ACÇÃO DECLARATIVA
LITISPENDÊNCIA
CASO JULGADO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
SUSPENSÃO
Sumário

I - Pressupondo a repetição de uma causa, a litispendência, tal como o caso julgado, tem como requisitos a identidade das partes, da causa de pedir e do pedido, existindo identidade de pedido quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
III – Essa identidade não existe entre uma ação declarativa de simples apreciação onde se pede a declaração de inexistência do direito (e correspondente obrigação) de crédito cambiário por prescrição ou invalidade da livrança, e a oposição onde se pede “a extinção da execução” por prescrição da livrança ou, caso assim se não entenda, por nulidade do título.
IV - O objeto da ação declarativa é a declaração de inexistência da obrigação exequenda, inexistência essa que é pressuposto da extinção da execução almejada na oposição à execução, pelo que aquela ação é prejudicial em relação à oposição, havendo motivo para suspender a instância nesta última.
V - Sendo inadmissível a suspensão da ação executiva pela existência de causa prejudicial, o mesmo se não passa com a oposição à execução, em relação à qual tem pleno cabimento a suspensão quando penda ação declarativa onde se discuta a existência da obrigação exequenda.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL
I - Na execução que contra si move a C., S.A., F., Lda., deduziu oposição, invocando a prescrição da obrigação cambiária e, para o caso de assim se não entender, a invalidade do título por preenchimento abusivo.
A exequente contestou.
A oponente deu notícia da existência de ação declarativa com o mesmo objeto da oposição, a correr termos no 1º Juízo do Tribunal de Matosinhos, no processo nº ….
Junta aos autos certidão dos articulados desse processo, foi proferida decisão que teve como verificada a exceção da litispendência e absolveu a exequente da instância.
Contra ela apelou a opoente, tendo apresentado alegações, onde formula as seguintes conclusões:
1. A exceção dilatória de litispendência apresenta-se como um complemento do caso julgado material.
2. Uma outra exceção supõe a identidade de partes, causa de pedir e de pedido.
3. Nas ações em apreço, ação declarativa de simples apreciação e oposição, não há identidade de pedidos.
4. Depois da Reforma processual de 1961 não se formam “julgados implícitos”, sobre as questões que constam da causa de pedir.
5. A decisão de mérito representa o contraposto à ação condenatória, pois enquanto esta tende à aplicação de uma sanção, aquela tende à desaplicação da mesma.
6. A oposição de mérito, em seu conjunto, destina-se a operar uma sentença constitutiva com o fim de provocar uma alteração de conteúdo processual – executório, ou seja, despojar da sua eficácia o título executivo.
7. A oposição tem a natureza de um remédio para um prejuízo, ou seja, os chamados “gravames executivos”.
8. A oposição permite não só, prestando ou não caução, suspender a execução e obriga o credor na pendência desta a prestar caução do eventual recebimento.
9. A opoente pretende prestar caução e, destarte, impedir a venda judicial dos bens penhorados, sendo certo que a venda judicial tem efeitos desastrosos.
10. Os efeitos visados no processo declarativo, em simples apreciação, são completamente diferentes.
11. A existência ou não da relação substantiva de crédito é questão a resolver no processo de execução quando se questiona a exequibilidade do título. Na acção discute-se da existência ou não da relação do crédito incorporada no título, na oposição discute-se da obrigação ou não de lhe dar cumprimento.
12. A opoente perde manifestos benefícios processuais pela absolvição da instância, dada a natureza da oposição como remédio para um prejuízo.
13. O objecto do processo declarativo é questão a resolver no processo de oposição, e, por isso, questão prejudicial relativamente a este, onde a existência da relação substantiva de crédito não constitui objecto do “dictum”, judicial, interferindo apenas na sua causa de pedir.
14. No processo de oposição a relação substantiva é causa de pedir a que se aplica, como questão prejudicial, o art.º 279º do Cod. Proc. Civil.
