dias, x 11 meses, perfazendo € 37.731,00 ilíquidos anuais;
H. No dia 28.09.2011, cerca das 20h00, F..., quando seguia ao volante do veículo automóvel de marca Opel, modelo ..., com a matrícula ..-..-ZI, interveio num embate com o veículo pesado com a matrícula ..-HQ-..;
I. O veículo ZI circulava na estrada que faz a ligação do IP3 (saída de ...-sentido Viseu-Coimbra) à EN ... e o veículo HQ circulava na EN ... seguia no sentido de marcha saída de Mortágua do IP3 (sentido Coimbra-Viseu) barragem ...;
J. A colisão entre os veículos deu-se ao chegar ao cruzamento que dá acesso ao local de ...;
L. Em consequência do embate, F... sofreu um traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subaracnóide e intraventricular; fractura do corpo C2; lesão medular por contusão com nível de lesão desde a 5ª vértebra cervical à 5ª vértebra dorsal, traumatismo torácico, traumatismo dos membros e fractura do colo do úmero esquerdo;
M. No dia 28.09.2011, F... deu entrada nos Serviços de Urgência do Centro Hospitalar T... e foi transferido para o serviço de Medicina Intensiva dos T... a 29.09.2011 onde foi iniciada a imobilização da fractura de C2 com colar cervical;
N. A 10.10.2011 realizou osteossíntese do úmero;
O. F... sofreu um agravamento respiratório com pneumonia nosocomial e foi traqueostomizado no dia 19.10.2011e foi mantido em respiração assistida até ao dia 21.10.2011, data em que iniciou respiração espontânea;
P. No dia 21.11.2011 o Sinistrado foi transferido para o Serviço de Neurocirurgia do T..., onde permaneceu internado até ao dia 20.12.2011 para realização de terapia médica de suporte;
Q. À data apresentava-se numa escala de coma de Glasgow (EG) igual a 7 com tetraparesia grave e com pneumonia nosocomial por pseudomonas aeruginos;
R. A 20.12.2011 foi transferido para o hospital da área de residência em Águeda;
S. A 04.01.2012 foi admitido em regime de internamento no J..., no Serviço de Reabilitação Geral para realização de programa de reabilitação integral, com diagnóstico definitivo de fractura da coluna cervical, fechada, C1-C4, com Síndrome Medular Anterior;
T. A 09.04.2012 foi transferido para o Serviço de Lesões Medulares do J1... para prosseguir com o seu programa de reabilitação, orientado para o ganho de autonomia em cadeira de rodas, considerando a sua tetraplegia incompleta nível C5;
U. Iniciou seguimento clínico no Hospital K...;
V. Foi submetido a tratamento de fisioterapia, efectuada na L... em Águeda, e tomou medicamentos;
X. A 25 de Outubro de 2013 foi submetido a amputação pelo 1/3 interior da coxa esquerda;
Z. Esteve internado em Cirurgia no Hospital M... de 26.04.2014 a 02.05.2014 por isquemia do membro inferior direito;
AA. Foi submetido a amputação do membro inferior direito acima do joelho em 26.04.2014;
AB. O Sinistrado esteve internado no Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar N..., EPE de 11 a 22.11.2014, com diagnóstico de pneumonia à esquerda, pielonefrite aguda por proteus mirabilis, trombocitose essencial, tetraparesia após traumatismo vertebro-medular cervical, status amputação membros inferiores e status algaliação crónica;
AC. O Sinistrado faleceu devido a lesões traumáticas e complicações consecutivas ao sinistro;
AD. O Sinistrado, entre 28.09.2011 e 22.11.2014, esteve acamado, sem marcha autónoma, necessitando de ajuda contínua para se virar na cama a evitar escaras, assim como para se lavar, levantar, vestir e para se mudar da cama para a cadeira de rodas;
AE. Tendo necessidade de apoio de terceira pessoa 24 horas por dia, o que se agravou com as amputações dos membros inferiores a que foi sujeito;
AF. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ............., a G..., SA transferiu a sua responsabilidade por acidentes de trabalho sofridos pelo Autor para a actual C..., Companhia de Seguros, SA, com base na remuneração de € 2.600,00 x 14 meses, acrescida de € 5,50 x 22 dias x 11 meses, perfazendo € 37.731,00 ilíquidos anuais – cfr. doc. de fls. 10 e ss., que se dá por integralmente reproduzido;
AG. A Ré Companhia Seguradora pagou ao Sinistrado F... a quantia global de € 62.075,19 a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (ITA) entre 29.09.2011 e 31.12.2013;
*
2.2. Da base instrutória
AH. O condutor do veículo HQ embateu na parte lateral frontal esquerda do veículo ZI;
AI. O embate deu-se quanto o condutor do veículo HQ ia a uma velocidade não inferior a 80 km/h;
AJ. A velocidade máxima permitida no local onde se deu o embate é de 60 km/h;
AL. A Autora B... gastou € 1.846,50 em despesas com o funeral do Sinistrado;
AM. O Sinistrado, aquando do sinistro, regressava das instalações da O..., SA, sitas na zona de ..., para as instalações da P..., SA;
AN. No dia do sinistro o Sinistrado deslocou-se das instalações da G..., SA às instalações da P..., SA e, pelo facto de ter de assinar documentos que ainda não estavam prontos nesta, deslocou-se às instalações da O..., SA, sitas na zona de ... e às instalações do grupo Q..., sitas na zona de ...;
