PROPRIEDADE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

Estando em discussão a propriedade da mesma parcela de terreno, no âmbito de duas acções que correm em tribunais diferentes, ocorre motivo justificado para a suspensão da intentada em segundo lugar a fim de prevenir, por um lado, a susceptibilidade de serem proferidas decisões conflituantes e, por outro, a duplicação de diligências probatórias tendentes à dilucidação da mesma questão.

Texto Parcial

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):
R.M... e marido, A.P..., residentes em C..., propuseram acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária contra C.M... e outros, pedindo a sua condenação a reconhecerem o seu direito de propriedade exclusiva sobre um prédio urbano constituído por uma moradia sita na Quinta de … de Cima e C. C…, freguesia de …, implantada num lote de 635,50 m2 e a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe a plena fruição dos AA o prédio em causa.
Para tal invocam em síntese, a presunção derivada do registo e bem assim a aquisição fundada na usucapião, porquanto alegam ter adquirido tal lote por escritura lavrada em … de Abril de 2…, construindo nele a referida moradia e registando-o a seu favor na competente Conservatória.
Acrescentam ainda que por si e antecessores têm a posse do referido lote desde há mais de 20 anos, de modo continuado, à vista de toda a gente e no convencimento de que exercem um direito próprio.
Sucede, no entanto, que os três primeiros réus se arrogam ser donos de parte do terreno do seu lote, tendo intentado uma acção (proc. nº…) contra 113 réus, em que pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade, entre outras, também sobre parte da parcela de terreno correspondente ao seu lote e a condenação dos réus a restituírem-lha.
Contestaram os réus Á. R... e esposa para pugnar pela improcedência da acção, pedindo como questão prévia a suspensão da instância atento o nexo de prejudicialidade entre a presente acção e a que fora por eles intentada em data anterior e identificada na petição.
Contestaram também os restantes réus para invocar a excepção de litispendência ou, caso assim se não entenda, a suspensão da instância, assinalando que irão requerer a apensação dos presentes autos à acção por si intentada e que corre termos sob o nº…, porquanto se verificam para tal os legais requisitos.
No tocante ao fundo da causa, impugnam os factos invocados pelos autores para ancorar a prescrição aquisitiva e concluem pedindo a sua absolvição do pedido, com as legais consequências.
Conclusos os autos, foi proferido o seguinte despacho:
“Da apensação destes autos ao processo nº … do 3.º Juízo Cível deste Tribunal:
Os aqui Réus C.M... e outros, AA no processo n.º …, que corre termos no 3.º Juízo Cível deste Tribunal requereram, nesses autos, a apensação deste àquele processo.
Do documento junto a fls. 859 a 863 resulta que o requerimento pelo qual foi formulado o pedido de apensação foi apresentado, no processo n.º …, em 26 de Janeiro de 2012.
Da informação de fls. 891, prestada pelo 3.º Juízo Cível deste Tribunal, resulta que não foi, ainda, proferida decisão sobre o pedido de apensação.
Ora, atento o estado dos autos e o lapso de tempo já decorrido, não se afigura razoável continuar a aguardar que seja decidida a requerida apensação, impondo-se o prosseguimento destes autos, o que se determina (sem prejuízo do que, eventualmente, venha a ser decidido quanto à apensação pelo 3.º Juízo deste Tribunal).
***
(…)
Da requerida suspensão da presente instância:
(…)
“A suspensão da instância verifica-se, além do mais, quando o tribunal a ordene [cfr. artigo 276º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil], nomeadamente, porque a decisão da causa está dependente do julgamento de uma outra acção proposta (artigo 279º, n.º 1) ou a propor (nos casos previstos no artigo 97º, n.º 1 do citado preceito legal) ou, ainda, quando ocorrer outro motivo justificado.
Dispõe o n.º 1 do artigo 279º do Código do Processo Civil que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
No caso, considerando que a questão da suspensão da presente instância foi suscitada face à pendência de um processo (ou seja, a alegada questão prejudicial já constitui objecto de uma outra causa) haverá que apreciar a pretensão dos Réus à luz deste preceito legal.
De acordo com o mesmo, o tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando pender causa prejudicial.
Conforme refere José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág.501,“Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada.”
A prejudicialidade e dependência existe quando numa causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da outra causa (Ac. RL de 20/03/1970, JR, 16º, pág. 256).
