ACAREAÇÃO
CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO COMERCIAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário

1. A acareação, podendo ter lugar em qualquer altura da instrução, tem por fundamento a oposição direta entre depoimentos sobre o mesmo facto.
2. Essa oposição direta (“clara”, “manifesta” e “flagrante”) pressupõe que os depoimentos narrem o mesmo facto de forma diretamente oposta.
3. Não se justifica a acareação, por falta de interesse para a descoberta da verdade, quando o depoimento de uma das testemunhas se apresenta desvalorizado, pela falta de isenção e imparcialidade, e existem outros meios de prova que podem esclarecer os factos.
4. O reiterado e grave atraso no pagamento de faturas liquidadas, provocando o incumprimento do contrato de distribuição, por violação da obrigação de pagar o preço, confere legitimidade à outra parte para resolver o contrato.
5. Havendo mútuo consentimento dos contraentes, mesmo que tácito de uma das partes, o contrato pode ser modificado.
6. Permanecendo a situação de incumprimento, a resolução do contrato pode ser declarada no tempo que o credor entender.
7. Sendo o contrato de distribuição resolvido, por incumprimento contratual imputável à distribuidora, e por aplicação analógica do disposto no n.º 3 do art. 33.º do DL n.º 178/86, aquela não tem direito à indemnização de clientela pela cessação do contrato.(OG)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

Sociedade Comercial V M A, Lda., instaurou, em 15 de setembro de 2006, no então 2.º Juízo Cível da Comarca da Amadora (atualmente Comarca da Grande Lisboa-Noroeste), contra L M – SVSLM, S.A., com sede em França, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que fosse reconhecida a compensação dos seus créditos com as faturas em dívida à Ré (€ 138 186,08) e que esta fosse condenada ainda a pagar-lhe a quantia de € 171 066,85, acrescida de juros à taxa legal sobre a quantia de € 118 205,25 ou, subsidiariamente, condenada a pagar-lhe a quantia de € 789 252,93, acrescida de juros à taxa legal, e a indemnização de igual valor às despesas com a ação.

Para tanto, alegou em síntese, ter existido durante doze anos um contrato de distribuição exclusiva dos produtos da R., tendo esta alterado unilateralmente as condições de fornecimento mediante a redução do plafond de crédito de € 500.000,00 para € 100.000,00, condição essencial do contrato, o que impediu a expansão de vendas e importou prejuízos, vindo a R. depois, em 9 de março de 2005, a denunciar o contrato, sem justificação e sem pré-aviso; por isso, a R. é responsável pelos prejuízos causados, designadamente pela falta do pré- aviso, e pela indemnização de clientela, no valor de € 171 752,28; e sendo devedora da R., no valor de € 138 186,08, pode operar a compensação dos créditos.

Citada a Ré, contestou a ação, alegando não ter sido celebrado um contrato de distribuição, pois a A. atuava em nome próprio, comprando a mercadoria que adquiria à R., por sua conta e risco, revendendo-a pelo preço que entendia e embolsando o preço, gerindo os seus stocks como lhe aprouvesse e sempre sem interferência da R.; inexistia qualquer obrigação da A. apenas vender produtos da R., vendendo produtos de outros fabricantes da mesma área alimentar; anualmente eram acordados, entre a A. e R., objetivos e comparticipações da R. na promoção e divulgação dos seus produtos pela A., mas a venda era sempre sem exclusividade; o atraso da A. no pagamento das faturas tornou-se incomportável para a R., que o comunicou à sua companhia de seguros, a qual ameaçou rescindir a garantia de créditos; em fevereiro de 2002 a A. devia à R. € 271 329,81, tendo sido feito um plano de pagamentos e com a aceitação de encomendas com pagamento a pronto e desconto de 1,5 %; em 2003 a R. aceitou conceder um plafond de crédito de € 130 000,00, e, só sendo ultrapassado, as encomendas seriam pagas a pronto; não obstante este acordo, os atrasos no pagamento continuaram; insistiu que a A. pagasse as faturas em atraso, no valor de € 141 746,74, mas aquela continuou sem as regularizar; e, por isso, resolveu o contrato, por incumprimento da A., concedendo um pré-aviso de seis meses. Concluiu pela improcedência da ação.

Deduzindo reconvenção, pediu então que a A. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 141 746,74, correspondente ao valor das faturas em dívida.

Replicou a A., concluindo pela improcedência da reconvenção.