Nas contra-alegações apresentadas, a exequente pugna pela improcedência do recurso, sustentando, em síntese, que a existência da ação declarativa não é causa prejudicial relativamente à execução que não pode, pois, ser suspensa.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pela apelante nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objeto do recurso.
II – Para além dos elementos processuais já enunciados em sede de relatório deste acórdão, para decisão do recurso importa considerar os seguintes factos que resultam da certidão junta aos autos, a fls. 107-206:
1. No processo ordinário, instaurado em .../2010 e que sob o nº … corre termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de …, movido por F., Lda., aqui opoente, contra a C., Lda., ora exequente, em que a petição inicial tem conteúdo idêntico[1] ao da petição desta oposição, é formulado o seguinte pedido:
(…) deve a presente ação ser havida por procedente e provada e por via dela ser a livrança, junta como documento nº 6, declarada prescrita e, em consequência, extinta a obrigação cambiária da autora, como avalista.
No articulado de réplica, a autora alterou, por aditamento, este pedido que passou a ter a seguinte formulação:
(…) deve a presente ação ser havida por procedente e provada e por via dela ser a livrança, junta como documento nº 6
a) (…) declarada prescrita
b) (…) declarada nula como título cambiário, por o seu preenchimento já não ser possível e, em consequência e em qualquer caso extinta a obrigação cambiária da Autora, como avalista.”
2. A contestação apresentada nessa ação declarativa tem conteúdo substancialmente idêntico ao da contestação à oposição aqui deduzida.
III – Comecemos por atentar nos fundamentos invocados na decisão recorrida.
Foram, em síntese nossa, os seguintes:
- Nestes autos oposição, como no processo que corre termos no 1º Juízo do Tribunal de …, com o Procº nº …, está em causa a relação cambiária emergente da livrança dada à execução, sendo os articulados produzidos numa e noutra causa totalmente idênticos, resumindo-se as diferenças à forma como as partes são designadas, o que decorre do tipo de cada uma das ações (aqui oponente/exequente, naquela outra autora/ré).
- Porque este e aquele outro processo têm o mesmo objeto, verifica-se entre eles a exceção da litispendência – arts. 497º e 498º do CPC (na anterior redação).
 - Uma vez que a aqui exequente foi citada em data posterior àquela em que foi citada no processo que corre termos no Tribunal de …, nos termos do disposto no art. 499º, nº 1, a litispendência deve ser deduzida nos presentes autos, pelo que, julgando-se verificada tal exceção, absolve-se a exequente da instância – arts. 494º, nº 2 e 288º, nº 1, e) do CPC (na anterior redação).
Sobre a litispendência:
Pressupondo a repetição da mesma causa, o caso julgado e a litispendência têm como requisitos a identidade das partes, da causa de pedir e do pedido – arts. 580º e 581º do CPC, aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, e arts. 497º e 498º do CPC até há poucos dias vigente e em tudo idênticos àqueles.
A diferença entre as duas exceções é determinada pelo momento em que ocorre a repetição da causa.
Tendo lugar quando ainda pende a causa anterior, estar-se-á perante litispendência, mas configurar-se-á como caso julgado se ocorrer depois de haver já decisão transitada em julgado na primeira causa – nº 1 do citado art. 580º.
Os ditos requisitos mostram-se definidos no art. 581º (e anterior art. 498º), sendo inquestionável, e aceite pela apelante, a verificação, nas duas lides em confronto, de identidade, tanto de sujeitos, como de causa de pedir.
Nelas, as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica e a causa de pedir - conjunto de factos que preenchem o quadro jurídico de onde resulta o efeito jurídico pretendido - é a mesma e consiste na invocação da prescrição e do preenchimento abusivo do título de crédito em que a aqui opoente apôs o seu aval.
Já a afirmada identidade de pedido vem posta pela apelante.
Vejamos.
