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ADVOGADO
SOLICITADOR
PATROCÍNIO JUDICIÁRIO
CÔNJUGE
Sumário
I- O nº 7 do art. 1º da Lei nº 49/2004, de 24.8, ao procurar definir o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados e solicitadores, não exclui desse elenco aqueles actos que sejam praticados por esses advogados e solicitadores na defesa de interesses próprios, ainda que sujeitos aos limites previstos no Estatuto e na legislação processual; II- Não havendo conflito de interesses que o desaconselhe, nada obsta que os autores numa causa, mulher e marido: se façam ambos patrocinar pela primeira que é também advogada; ou se façam patrocinar por um outro mandatário judicial que aos dois represente; ou, ainda, se faça cada um deles representar por diferente mandatário, no que sempre caberá a possibilidade do A. marido conferir o patrocínio à co-A. que é também advogada. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I- Relatório:
M. A…, advogada, instaurou acção declarativa de condenação contra M. R…, pedindo, em síntese, a declaração e o reconhecimento de que determinado logradouro, que descreve, integra o prédio de sua pertença sito nas A…, na Rua …, nº … e ..do nº …, o direito a gozá-lo de modo pleno e exclusivo, a condenação do R. a reconhecer esse seu direito e a abster-se da prática de actos que perturbem tal exercício, pagando ainda uma indemnização de € 50,00 diários caso, por si ou por interposta pessoa, insista na perturbação desse mesmo direito. A demandante subscreveu a referida petição inicial sob a indicação “A Autora e Advogada”.
Por despacho de 28... (fls. 26 deste apenso), foi aquela autora convidada a constituir advogado que a patrocinasse com o fundamento de que “Atento o disposto no art. 61º do Estatuto da Ordem dos Advogados, conjugado com o art. 1º, nºs 1 e 7, da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, deixou de ser permitido o exercício da advocacia em causa própria.”
Tendo sido, entretanto, por despacho de 9.3.2012, admitida a intervenção principal, requerida pelo R., do marido da A., M. L…, como associado desta, veio o referido interveniente, em 11.5.2012, apresentar requerimento nos autos declarando aceitar o chamamento e fazer seus os articulados da A.. Junta este, além do mais, procuração forense outorgada a favor da advogada sua mulher e A. na acção (fls. 42 deste apenso), que é quem subscreve, nessa qualidade, o aludido requerimento.
Em 19.10.2012, conforme consta de fls. 45 deste apenso, foi proferido o seguinte despacho: “Na sequência do despacho que deferiu as intervenções principais e acessórias requeridas pelo réu M. R…, foram as mesmas citadas e nessa medida vieram apresentar ou as suas adesões aos articulados que já constavam dos autos ou, ao invés, opor-se à sua requerida intervenção. No que concerne à intervenção principal deM. L…, casado com a autora M. A.., constata-se que veio o mesmo, após ser citado, fazer seus os articulados já apresentados pela sua mulher, constituindo-a como sua Mandatária. Ora, em primeiro lugar, cumpre desde já referir que a autora não poderá assumir simultaneamente a qualidade de parte no processo e de mandatária do seu marido, também ele autor nos presentes autos. Com efeito, a posição de parte não se mostra compatível com a de Mandatária de uma co-parte. Assim, notifique o autor M. L… de que deverá vir, no prazo de 10 dias, constituir novo Mandatário, ratificando o processado. Notifique.”
Inconformado, interpôs recurso o intervenienteM. L…, apresentando as respectivas alegações que culmina com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“
1. Nos presentes autos foi admitida a intervenção principal provocada do Recorrente, marido da Autora – Reconvinda, como associado desta, em listisconsórcio necessário nos termos do artigo 325º do CPC, atenta a Reconvenção deduzida, tendo o Recorrente apresentado a sua adesão fazendo seus os articulados da sua mulher, que é advogada, a quem constituiu mandatária;
2. A A. mulher do Autor, e co-autora, tem mandatário constituído não havendo impedimento legal a que as co-partes sejam representadas por diferentes mandatários.
