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CHEQUE
PAGAMENTO DE DÍVIDA
DÍVIDA DE TERCEIRO
EXTINÇÃO DE DÍVIDA
CANCELAMENTO DE CHEQUE
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário
I. Se um credor recebe um cheque para pagamento da dívida do devedor e o destina ao pagamento da dívida de terceiro, o devedor pode revogar o cheque com justa causa e o credor deixa de ter razão para o reter na sua posse. II. Se o portador do cheque - não podendo deixar de saber que está a destinar o cheque do devedor ao pagamento da dívida de terceiro e que se o cheque for pago é esta a dívida que será extinta -, ameaça o devedor com a apresentação de uma queixa-crime se não pagar o cheque, o que equivale a tratá-lo como um criminoso e a tentar forçá-lo a pagar a dívida de terceiro, pratica um acto ilícito, porque violador da honra e da liberdade de agir do autor, que se concretiza em danos não patrimoniais que deve indemnizar. (Sumário da responsabilidade do Relator)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
“A”, propôs contra a PT Comunicações, SA, a presente acção pedindo que esta seja condenada a devolver-lhe o cheque ..., sob a C..., no valor de 60€ e a indemnizá-lo em, pelo menos, 1500€ a título de danos patrimoniais, e 5000€ a titulo de danos morais. Alega para tanto que é titular dum serviço telefónico com o nº 2...980 e que em 16/12/2004 se deslocou a um balcão da ré afim de amortizar parte da divida que o referido serviço telefónico tinha. Para pagamento de tal divida emitiu o cheque referido acima, tendo-lhe sido entregue o respectivo recibo. Quando chegou a casa e foi confirmar o recibo que lhe tinha sido entregue constatou que o número de telefone constante do mesmo não era o seu e que o titular do referido contrato também não era ele. De imediato entrou em contacto com a ré, via telefone, tendo-lhe sido dito que nada podiam fazer, que tinha de fazer uma exposição escrita, para futura análise. Perante tal resposta e com receio de ficar sem a quantia de 60€ da sua conta e não lhe ser a mesma devolvida, o autor, no dia seguinte, deslocou-se ao Banco para cancelar o referido cheque. Isto porque tal cheque estava associado ou foi entregue para pagar uma divida que não era do autor, por irresponsabilidade da empregada da ré. Após ter procedido a tal cancelamento o autor entrou, novamente, em contacto com a ré, a informar que tinha procedido ao cancelamento do cheque, devido ao erro que tinha acontecido e solicitou que lhe devolvessem o cheque que tinha erradamente emitido, tendo-lhe sido dito pela empregada que o atendeu que “não devia pedir a devolução do cheque, mas sim pagar o que devia”. Ficou então o autor a aguardar a devolução de tal cheque, como solicitou. Até que, em 06/01/2005, o autor recebeu uma carta da ré, na qual o informa que vai apresentar queixa-crime contra o autor, se o mesmo no prazo de 8 dias não vier pagar os 60€ mais juros. O autor entrou novamente em contacto com a ré, para explicar que ele não tinha qualquer divida para com a ré e que aquele cheque tinha sido cancelado porque estava associado a uma divida que não pertencia ao autor. Posteriormente, por diversas outras vezes, quer via telefone, quer directamente nos serviços da ré, o autor solicitou a devolução do referido cheque, não tendo a ré procedido à sua devolução até à presente data. O autor viu-se então na contingência de ter de solicitar apoio judiciário para intentar a presente acção, para que lhe fosse devolvido o cheque. A advogada nomeada enviou carta registada com aviso de recepção dirigida à ré, a qual não foi objecto de qualquer resposta. Quanto a danos, queixa-se do vexame com as respostas que teve, ao longo destes anos, por parte da ré, sendo-lhe dito, constantemente, para pagar os 60€ que devia; de ter tido a sua imagem denegrida; de sentir vergonha quando falavam para ele como se se tratasse de um “caloteiro”; de anos de constantes solicitações, que nunca foram cumpridas por parte da ré; de ter sido obrigado a solicitar apoio judiciário afim de intentar a presente acção, com todo o constrangimento burocrático que isso obriga e longas horas de espera na segurança social; de terem sido denegridas as suas qualidades profissionais; de, pela atitude da ré, lhe terem sido provocados incómodos, mal-estar e desconforto ao autor; isto a título de danos morais. Quanto aos patrimoniais, fala “com despesas à loja da ré”; e com telefonemas e longas horas de espera, quer nas instalações da ré, quer na segurança social. A ré contestou, impugnando, por desconhecimento, alguns dos factos relativos aos danos invocados, e impugnando os outros, dizendo, entre o mais, que recepcionou o cheque, emitido pelo autor, para liquidar parte dos 332,56€ que estavam em dívida na conta nº. ... do autor, referentes à factura de 11/2004; por mero lapso informático foi emitido recibo com o nº de outra conta mas o cheque foi alocado à conta do autor. O cheque veio devolvido pelo banco com indicação “sem provisão”, pelo que o mesmo nunca foi descontado ou utilizado pela ré. A conta ficou com as facturas por liquidar, tendo a ré solicitado várias vezes ao autor o pagamento das quantias em dívida. Nunca informou o autor para fazer uma exposição escrita, mas sim que existiam várias facturas em dívida. Na verdade, o pagamento destas facturas quer das outras, subsequentes, nunca foram liquidadas, tendo o autor acordado diversos planos de pagamento com a ré, que nunca cumpriu. Nesta medida, a ré nunca poderia devolver o aludido cheque, pois este constituiu-se como título executivo, no âmbito do procedimento de injunção, aliás, como nem poderia deixar de ser. O autor só liquidou os montantes em dívida da conta ... em 08/01/2007, referentes a facturas do ano de 2004 e 2005. E só os liquidou porque tinha sido notificado que a cobrança da quantia supra referida já se encontrava em sede judicial. Pelo que, o autor estava a usufruir, como cliente da ré de um serviço que não estava a pagar, pois nos meses subsequentes teve sempre conhecimento concreto do seu montante de dívida. E acrescentou que os simples incómodos (preocupações) não figuram danos não patrimoniais susceptíveis de indemnização e que o valor da indemnização sempre se revelaria excessivo e que não se coaduna com os prejuízos causados ao autor. Depois de realizado julgamento, foram fixados os factos provados e não provados, e depois foi proferida sentença absolvendo a ré dos pedidos. O autor recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que julga a acção procedente – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
3ª - Efectuado o julgamento e ouvida a prova testemunhal, a qual se requer seja transcrita e apreciada, porque útil para melhor compreensão do infra referido, e analisada a prova documental junta aos autos, a Srª juíza a quo deu como provada a matéria de facto acima transcrita, existindo, no entanto, uma clara contradição entre pontos/alíneas da matéria dada como provada.