Cita Alberto dos Reis (in Comentário ao Código Processo Civil Vol. 3º, pág. 206, doutrina segundo a qual “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda", ou seja, tal situação ocorre quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja sentença possa modificar ou destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda, uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito, só existindo verdadeira prejudicialidade e dependência quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da outra causa.
Na base da decisão de suspensão da instância pela existência de causa prejudicial estão razões de utilidade e conveniência processual. Pretende-se evitar que com o decurso de duas acções, em que uma das questões suscitadas pode determinar o não conhecimento da submetida a apreciação na outra, o tribunal esteja a despender esforços processuais e a onerar as partes bem como a poder eventualmente proferir decisões de sentido antagónico.
Porém, conforme sublinha Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Dinâmica Geral do Processo Civil, Início, Desenvolvimento, Crises e Formas de Extinção da Instância, Centro de Estudos Judiciários, 1994, pág. 40, “para haver prejudicialidade não basta que o resultado possível de uma acção seja susceptível de conduzir à impossibilidade ou inutilidade de outra causa (…), mas torna-se necessário que exista precedência lógica entre o fim de uma acção e o da outra, o que deverá ser perquirido no ângulo de conexão das respectivas relações materiais controvertidas”.
Não há, assim, prejudicialidade em todo e qualquer caso em que em duas causas distintas se apreciem, qualifiquem e valorem os mesmos factos, total ou parcialmente, como fundamento das respectivas decisões a proferir. Só existirá prejudicialidade quando a decisão duma das causas tiver por objecto directamente o estabelecimento ou qualificação de determinado facto ou situação por força do respectivo pedido concreto formulado e esse facto ou situação for pressuposto da decisão da outra acção (assim, vide, entre outros, Acórdão da Relação de Lisboa de 31 de Janeiro de 1991 (…).
No caso, verifica-se que:
- neste processo os Autores pretendem que lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre a totalidade do Lote 56 e que os Réus sejam condenados a reconhecer que os Autores são proprietários da totalidade desse prédio, abstendo-se de praticar actos ou invocar tal direito de propriedade ou de se arrogarem proprietários desse prédio;
- no processo n.º …, do 3.º Juízo Cível deste Tribunal, os Ali Autores (aqui Réus) arrogando-se proprietários de determinados prédios sustentam que o Lote n.º.., com a área de 635,50 m2, inscrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de O… sob o n.º XXX a favor dos Réus, está parcialmente implantado sobre a parcelas de terreno que pertence aos ali Autores e Chamados, aqui Réus, pretendendo que se proceda à demarcação e implantação dos terrenos dos ali Autores e Chamados e dos ali Réus, que seja declarado que as suas parcelas de terreno foram indevida e ilicitamente incorporadas no terreno que foi objecto do alvará de loteamento n.º Y/91, actualmente constituídas em lotes de terreno ocupadas pelos ali Réus (entre os quais os aqui Autores), que sejam restituídas à sua posse e titularidade as parcelas de terreno de que são proprietários e que os Réus sejam condenados a acatarem os direitos dos Autores.
Ora, face ao que se deixa exposto é inegável que os Autores e Réus se arrogam numa e noutra acção proprietários de uma determinada parcela de terreno, sendo que a decisão que venha a ser proferida numa e noutra causa está dependente do juízo que se venha a formular quanto a esse direito, pois a demarcação dos prédios, nos termos em que os Autores no processo nº000/10…, aqui Réus, pretendem que seja realizada, pressupõe que se lhes reconheça a propriedade sobre os prédios nos exactos termos (área, confrontações e delimitações) que invocam.
Sucede, porém, que o nº 2 do artigo 279º do Código de Processo Civil determina que “não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se (…) a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.”
Este preceito impõe ao Tribunal que formule um juízo de oportunidade, ponderando as vantagens e desvantagens da suspensão.
Realizado esse juízo, atentos os contornos de um e outro processo, conclui-se que as desvantagens da suspensão não podem, no caso, ser desprezadas, superando em muito as vantagens.
Note-se que estes autos, mostrando-se finda a fase dos articulados, se encontram-se já na fase de saneamento e o processo n.º… do 3.º Juízo deste Tribunal, onde são demandados 113 Réus, se encontra, ainda, na fase de citação.
Termos em que, face ao exposto, se indefere o pedido de suspensão da instância formulado pelos Réus.”