3. No despacho recorrido o Tribunal determinou que a Autora não poderá assumir simultaneamente a qualidade de parte no processo e de mandatária do seu marido, também ele Autor nos presentes autos, dado a posição de parte não se mostrar compatível com a de Mandatária de uma co-parte, e notificou o Recorrente de que deveria vir, no prazo de 10 dias, constituir novo Mandatário, ratificando o processado;
4. Nos termos conjugados dos art.º 668º/1, alínea b), aplicável por força do art.º 666º do C.P.Civil, o despacho recorrido está ferido de nulidade porque nele não se especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
5. E, a razão que é invocada para notificar o Recorrente para constituir novo mandatário, embora sem qualquer base legal a alicerça-la, e que não consubstancia a especificação da fundamentação de facto e de direito exigida pelo art.º 668º/1, alínea b), do CPC., é a de que este interveio nos autos fazendo seus os articulados da sua mulher, também Autora, ora esta razão deveria ter levado a uma decisão diversa da proferida, porque é exactamente por este motivo, o de que fez seus os articulados da sua mulher, que a pode constituir como sua mandatária, não o podendo fazer caso não tivesse aderido aos seus articulados;
6. Pelo que, a considerar-se que o despacho está fundamentado, sempre os fundamentos invocados estarão em oposição com a decisão, violando assim o mesmo o art.º 668º/1, alínea c) do CPC.
7. No presente caso não existe conflito de interesses entre o Recorrente e a sua mulher, sendo este o único motivo que seria fundamento legal para a sua mulher, na qualidade de co-parte, não o poder representar porque para tal estaria impedida, de acordo com o art. 94º do EOA (conflito de interesses) Vide PARECER Nº 20/PP/2008-P da O.A.
8. Nos termos do art.º 62 º, n.º 2, do E.O.A. o mandato forense não pode ser objecto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha pessoal e livre do mandatário pelo mandante.
9. Tem assim o Recorrente direito a escolher a sua mulher, que é advogada, como sua mandatária, para o representar em juízo, não lhe podendo ser coarctado esse direito por ela ser co-parte na acção, dada a inexistência de conflito de interesses entre ambos;
10. O estatuto da Ordem dos Advogados, na sua versão anterior (Dec-Lei n.º 84/84) estabelecia no seu ARTIGO 164º (Competência dos estagiários) “1. Durante o primeiro período do estágio, o estagiário não pode praticar actos próprios das profissões de advogado ou de solicitador judicial senão em causa própria ou do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.” não havendo nenhum preceito que, regulamentasse, especificadamente, que os advogados podiam litigar em causa própria, ou do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes sem qualquer limitação, por se considerar que era pacífico este entendimento.
11. No actual Estatuto da Ordem dos Advogados este preceito só deixou de existir porque os advogados estagiários deixaram de ter competência para advogar, não podendo ser entendido que desta alteração legislativa decorria que os advogados tivessem deixado de poder advogar em causa própria, ou do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes, dado que este direito decorre da sua profissão.
12. Entendimento que, a existir, se traduziria numa clara, evidente e gritante VIOLAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA. NA SUA GLOBALIDADE;
13. Tanto mais que, preceitua o Estatuto doa Magistrados Judiciais CAPÍTULO II - DEVERES, INCOMPATIBILIDADES, DIREITOS E REGALIAS DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS, no seu Artigo 19.º (Exercício da advocacia) “Os magistrados judiciais podem advogar em causa própria, do seu cônjuge ou descendente”, sem limitação do tipo de processos, pelo que, por maioria de razão, se os magistrados têm este direito/competência, também os advogados, com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, como é o caso, poderão advogar em causa própria, do seu cônjuge ou descendente, sem limitação do tipo de processos em que intervenham, mesmo que sejam co-partes nos mesmos, desde que não violem as regras previstas no E.O.A, que regulamentam o conflito de interesses entre as partes.