4ª - Senão vejamos; resulta do ponto 7 da matéria dada como provada que: “Em 06/01/2005, o autor recebeu a carta da ré, cuja cópia consta de fls. 13, na qual esta declara que vai apresentar a competente queixa crime se no prazo de oito dias não seja liquidado o cheque, a que corresponde o nº mencionado em 3, em dinheiro, cheque visado ou vale do correio.” 5ª - Analisando o documento junto com a pi, de fls. 13 dos autos, salvo melhor opinião, não consta desse documento o que a Srª juíza a quo refere, pois a ré emitiu tal carta em 06/01/2005 e dessa carta consta o número de telefone 2...509, ou seja, mantém a ré, claramente, intenção de associar, ou já tinha associado o cheque emitido pelo autor a uma outra conta de cliente com o nº 2...509, quando o numero de telefone do autora era 2...980, como consta do ponto 3 da matéria dada como provada.
6ª - Pelo que a interpretação levada a cabo pela Srª juíza a quo é claramente contra o que consta do texto e da interpretação que se faz do referido documento.
7ª - Por outro lado, refere a Srª juíza a quo, no ponto 11 da matéria dada como provada que: “Apesar de o recibo de pagamento ter sido emitido em nome de pessoa diferente da do autor, a quantia titulada pelo cheque referido em 3 foi alocada à conta deste.” 8ª - Salvo melhor opinião, tal matéria não podia ter sido dada como provada, isto porque, analisando o documento doc. 2 junto com a pi, constante de fls. 13 dos autos, não se pode tirar a conclusão de que o cheque emitido pelo autor tenha sido alocado à sua conta, muito pelo contrário!
9ª - Pois se, em 16/12/2004 o autor emitiu o cheque nº ..., para pagamento do seu serviço telefónico e o mesmo erradamente é associado a outra conta, pelos serviços de atendimento da ré, quando o autor dá pelo lapso imediatamente manda cancelar o cheque e solicita, logo nessa altura, a devolução do cheque.
10ª - A ré não devolve o cheque e mais, em 06/01/2005 envia carta ao autor a instá-lo a pagar a divida de 60€, desse cheque e continua a associá-lo à conta com o nº 2...509.
11ª - O documento junto aos autos a fls. 13 não foi impugnado pela ré, pelo que tem plena validade e como tal não podia a Srª juíza a quo ter dado como provado factualidade diversa da que consta do mesmo e a final ter decidido que esse cheque foi alocado à conta do autor, só porque as funcionárias da ré o terão dito, por dizer, sem qualquer prova que o corrobore, muito pelo contrário, pois existe um documento emitido pela ré a demonstrar exactamente o contrário.
12ª - Não pode a Srª juíza a quo dar como provada factualidade que não existe prova.
13ª - A Srª juíza a quo resolve toda a situação dizendo que o autor tinha a divida, logo não podia cancelar o cheque que fora associado a outra conta, situação inadmissível para quem conhece os procedimentos do autor.
14ª - O autor já tinha tido muito problemas com a ré por causa de outras situações com os seus serviços telefónicos e como dia o ditado “gato escaldado de água fria tem medo”.
15ª - Não restam pois dúvidas que, conjugada a prova testemunhal com os documentos juntos aos autos, nomeadamente o documento de fls. 13, andou mal a Srª juíza a quo com a decisão que proferiu, porque não devia ter considerado que o cheque emitido pelo autor foi alocado à sua conta, quando, quase um mês após a emissão de tal cheque a ré vem indicar a conta que tinha a divida dos 60,00€, referentes ao cheque emitido e que não era, claramente, a conta do autor, exigindo, no entanto, a este, o referido pagamento.
16ª - Tinha o autor pleno direito de exigir o cheque nº ..., que emitiu para pagamento da sua divida e que foi associado a outra conta/cliente.
17ª - Isto porque, tratando-se de um cheque o mesmo é titulo executivo, por si só, e a ré pode a qualquer altura fazer uso do mesmo.
18ª - Por outro lado, considerando-se que existia uma divida e a mesma legitimaria a retenção de tal cheque por parte da ré, tal divida foi totalmente liquidada, como consta do ponto 13 da matéria de facto dada como provada, em 08/01/2007 e mesmo assim o cheque não foi devolvido, pelo que o autor tem direito à restituição do titulo da obrigação, nos termos do disposto no art. 788 do CC.
19ª - Tendo a ré incumprido com a obrigação que lhe incumbia, de devolver o cheque ao autor, causou danos ao mesmo, devendo ser condenada a ressarci-los, como peticionado.
20ª - No caso de que nos ocupamos, a sentença proferida não faz uma cabal fundamentação do direito aplicado aos factos dados como provados, muito pelo contrário!
21ª - Por outro lado, a sentença proferida conheceu de factos dos quais não podia conhecer, ou seja, referiu que o cheque do autor foi alocado à sua conta, em clara contradição com os documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados pela ré, nem sabemos onde se baseou a Srª juiz a quo para fazer tal afirmação.
22ª - Assim, entendemos que a sentença proferida violou o disposto na parte final das alíneas b) e d) do nº 1 do art. 668 do CPC, nulidade que aqui se requer seja declarada.
* A ré contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida. Para além disso, diz que o recurso é inepto, dizendo-o no que respeita ao recurso contra a decisão da matéria de facto, por falta de observância do disposto no art. 685-B/1b) do CPC: Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: […] Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
* Questões que cumpre solucionar: da ineptidão do recurso contra a decisão da matéria de facto; se deve ser alterada a decisão da parte final do ponto 11 dos factos provados; se o autor tinha direito à devolução do cheque; e se a conduta da ré provocou danos ao autor que devam ser indemnizados.
* Da ineptidão do recurso contra a matéria de facto
Ver-se-á, de seguida, que o autor é suficientemente claro, nas próprias conclusões do recurso, para se concluir, sem margem para dúvidas, que põe em causa o decidido quanto à parte final do ponto 11 dos factos provados, indicando as razões pelas quais o entende. Por outro lado, o autor não põe em causa que as duas testemunhas da ré tenham tido o que a decisão judicial lhes imputa. Pelo contrário, admite que assim tenha sido. O que diz é que isso não devia bastar para afastar a prova documental em sentido contrário (que o autor identifica suficientemente de modo a não deixar dúvidas de que se trata do recibo de fls. 12 e do cheque de fls. 13). Ora, perante isto, não havia nada a transcrever do depoimento das testemunhas, porque o autor não dizia que os respectivos depoimentos impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Improcede, pois, esta questão prévia.
* Da nulidade da sentença
Nas conclusões 21ª e 22ª, o autor invoca a nulidade da sentença, com referência ao que consta das als. b) e d) do nº. 1 do art. 668 do CPC (: “É nula a sentença quando: […] b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; […] d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; […]”)
Mas os argumentos que constam dessas conclusões têm a ver com um eventual erro na decisão da matéria de facto, não com qualquer daquelas nulidades.