Tendo prosseguido a ação, e na sequência da sessão de julgamento do dia 24 de setembro de 2012, a A. veio, em 26 de setembro, requerer a acareação das testemunhas Manuel (ouvida na audiência de 12 de julho de 2012) e Eric (ouvida nas audiências de 10 de maio e 26 de junho de 2012), com fundamento na oposição direta de diversos factos, nomeadamente dos constantes dos quesitos 1.º, 4.º, 7.º, 8.º, 11.º, 13.º, 26.º, 27.º, 28.º e 33.º a 38.º da base instrutória.

A R. opôs-se, alegando fundamentalmente que os depoimentos não são antagónicos e os pontos de facto em causa não estão respondidos pelas testemunhas em clara oposição.

A acareação das duas testemunhas identificadas foi indeferida, por despacho de 1 de outubro de 2012 (fls. 1119/1121).

Não se conformando com essa decisão, agravou a Autora e, tendo alegado, formulou resumidamente as seguintes conclusões:

a) O despacho recorrido é nulo, por falta de fundamentação bastante e/ou contradição.

b) O despacho recorrido viola a lei, porquanto a diligência de acareação devia ter sido deferida.

c) É inequívoca a contradição entre os depoimentos quanto a factos essenciais.

d) A diligência não é impertinente, nem dilatória.

e) A acareação poderia ser importante para a apreciação dos depoimentos, sempre na busca da verdade material.

f) O despacho recorrido violou ainda o essencial do princípio da igualdade das partes.

g) Por erro de interpretação, o despacho recorrido violou, assim, os artigos 3.º-A, 264.º, 265.º, 266.º, 512.º, 642.º, 643.º, 666.º e 668.º, todos do CPC, 10.º, 13.º, 16.º e 20.º da CRP.

Pretende a A., com o provimento do agravo, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que admita a acareação.

Contra-alegou a R., no sentido de ser negado provimento ao agravo.

O despacho recorrido foi, tabelarmente, sustentado.

Concluída a audiência de discussão e julgamento, com a gravação dos depoimentos, foi proferida, em 8 de novembro de 2012, a sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu a Ré do pedido, e a reconvenção parcialmente procedente, condenou a Autora a pagar, à Ré, a quantia de € 141 746,74, acrescida de juros de mora 90 dias após a emissão da fatura.

Inconformada também com a sentença, recorreu a Autora e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) Deve ser alterada a resposta aos quesitos 4.º, 7.º, 8.º, 9.º, 13.º, 14.º, 20.º, 21.º, 23.º, 26.º e 27.º, dando-os como provados.

b) E também os quesitos 6.º e 14.º, embora com percentagem diversa.

c) Inversamente, deve ser alterada a resposta dada à matéria dos quesitos 28.º, 29.º, 31.º a 38.º.

d) Mesmo face à matéria dada com assente, tal é suficiente para procedência da ação e para improcedência da reconvenção.

e) A R. alterou unilateralmente e de forma significativa o contrato.

f) O comportamento da R. particularmente em 2005/2006, é manifestamente ofensivo da boa fé e dos bons costumes, consubstanciando até venire contra factum proprium.

g) A R. deixou de cumprir inteiramente, com culpa grave, mesmo dolosamente, o contrato, consubstanciado na alteração unilateral das condições de venda e através da sua “denúncia/rescisão”.

h) Constituiu-se a R. na obrigação de indemnizar a A.

i) A decisão recorrida violou, assim, por erro de interpretação, os artigos 341.º, 342.º, 343.º e segs., 362.º e segs., 577.º, 582.º, 585.º, 762.º e 787.º, todos do Código Civil, e 514.º do CPC.

Pretende a Autora, com o provimento da apelação, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgue a ação procedente e a reconvenção improcedente.

A Ré não contra-alegou na apelação.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Nos recursos interpostos, está essencialmente em discussão a admissibilidade da acareação entre duas testemunhas, no agravo, e a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, a responsabilidade civil, pela denúncia contratual ilícita, e a compensação de créditos, na apelação.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Pela 1.ª instância, foram dados como provados os seguintes factos:

1.A A. dedica-se à distribuição de bebidas, especialmente vocacionada para a contratação com as “grandes superfícies” (hipermercados, supermercados, cash and carry).

2.A R. tem por escopo social a produção e comercialização de bebidas alcoólicas.

3.Em 1994, A. e R. acordaram que a primeira teria a seu cargo a distribuição de alguns produtos da R. em Portugal, sendo que, quanto a esses produtos, o faria de forma exclusiva no território nacional, havendo outros produtos da R. distribuídos em Portugal por outras empresas.