14. Sendo inadmissível a interpretação da lei no sentido de que os magistrados judiciais pudessem advogar em causa própria, do seu cônjuge ou descendente, sem limitações quanto à sua qualidade como parte, ou quanto ao tipo de processos em que intervém, porque o seu estatuto lhes dá esse direito, e os advogados, nem situações idênticas, se vissem proibidos de o fazer porque o seu Estatuto não o diz expressamente, quando esta omissão resultou, directa e necessariamente, da desnecessidade de o fazer constar dada a sua evidência;
Termos em que, para além do que V.Ex.as doutamente suprirão
Violou o despacho recorrido o preceituado nos artigos 668º/1 alíneas b) e c) do CPC e o art.º 62 º, n.º 2 do E.O.A.”
Pede a procedência do recurso e a revogação do decidido, mantendo-se a co-A. como advogada do recorrente.
Não se mostram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e em separado, e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentos de Facto: A factualidade a considerar para a apreciação do presente recurso é a que resulta do relatório supra.
***
III- Fundamentos de Direito:
Cumpre apreciar do objecto do recurso.
À luz do novo regime aplicável aos recursos (aprovado pelo DL nº 303/07, de 24.8), tal como antes sucedia, são as conclusões que delimitam o respectivo âmbito (cfr. arts. 684, nº 3, e 685-A, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (art. 660, nº 2, “ex vi” do art. 713, nº 2, do mesmo C.P.C.).
Compulsadas as conclusões acima transcritas, cumpre apreciar:
- da nulidade do despacho;
- se a A., enquanto advogada, pode patrocinar o co-autor seu marido.
A) Da nulidade do despacho:
Defende o apelante, em primeiro lugar, a nulidade do despacho recorrido, ao abrigo do disposto no art. 668, nº 1, als. b) e c), do C.P.C., sustentando, em súmula, que o mesmo não especifica os fundamentos “de facto e de direito” que o suportam e que, em qualquer caso, as razões apontadas deveriam ter conduzido a decisão diversa da proferida.
Apreciando.
As nulidades da decisão encontram-se previstas no art. 668 do C.P.C. e constituem deficiências da sentença ou do despacho (art. 666, nº 3, do C.P.C.) que não podem confundir-se com o erro de julgamento. Este traduz-se numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável, o tribunal fundamenta a decisão mas decide mal, resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito([1]).
Já no que toca às nulidades da decisão, encontram-se as mesmas legalmente consagradas. Como se resumiu no Ac. RL de 10.5.1995([2]), “As nulidades da sentença estão limitadas aos casos previstos nas diversas alíneas do nº 1 do art. 668 do C.P.C.. Não se verificando nenhuma das causas previstas naquele número pode haver uma sentença com um ou vários erros de julgamento, mas o que não haverá é nulidade da decisão.”
Assim, a sentença será nula apenas quando: “a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido. f) Seja omissa no que respeita à fixação da responsabilidade por custas, nos termos do nº 4 do art. 659.” (art. 668, nº 1, do C.P.C., na redacção aplicável ao caso).
A sentença será, por isso, nula quando, designadamente, não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (art. 668, nº 1, al. b), do C.P.C.). A razão de ser da sanção da nulidade neste caso é a circunstância da motivação, quer de facto quer de direito, constituir pilar essencial da sentença.
Como explica J. Alberto dos Reis a tal propósito: “Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; é indispensável que produza as razões em que se apoia o seu veredicto. A sentença, como peça jurídica, vale o que valerem os seus fundamentos.” E, mais adiante: “O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do nº 2 do art. 668º.” E ainda mais à frente: “Pelo que respeita aos fundamentos de direito, não é forçoso que o juiz cite os textos de lei que abonam o seu julgado; basta que aponte a doutrina legal ou os princípios jurídicos em que se baseou.”([3])
No caso, e em face do que se deixa dito, temos de concluir que não pode falar-se na ausência de fundamentação.
Quanto à fundamentação de facto, é manifesto que o Tribunal a quo enquadrou, de forma correcta e suficiente, a circunstância de facto em que assenta a decisão. Com efeito, começou por dizer-se no dito despacho que o ora recorrente, MJVML, foi chamado a intervir na causa pelo réu na acção, que tal chamamento foi admitido e que o mesmo é casado com a demandante M. A…, advogada. Depois, refere-se que o chamado interveio na causa fazendo seus os articulados já apresentados pela sua mulher, constituindo-a como sua mandatária.