Inconformados com o teor do despacho, recorreram os réus para pugnar pela sua revogação, alinhando para tal as seguintes razões com que encerram a alegação oferecida (apenas se transcrevem as processualmente relevantes):
(…)
5º Primeiro, é manifesto que o não decretamento da suspensão da instância não está minimamente fundamentado.
Não se alcança quais as razões em concreto que estão na base da decisão.
Elas são dadas como pressupostas, mas a verdade é que não são enunciadas, individualmente explicitadas, extravasando em muito a faculdade do poder de oportunidade judicial.
6º Segundo, o processo nº …, do 3º Juízo do Tribunal de O…, onde os ora RR figuram como AA, foi o primeiro a ser instaurado.
Assim, os presentes autos estão necessariamente na dependência dos outros, e não o contrário. Os aqui AA, sabendo da propositura da outra ação judicial, conforme confessam no seu articulado Petição Inicial, e prevendo a maior complexidade do outro processo atenta a existência de mais de uma centena de RR, correram a interpor a presente ação numa clara manobra de litigância desleal e sem fundamento válido.
7º Terceiro, estipula o artigo 481º do CPC que a citação faz cessar a boa-fé do possuidor; torna estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do artigo 268º; e inibe o réu de propor contra o autor ação destinada à apreciação da mesma questão jurídica. Ora, ainda que os aqui alguns AA, independentemente da citação a que buscam fugir, fazendo uso reprovável do processo, a verdade é que confessam ter tido pleno conhecimento da propositura da outra ação, o que os não inibiu de interporem os presentes autos, em ordem a discutirem no essencial a mesma questão jurídica.
8º Quarto, não se vê nem se entende quais as vantagens de dar primazia temporal e processual aos presentes autos, sendo certo que os aqui RR, para melhor defesa dos seus legítimos direitos e interesses, preferem litigar com prioridade no outro processo, pois é manifesto que alguns tipos de decisão que podem ter lugar nestes autos podem prejudicar gravemente a normal prossecução do outro. E, por outro lado, não se entende porque é que os presentes autos não podem aguardar a normal tramitação do outro, que deve ter a primazia pelas razões expostas, uma vez que nenhum dos pedidos formulados nestes autos é diminuído, caso se aguarde a normal tramitação do outro processo.
9ºQuinto, deve privilegiar-se a aplicação dos princípios e regras explanados nos artigos 265º-A, 266º, 266º-A e 267º do CPC.
As razões expostas, apontam para a necessidade, lógica e processual, de aguardar o douto despacho que decida do pedido do ora Réu relativo à apensação destes autos ao processo nº 5298º do 3º Juízo, considerando-se que o douto despacho recorrido é claramente insuficiente na sua fundamentação ao limitar-se a proferir que não se afigura razoável continuar a aguardar que seja decidida a requerida apensação. Também aqui a razão apresentada é genérica e abstrata, não concreta, individualizada e explicitada, na verdade não podendo servir de adequado argumento fundamentador.
10º Sexto, deste modo a douta decisão recorrida, a nosso ver, violou o disposto nos artigos 265º-A, 266º, 266º-A, 267º, 275º, 279º, 481º, e alínea b) do nº 1 do artigo 668º, todos do CPC, pelo que deve ser revogada, o que é de Inteira Justiça!

Factos Provados:
Os enunciados no antecedente relatório desta decisão.

Análise do recurso:
Sopesado o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, conclui-se que a sua discordância está centrada sobre duas questões a saber:
- Por um lado, entendem os recorrentes que se deveria ter aguardado a prolação do despacho sobre a apensação destes autos ao processo nº …, do 3º Juízo do mesmo tribunal (conclusões 8ª, 9ª e 10ª);
- Por outro, a insuficiente fundamentação do indeferimento da requerida suspensão da instância, face à declarada relação de prejudicialidade entre as duas acções.

I) Quanto à apensação dos processos:
É insindicável nesta sede a decisão proferida no atinente à questão destacada, porquanto o despacho apenas se limita a dizer que, cabendo ao titular do processo nº… a decisão sobre a apensação intencionada pelos recorrentes, em face do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 275º do CPC, “não se afigura razoável continuar a aguardar que seja decidida a requerida apensação, impondo-se o prosseguimento destes autos, o que se determina (sem prejuízo do que, eventualmente, venha a ser decidido quanto à apensação pelo 3.º Juízo deste Tribunal).
Ou seja, não podendo o Senhor Juiz a quo decidir a apensação e não havendo fundamento legal para deixar de conhecer das questões prévias e incidentais suscitadas pelos recorrentes nas contestações apresentadas, ao tribunal apenas resta praticar os actos que a lei processual lhe comete com vista ao normal andamento do processo.