I Recurso contra a decisão da matéria de facto
Nas conclusões 3ª a 6ª, o autor parece pôr em causa o ponto 7 dos factos provados (que será transcrito abaixo, quando se referirem os factos dados como provados). Mas nada do que aí refere contradiz o que consta daquele ponto, ponto esse que se limita a reproduzir parcialmente o conteúdo do documento de fls. 13. Assim, não é aquilo o que o autor quer, mas antes utilizar o documento de fls. 13 para pôr em causa a decisão do ponto 11 da matéria de facto.
Assim, as conclusões 3ª a 12ª e 15ª versam antes e apenas este último ponto dos factos provados.
E, nesta parte, o autor tem razão.
O ponto 11 dos factos provados diz que apesar de o recibo de pagamento ter sido emitido em nome de pessoa diferente da do autor, a quantia titulada pelo cheque referido em 3 foi alocada à conta deste.
Quanto ao ponto 11 dos factos provados a fundamentação da decisão da matéria de facto é a seguinte: “Por banda da ré, as testemunhas x e x, ambas suas funcionárias, prestaram um depoimento, praticamente idêntico entre si, sobre os factos a que respeitam os pontos 9, 10, 11, 12 e 13. Em contraste com a testemunha anterior [do autor], ambas demonstraram ter plena razão de ciência quanto aos factos sobre os quais depuseram, por terem consultado os ficheiros e arquivos mantidos pela ré sobre este assunto.”
A prova documental que consta dos autos, com relevo para este ponto, é apenas o recibo de fls. 12 e a carta da ré de fls. 13, juntos pelo autor mas com origem na ré. A ré não juntou nenhuma outra prova documental sobre a questão. A decisão recorrida baseou-se, por isso, apenas no depoimento das testemunhas da ré, empregadas da mesma, que teriam consultado os ficheiros e arquivos mantidos pela ré sobre este assunto. Mas o tribunal não pode ter visto esses documentos e por isso baseia-se apenas no que estas testemunhas dizem sobre eles.
Ora, o tribunal não tinha nenhuma razão para acreditar nestas testemunhas: porque se existissem ficheiros e arquivos mantidos pela ré sobre o assunto, certamente que a ré teria pedido para os juntar ou exibir nos autos, sabendo-se da particular falibilidade do depoimento testemunhal e da maior certeza que a prova documental permite (e também para que a parte contrária os pudesse contraditar devidamente e o tribunal os pudesse apreciar). Pelo que, tendo tais ficheiros e arquivos a ré não se teria limitado a fazer depor as suas duas empregadas, naturalmente predispostas a favorecer a sua entidade patronal contra um terceiro que está em disputa contra ela.
Aliás, o depoimento da 1ª testemunha é particularmente genérico e está em parcial contradição com o alegado pela ré na acção. Diz a testemunha entre o mais: Fomos informados telefonicamente que existe, num arquivo morto em Braga, um registo manual que diz que o cheque foi devolvido ao cliente, esclarecendo que esse registo manual não indicava a data em que tinha sido devolvido nem a morada para onde tinha sido enviado (7:20 a 7:52 do depoimento da primeira testemunha do grupo da ré, o que repete de 24:25 a 24: 52) [o cliente aqui refere-se ao autor, pelo que isto – o cheque foi devolvido - está em contradição com o que a ré diz no processo, ou seja: que o cheque está num processo de injunção como título executivo (art. 37 da contestação)];
Depois (11:23 a 11:52) a testemunha diz que houve uma transacção em simultâneo (ou seja, que houve um crédito e um débito por devolução do cheque) e que é por isso que o cheque não consta da factura do cliente… mas consta dos registos da ré… [quais registos?].
E o depoimento da 2ª testemunha é apenas uma síntese, reduzida a 5 vezes, do depoimento da 1ª, nada acrescentando de útil.
Por outro lado, os dois documentos juntos pelo autor têm como origem a própria ré. Foi ela que emitiu o recibo, em 16/12/2004, e a carta de fls. 13, de 06/01/2005, já depois de o autor lhe ter dado conta dos lapsos indicados (ponto 5 dos factos provados). Ou seja, mesmo depois da ré ter sabido que o cheque tinha ido para outra conta, uma conta de terceiro (correspondente ao telefone 2...509), torna a emitir, 21 dias depois, uma carta (ponto 7 dos factos provados) em que diz que o cheque tinha sido entregue para pagamento do telefone 2...509 (de terceiro).
Ou seja, a prova documental com origem na ré – dito de outro modo: os documentos da ré - demonstra inequivocamente que o cheque foi destinado ao pagamento da conta de um terceiro e não do autor.
Assim, a decisão correspondente ao ponto 11 dos factos provados está parcialmente incorrecta devendo ser alterada para: O recibo do pagamento foi emitido em nome de pessoa diferente da do autor e a quantia titulada pelo cheque referido em 3 foi destinada ao pagamento de uma dívida que não era do autor.
Nesta parte é, pois, procedente o recurso do autor.
*
Um esclarecimento quanto à utilização, agora, da expressão “destinado”, em vez da expressão “entregue” usada pelo autor e da expressão “alocado” usada pela ré.
Ao que se crê a palavra alocação – que nem sequer consta do Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001 – é utilizada principalmente pelos cultores da análise económica do Direito. Ultimamente, viu-se utilizada por Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, págs. 469/470) na construção de um modelo “alocativo” das pretensões obrigacionais (as aspas são de PMP), identificando alocação com afectação. Ora, afectação tem, no caso, o significado de acção de destinar alguma coisa a determinado uso (na definição daquele Dicionário).
Por sua vez, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=aloca%E7%E3o) diz que alocação (s. m.) deriva do fem. sing. de alocar, e tem o sentido de reserva para aplicação a um fim determinado (= afectação), tal como alocar (v. tr.) tem, para além de um significado informático, o sentido de colocar algo de maneira a que esteja disponível (= disponibilizar) ou destinar ou reservar para determinado fim (= afectar). No Wikcionário (http://pt.wiktionary.org/wiki/alocar) diz-se que alocar tem, entre outros, o significado de destinar algo a um fim específico. E no dicionário da Infopédia da Porto Editora http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/aloca%C3%A7%C3%A3o dá-se, para além dos significados informáticos, a definição do termo em economia: divisão de verbas por diferentes sectores.
A ré, por isso, pretendeu dizer, com o que escreveu no art. 25 da contestação, que a quantia titulada pelo cheque tinha sido destinada ao pagamento da conta do autor. Este, ao utilizar a expressão ‘entregue’ (art. 9 da pi), utilizou-a com o mesmo sentido, ou seja, com o sentido de que a quantia titulada pelo cheque tinha sido destinada ao pagamento da conta de terceiro. Dai que seja este o sentido utilizado na explicação do destino da quantia titulada pelo cheque: seria destinada ao pagamento de uma dívida que não era do autor.