Por outro lado, não há dúvida de que o despacho contém a razão de direito que o motiva: “a autora não poderá assumir simultaneamente a qualidade de parte no processo e de mandatária do seu marido, também ele autor nos presentes autos” e “a posição de parte não se mostra compatível com a de Mandatária de uma co-parte”. Ou seja, a decisão encontra-se juridicamente justificada com a circunstância da A. não poder ser, em simultâneo, parte na acção e advogada de uma co-parte, por incompatibilidade. Como acima se assinalou, citando-se Alberto dos Reis, a fundamentação de direito não implica a menção dos normativos correspondentes, bastando que se aponte a doutrina legal ou os princípios jurídicos em que se baseou. Assim, apesar de não serem citadas normas legais, o despacho recorrido contém o princípio jurídico que se entendeu convocar.
Não se alcança, em síntese, qual a matéria de facto omitida que haveria de justificar a decisão nem a ausência das regras de direito que foram aplicadas pelo julgador.
Inexiste, pois, a nulidade a que se refere a al. b) do nº 1 do art. 668 do C.P.C..
O mesmo sucede quanto à nulidade a que se refere a al. c) do nº 1 do mesmo artigo. Não existe, como se alega, qualquer contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.
Segundo o apelante, invocando-se no despacho que o interveniente declarou fazer seus os articulados da mulher co-autora, tinha de concluir-se, pelo contrário, não existir qualquer incompatibilidade de posições.
O raciocínio é vicioso e encerra uma efectiva discordância quanto ao sentido da decisão.
Na verdade, o despacho sustenta-se numa posição jurídica da Srª Juiz que tem que ver com a interpretação do próprio Estatuto da Ordem dos Advogados e com o exercício da advocacia. Na perspectiva do Tribunal a quo, o advogado não pode intervir por si em causa própria, ainda que em processo civil, e não pode, em simultâneo, ser parte e advogado de outrem numa mesma acção. Nesta lógica, a conclusão é a adequada.
A questão não pode, pois, colocar-se quanto à deficiência formal da decisão sob recurso mas apenas na perspectiva do eventual erro do juízo formulado. Não se descortina, por isso, a assinalada contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos da al. c) do nº 1 do art. 668 do C.P.C..
Inexistem, por conseguinte, as nulidades arguidas.
B) Se a A., enquanto advogada, pode patrocinar o co-autor seu marido:
A questão fulcral do recurso diz respeito à aludida incompatibilidade entre as posições de parte e de advogado numa mesma causa, o que nos impõe uma análise cuidadosa do Estatuto da Ordem dos Advogados e dos princípios gerais quanto ao exercício da advocacia na nossa ordem jurídica.
Muito embora o despacho impugnado seja aquele que consta de fls. 45 deste apenso e que acima foi reproduzido, pensamos que a questão não poderá deixar de passar, ainda que de forma necessariamente breve, pela consideração feita no anterior despacho de 28.10.2011 (fls. 26 deste apenso) no sentido de que em face do disposto no art. 61 do E.O.A., conjugado com o art. 1, nºs 1 e 7, da Lei nº 49/2004, de 24.8, deixou de ser permitido o exercício da advocacia em causa própria.
Com o devido respeito, não podemos acompanhar tal entendimento.
O art. 61 do E.O.A., aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26.1, dispõe sobre o exercício da advocacia em território nacional, estabelecendo que: “1. Sem prejuízo do disposto no artigo 198.º, só os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar actos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto. 2. Os actos praticados por advogado através de documento só são reconhecidos como tal se por ele forem assinados ou certificados nos termos que vierem a ser definidos pela Ordem dos Advogados. 3. O mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza.”
Por seu turno, a Lei nº 49/2004, de 24.8, mencionada no nº 1 do normativo transcrito, define o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados e solicitadores, tipificando o crime de procuradoria ilícita. De acordo com o art. 1, nº 1, desta Lei, “Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores” e, de acordo com o nº 7, “Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei”.