Assim sendo, o segmento do despacho que se refere à apensação é rigorosamente redundante, pois se limita a proclamar o óbvio: “o juiz titular desta acção nada pode decidir sobre a apensação e, assim sendo, o processo seguirá seus termos até que o juiz competente se pronuncie sobre o assunto”.
Consequentemente, não lhe cabendo decidir sobre a apensação, tal proclamação não tem nenhum efeito processual, podendo perfeitamente ser omitida, sem que tal configure nulidade.
Trata-se inquestionavelmente de um despacho subsumível à previsão do artigo 679º do CPC, sendo insindicável por via de recurso, uma vez que se limita a anunciar às partes aquilo que é suposto elas saberem, ou seja, que enquanto em sede própria não for apreciado o pedido de apensação, o processo tem de seguir os seus termos.
Mas ainda que por absurdo se reputasse tal indicação passível de recurso, logo se torna patente que nenhuma das partes fica vencida com tal despacho, uma vez que o andamento normal da lide há-de ter-se por benéfico tanto para os autores como para os réus, aqueles porque obtêm a tutela dos seus direitos e estes porque mais rapidamente vêem apreciadas as questões incidentais e substanciais que invocaram na oposição que deduziram.
Basta pensar que se o tribunal a quo tivesse decidido a suspensão da instância tal como os recorrentes haviam pedido, isso só se tornou possível porque o tribunal a quo não ficou a aguardar a decisão sobre a apensação.
De resto, se o tribunal recorrido tivesse optado por suspender o normal andamento dos autos, enquanto se aguardava a decisão sobre a apensação (que veio a ser proferida em 24/4/2013, na pendência do recurso – fls 1010) também não seria afrontada e decidida a excepção e litispendência esgrimida pelos réus na contestação de fls 165 e seguintes.
Em suma, não cabe recurso do segmento do despacho que anuncia o prosseguimento dos termos do processo, pois se trata de um mero despacho de expediente insusceptível de causar prejuízo a qualquer das partes, razão por que não nos pronunciaremos sobre a conclusão 5ª, de resto prejudicada pela decisão entretanto proferida em sede própria.

II) Sobre a suspensão da instância:
Como se infere da parte final do despacho acima transcrito (destacado a negrito), o tribunal recorrido considerou verificado o nexo de prejudicialidade entre as duas acções, mas entendeu que a causa dependente estava tão adiantada que os prejuízos da suspensão superam as vantagens.
De modo algum pode sufragar-se tal entendimento!
Antes de mais, ambas as acções se encontram na fase dos articulados o que só por si fragiliza drasticamente o pressuposto em que o despacho assenta.
Claro que não se desconhece que os autores no processo nº… alargaram desmesurada e injustificadamente o âmbito subjectivo da instância ao requererem, por um lado, o chamamento de outros quatro autores e, por outro, ao demandarem 113 réus sem que se perceba a razão de ser de envolver tanta gente na presente lide.
Com efeito, sendo supostamente os chamados donos de 3 parcelas perfeitamente individualizadas e devidamente registadas desde 1987, inexiste qualquer razão processual para que venham associar-se aos autores, pois a tutela que estes intencionam não depende da intervenção dos chamados os quais, no limite, podem dispor livremente dos seus direitos ou abdicar deles, sem que tal interfira com o direito dos chamantes.
Mas para aumentar a confusão, os mesmos autores demandam 113 réus (além dos cônjuges respectivos), muito embora aleguem que só 16 lotes dos demandados estão a ocupar, total ou parcialmente, as suas parcelas (parecendo que tal opção se prenderá com o facto de a parte não ocupada pelos lotes estar ocupada por duas ruas e uma zona verde, que a todos beneficiam).
Será pois expectável que um processo com tantos intervenientes comporte significativa morosidade, mas isso não é razão para que qualquer dos demandados, antecipando-se à citação, instaure ele próprio uma outra acção com vista a obter o mesmo efeito jurídico intencionado pelos autores da acção primitiva.
Objectar-se-á que na situação configurada não é de suspensão da instância ou de prejudicialidade que se trata, pois o que existe é uma inequívoca situação de litispendência, pois os autores de ambas as acções se arrogam ser donos da mesma parcela de terreno e querem ver declarado tal direito.