*
Na conclusão 14ª o autor invoca, para a sua fundamentação, um facto que não está dado como provado - o autor já tinha tido muito problemas com a ré por causa de outras situações com os seus serviços telefónicos – mas não diz porque é que ele deve ser considerado como provado [ao contrário do que lhe impõe o art. 685-B/1b) do CPC], nem refere qual o seu relevo para a decisão de Direito, sendo que o facto de o autor já ter tido problemas com a ré não exclui a hipótese de os problemas serem imputáveis ao autor, ou seja, não implica necessariamente que os problemas fossem imputáveis à ré, pelo que não se vê qual a relevância que o facto possa ter.
Pelo que a conclusão é irrelevante.
* Posto isto, os factos provados, já com a alteração introduzida no ponto 11, são os seguintes (que se transcrevem agora para apreciação das restantes questões que importa solucionar):
1. O autor é titular de um serviço telefónico com o n.º 2...980, o qual se encontra instalado na Rua ..., n.º ..., ..., C....
2. Em Dezembro de 2004, o autor deslocou-se a um balcão da ré, na Rua ... …, Lisboa, a fim de amortizar parte da dívida que estava associada ao serviço telefónico referido em 1.
3. Quando foi atendido pela ré, o autor indicou o número de telefone 2...980 e declarou pretender efectuar o pagamento de 60€ por meio de cheque sobre a C... com o n.º ....
4. O recibo que foi entregue ao autor por ocasião do pagamento referido em 3 tem o seguinte conteúdo, na parte que interessa, conforme cópia de fls. 12: «Data: 2004/12/06 (…) Valor recebido: EUR 60,00 cheque N.º conta: ... N.º fact. 2...509 Nome: “B”».
5. Quando o autor chegou a casa e foi confirmar o recibo que lhe havia sido entregue, contactou a ré, via telefone, dando-lhe conta dos lapsos verificados.
6. No dia seguinte, o autor cancelou o cheque aludido em 3 e contactou novamente a ré informando-a de tal facto e solicitando que lhe devolvessem esse cheque.
7. Em 06/01/2005, o autor recebeu a carta da ré, cuja cópia consta de fls. 13, na qual esta declara – depois de escrever que o autor tinha entregue o cheque para pagamento do telefone 2...509 e que o mesmo tinha sido devolvido - que vai apresentar a competente queixa-crime se no prazo de oito dias não seja liquidado o cheque, a que corresponde o n.º mencionado em 3, em dinheiro, cheque visado ou vale do correio. [entre traços e em itálico deixou-se consignado um dos §§ da carta, por ter interesse para a decisão e por o facto fazer referência à carta, carta que de resto é da ré e não foi impugnada por ninguém – ao abrigo dos arts. 713/2 e 659/3, ambos do CPC].
8. Até ao presente, a ré não devolveu o cheque mencionado em 3, apesar de por diversas vezes o autor já o ter solicitado.
9. O serviço telefónico n.º 2...980 está associado à conta cliente n.º ....
10. À data do pagamento referido em 3, existia em dívida, nesta conta, a quantia de 332,56€, referente à factura de 11/2004.
11. O recibo do pagamento foi emitido em nome de pessoa diferente da do autor e a quantia titulada pelo cheque referido em 3 foi destinada ao pagamento de uma dívida que não era do autor.
12. Na sequência da falta de pagamento na conta mencionada em 9 e de vários planos de pagamento não cumpridos, a ré intentou contra o autor o procedimento de injunção com o n.º .../08.4THPRT.
13. O autor só liquidou os montantes em dívida da conta mencionada em 9, referentes a facturas de 2004 e 2005, em 08.01.2007.
*
II Recurso contra a decisão de Direito
Na conclusão 20ª, o autor faz uma acusação genérica à sentença recorrida, dizendo, sem justificar nem concretizar, que a sentença proferida não faz uma cabal fundamentação do direito aplicado aos factos dados como provados, muito pelo contrário. E no corpo das alegações nada mais de útil acrescenta, já que o § da fundamentação é igual ao da conclusão.
Pelo que também esta conclusão é irrelevante.
* Da devolução do cheque:
Nas conclusões 13ª e 16ª a 18ª, o autor dá razões para que a decisão referente ao pedido de devolução do cheque seja alterada. Remete-se aqui para elas. Quanto a esta questão, a decisão recorrida disse o seguinte: “O cheque é um título cambiário que enuncia uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta de dinheiro depositado – cfr. artigos 1º e 2º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUCh). É um título de crédito, à ordem ou ao portador, com as características de literalidade, formalidade, autonomia e abstracção, contendo uma ordem incondicionada de pagar a soma nele inscrita a quem o apresente validamente a pagamento. Entre o sacador do cheque (cliente do Banco) e o sacado (o Banco) há, portanto, dois tipos de relação: uma de provisão, em virtude da qual o sacador põe à disposição do banco uma determinada quantia, e outra resultante do contrato ou convenção do cheque, em virtude da qual o sacado se obriga, mediante o cheque, a fazer o pagamento da quantia indicada no título até ao limite da provisão. Nos termos do regime jurídico do cheque – Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, com sucessivas alterações até à Lei n.º 48/2005, de 29/08 – incorre no crime de emissão de cheque sem provisão, de acordo com o artigo 11º, b) «(…) causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro, antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro (…), levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque.» Apesar de, actualmente, a conduta criminosa só estar preenchida no caso de o valor do cheque ser superior a €150 (cfr. al. a) do mesmo normativo), não está em dúvida de que a mesma conduta, estando em causa um valor inferior, é ilícita (embora não para efeitos criminais). Apurou-se que o autor pretendeu efectuar parte do pagamento de uma dívida de serviços, à ré, através de um cheque que veio posteriormente a cancelar. Apurou-se, ainda, que, apesar de ter havido um erro nos dados constantes do recibo de quitação, o pagamento titulado pelo cheque foi efectivamente imputado à dívida do autor. Prescreve o art. 787 do Código Civil que quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita (n.º 1), podendo o autor do cumprimento recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento (n.º 2). É certo que a ré não cumpriu com perfeição o seu dever de entregar o recibo de quitação, pois que o mesmo vinha erradamente preenchido, mencionando outro cliente e outra conta. Mas essa circunstância não podia servir de justificação ao autor para que este cancelasse o cheque, para mais no dia seguinte ao detectar desse erro, praticando um acto que a lei tem como ilícito (o de impedir o pagamento do cheque). Não perdendo o direito de exigir a devida e correcta quitação após o pagamento, o autor podia e devia assegurar-se que a quantia que havia entregue através do cheque havia sido correctamente imputada [na] conta que – parcialmente – pretendia saldar, como em juízo se veio a apurar que efectivamente aconteceu (ponto 11 dos factos provados). Caso isso, porventura, não tivesse ocorrido, podia e devia o autor, ainda, assegurar-se que esse pagamento era correctamente imputado na sua conta e exigir a correcta quitação do mesmo, antes de proceder ao pagamento da quantia que remanescia em dívida, como era o caso. O que não tinha era qualquer justificação para de imediato cancelar a ordem de pagamento do cheque e posteriormente “dedicar-se” a contactar a ré para lhe exigir a devolução do cheque, muito menos, crê-se, para usar uma acção judicial como a presente, para mais beneficiando de apoio judiciário, para obter coercivamente tal entrega. Em suma, tendo-se provado que a quantia titulada pelo cheque era, efectivamente, devida, e só não tendo o mesmo servido para a liquidar por acto exclusivamente imputável ao autor – sublinhe-se, que, apesar do erro do recibo, a quantia já havia sido alocada à conta correcta – não tinha a ré o dever de devolver o dito cheque ao autor, nem este o direito de exigir judicialmente tal entrega. Este pedido é, pois, improcedente.”