A referência ao “interesse de terceiros” constante deste nº 7 não pode ter, no entanto, o sentido que lhe foi atribuído em 1ª instância.
Com efeito, a Lei nº 49/2004, de 24.8, é contemporânea do E.O.A. aprovado pelo DL nº 84/84, de 16.3([4]), e apenas revogou expressamente os arts. 53 e 54 do referido Estatuto (ver art. 12), mantendo, designadamente, em vigor o nº 1 do art. 164 respectivo, segundo o qual “Durante o primeiro período de estágio, o estagiário não pode praticar actos próprios das profissões de advogado ou de solicitador judicial senão em causa própria ou do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.”([5])
Daqui temos de retirar que a entrada em vigor da mencionada Lei nº 49/2004 não veio pôr em crise a regra geral, pacifica e amplamente aceite, de que os inscritos na Ordem dos Advogados podem advogar em causa própria, sem prejuízo de entendimentos mais limitativos no domínio processual penal, tendo em conta a natureza dos interesses em litígio e a defesa deles([6]).
Se assim é, parece evidente que a remissão feita no actual art. 61 do E.O.A. para a Lei nº 49/2004 nada de novo pode trazer ao princípio geral referido.
De resto, continua a discutir-se na mais recente jurisprudência a questão da representação (arguido ou assistente) por advogado na jurisdição penal assente na mencionada natureza dos interesses aí prosseguidos([7]) e não na ideia de que o actual E.O.A. passou a proibir genericamente o exercício da advocacia em causa própria([8]).
Também a Ordem dos Advogados continua a apoiar-se no princípio regra de que os inscritos na Ordem dos Advogados podem advogar em causa própria([9]).
No processo civil, por outro lado, não resulta do art. 32, quando obriga à constituição de advogado, que um advogado se agir em causa própria esteja obrigado a constituir como mandatário judicial outro advogado([10]).
Afigura-se-nos, pois, que a Lei nº 49/2004 se destinou, no essencial, a definir as condições subjectivas para o exercício da actividade própria dos advogados e solicitadores, assente na licenciatura em Direito e na inscrição, obrigatória e em vigor, na Ordem ou Câmara respectiva, no pressuposto que só tais condições asseguram a qualificação, a aptidão e o cabal cumprimento dos deveres deontológicos a que devem estar sujeitos todos os que desenvolvem tais funções. Previu, ao mesmo tempo e dentro da referida lógica, consequências especiais para a violação das regras consagradas.
Desse modo e nesse pressuposto, o acima indicado nº 7 do art. 1º da Lei nº 49/2004, ao procurar definir o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados e solicitadores, não exclui desse elenco aqueles actos que sejam praticados por esses advogados e solicitadores na defesa de interesses próprios, ainda que sujeitos aos limites previstos no Estatuto e na legislação processual([11]).
Só esta interpretação é, afinal, ainda compatível, conforme refere o recorrente, com as competências atribuídas, designadamente, aos magistrados judiciais e do M.P. de poderem advogar em causa própria, do seu cônjuge ou descendente (ver art. 19 do Estatuto dos Magistrados Judiciais e art. 93 do Estatuto do Ministério Público), pois mal se compreenderia que, nas mesmas circunstâncias, os advogados se vissem genericamente impedidos de o fazer.
Embora a questão, repetimos, não seja impugnada no recurso, impunha-se fazer esta reflexão para melhor entender a solução relativa à sustentada incompatibilidade entre a posição de parte e de advogada de uma co-parte.
Afirma-se no despacho recorrido que “a autora não poderá assumir simultaneamente a qualidade de parte no processo e de mandatária do seu marido, também ele autor nos presentes autos” e que “a posição de parte não se mostra compatível com a de Mandatária de uma co-parte”.
Mais uma vez, e salvo o devido respeito, não concordamos.