4.No âmbito desse acordo, a A. suportava as despesas de promoção e publicidade dos produtos junto dos clientes, nomeadamente das “grandes superfícies”, recebendo uma contribuição para despesas e por objetivos da parte da R.

5.Para o cumprimento das suas obrigações, a A. dispunha de instalações, viaturas, pessoal e demais meios técnicos e humanos.

6. Acordaram que os pagamentos feitos à R. pela A. seriam pagos a 90 dias, o que nunca sucedeu, pois os pagamentos eram efetuados a 120/150 dias, tendo sido atribuído um plafond de crédito da R. à A., assegurado por uma seguradora da R., que, inicialmente, era de € 500 000,00, tendo baixado, depois, para € 300 000,00 e tendo variado ainda ao longo dos anos por várias vezes (resposta ao quesito 4.º da base instrutória).

7. O acordo foi celebrado por tempo indeterminado.

8. Nos anos de 2001 a 2003, o volume anual de vendas dos produtos da R., no universo das vendas da A., representou em média 26 % (6.º).

9. Em 2002/2003, a R. comunicou à A. a redução do plafond para € 130 000,00 (7.º).

10. Acima desse valor as mercadorias seriam fornecidas pela R. à A. mediante pagamento a pronto (8.º).

11. A redução do plafond importou uma redução das margens de comercialização da A., com redução da colocação dos produtos no mercado, fazendo-se sentir a partir de 2005 (9.º).

12. Em 9 de março de 2005, a R. comunicou à A. a cessação do acordo, com efeitos a partir de setembro de 2005.

13. Depois dessa data os fornecimentos de produtos da R. à A. seriam feitos apenas mediante pronto pagamento, o que não sucedeu.

14. Em 18 de maio de 2005, a R. comunicou, novamente, a cessação do acordo celebrado.

15. Em consequência disso, a A. apenas podia continuar a vender os produtos que tinha em stock ou adquirir novos à R. por via de compras a pronto pagamento, ou dentro do plafond referido em 9., e durante seis meses (13.º).

16. A A. tinha um volume de vendas que rondava os quatro milhões de euros anuais.

17. Os produtos da R. representavam, em 2003, cerca de € 698 390,00.

18. Em face da comunicação referida em 12., a A. colocou à disposição da R., para devolução, diversos produtos (não revendidos), no valor de € 56 391,53.

19. A A. já havia consertado, contratado e desenvolvido ações e operações de promoção e publicidade para o ano de 2005, designadamente, participação no pagamento dos prospetos publicitários, contratação de promoções e campanhas publicitárias, contratação de espaços de exposição de características e realces diversos, contratação de presenças e realces em aberturas, feiras e outros eventos a realizar em grandes superfícies.

20. A A. comercializava os produtos da R. com uma margem de rentabilidade líquida anual de cerca de 10 % a 15 %.

21. A R. forneceu à A., a pedido desta, as mercadorias descritas nas faturas n.º s: 4101130, emitida em 26/10/2004, vencida em 26/1/2005, no valor de       € 38 479,74; 4110962, emitida em 19/11/2004, vencida em 19/2/2005, no valor de €17.696,4; - 4120363, emitida em 7/12/2004, vencida em 12/12/2005, no valor de € 26 313,90; - 4121665, emitida em 29/12/2004, vencida em 23/5/2005, no valor de € 24 188,86; - 5020752, emitida em 23/2/2005, vencida em 23/5/2005, no valor de € 35 067,84.

22. A A. emitiu e enviou à R. a nota de débito n.º 5, no valor de € 200.000,00.

23. A R., após a cessação de relações comerciais com a A., contactou alguns clientes da A., como as grandes superfícies, com vista a continuar a colocar os seus produtos nesses mercados, embora nem sempre com sucesso (27.º).

24. A. e R. acordaram que aquela dispunha de um prazo de 90 dias para liquidar as faturas (28.º).

25. A A. não observava tal prazo (29.º).

26. Em 12/2/2002, o valor em dívida da A. à R. era de € 234 023,83.

27. Em face do que a seguradora da R., Corface, comunicou que não poderia atribuir qualquer plafond a esta (31.º).

28. E foi a posição da seguradora que levou a que a R. comunicasse à A. que não iria atribuir mais plafond de crédito (32.º).