* Da cancelamento do cheque
A sentença recorrida conclui pois pela ilicitude do cancelamento do cheque, diz que o autor tinha alternativa ao cancelamento do cheque e tem como pressuposto de facto que a quantia titulada pelo cheque tinha sido alocada à conta do autor e que só não serviu para a liquidar parcialmente por acto exclusivamente imputável ao autor.
Sabendo-se, no entanto, que a ré destinou o cheque ao pagamento da conta de terceiro (facto 11) cai pela base este pressuposto de facto da sentença recorrida. O cheque não podia ter servido de pagamento da conta do autor, porque a ré – não o autor – a destinou de facto ao pagamento da conta de terceiro. E o autor tentou evitar tal resultado, contactando com a ré para o efeito (facto 5), sem êxito. Não se vendo o que mais é que o autor podia ter feito para “assegurar-se que esse pagamento era correctamente imputado na sua conta […]”. Pois que o autor não tem o controlo dos serviços da ré e não pode agir por ela.
Quanto à ilicitude do comportamento do autor, que segundo a sentença recorrida seria mesmo crime se o cheque fosse de valor superior a 150€, há que ter em conta que são elementos do tipo de crime referido, entre o mais, que o acto de “proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque”,“caus[e] prejuízo patrimonial.”
* Prejuízo patrimonial
Ora, tendo a ré destinado o cheque ao pagamento da conta de terceiro contra a vontade expressa e natural do autor de que o cheque fosse destinado ao pagamento parcial da sua conta, não se pode dizer que exista um prejuízo patrimonial.
Utilizando a definição de Pessoa Jorge, transcrita por Germano Marques da Silva, na obra Regime jurídico-penal dos cheques sem provisão, Principia, 1997, pág. 52, prejuízo é “a frustração efectiva das utilidades de um bem cuja fruição pelo seu titular é tutelada pelo direito”. E acrescenta Germano Marques da Silva (pág. 53), depois de fazer referência às três teorias sobre o conceito de património na exposição de um parecer de Figueiredo Dias: “Ao conceito penalístico de património não importa apenas a relevância económica das utilidades, mas também que a sua fruição seja tutelada, ou pelo menos não desaprovada, pelo ordenamento jurídico.”
Ou seja, como diz na pág. 54: “Elemento constitutivo essencial do crime de emissão de cheque sem provisão é, pois, a frustração do direito do portador do cheque de receber na data da sua apresentação a pagamento a quantia a que tem direito em razão de uma obrigação subjacente ao cheque de que é credor e para cujo pagamento o cheque serviu.”
E termina com (pág. 59): “Para efeitos de tutela penal, o cheque é considerado apenas como meio de pagamento. Efectuado o pagamento por meio do cheque, o credor tem o direito a receber o valor desse cheque, não simplesmente porque é dele portador, mas porque tinha a posição de credor na relação jurídica que subjaz ao cheque e que este se destinou a satisfazer. Assim, se a relação jurídica subjacente não é juridicamente válida ou se o pagamento a que o cheque se destina não é devido, o não-pagamento do cheque não causará prejuízo.”
Em sentido próximo, nesta parte, veja-se Paulo Olavo da Cunha, Cheque e convenção de Cheque, Almedina, 2009, págs. 554 a 558.
Ora, a ordem jurídica não permite que um credor destine um cheque entregue para pagamento da dívida de um devedor ao pagamento da dívida de um terceiro, pois que nem sequer permite que entre duas dívidas do mesmo devedor, o credor escolha aquela que lhe apeteça (art. 783/1 do CC). O cheque não era para pagamento da dívida para que a ré o destinou.
Assim, este elemento do tipo não se verifica, o que basta para afastar a qualificação de ilícito por esta via.
* Proibição do pagamento do cheque
Mas também o elemento objectivo da proibição do pagamento do cheque não se verifica.
Aquilo que o art. 11/b) do regime jurídico-penal dos cheques sem provisão pune é a proibição do pagamento sem mais. É a revogação pura e simples, sem justificação.
Assim, por exemplo, Paulo Olavo da Cunha, Cheque e convenção de Cheque, Almedina, 2009, pág. 563, no ponto 19 dedicado à tutela penal do cheque, em que estuda o tipo de crime em causa, esclarece que “no decurso do prazo para apresentação a pagamento, o sacador só poderá proceder à revogação do cheque se dispuser de justa causa, o que acontece se tiver ocorrido um desapossamento […] e, para além do art. 14, § único do Decreto 13004, de 12/01/1927, a justa causa para a revogação do cheque encontra-se tutelada também no Direito regulatório do Banco de Portugal, que prevê os casos de revogação do cheque por justa causa e sua devolução aos apresentantes, nos termos do nº. 20.1 do SICOI (instr, nº. 25/2003). Segundo esta regra – aplicável à supervisão interbancária -, os cheques que sejam objecto desta operação podem ser devolvidos se se verificar ‘um dos motivos constantes da Parte II do Anexo.’ Nos termos deste anexo, o cheque apresentado em prazo pode ser revogado se “o sacador tiver transmitido instruções concretas ao sacado” por escrito ou outro meio (“de prova idóneo aceite em tribunal”), com a finalidade de este não proceder ao pagamento, por uma razão justificativa – furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade […]”.
Ora, o cancelamento do cheque (parte inicial do facto 6) é uma expressão demasiada genérica, já que cancelar quer dizer riscar o que foi escrito de modo a que fique sem efeito, inutilizar, invalidar, suspender a realização ou execução de alguma coisa, desistir de alguma coisa que se marcou ou reservou, sendo, por isso, cancelamento o acto de anular, tornar sem efeito ou então um traço ou nota escritos à margem, indicando que um registo está anulado (Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).
Assim, no caso dos autos, dizer que se cancelou o cheque quer dizer apenas que se disse ao banco para não pagar o cheque, mas sem que se saiba se se acrescentou uma justificação para o efeito ou não. Ora, como elemento do tipo de crime, tinha que ficar provada uma proibição de pagamento sem qualquer justificação, uma revogação pura e simples.