AO. Por não estarem ainda prontos deslocou-se à O... para transportar mercadorias solicitadas pelo cliente;
AP. Ao aproximar-se do cruzamento que dá acesso do IP3 à EN ..., o Sinistrado avançou sem antes imobilizar a viatura junto de um sinal vertical com a menção “STOP”, aí existente;
AQ. E cortou a linha de trânsito ao veículo HQ, conduzido por S..., que seguia na EN ..., sentido Barragem ...;
AR. O condutor do veículo HQ não conseguiu evitar o embate com a frente do seu veículo na parte lateral frontal esquerda do veículo ZI;
AS. O veículo ZI foi projectado para a berma, ficando o Sinistrado imobilizado no seu interior;
AT. A via onde o sinistro se deu tinha o piso em asfalto, que estava conservado;
*
2.3. Factualidade que se adita nos termos do nº 4 do art. 607º do Código de Processo Civil, aplicável por força da al. a) do nº 2 do art. 1º do Código de Processo do Trabalho[2] 2
AU. B... nasceu no dia 05.06.1945;
AV. B... casou com F... no dia 15 de Outubro de 1966 – cfr. docs. de fls. 27 e de fls. 148 v., que se dá por integralmente reproduzido;
AX. Na escritura referida em E) foi ainda declarado pela Autora B... que F... se encontrava “casado sob o regime da comunhão geral com ela declarante” – cfr. doc. de fls. 230 e ss., que se dá por integralmente reproduzido;
*
2.4.
AZ. O Sinistrado F... ficou afectado de incapacidade temporária absoluta (ITA) entre 28.09.2011 e 07.11.2013 e de incapacidade permanente absoluta desde 08.11.2013 (dia seguinte ao da alta).”
*
B) - Discussão
1. Do Direito
1.1 Introito delimitativo da apreciação em sede de recurso
Tento por referência as conclusões apresentadas pela Apelante, não se questionando a base factual tida como provada pelo Tribunal a quo – nem ocorrendo razões da nossa parte para oficiosamente essa alterarmos –, que assim em sede de recurso consideraremos, ressalta ainda à evidência que a discordância em relação ao decidido se centra unicamente na não descaraterização do acidente como de trabalho, por sustentar a Ré seguradora, em contrário com essa solução, que face à factualidade provada – designadamente os pontos I., J., AP., AQ., AR., AS. e AT. – se impunha essa descaracterizado, por verificação do disposto no n.º 1 als. a) e b) e n.ºs 2 e 3 do artigo 14.º da Lei 98/2009 de 04/09.
Deste modo, não teceremos considerações desnecessárias sobre o que deve entender-se por acidente de trabalho, face ao disposto na lei, e ainda sobre as razões que estarão na base do estabelecimento do seu regime, de resto já suficientemente avançadas na sentença.
Noutros termos, do que se trata pois, como se disse já, sendo essa a questão decidenda, é de saber se, face à factualidade provada, ocorre fundamento, como o sustenta a Apelante, para ter por descaraterizado o acidente como de trabalho, o que nos propomos pois cumprir de seguida.

2. Da descaraterização do acidente:
Consta da sentença recorrida, citando, o seguinte:
“Ocorre a descaracterização do acidente quando, embora o sinistro mantenha os traços enformadores de um acidente de trabalho, em razão das faltas indesculpáveis de quem trabalha e como forma de sancionamento, ou então face a forças inevitáveis da natureza, não dá lugar a reparação.[3] 14
De acordo com o art. 14º da Lei nº 98/2009, “o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”.
No que diz respeito à primeira parte da al. a) do nº 1 pressupõe não apenas o acto determinante do sinistro, mas ainda que o agente deseje ou se conforme com todas as suas consequências.
Na segunda parte incluem-se os casos em que o acidente provém de um acto ou omissão da vítima, que viola, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal, em que possa atribuir ao sinistrado uma espécie de culpa qualificada.
Em primeiro lugar, tem de haver a violação de quaisquer regras de segurança estabelecidas pela Entidade Patronal ou por lei (face à al. e) do nº 1 do art. 128º do Código do Trabalho).
Quando estabelecidas pela entidade patronal, as regras de segurança podem constar de regulamento interno da empresa, de ordem de serviço ou aviso afixado em local apropriado na empresa.
As medidas de segurança devem ser tomadas não apenas em função da simplicidade ou complexidade do trabalho a realizar, mas fundamentalmente dos perigos que podem advir da realização desse trabalho, seja ele simples ou complexo[4].
Não têm cabimento os casos de imperícia, inadvertência, distracção, esquecimento ou outras atitudes que se prendam com actos involuntários (e que acabam por ser conaturais ao trabalho humano, que, por essência, não é prefeito[5]), antes se exigindo um claro conhecimento, pelo trabalhador, do perigo resultante do acto ou da omissão, sem causa que justifique a violação das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal.
Para que funcione a causa excludente é, assim, necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos[6]: existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; acto ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; e nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente.