Como vimos, o ora apelante, M. L…, admitido a intervir nos autos como associado da A., sua mulher, uma vez citado veio apresentar requerimento declarando aceitar o chamamento e fazer seus os articulados daquela A..
Daqui decorre que não se vislumbra existir, em concreto e pelo menos neste momento, qualquer conflito de interesses entre ambos que desaconselhe, ao abrigo do art. 94 do E.O.A., o patrocínio de um deles pelo outro que é também advogado.
Do mesmo modo, não resulta dos autos, face ao disposto nos arts. 76 a 78 do mesmo E.O.A., haver incompatibilidade ou impedimento no exercício, pela advogada A., da defesa dos direitos e interesses que lhe foram confiados pelo co-A. seu marido.
Por último, os arts. 32 e seguintes do C.P.C. não obstam, em tese, à solução de que uma das partes na causa constitua como seu mandatário o advogado que é co-parte na mesma acção.
Acresce que, por força dos arts. 61, nº 3, 62, nº 2, e 64 do E.O.A., o mandante tem direito a escolher livremente o seu mandatário forense e este, desde que obedeça às condições estatutárias impostas, não pode, por qualquer modo, ser impedido de praticar os actos próprios da advocacia.
Por conseguinte, na sequência do que atrás deixámos dito, nada se nos afigura que contrarie, em abstracto, a possibilidade dos autores, mulher e marido: se fazerem ambos patrocinar por aquele que é advogado; se fazerem patrocinar por um outro mandatário judicial que aos dois represente; ou, ainda, se fazer cada um deles representar por diferente mandatário, no que sempre caberá a possibilidade do interveniente conferir o patrocínio à co-A. que é também advogada.
De tudo resulta que o despacho recorrido não pode manter-se, cumprindo admitir que o interveniente e aqui recorrente se encontra devidamente patrocinado na acção pela advogada, co-A., a quem outorgou a procuração que consta de fls. 42 deste apenso.
***
IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Lisboa, 23.4.2013
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Roque Nogueira
--------------------- [1] cfr. Ac. RC de 15.4.2008, Proc. 1351/05.3TBCBR.C1, emwww.dgsi.pt. [2] CJ, 1995, t. 3, pág. 179. [3] “Código de Processo Civil anotado”, 1984, vol. V, págs. 139, 140 e 141. [4] Este veio, entretanto, a ser revogado pela referida Lei nº 15/2005, de 26.1. [5] O preceito não tem exacta correspondência no actual E.O.A.. No entanto, tal resulta, como bem assinala o recorrente, de se encontrar hoje regulado de forma diversa o regime de estágio. [6] Ver, a propósito, o Ac. do TC de 14.3.2007, com o nº 196/2007 (DR nº 95, II Série, de 17.5.2007), o Ac. do TC de 18.5.2006, com o nº 338/2006 (DR nº 125, II Série, de 30.6.2006), e o Ac. do TC de 17.5.2006, com o nº 325/2006 (DR nº 124, II Série, de 29.6.2006). [7] Veja-se, citando os mais recentes a título de exemplo, o Ac. do STJ de 18.4.2012, Proc. nº 172/11.9TRPRT-A.S1, o Ac. da RC de 30.3.2011, Proc. nº 2675/08.3PCCBR-A.C1, ou o Ac. da RL de 15.6.2010, Proc nº 218/08TDLSB.L1-5, disponíveis em www.dgsi.pt. [8] Encontrámos como única excepção o Ac. da RC de 13.6.2007, Proc. nº 910/06.1TBCTR.C1, disponível em www.dgsi.pt, que é citado no referido despacho de 28.10.2011 em abono da tese defendida. [9] É disso exemplo o Parecer n.º 11/PP/2009-G, de 31.8.2009, do Conselho Geral. [10] Ver o atrás citado Ac. do STJ de 18.4.2012, Proc. nº 172/11.9TRPRT-A.S1. [11] Como adiantámos, a definição interessa em especial, no âmbito do Diploma, à penalização pela prática, promoção, divulgação ou publicidade indevidas de tais actos, conforme dispõem os arts. 7 e 8 da aludida Lei n.º 49/2004.