* Da revogação de cheques
Afastada a qualificação como crime ou como ilícito que só não é crime porque o cheque é de valor inferior a 150€, a questão do comportamento do autor pode ser apreciada como relacionada com o poder de revogação de cheques.
O art. 32/I da LUCh diz que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.
Isto, só por si, já permite a conclusão de que a revogação não é ilícita. O que se passa é que se ela for feita durante o prazo de apresentação não produz efeitos. É pois uma questão de eficácia, não de validade ou de ilicitude.
Neste sentido, Paulo Olavo Cunha diz que “a revogação do cheque pode constituir declaração válida do sacador, desde a sua emissão, mas a respectiva eficácia depende da não apresentação do cheque a pagamento durante o prazo para esse efeito ou, em qualquer momento, antes da revogação ser conhecida do sacado.” (pág. 593) e mais à frente (pág. 612) diz que o texto do art. 32 da LUCh “não impedindo a revogação durante o prazo de apresentação do cheque, determina a sua ineficácia durante esse período.”
O ac. do STJ de uniformização de jurisprudência (= AUJ) de 28/02/2008, publicado no DRI de 4/4/2008, decidiu que: “Uma instituição de credito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LULL, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 4.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483/1 do CC.”
Este acórdão, na sua fundamentação, esclarece que “tal recusa só seria legítima se fundada em justa causa – furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício de vontade.” (3º§ da parte II.B.6).
Isto depois de ter referido que: “Retém-se que a norma inserta na Parte II, nº. 1, al. a) [do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI (instrução nº. 25/2003, BO do Banco de Portugal nº. 10 de 15/10/2003)] sob a epígrafe “cheque revogado – por justa causa” […] considera “furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade”, tudo, casos que não podem ser qualificados de “revogação de cheque”, para os efeitos previstos e regulados no art. 32 da LUC.” (4º§ da parte II.B.4.5. do AUJ).
Ou seja, para este AUJ, os casos de revogação com justa causa nem sequer estão abrangidos pela previsão do art. 32 da LUCh, pelo que, nestes casos, é possível revogar o cheque mesmo durante o prazo de apresentação do cheque a pagamento.
E é isto que o STJ tem entendido.
Assim:
O ac. do STJ de 29/04/2010 (4511/07.9TBLRA.C1.S1 – só se transcrevem os pontos dos sumário que tenham interesse para a questão que está aqui em causa):
I - O Acórdão do STJ n.º 4/2008, de 28/02, distingue nitidamente duas situações, a revogação pura e simples (sem qualquer justificação) do cheque, durante o período de apresentação a pagamento, e as situações de “revogação” por justa causa, havendo nestes casos uma proibição legítima de pagamento do cheque, que não pode ser negada.
II - O art. 32.º da LUCh, sem proibir, comina com a ineficácia a revogação pura e simples, pelo que, não produzindo efeitos a revogação do sacador, o banco sacado não pode recusar o pagamento durante esse período; se o fizer está a conferir efeitos a um acto que a lei expressamente diz não os produzir, sendo ilegal a recusa do sacado em pagar o cheque ao portador.
III - Porém, certas situações concretas, como o furto do cheque, o seu extravio ou falsificação ou mesmo qualquer outra situação que afecte a vontade da emissão ou entrega do cheque ao portador, justifica ou legitima a proibição do pagamento transmitida ao banco sacado pelo sacador, e que o banco tem de cumprir, mesmo que a ordem de proibição surja durante o período de pagamento.
[…]
VI - Haverá motivo justificado se o cheque foi roubado ou furtado, se se extravia, se foi falsificado ou, em geral, se se encontra na posse de terceiro em consequência de acto fraudulento ou apropriação ilegítima (cf. § único do art. 14.º do Decreto n.º 13.004 – outra disposição cuja vigência também não é pacífica – e o art. 8.º, n.º 3, do DL n.º 454/91, de 28-12, alterado pelo DL n.º 316/97, 19-11).
VII - Mais abrangente, parece o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI) – Instrução n.º 125/96 –, que aceita como motivo justificado para a recusa de pagamento do cheque, além das situações referidas, também a coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade, exigindo, porém, que o motivo do não pagamento seja indicado pelo sacador no verso do cheque.
O ac. do STJ de 13/07/2010 (5478/07.9TVLSB.L1.S1):
I - O pagamento do cheque não pode ser impedido, por revogação, durante o prazo de apresentação, sendo ineficaz a ordem enquanto esse prazo não findar (art. 32.º da LUCh).
II - Revogar um cheque é, simplesmente, proibir o seu pagamento; dá-lo como não emitido. O sacador do cheque, depois de o fazer entrar em circulação, dá ordem ao banqueiro para que não o pague.
III - O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, de 28-02-2008, proferido pelo STJ (publicado no DR 67, Série I, de 04-04-2008) […], não se refere, na sua parte decisória, à hipótese de invocação de extravio, que não é uma situação que caiba no conceito de revogação.
IV - Compaginada a redacção daquele art. 32.º com a do art. 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912 – que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (al. a) do art. 16.º do Anexo II) –, conclui-se que, do âmbito da previsão daquele normativo estão excluídos os casos de extravio, furto e outros de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.
V - O dito acórdão uniformizador de 2008 excluiu a sua aplicação àquelas hipóteses, que considerou distintas das de revogação propriamente dita, decidindo que tais casos, embora muitas vezes referenciados – por o titular da conta, com a sua comunicação ao Banco, ter criado uma aparência de revogação –, como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do art. 32.º da LUCh, não decorrendo por isso desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques nessas hipóteses pelo sacado.
O ac. do STJ de 12/10/2010 (2336/07.0TBPNF.L1.S1):
IV - A revogação do cheque pelo subscritor só justifica o seu não pagamento pelo sacado se tiver na sua base uma causa justificativa que, como tal, devem considerar-se os casos de furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental, ou qualquer outra situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade, porquanto só uma recusa motivada e não a mera recusa que se apresente, externamente, desprovida da intencionalidade vinculada pela lei se mostra, normativamente, fundamentada.
Neste sentido, vejam-se, por exemplo, também os acs. do TRL de 19/05/2011 (2978/08.7TJLSB.L1-6) e do TRP de 17/09/2012 (472/10.5TVPRT.P1).
*
Isto tudo para dizer que não basta dizer-se que o autor/sacador cancelou o cheque para se poder concluir que ele cometeu um acto ilícito civil. Precisava-se, para o efeito, de saber em que termos é que ele fez o cancelamento (questões que se colocam normalmente nas relações entre o sacador e o banco, ou nas relações entre o banco e o tomador do cheque, mas que não estão em causa nestes autos).