Conforme ensina Pedro Romano Martinez [7] (tendo embora por referente a Lei nº 100/97 de 13 de Setembro), “o legislador exige somente que a violação careça de «causa justificativa», pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima: a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do nº 1 do art. 7º da LAT [actuais als. a) e b) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009] (…) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa: por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras”.
E, adiante, acrescenta que “se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador.
Contudo, a responsabilidade não será excluída se o trabalhador, atendendo ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento das condições de segurança ou se não tinha capacidade de as entender (art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 143/99) [actual nº 2 do art. 14º da Lei nº 98/2009]”.
In casu está em causa a violação, pelo Sinistrado, de regras estradais.
De acordo com o art. 6º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, “o sistema de sinalização vertical a colocar nas vias públicas compreende sinais de perigo, sinais de regulamentação, sinais de indicação, sinalização de mensagem variável e sinalização turístico-cultural”.
Estatui a al. a) do art. 8º do mesmo diploma legal que “os sinais de regulamentação destinam-se a transmitir aos utentes obrigações, restrições ou proibições especiais e subdividem-se em:
a) Sinais de cedência de passagem - informam os condutores da existência de um cruzamento, entroncamento, rotunda ou passagem estreita, onde lhes é imposto um determinado comportamento ou uma especial atenção”.
Nos termos do art. 21º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, “os sinais de cedência de passagem, representados no quadro XXIII, em anexo, são os seguintes:
(…)
B2 - paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento: indicação de que o condutor é obrigado a parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento junto do qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar”.
Temos, pois, que o condutor do veículo ZI, que seguia numa via que se ia cruzar com outra com prioridade, não cedeu a passagem ao veículo HQ, conforme lhe era imposto pelo Código da Estrada.
O sinal vertical de STOP obrigava o Sinistrado a parar antes de entrar no cruzamento e ceder a passagem a todos os veículos que transitassem na via onde ia entrar – assim abrangendo o veículo HQ –, tratando-se de um sinal cuja compreensão é basilar para qualquer condutor habilitado a conduzir.
Importa salientar não ter ficado demonstrada uma actuação propositada pelo Sinistrado, o que afasta, desde logo a possibilidade de preenchimento da primeira parte da al. a) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009.
A violação de uma regra estradal pode dar-se pelas mais diversas razões e não necessariamente ser consequência de uma conduta dolosa.
Por outro lado, na disposição legal apenas cabem as regras específicas da empresa ou legais que digam respeito à própria execução do trabalho – especiais condições de segurança, portanto –, com vista a acautelar ou prevenir a segurança dos trabalhadores, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física – com particulares destinatários – e cuja violação justifica que a entidade responsável deixe de ter a obrigação de reparar.[8]
Caso assim não se entendesse, conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça[9], “a vingar a tese da recorrente, os motoristas profissionais deixariam de ter, no campo da sinistralidade laboral, a protecção concedida aos demais trabalhadores, sujeitando-se a ver “descaracterizado” todo e qualquer acidente, que, segundo as regras estradais, lhes fosse imputável.
O que se deixa dito não invalida que esses trabalhadores não devam observar, como todos os outros, as condições de segurança específicas da sua profissão. E, neste domínio, estão naturalmente incluídas regras que acautelem a segurança rodoviária.
Com uma especificidade: Essas regras não serão aquelas que se dirijam a qualquer utente da estrada mas, tão-somente, as que lhes são especificamente dirigidas, designadamente as que consagram limites para os tempos de circulação contínua e as que impõem a observância de períodos de descanso”.
No caso dos autos, para além de não ter ficado demonstrado que a empresa tenha fixado especiais regras de observância no exercício da actividade, as regras estradais, conforme analisado, não se relacionam com o exercício da actividade do Sinistrado.
O Sinistrado era administrador da sociedade e não um condutor profissional em relação ao qual se pudesse cogitar de estar em causa um exercício da actividade traduzido na condução de veículos automóveis.
O desrespeito do referido sinal vertical não releva, assim, para efeitos do preenchimento da al. a) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009, o que afasta a possibilidade do preenchimento da sua segunda parte.
Concluindo, na medida em que era sobre a Ré que recaía o ónus da desmonstração da factualidade passível de preencher a hipótese legal da al. a) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009 (nº 2 do art. 342º do Código do Trabalho), temos que o acidente não se mostra descaracterizado ao abrigo da mesma.
*
Quanto à al. b) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009, seja o contacto frequente com o risco, seja o conhecimento adquirido pela prática e o superar das adversidades que vão surgindo, seja ainda por práticas generalizadas que criam uma certa convicção da sua obrigatoriedade, tudo pode, em certos casos, levar o trabalhador a diminuir as suas cautelas e potenciar comportamentos temerários causais do acidente.[10]
Mais do que a sua simples imprudência, inconsideração ou irreflexão, um impulso leviano, na negligência grosseira há uma situação de verdadeira imperícia ou erro profissional, que, naquela situação, não seria praticada por um bonus pater familias.
Trata-se de um comportamento (por acção ou omissão) arriscado, arrojado, que espelha uma negligência particularmente grave e, como tal ostensivamente indesculpável pelo elevado e significativo grau de inobservância dos deveres de cuidado mais elementares ante a previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, que embate com as mais elementares regras de prudência e que merece uma forte reprovação.