Na verdade, a essência do litígio não respeita aos autores desta acção mas antes à entidade promotora do loteamento, A., Inv e Comércio, S. A. que, na óptica dos recorrentes, sendo dona de um prédio com cerca de 74.402 metros quadrados, descrito na CRP de O… sob o nºyyy, teria englobado no loteamento que submeteu a aprovação um outro prédio de 35.000 metros quadrados, confinante com o seu e que fora dividido em sete parcelas de 5.000 m2 cada, pertencentes aos recorrentes.
Isto porque, alegam os autores do processo nº…, correu termos na 1ª secção do 1º juízo do mesmo tribunal de O… um outro processo a que coube o nº…, no qual se procedeu à demarcação de dois prédios, um que ficou a pertencer à Sociedade Agrícola de C., Lda e outro que pertencia a Herdeiros de V.F…. e do qual aquele foi destacado.
Ora, alegam por fim, as suas sete parcelas de terreno resultaram da desanexação de uma terra designada por “S… d´Alf…”, prédio da mencionada Sociedade Agrícola que, após a demarcação operada no aludido processo …, estava descrito na CRP de O… sob o nº0000 a fls … do livro ….
Ou seja, alegam os recorrentes, as suas parcelas “foram indevida e ilicitamente incorporadas no terreno objecto do alvará de loteamento nº5/91, actualmente constituídas em lotes de terreno ocupados pelos RR”.
Com o devido respeito, só por ironia os litigantes podem invocar a seu favor a posse pública e pacífica sobre qualquer das parcelas em disputa, pelo menos nos últimos 20 anos, porquanto segundo consta alegado, desde inícios de 1991 que se têm sucedido os processos tendo por objecto o mesmíssimo assunto, a ponto de a CMO ter aprovado o loteamento da A. – Inv. e Comércio, S.A, classificando o terreno da urbanização em zona controvertida e zona não controvertida e mencionando no alvará de construção correspondente aos lotes implantados na primeira a existência de controvérsia sobre a propriedade do terreno.
E uma análise perfunctória da petição da presente acção e bem assim da apresentada no processo nº000/10, sugere que as partes não terão assimilado as deficiências assinaladas nos Acórdãos certificados a fls 81 e seguintes que levaram a uma proclamação rigorosamente inócua que os obrigou a renovar as suas pretensões.
Com efeito, tais arestos vincam as seguintes ideias-força sobre que não existe qualquer dissensão jurisprudencial ou doutrinal:
- Por um lado, a presunção registral só incide sobre a inscrição e não sobre os elementos da descrição (STJ de 22/6/99), o que vale por dizer que tal presunção só é operante se inexistir controvérsia sobre a realidade física do bem a que respeita;
- Por outro, a prescrição aquisitiva pressupõe a posse sobre uma realidade material e não sobre uma criação registral, o que implica a necessidade de ser alegada a posse exercida sobre a concreta parcela do terreno (ver sobre o tema Ac. STJ de 21/12/2005).
Naturalmente que, subsistindo a controvérsia sobre a implantação dos prédios de que as partes se arrogam ser donos, a proclamação judicial de que a A. era dona do prédio descrito sob o nº… e a Sociedade Agrícola de C., Lda, do prédio descrito sob o nº…, tem o condão de satisfazer as duas partes mas deixa-os exactamente na mesma, pois continuam sem saber onde começam e acabam os prédios que a decisão lhes atribui.
Diferente seria a situação se, por exemplo, os recorrentes tivessem alegado que na sequência da demarcação levada a efeito no processo … – e que não faz caso julgado contra ninguém, pois foi intentada contra incertos – a Sociedade Agrícola de C., Lda passou a cultivar o terreno agora em disputa (ou a limpar, a colocar marcos, a vedar, etc) à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, tendo eles próprios continuado tais actos de posse (ou realizado outros) após a respectiva aquisição.
A provar-se tal factualidade e sendo a sua posse ancorada em título, ter-se-ia perfeito o prazo de usucapião quando a A. – Investimento e Comércio, S. A., em inícios de 1991, iniciou o processo de urbanização do terreno.
Do mesmo modo seria no caso de os agora autores, em vez de se ancorarem na presunção registral ou na posse de um prédio virtual, alegassem que a J… cultivava (ou cuidava por qualquer forma) do terreno em disputa e que os sucessivos adquirentes continuaram a fazê-lo, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, estando perfeito o prazo necessário para usucapir na data em que o litígio eclodiu.