Por outro lado, os factos que estão provados nos autos permitiam ao autor revogar a ordem de pagamento do cheque, pois que o autor não tinha querido pagar a dívida de terceiro, mas sim a sua dívida. Um erro de execução ou um incumprimento imperfeito, por parte da ré, do seu dever secundário de destinar o cheque ao pagamento da dívida do autor, conforme determinado por este, levou-a a dar origem a uma aparência de uma manifestação de vontade do autor no sentido de destinar o cheque a pagamento da dívida de terceiro. Ora, o autor tinha o direito de tentar obstar a que fosse dado execução a essa aparência de acto jurídico, por inexistente (arts. 246 e 295 do CC). Podia pois comunicar ao banco a revogação do cheque por falta da sua vontade da manifestação aparentemente criada pela ré.
* Da devolução do cheque - continuação
Tendo-se concluído que o autor podia revogar o cheque sem cometer nenhum acto ilícito, que o autor tinha contactado a ré, via telefone, dando-lhe conta dos lapsos verificados (facto 5) e que a ré, mesmo assim, 21 dias depois, enviou uma carta ao autor em que o ameaçava com a apresentação de uma queixa crime se no prazo de oito dias não fosse liquidado o cheque (facto 7), sabendo o autor que se o cheque fosse pago ia servir para o pagamento da dívida que não era sua (factos 7, 9 e 11), conclui-se que, o autor tinha toda a razão em querer que o cheque lhe fosse devolvido, nem que mais não fosse para que a ré não apresentasse queixa crime contra ele com base no mesmo ou para que não o pudesse utilizar como título executivo, cambiário ou quirógrafo. E como o cheque não tinha sido utilizado pela ré para o fim que o autor o tinha destinado, a ré não tinha qualquer razão para o manter em seu poder.
Diz a ré, na contestação, que nunca poderia devolver o cheque, pois este constituiu-se como título executivo, no âmbito do procedimento de injunção, aliás, como nem poderia deixar de ser. Mas já se viu que sem razão, pois que a ré tinha destinado o cheque ao pagamento da dívida de terceiro, pelo que, executando-o, estava a exigir ao autor que pagasse uma dívida que não lhe dizia respeito.
Por fim, e como é sugerido pelo autor na conclusão 18ª, se a ré entende que o cheque estava a titular parte da obrigação do autor e se admite que a dívida em causa já estava toda paga há quase 5 anos na data da contestação (facto 13), sempre o título teria que ser restituído ao autor (art. 788/1 do CC).
Em suma, não existe qualquer razão para que a ré continue na posse do cheque. Pelo que o deve devolver e como se recusa a fazê-lo deve ser condenada no pedido.
* Dos danos
Por fim, na conclusão 19ª, o autor coloca a questão da indemnização dos danos. Quanto a isto a sentença, depois da parte transcrita acima quanto à improcedência do pedido de devolução do cheque, diz o seguinte:
“Sendo esta a solução conferida ao pedido principal, aqueles feitos pelo autor quanto aos danos também não podem proceder, por não estar reconhecida à ré qualquer obrigação de indemnizar.
De qualquer forma, tendo em conta a factualidade apurada nos autos, também confrontada com a que não resultou provada, há que dizer que não logrou o autor demonstrar a existência de quaisquer danos, quer quanto a danos patrimoniais, quer quanto a não patrimoniais.”
*
Quanto aos danos:
O autor coloca a questão, no recurso, com referência aos danos que resultariam da falta de cumprimento do dever de devolver o cheque. O autor não diz, no recurso, quais são esses danos. Mas também não eram esses os danos que o autor pedia na acção, como se vê do resumo feito acima no relatório deste acórdão.
Daquilo tudo que o autor alegava na petição inicial como fundamento do seu pedido de danos, quase nada se provou. No despacho que fixou os factos provados e não provados disse-se, sem recurso do autor, que não existiam outros factos provados, fazendo-se referência, ‘designadamente’, a três artigos da petição inicial, e acrescentou-se que o resto era matéria instrumental, conclusiva e ou alegação de direito.
Quanto aos factos que poderiam ser enquadrados em danos patrimoniais, poderia dizer-se, com base nos factos provados – e são só estes que contam… - que o autor terá feito um telefonema à ré, uma deslocação ou telefonema à ré e uma deslocação ou telefonema ao Banco (factos 5 e 6). Dada a existência do processo e de uma nomeação de advogada em apoio judiciário (com dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação do patrono), pode-se ainda aceitar que o autor terá feito algumas diligências para o efeito. Mas isto é tudo e é pouco para que se possa sequer começar a falar de um prejuízo patrimonial, porque não há prova de qualquer despesa efectiva (mesmo as chamadas telefónicas podem estar englobadas num serviço que as torne grátis se forem locais).
Ou seja, não há danos patrimoniais a considerar.
* Quanto àquilo que pode ser enquadrado em danos morais:
Depois de a ré ter destinado o cheque do autor ao pagamento da conta de terceiro e de ter sido chamada a atenção para o lapso (factos 3, 5 e 11) – quando estava em tempo para de o remediar, já que a chamada de atenção ocorreu no dia seguinte e não se colocavam questões de enriquecimento sem causa porque o cheque ainda não tinha sido pago -, em vez de remediar a situação, envia uma carta ao autor com uma ameaça de queixa-crime se este não pagasse o cheque que, na própria carta, se diz destinado ao pagamento da dívida do telefone de um terceiro (facto 7).
A ameaça de uma queixa-crime implica, por parte do seu agente, a imputação da prática de um crime ao denunciado. Equivale a tratá-lo como um criminoso. Não tendo a ré qualquer razão nessa imputação e não podendo deixar de o saber, tal imputação é uma ofensa à honra e consideração social do denunciado. E, no caso, é, para além disso, um meio de pressão para o fazer pagar uma dívida de terceiro, ou seja, um meio que se destina a perturbar com gravidade a liberdade de acção do denunciado (pois que se não for assim não servirá de meio compulsório) para o levar à prática de um acto que lhe vai causar prejuízo patrimonial.
Ora estas consequências são danos não patrimoniais, já que correspondem naturalmente a lesões em direitos de personalidade do autor: na sua personalidade moral, onde se integram, entre outros, os valores da liberdade, entendida também como liberdade de agir, e da honra, enquanto projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, abrangendo a projecção do valor da dignidade humana, o bom nome e a reputação, o decoro e o crédito pessoal (arts. 70 e 484, ambos do CC e R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, págs. 266, 301 a 307) e são suficientemente graves para merecer a tutela do direito (art. 496/1 do CC).
É certo que se podia dar o caso excepcional de tal insulto implícito e de tal ameaça explícita não terem produzido as consequências que necessariamente provocariam, em circunstâncias normais, na esfera de uma pessoa normal. Mas então caberia à ré alegar e provar os factos que permitissem enquadrar o caso na excepcionalidade. Um pai que perde um filho não tem de provar, na acção em que pede indemnização, os respectivos danos morais. O lesado que sofreu lesões corporais não tem de provar que sofreu dores. É ao lesante que cabe provar factos que levem a concluir o contrário.