Conforme entendeu o Supremo Tribunal de Justiça[11], “pode afirmar-se que a conduta pressupõe três requisitos: (i) uma acção especialmente perigosa (traduzida, v.g., na infracção de um dever de cuidado especialmente importante ou de vários deveres menos significativos); aliada a um (ii) resultado de verificação altamente provável (à luz da conduta adoptada); e, nessa medida, (iii) uma atitude especialmente censurável de leviandade ou descuido, reveladora de «qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez”.
O legislador, porém, exclui do espaço da negligência grosseira comportamentos alicerçados numa habituação do risco, na confiança na experiência como factor de controlo do risco inerente à actividade profissional e aos usos e costumes da profissão.
Estando em causa a violação de um dever geral de cuidado ou diligência, exige-se a exclusividade da causalidade, isto, é, uma inexistência de concorrência de culpas.[12]
Sustenta a Ré que o Sinistrado agiu com negligência grosseira, uma vez que o sinistro se deu pelo facto de não parado junto do sinal vertical de “STOP” existente no local, cortando a linha de trânsito do veículo HQ, que não conseguiu evitar o embate.
Quid iuris?
Relida a matéria factual provada, resulta que o Sinistrado, ao volante do veículo ZI, circulava na estrada que faz a ligação do IP3 à EN ....
Ao chegar ao cruzamento com a EN ..., onde seguia o veículo HQ (sentido de marcha saída de ... do IP3-barragem a ...), onde se encontrava um sinal vertical de “STOP”, não imobilizou a viatura antes de entrar no cruzamento.
Não tendo respeitado esse dever de paragem, violou o dever de cuidado que sobre si impendia, espelhando uma falta de diligência que justifica que lhe seja dirigido um juízo de censura pela culpa negligente.
A questão que se coloca, contudo, é a de verificar se esta negligência pode ser caracterizada como grosseira e por essa razão conduzir à descaracterização do acidente como de trabalho.
Dispõe a al. n) do art. 146º do Código da Estrada que “no exercício da condução, consideram -se muito graves as seguintes contraordenações:
(…)
n) O desrespeito pelo sinal de paragem obrigatória nos cruzamentos, entroncamentos e rotunda”.
Pese embora esta classificação legal da contra-ordenação praticada, vem-se entendendo não ser bastante, por si só, para descaracterizar o acidente como sendo de trabalho.[13]
Tendo a legislação estradal (cingindo-nos, por uma maior facilidade de análise, ao domínio contra-ordenacional) em consideração a protecção de interesses sociais relacionados com a segurança dos cidadãos, sejam eles transeuntes ou condutores, numa lógica de prevenção geral, que leva à punição de situações de perigo, o critério em que assenta é insuficiente para classificar como grosseira a culpa de um sinistrado na eclosão do acidente.[14]
Não podemos perder do horizonte que o legislador se rodeou de especiais exigências no tocante à qualificação da negligência como grosseira, ponderando que a descaracterização do acidente como de trabalho constitui uma solução excepcional em relação ao princípio da responsabilidade da entidade empregadora e/ou da companhia seguradora em matéria de acidentes de trabalho.
Por sua vez, essa negligência tem de ser apreciada em concreto, por avaliação do caso particular e das suas consequências, de molde a permitir concluir pela temeridade do comportamento e sua exclusiva causalidade do sinistro, e não já tendo por referente um tipo abstracto de conduta.[15]
No caso sub judice importa levar em consideração que o Sinistrado tinha já feito viagem da G..., SA para a P..., SA e desta para as zonas de ... e de ..., o que pressupunha necessariamente – embora se desconheça a totalidade de quilómetros percorridos – um entrar e sair da viatura e o interagir com terceiros, assim como o percorrer de alguma distância, o que consabidamente gera fadiga e uma menor concentração na via, respectiva sinalética e no próprio tráfego automóvel.
Não podemos deixar de levar em consideração que era já final do dia (o embate deu-se cerca das 20h00), altura em que, por apelo às regras do normal acontecer, o cansaço é mais sensível.
O Sinistrado, à data, tinha já 71 anos de idade, sendo do conhecimento comum que, com o avançar da idade, as capacidades de concentração e de resistência vão diminuindo.
Por outro lado, cumpre levar em ponderação que as vias, no local, se cruzam, não sendo fora do comum que um condutor se foque no horizonte da estrada e, por distracção, continue a marcha sem atender a uma obrigação de paragem.
Tudo ponderado, somos a concluir que a factualidade apurada é insuficiente para qualificar a conduta do Sinistrado como temerária em alto e relevante grau, o resultado de um acto verdadeiramente inútil, despropositado e indesculpável, que contraria e mesmo desafia as mais elementares regras de cuidado.
Mas ainda que assim não fosse, a Ré tinha, acrescidamente, por consubstanciar facto impeditivo do direito invocado pelos Autores, de provar a exclusividade da culpa causal por banda do condutor (nº 2 do art. 342º do Código Civil), isto é, que para a produção do sinistro era de afastar, com segurança, qualquer culpa de terceiro interveniente no acidente.[16]
E também aqui não fez a necessária prova.
É que, desde logo, o condutor do veículo HQ seguia a pelo menos 80 km/h numa estrada em que o limite máximo de velocidade era de 60km/h, violando, ele próprio, regras estradais.