Tal identidade verifica-se, segundo a definição legal - nº 3 do art- 581º e nº 3 do anterior art. 498º -, quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
O pedido é, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa [2], “a forma de tutela jurisdicional requerida para um direito subjetivo ou interesse legalmente protegido (…).”
E o mesmo autor prossegue, concretizando: “A parte alega um direito subjetivo ou interesse e requer para eles uma das formas de tutela jurisdicional correspondente a uma das ações previstas no art. 4º, nºs 2 e 3: a condenação, a apreciação, a constituição ou a execução.”
Lebre de Freitas[3], vendo uma dupla determinação no pedido, afirma que este, no “seu conteúdo, referido ao direito material, consiste na afirmação duma situação jurídica subjectiva actual ou, no caso da acção constitutiva, da vontade dum efeito jurídico (situação jurídica a constituir) baseado numa situação subjectiva actual, ou ainda na afirmação da existência ou inexistência dum facto jurídico; na sua função consiste na solicitação duma providência processual para tutela do interesse do autor. Pode assim falar-se duma determinação material e duma determinação processual da pretensão”.
No que ao conteúdo material respeita, o pedido formulado em cada uma das ações é diverso.
Na ação declarativa, que corre termos em …, o pedido consiste na afirmação, a emitir pelo tribunal, da inexistência do direito (e correspondente obrigação) de crédito cambiário por prescrição ou invalidade [4] da livrança.
Já na oposição à execução, a apelante pede se ordene “a extinção da execução” por prescrição da livrança ou, caso assim se não entenda, por nulidade do título, dado o seu preenchimento abusivo – cfr. fls. 18.
Também funcionalmente, ou seja, enquanto forma de tutela jurisdicional requerida para a invocada situação jurídica, os pedidos em confronto são diversos.
Num, a autora, com vista à tutela do seu interesse, pede ao tribunal, socorrendo-se de ação de simples apreciação, que declare a prescrição da livrança e a extinção da sua obrigação cambiária, enquanto avalista.
No outro, a opoente, demandada em ação executiva - cuja finalidade não é já a declaração de direitos, mas a efetiva reparação de um direito violado, e que pressupõe sempre a existência do dever, não cumprido, de realização de certa prestação - [5], invocando a inexistência do direito[6]  que, em face do título, terá violado e que na execução se pretende fazer valer, requer para a situação a forma de tutela jurisdicional adequada à extinção da execução – a oposição.[7]
Só através dela, e por via do reconhecimento de que não existe a obrigação presumida pela existência do título, se poderá alcançar a extinção da execução.
Estruturalmente, a oposição à execução constitui “algo de extrínseco à acção executiva, toma o carácter duma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da acção que nele se baseia. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título (…), cujo escopo é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal (…)[8]
A diversidade dos pedidos torna-se por demais evidente, se atentarmos nas consequências que no caso adviriam da afirmada litispendência.
Atenta a sua natureza dilatória, esta exceção obstaria a que o tribunal conhecesse do mérito da oposição e geraria a absolvição da instância – arts. 576º, nº 2 e 577º, alínea i) do atual CPC e arts. 493º, nº 2, 494º, i) do anterior -, pelo que, independentemente da razão que eventualmente assistisse à executada, quando pugna pela inexistência da obrigação exequenda, ficaria inexoravelmente prejudicada a extinção da execução com esse fundamento.
Uma vez extinta a instância da oposição, ainda que a ação declarativa de simples apreciação viesse a ser julgada procedente, e fosse declarada extinta, por prescrição da livrança, a obrigação cambiária da aí autora, o caso julgado assim formado nenhuma repercussão teria no andamento da execução, visto não existir já a instância processual onde poderia ser invocado e considerado.
Sem identidade de pedidos não existe a litispendência afirmada na decisão sob recurso que não pode manter-se.
Sobre a relação de prejudicialidade:
A apelante sustenta existir entre a oposição e aquela ação declarativa uma relação dessa natureza que deve levar à suspensão da instância da oposição.