*
Note-se que não há outras consequências a este nível, já que o facto de a ré ter, na sequência da falta de pagamento na conta mencionada em 9 e de vários planos de pagamento não cumpridos, intentado contra o autor um procedimento de injunção (facto 12), não pode ter provocado danos não patrimoniais ao autor. Pois que, se esse procedimento de injunção implica que a ré está a dizer que o autor não pagou uma dívida, isso não deixa, aí, de ser verdade, já que não são os 60€ do cheque que aí estão em causa, mas um valor superior (facto 10), de 2004/2005 (facto 13), que o autor só veio a liquidar em 08/01/2007 (facto 13).
* Dos outros pressupostos da responsabilidade civil
Existindo danos, importa saber se se verificam os outros pressupostos da responsabilidade civil, isto é, um acto ilícito, o nexo de imputação do acto ao agente, e um outro nexo, agora de causalidade adequada, entre o acto ilícito e os danos (art. 483/1 e 563/1, ambos do CC).
O acto ilícito é, no caso, a violação, pela ré, do modo descrito acima, dos direitos de personalidade do autor (arts. 70 e 484, ambos do CC), direitos absolutos e que por isso cabem na previsão da 1ª alternativa do art. 483/1 do CC. A pressão exercida sobre a liberdade do autor, com a ameaça ilícita de queixa-crime, integra ainda especificamente a coacção moral nos termos definidos pelo art. 255 do CC (ameaça de um mal com o fim de obter do ameaçado, determinado pelo receio do mal, a prática de um acto contrário aos interesses deste, já que o cheque não tinha sido destinado ao pagamento da dívida de terceiro).
O nexo psicológico entre o facto praticado e a vontade da ré, ou culpa, que exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente (Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª edição, Almedina, 1998, págs. 586/587), decorre do facto de ter sido a ré a cometer o erro de destinar o cheque ao pagamento da dívida de terceiro e, já depois de informada do lapso, ter aproveitado o facto de ter nas mãos um cheque sem provisão para exercer pressão sobre o autor com a ameaça de uma queixa-crime para que pagasse aquela dívida de terceiro. Mesmo que se admita que todos estes actos possam ter sido praticados por erro, estaremos nesta hipótese perante o grau de negligência mais grave, já que mesmo uma pessoa de pouca diligência, não faria o que a ré fez. Essa pessoa, mesmo que minimamente diligente, se fosse chamada a atenção para o erro, não faria mais nada, isto é, não agravaria a sua conduta negligente com a prática de um novo erro. Já uma pessoa medianamente diligente tentaria remediar a situação, de modo a evitar que esta pudesse continuar a prejudicar a vítima do lapso.
E como aquilo que acima se considerou danos são os efeitos necessários da conduta da ré, está verificado o nexo causal entre eles e esta. “O facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do facto, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto” (Antunes Varela, obra citada, págs. 919, 920 e 930). Culpa da ré
Importa, por fim, esclarecer que quando se falou na conduta e na culpa da ré, teve-se em conta que esta age através das pessoas dos seus empregados, organizados em serviços da mesma. Mas é à ré que têm que ser imputados os actos destas, porque é ela que tem que organizar os seus serviços de modo a que estes não ajam desta forma (arts. 165 e 500, ambos do CC). E mesmo que a conduta não pudesse ser imputada em concreto a nenhum dos empregados da ré, isso não afastaria a responsabilidade dela, a título de culpa de organização (presumida, por aplicação do disposto no art. 493/1 do CC).
O que se retira, entre o mais, do artigo de J. Sinde Monteiro, Ofensa ao crédito ou ao bom nome, "culpa de organização" e responsabilidade da empresa, publicado na Revista de legislação e jurisprudência, ano 139.º, 3959 (publicado em Maio 2010, mas de Nov/Dez de 2009), onde se defende uma responsabilidade do titular da empresa por culpa de organização (dever, delitualmente relevante, de organizar internamente a própria esfera jurídica de molde a, na medida do possível, evitar a causação de danos a terceiros, ou seja, uma culpa de organização empresarial); “culpa de organização” que aparece noutros autores; por exemplo, a propósito do desconhecimento das declarações chegadas ao poder do receptor, Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Almedina, 1995, fala na culpa da organização (págs. 684 e 712 e nota 8 da pág. 738: trata-se de riscos específicos de uma organização comercial com divisão do trabalho, que não devem ser transferidos para a outra parte); Marcelo Rebelo de Sousa, Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização? Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, 1996, 147 a 185, que prefere a expressão ilícito de serviço; Diogo Pereira Duarte, Aspectos do Levantamento da Personalidade Colectiva nas Sociedades em Relação de Domínio - Contributo para a Determinação do Regime da Empresa Plurissocietária, Almedina, 2007, quando defende “a autoria mediata por domínio da organização”; Carolina Cunha, Letras e livranças, Paradigmas actuais e recompreensão de um regime, Almedina, Março de 2012, quando defende que cabe à instituição organizar-se de forma a que situações anómalas ou suspeitas sejam detectadas e se tomem as medidas convenientes para as esclarecer (pág. 591, nota); Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil delitual por facto de terceiro, Coimbra Editora, Maio de 2009, quando se refere à teoria da “culpa pela organização” (págs 197 a 201).
* O valor da indemnização
Estão assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil assacada à ré, faltando determinar o respectivo montante.
“O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º […]” (art. 496/1 do CC); ou seja, “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.” (art. 494 do CC).
"A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista; por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente" (Antunes Varela, obra citada, pag. 630).
A culpa da ré, já se viu, é grave; a sua situação económica é a de uma grande empresa; a situação económica do autor é a de alguém que necessita de apoio judiciário (o que não foi posto em causa adequadamente pela ré, apesar do que ela diz na contestação). Os danos são reduzidos à esfera íntima do autor (já que não há notícia de que terceiros tenham tido conhecimento dela). As consequências deste tipo de ofensas - perante a ameaça da queixa-crime, com o insulto implícito -, limitam-se normalmente a um curto período.
No caso do ac. do TRP de 10/02/2000 (publicado na CJ.2000.I, pág. 215) atribuíram-se 5000€ de indemnização numa situação em que houve vexame público sucessivo por 3 vezes, e um período de cerca de 2 meses de inclusão numa lista pública de devedores que oferecem risco.
Considera-se que a situação dos autos é muito menos grave que a descrita neste caso e por isso que o valor de 500€ é suficiente como compensação dos danos sofridos pelo autor.
* Sumário(da responsabilidade do relator):
(…)
* Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando-se o ponto 11 dos factos provados nos termos referidos acima e condenando-se a ré a devolver ao autor o cheque ... e a pagar-lhe a indemnização de 500€ pelos danos não patrimoniais.
Custas pelo autor e pela ré, na acção e no recurso, na proporção do decaimento e sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor.
Lisboa, 21/02/2013.
Pedro Martins
Eduardo José Oliveira Azevedo
Lúcia Sousa