O art. 28º do Código da Estrada, nos seus n.os 1, 2 e 5 dispõe que “sempre que a intensidade do trânsito ou as características das vias o aconselhem podem ser fixados, para vigorar em certas vias, troços de via ou períodos:
a) Limites mínimos de velocidade instantânea;
b) Limites máximos de velocidade instantânea inferiores ou superiores aos estabelecidos no n.º 1 do artigo anterior.
2 - Os limites referidos no número anterior devem ser sinalizados ou, se temporários e não sendo possível a sinalização, divulgados pelos meios de comunicação social, afixação de painéis de informação ou outro meio adequado.
(…)
5 - É aplicável às infrações aos limites máximos estabelecidos nos termos deste artigo o disposto nos n.os 2 e 4 do artigo anterior”.
Acresce que, por força da al. h) do nº 1 do art. 25º do Código da Estrada, “sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:
(…)
h) Nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida”.
Importa ainda levar em consideração que, nos termos do nº 2 do art. 29º do Código da Estrada, “o condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito”.
Como refere António Augusto Tolda Pinto[17], “o direito de prioridade de passagem não é um direito absoluto já que quem dele goza recai o dever de observação das cautelas necessárias à segurança do trânsito, isto é, importa que o mesmo deve adoptar as precauções e cuidados indispensáveis a evitar acidentes e a colocar em perigo os restantes utentes da via”.
Não é, pois, de excluir que o condutor do veículo pesado haja contribuído para a eclosão do embate, desde logo atenta a velocidade a que seguia.
Isto, note-se, quando um veículo pesado tem ínsito um perigo incomparavelmente superior que aquele que inere a um veículo ligeiro, atendendo ao seu maior volume e peso, sendo potencialmente causador de efeitos danosos superiores, o que reclama que o respectivo condutor se rodeie de particulares cautelas na condução estradal.
Ponderando toda a factualidade provada, também neste segmento a Ré não logrou fazer prova, como lhe competia, da prática de uma factualidade passível de afirmar, mesmo a considerar-se como temerária a conduta negligente do Sinistrado, como exclusivamente causal do embate[18], sendo certo que, na dúvida, sempre seria afastada essa exclusividade (art. 346º do Código Civil).
Consequentemente, não se encontra igualmente preenchida a hipótese legal da al. b) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009.”

Face à citada fundamentação, que temos no essencial como convincente, não encontramos razões para divergir do sentido da decisão ao não concluir pela descaraterização do acidente como de trabalho, assim, em termos que explicitaremos seguidamente, por não se poder ter como demonstrada a previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009.
Desde logo, e em primeiro lugar, a propósito da alínea a), por se subscrever a posição afirmada na sentença no sentido de que, sendo o sinistrado administrador da sociedade, em relação ao mesmo não se pode dizer que o exercício da sua atividade profissional tivesse inerente a observância das regras estradais que com ela não se relacionam direta e necessariamente.
Na verdade, como resulta da norma e tem sido afirmado pela jurisprudência, tornando-se necessário para a verificação da analisada causa de descaracterização do acidente que o sinistrado viole regras de segurança que estejam estabelecidas por diretivas da entidade empregadora ou por disposição da lei, não está porém em causa, como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 28 de Abril de 2017[19], a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim apenas as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física. Como se assinalou no mesmo Acórdão, por apelo ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2007[20], “consagrando-se, há muito, um regime específico no domínio da responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho, que assume um cariz acentuadamente objectivo – desprezando, por via de regra, a culpa, e abrangendo todas as situações em que o acidente se produza, por causa ou em função da actividade profissional do sinistrado, e faz recair a obrigação de indemnizar sobre a entidade empregadora, que está obrigada a transferir a responsabilidade infortunística para uma entidade seguradora –, facilmente se percebe que a lei só dispense o ónus de reparação quando o acidente tenha sido provocado por um comportamento particularmente censurável do próprio trabalhador, caso em que opera a chamada “descaracterização” do sinistro, arrimando-se aos fundamentos taxativamente enunciados agora no artigo 14.º da LAT (artigo 7.º da anterior LAT). Por isso, conclui-se no referido acórdão, «deve entender-se que a previsão legal, no caso da dita alínea a) [do n.º 1 do artigo 7.º da anterior LAT, actual alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT], não pretende abarcar todas e quaisquer “condições de segurança” – onde quer que elas venham previstas e independentemente dos seus destinatários – antes se reporta a especiais “condições de segurança” e com específicos destinatários».
Pelo exposto, não se acompanha a Apelante quando pretende ter por preenchida a previsão da alínea a) do preceito.
Como não lhe assiste também razão, como se disse, quanto à alínea b), neste caso porém, como diremos de seguida, por não termos por demonstrada a exclusividade da culpa do Sinistrado na produção do evento – “Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
Isso não obstante não acompanharmos nesta parte integralmente a citada fundamentação da sentença, assim na parte em que, no geral na nossa ótica sem sustentação real na factualidade provada, afirma, como justificativa da atuação do Sinistrado, citando, “fadiga e menor concentração na via, respectiva sinalética e no próprio tráfego automóvel”, ou ainda, como aí se refere, na circunstância de aquele “entrar e sair da viatura” e “interagir com terceiros, assim como o percorrer de alguma distância”. Do mesmo modo, a conclusão que retira de que, pelo facto de ser final do dia (o embate deu-se cerca das 20h00), o cansaço ser mais sensível e, por último, as considerações a propósito de não ser “fora do comum que um condutor se foque no horizonte da estrada e, por distracção, continue a marcha sem atender a uma obrigação de paragem”, retiradas da ponderação de que as vias, no local, se cruzam.