Mas em abono da verdade, a experiência sugere que, muito embora o concelho de O… dispusesse dos melhores solos agrícolas do país para a produção cerealífera, a partir da segunda metade do século passado tais solos foram reconvertidos e em vez de trigo mole e cevada passaram a dar avos e lotes em catadupa, cujas lindes os sucessivos adquirentes normalmente ignoram, pois qualquer acto de cultivo se torna bizarro e antieconómico.
Mas, feito este reparo, é então tempo de regressar à avaliação sobre o acerto da ponderação subjacente ao indeferimento decidido pelo despacho sob escrutínio, ao considerar que os prejuízos da suspensão superam as vantagens.
Ora, para além de ser duvidoso que esta acção se possa considerar “tão adiantada” relativamente ao processo nº…, não especificou o despacho quais as vantagens e prejuízos que envolveu no cotejo, de modo a permitir avaliar o acerto do raciocínio.
Por isso e à míngua de tal especificação, a única vantagem que se descortina reside na possibilidade de esta acção chegar ao fim mais depressa, seja pela absolvição da instância fundada na litispendência esgrimida, seja pela decisão de mérito a proferir, se tal excepção dilatória naufragar.
Ex adverso, nem os aqui autores nem os réus sofrem prejuízo material relevante com a demora do processo, dado que aqueles continuam a desfrutar das suas habitações e estes continuam desapossados das parcelas que supostamente terão adquirido mas de que manifestamente nunca retiraram qualquer proveito.
Mas o não decretamento da suspensão comporta um risco de extrema importância: a de virem a ser proferidas decisões de mérito contraditórias, seja por desigual valoração da prova oferecida, seja por não ser coincidente a prova carreada para os autos pelas partes.
Ora, a mera possibilidade de contradição de julgados é motivo bastante para o decretamento da suspensão da instância ao abrigo da 2ª parte do nº1 do artigo 279º do CPC, independentemente da existência ou não de nexo de prejudicialidade ou da ponderação das vantagens e desvantagens que as partes retiram de tal suspensão.
Objectar-se-á contra este entendimento que o facto de não ser ordenada a suspensão neste momento, não impede que a instância venha a ser suspensa em momento ulterior, se só então a contradição de julgados se apresentar como verosímil (assim o entendeu o Ac. STJ de 18/6/1976).
Adicionalmente, poderá defender-se que, ao contrário do que os contestantes C. M... e outros referem (artº 25º da contestação), os aqui autores não foram demandados naquele processo nº…, dado que, em vez deles, foi demandada a sociedade PD, S.A., suposta titular inscrita do lote xx, o que terá deixado de ser exacto desde 2004!
Quanto àquela objecção dir-se-á que não há no caso concreto a menor dúvida de que a tutela reclamada pelos AA em ambas as acções é inconciliável, pois se vier a considerar-se que o lote dos autores desta acção fazia parte integrante do prédio correspondente à descrição nº XXXX, então a acção intentada pelos recorrentes tem de naufragar na parte correspondente.
Já no tocante ao facto de os aqui autores não figurarem como demandados no processo nº…, o argumento não é decisivo, uma vez que pode haver modificação subjectiva da instância a requerimento de qualquer das partes (ou por intervenção espontânea de qualquer terceiro).
O que decisivamente tem de prevenir-se é a eventualidade de poder haver um juiz a atribuir uma parcela de um lote a uma das partes e outro a atribuí-la à outra, sendo certo, repete-se, que em face de tal possibilidade, não tem o tribunal de sopesar as vantagens e inconvenientes da suspensão, pois o acto de evitar a contradição de julgados tem valor absoluto e prevalece sobre quaisquer estratégias ou conveniências processuais.
Ainda mais quando é intuitivo que a avaliação sobre o merecimento das pretensões das partes envolve a valoração dos mesmos elementos probatórios ou a repetição das mesmas diligências de instrução as quais, face ao tempo decorrido, se antevêem de extrema complexidade, o que só por si justificaria a suspensão peticionada, houvesse ou não risco de contradição de julgados.
Por isso, a apelação não pode deixar de proceder.

Decisão:
Atento o exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho, suspendendo-se a instância até decisão definitiva da requerida apensação no processo que corre termos no 3º juízo do mesmo tribunal, ou, não sendo deferida, até à decisão definitiva do mesmo processo.
Sem custas.

Lisboa, 2 de Julho de 2013
Gouveia Barros)
Conceição Saavedra)
Cristina Coelho)