Não defende a apelante, contra a interpretação feita pela apelada da sua ideia, que deva ser suspensa a execução, propugnando, isso sim, a suspensão da oposição deduzida para que nela seja acolhida e considerada a decisão a proferir naquela ação declarativa, anteriormente proposta.
 “O Tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado” – nº 1 do art. 272º do CPC atual de teor idêntico ao nº 1 do art. 279º do anterior diploma.
A instância de uma causa pode ser suspensa quando, em relação a ela, penda uma causa prejudicial, entendendo-se como tal “aquela que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada[9]
É prejudicial a causa cuja decisão possa prejudicar a decisão de uma outra, ou seja, quando a sua decisão pode destruir o fundamento ou a razão desta.
O objeto da ação declarativa é a declaração de inexistência da obrigação exequenda, inexistência esta que é pressuposto da extinção da execução almejada na oposição à execução.
Pode entender-se, assim, com Lebre de Freitas[10] e Rodrigues Bastos[11], que aquela ação é prejudicial em relação à presente oposição, havendo motivo para suspender a instância nesta última, nos termos da 1ª parte de qualquer um dos preceitos referidos do actual e do anterior CPC.
Sendo inquestionável a inadmissibilidade da suspensão da ação executiva pela existência de causa prejudicial, de acordo com o Assento de 24.05.1960, cuja doutrina se mantém em vigor, como se entendeu no acórdão do STJ, uniformizador de jurisprudência, de 27.01.2010 [12], o mesmo se não passa com a oposição à execução, em relação à qual tem pleno cabimento a suspensão quando penda ação declarativa onde se discuta a existência da obrigação exequenda.
O mesmo vem sendo entendido na nossa jurisprudência, como se vê, a título de exemplo, do acórdão Uniformizador de Jurisprudência, proferido pelo STJ, acabado de citar[13], e do acórdão da Relação do Porto de 8.10.2007.[14]
A situação sempre seria, aliás, passível de ser considerada como enquadrando “outro motivo justificado” para a suspensão.
IV – Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, alterando-se a sentença recorrida, suspende-se a instância na oposição até ser proferida sentença transitada em julgado na sobredita ação declarativa, cuja decisão será considerada naquela.
Custas pela apelada.
 Lxa. 17.09.2013
(Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho)
(Maria Amélia Ribeiro)
(Graça Amaral)
[1] A única diferença de conteúdo traduz-se na seguinte afirmação que, constando no final do requerimento de oposição, não integra a petição inicial da ação declarativa:
Ou, a assim não se entender, o seu preenchimento resultou de acto abusivo, a sancionar em sede de abuso de direito com a nulidade do título.
[2] Introdução ao Processo Civil, 2ª edição, Lex, pág. 32
[3] Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, pág. 53.
 [4] Isto no caso de ter sido admitida a ampliação do pedido requerida na réplica, o que se desconhece em face dos elementos certificados nos autos.  
[5] Lebre de Freitas, na obra citada em último lugar, págs. 9 e segs..
[6] Fundada na alegação da prescrição do título de crédito que avalizou e no seu preenchimento abusivo.
[7] Autores há, como Brehm, Rosenberg e Brox-Walker, referidos por Lebre de Freitas, na mesma obra, pág. 161, que consideram ter natureza constitutiva, e não meramente declarativa, a sentença que julgue procedente a oposição de mérito.
[8] Lebre de Freitas, mesma obra, pág. 160
[9] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 544.
[10] Obra acabada de citar, pág. 545.
[11] Notas ao Código de Processo Civil, 1971, II volume, pág. 47, citado por Lebre de Freitas na mesma obra e local.
[12] Acessível em www.dgsi.pt, Proc. 594/09.5YLSB, Relator Conselheiro Álvaro Rodrigues
[13] Para além dos demais referidos por Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 545.
[14] Acessível em www.dgsi.pt, proc. 0754992, Relator Sousa Lameiras