Na verdade, salvo o devido respeito, admitindo-se que assim possa eventualmente ser, a factualidade provada não permite, porém, sem mais, afirmar que tenha sido esse o caso, sendo pois de admitir, do mesmo modo, por falta de elementos que o permitam, que se possa sustentar coisa diversa, sem esquecermos que tais eventuais justificações, ainda que porventura demonstradas (o que não ocorre), não afastam o dever geral de cuidado imposto para quem circula na via pública, conduzindo um veículo automóvel.
Daí que, resultando dos factos provados que o Sinistrado, ao aproximar-se do cruzamento que dá acesso do IP3 à EN ..., avançou sem antes imobilizar a viatura junto de um sinal vertical com a menção “STOP”, aí existente, que lhe impunha a paragem obrigatória, assim cometendo uma contraordenação muito grave, se possa também sustentar, como o defende a Apelante, diversamente do que foi o entendimento do Tribunal a quo, que possamos estar perante um comportamento temerário, reprovado pelo elementar sentido de prudência.
Não obstante, apesar de se admitir a pertinência dos argumentos que a Apelante avança ao longo das suas conclusões no sentido de o comportamento do Sinistrado dever ser considerado no caso como altamente culposo e temerário, ainda assim, o que não poderemos acompanhar, e esse é argumento decisivo para a solução do caso, é a afirmação de que a culpa desse seja exclusiva, sendo que, pelo contrário, se acompanha nessa parte sem dúvidas a sentença, assim quando conclui que, ponderando toda a factualidade provada, “a Ré não logrou fazer prova, como lhe competia, da prática de uma factualidade passível de afirmar, mesmo a considerar-se como temerária a conduta negligente do Sinistrado, como exclusivamente causal do embate”.
Vejamos o porquê do nosso entendimento:

1.3. Da não exclusividade da conduta para a produção do acidente
Como resulta da sentença, o regime de reparação dos acidentes de trabalho que resulta da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, aplicável ao caso, no que agora importa, não comete, sem mais, ao empregador a responsabilidade pela reparação dos danos de todo e qualquer acidente de trabalho, assim, no que ao caso importa, não atribui tal responsabilidade, como resulta do artigo14.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 3, quanto a acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, como tal se entendendo o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
A propósito da densificação do conceito, há muito que a Doutrina e a Jurisprudência se vêm pronunciando, como aliás dá nota o Tribunal a quo, podendo ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2014[21], a esse propósito, o seguinte (citando):
“A densificação do conceito, resultante da progressiva elaboração doutrinal e jurisprudencial, conduziu – … também por indução da reconhecida dificuldade na delimitação da ténue fronteira entre os comportamentos causais dolosos[22] /intencionais e a falta grave e indesculpável da vítima[23], esta no plano da negligência consciente – à estabilização do entendimento vigente segundo o qual apenas relevam para a descaracterização do acidente os comportamentos ostensivamente inúteis, indesculpáveis, gratuitos, reprovados por um elementar sentido de prudência, casuisticamente aferíveis pelo padrão do cidadão médio[24], diligente e honesto, simbolizado no clássico paradigma do ‘bonus pater-familias’.
A conduta, assim delineada, terá necessariamente de ser causal do acidente e, além disso, há-de ser a sua condição/causa única, ou seja, a eclosão do acidente tem na sua génese a exclusiva actuação do trabalhador/sinistrado.
O nexo, no processo causal, estabelece-se entre o facto praticado pelo agente e o dano, em termos de poder afirmar-se que este, numa natural relação de causa-efeito, é resultante daquele. (…)”
A respeito da dificuldade resultante do facto de muitas vezes pouco se saber acerca da dinâmica dos acidentes de viação, de tal forma que em muitos casos, apesar de ser possível afirmar a culpa de um dos intervenientes, a escassez dos factos apurados não permitir asseverar que a sua conduta tenha sido a única causa do sinistro, nos dá nota evidente o Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de Maio de 2014[25], aí a propósito da redação que constava do artigo 7.º, n.º 1, b), da Lei n.º 100/97 mas que se mantém com atualidade (ao estipular que a descaracterização do acidente exige que o comportamento do sinistrado seja a sua causa exclusiva), reportando como exemplos dessa dificuldade os casos tratados nos Acórdãos de 20-10-2011[26] e 22-09-2011[27].
Mais se esclarece no citado Acórdão de 7 de Maio de 2014, com manifesta relevância, a respeito de um conjunto de casos em que o acervo factual não permita uma leitura tão perentória, o seguinte:
“(…) será (ainda assim) de concluir no mesmo sentido, sempre que, proporcionando os factos uma compreensão da dinâmica do acidente, nada sugira, a par da conduta culposa do sinistrado, a concorrência de qualquer outra causa na produção do acidente (v.g., facto praticado por outro interveniente no acidente ou por terceiro, caso fortuito ou de força maior), ou seja, quando – à luz de critérios de credibilidade racional, razoabilidade e experiência comum – nada permita conjeturar no sentido de tal eventualidade (i.e., quando nenhum motivo concreto/objetivo a torne verosímil). Com efeito, à semelhança do que se verifica no plano da prova, o tratamento jurídico do quadro factual apurado não pressupõe uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodítica [28] relativamente à sua completude, sendo irrelevante a mera probabilidade deverificação de dimensões factuais que não tenham sido apuradas (maxime, quando as mesmas não são sequer suscitadas no processo).[29]
Sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função essência de instrumento de paz social e de realização da justiça, a prova assenta na certeza relativa ou histórico-empírica dos factos [30], ou seja, noutras palavras, mas com o mesmo alcance: no alto grau de probabilidade de verificação dos factos, suficiente para as necessidades práticas da vida; [31] no grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o determinado facto; [32] na consciência de um elevado grau de probabilidade (convicção), assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões.[33]

Na consideração de tudo o que se disse anteriormente, importando agora decidir o caso que se aprecia, ainda que (como supra referimos) se possa considerar que o caso revele um comportamento temerário por parte do Sinistrado – ao ter avançado no cruzamento, sem ter imobilizado o veículo perante a sinalização aí existente que a tal o obrigava, cortando no seguimento a linha de trânsito ao veículo que aí circulava, no sentido de trânsito Barragem ..., veículo esse que lhe veio a embater na parte lateral frontal esquerda –, porém, tal como se provou também, constatamos afinal que o outro veículo interveniente no acidente circulava, aquando do embate, a uma velocidade não inferior a 80 km/h quando a velocidade máxima permitida no local era de 60 km/h.
E, porque assim é, importará então questionar se para o embate apenas contribuiu o comportamento do Sinistrado, como causa exclusiva, e não também, ainda, o comportamento do condutor do outro veículo.
De facto, diversamente de outros casos similares de acidentes de viação em que não provou um qualquer comportamento do outro condutor interveniente que permita inferir qualquer grau de responsabilidade sua para o ocorrido, a situação que se aprecia sugere, nas palavras do citado Acórdão de 7 de Maio de 2014, não ser este o caso pois que, a par da conduta culposa do Sinistrado, concorreu afinal uma outra causa para a produção do acidente, assim o circular o outro veículo na via a uma velocidade superior à permitida no local.
Na verdade, à luz de critérios de credibilidade racional, razoabilidade e experiência comum, sendo válida a afirmação da Apelante de que o embate não teria ocorrido se o Sinistrado tivesse imobilizado o veículo antes de entrar na outra via, não o será menos, afinal, se dissermos que esse também não teria ocorrido se o condutor do outro veículo circulasse, como estava também obrigado pela sinalização existente no local, a uma velocidade não superior a 60/Kms/hora, pois que, se assim fosse, inegavelmente que não se encontraria nesse local da via e sim em ponto anterior – não se acompanhando assim a mesma Apelante quando conclui em sentido inverso, nas suas conclusões, entre as quais a 18.ª.
Do exposto decorre, pois, a constatação de que a conduta do Sinistrado não pode ser tida aqui, em termos de causalidade adequada, com a única que explica a ocorrência do acidente, concorrendo a par dela (concausalidade), ainda que em menor grau, a conduta do outro condutor, ao circular com velocidade excessiva para o local.
Deste modo, concluindo, face aos elementos dos autos, por aplicação dos critérios antes enunciados a esse respeito, consideramos que não ocorre descaraterização do acidente como de trabalho, confirmando-se assim esse seguimento da sentença.
Do exposto decorre, tanto mais que a Apelante limitou no recurso os seus argumentos jurídicos a essa descaraterização, que como se disse não ocorre, nada questionando quando ao mais nessa decidido, que o recurso improcede na sua totalidade, merecendo continuidade pois o decidido na sentença proferida.

Decaindo, a Apelante é responsável pelas custas (artigo 527.º do CPC)
***
IV. Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Porto, 14 de dezembro de 2016
Nelson Fernandes
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
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[1] Rectificando-se o lapso de escrita, por se ter redigido “G1...”, que é manifesto – nº 1 do art. 614º do Código de Processo Civil, aplicável por força da al. a) do nº 2 do art. 1º do Código de Processo do Trabalho
[2] Neste sentido vide ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas de Reforma do Processo Civil, II volume, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 144
[3] (14) Ac. RL 25.03.2015, www.dgsi.pt
[4] (15) Ac. RL 13.04.2005, www.dgsi.pt
[5] (16) JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho – O Acidente in itinere e a sua Descaracterização, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 215; Ac. RC 04.03.2004, CJ, ano XXIX, tomo II, págs. 52 e 53; Ac. RC 26.04.2006, CJ, ano XXXI, tomo II, pág. 56 e ss.
[6] (17) Ac. STJ 17.05.2007, www.dgsi.pt; Ac. STJ 28.11.2012, www.dgsi.pt; Ac. STJ 18.12.2013, www.dgsi.pt
[7] (18) PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 878 e 879
[8] (19) JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho, O Acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 253 e 254; JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO, Reflexões em Torno da Descaracterização do Acidente de Trabalho, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2013 – II, pág.219; Ac. STJ 14.01.2009, www.dgsi.pt; Ac. STJ 25.11.2009, www.dgsi.pt
[9] (20) Ac. STJ 17.05.2007, www.dgsi.pt; Ac. RE 28.04.2017, www.dgsi.pt
[10] (21) Ac. STJ 24.10.2012, www.dgsi.pt
[11] (22) Ac. STJ 07.05.2014, www.dgsi.pt; no mesmo sentido, vide Ac. STJ 19.11.2014, www.dgsi.pt
[12] (23) Ac. RP 15.04.2000, CJ, ano XXVII, tomo II, pág. 251 e ss.; Ac. RG 21.01.2016, www.dgsi.pt
[13] (24) JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho, O Acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 255 e ss.; Ac. STJ 14.02.2007, www.dgsi.pt; Ac. RP 05.11.2007, www.dgsi.pt; Ac. STJ 13.12.2007, www.dgsi.pt; Ac. STJ 09.06.2010, www.dgsi.pt; Ac. RP 18.06.2012, www.dgsi.pt; Ac. RP 22.04.2013, CJ, ano XXXVIII, tomo II, pág. 233 e ss.
[14] (25) Ac. STJ 27.03.2003, CJSTJ, ano XXVIII, tomo I, pág. 283 e ss.; Ac. STJ 22.06.2005, CJSTJ, ano XIII, tomo II, pág. 269 e ss.
[15] (26) Ac. STJ 17.02.1999, CJSTJ, ano VII, tomo I, pág. 284 e ss.
[16] (27) Ac. STJ 09.11.2011, CJSTJ, ano XIX, tomo III, pág. 257 e ss.
[17] (28) ANTÓNIO AUGUSTO TOLDA PINTO, Código da Estrada Anotado, Coimbra Editora, 2ª edição, Coimbra, 2005, pág. 104
[18] (29) De referir que, pese embora o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 22.09.2011 (disponível em www.dgsi.pt e a que a Ré aludiu em sede de alegações), se haja pronunciado sobre um acidente ocorrido no mesmo local, os contornos fácticos eram diversos, nomeadamente no que concerne ao veículo cuja trajectória foi cortada, não sendo sobreponível ao caso dos autos
[19] Relator João Luís Nunes, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Recurso n.º 53/07, disponível em www.dgsi.pt
[21] Disponível em www.dgsi.pt, Relator Conselheiro Fernandes da Silva
[22] [2] - Prevenidos na 1.ª parte da alínea a) do n.º 1 da predita norma.
[23] [3] - Usando as palavras antes constantes da Base VI, n.º 1, b, da Lei n.º 2127, de 3.8.1965.
[24] [4] - Na sua perspectiva ética ou deontológica, que não propriamente estatística, como se refere, com precisão, na nota ao art. 487.º do Cód. Civil Anotado, Pires de Lima e A. Varela, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1897.
[25] In www.dgsi.pt, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado
[26] Processo 1127/08.6TTLRA.C1.S1, Relator Fernandes da Silva – Assente que o condutor sinistrado, ao chegar a um cruzamento, não parou ante o sinal vertical de Stop, adicionalmente, quanto à dinâmica do acidente e ao comportamento do outro condutor interveniente, apenas se apurou, para além do embate entre os dois veículos, que este último, ao ver a sua linha de marcha interrompida, se desviou para a direita. Neste quadro, pois, foi entendido não poder concluir-se pela exclusividade da culpa do sinistrado na eclosão do acidente.
[27] Processo n.º 896/07.5TTVIS.C1.S1, Relator Conselheiro Pinto Hespanhol – aí entendendo-se que, diversamente do caso anterior, os factos apurados permitiam concluir, absolutamente, no sentido da culpa exclusiva do condutor/sinistrado,ao ter-se provado que esse, ao chegar a um cruzamento, não parou ante o sinal vertical de Stop, mas, para além disso, ficando demonstrado que cortou a linha de trânsito do veículo automóvel que circulava na via prioritária, surgindo a cerca de seis metros da frente daquele veículo, não dando, pois, qualquer hipótese ao respetivo condutor de evitar o embate.
[28] [30] Entendendo-se por certeza apodítica, segundo Fernando Gil, Tratado da Evidência, p. 15. a que exclui o “se de outro modo”, as “possibilidades abertas”, a “certeza presuntiva”, o “não-ser”, “o ser duvidoso”, pois apodítico é o que não pode ser senão o que é.
[29] [31] No âmbito do processo civil (e laboral), a prova (e a abordagem dos factos provados) baseia-se sempre no aproveitamento ou na rejeição, para efeitos de decisão, de uma afirmação (ou negação) sobre a realidade (Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, p. 101), reportando-se o juiz, no julgamento de facto, às hipóteses de solução (“projectos de sentença”) que neste âmbito lhe são apresentados pelas partes (ibidem, p. 286)
[30] [32] Cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 420
[31] [33] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 191/192, Vaz Serra, Provas, 115, e Antunes Varela, ob. cit., 421
[32] [34] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, 345
[33] [35] Castro Mendes, ob. cit., pp. 306 e 325