29. Mas permitiu que continuasse a encomendar mercadoria, com pagamento a pronto, contra a entrega (33.º).

30. Concedendo um desconto de 1,5 % (34.º).

31. E só em 2003 é que a Corface voltou a conceder seguro de crédito no valor de € 50.000,00 (35.º).

32. Em 2005 a A. voltou a deixar de efetuar os pagamentos das faturas (36.º).

33. E nem após as insistências liquidou o valor de € 141.746,74, em atraso (37.º).

34. E foi com base na falta de pagamento destas faturas que a R. decidiu resolver o contrato (38.º).

2.2. Descrita a dinâmica processual relevante e a matéria de facto dada como provada, que vem impugnada, importa conhecer do objeto do agravo e da apelação, delimitado pelas respetivas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram anteriormente especificadas.

Começando pelo agravo, nos termos do n.º 1 do art. 710.º do Código de Processo Civil/1961 (CPC), aplicável na versão anterior à introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, dado que ação foi proposta antes de 1 de janeiro de 2008, interessa averiguar da pretensão da Agravante de acareação das testemunhas Manuel e Eric.

A acareação, com efeito, foi indeferida, com o fundamento de ser uma diligência inútil e dilatória, já que a contradição direta existiu na opinião que cada uma das testemunhas exprimiu sobre os factos, os quais se lhes sobrepõem e são aferidos não apenas por aqueles depoimentos mas também pela prova documental.

Antes de mais, impõe-se afirmar que o despacho recorrido não padece de nulidade, como alegou.

Com efeito, o despacho recorrido encontra-se fundamentado, como se reconhece, e só a falta absoluta de fundamentação é que gera a nulidade da decisão, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 668.º do CPC. A decisão que se apresente deficiente, incompleta ou não convincente não é suficiente para se concluir que padeça da falta de omissão (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de janeiro de 1984, publicado no BMJ n.º 333, pág. 398).

Por outro lado, não existe contradição entre os fundamentos especificados e a decisão que indeferiu a acareação, sendo aquela coerente com os fundamentos aduzidos. A eventual fundamentação contraditória da decisão poderá provocar o erro de julgamento, a corrigir pelo recurso, mas não determina a nulidade da decisão, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do art. 668.º do CPC.

Assim, manifestamente, improcede a arguição da nulidade do despacho recorrido.

Nos termos do art. 642.º do CPC, se houver oposição direta, acerca de determinado facto, entre depoimentos das testemunhas ou entre eles e o depoimento da parte, pode ter lugar, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, a acareação das pessoas em contradição.

O incidente da acareação, consagrada no ordenamento jurídico português desde o princípio do século XIX, consiste no “confronto entre si de testemunhas cujo depoimento esteja em oposição direta ou de testemunhas e partes a respeito de cujos depoimentos o mesmo se verifique” (CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, III, 1974, pág. 317). A acareação, como se observa, constitui mais um incidente destinado a atacar a força probatória do depoimento testemunhal e através do qual as pessoas são confrontadas, “cara a cara”, com outras declarações em oposição direta (LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2001, pág. 593, e ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, 1981, Reimpressão, pág. 459).

A oposição direta entre depoimentos sobre o mesmo facto constitui o fundamento legal da acareação. Como realça o Alberto dos Reis, “não basta qualquer discrepância ou divergência entre depoimentos; é necessário que sobre o mesmo facto concreto haja oposição direta entre eles. A lei não se satisfaz mesmo com a oposição indireta entre eles; a oposição tem de ser direta, para que possa justificar a acareação” (Ibidem, pág. 470).

A oposição direta, “clara”, “manifesta” e “flagrante”, pressupõe que os depoimentos narrem o mesmo facto de forma diretamente oposta.

O resultado deste incidente, por outro lado, é de uma eficácia reduzida ou nula, porquanto os depoentes, por regra, como a experiência bem revela, continuam a manter o depoimento prestado.

A acareação pode ter lugar em qualquer altura da instrução, pois a lei não estabelece um limite específico, como sucede, por exemplo, com a contradita, que tem de ser deduzida quando o depoimento da testemunha a contraditar termina (art. 641.º, n.º 1, do CPC). Envolvendo a acareação duas ou mais pessoas, percebe-se a liberdade temporal quanto ao seu requerimento pelas partes ou determinação pelo juiz (LEBRE DE FREITAS, Ibidem, pág. 595).

Definido o regime legal da acareação, desde logo, se pode afirmar que, ao contrário do alegado pela Agravada, o incidente foi deduzido tempestivamente, na medida em que, quando requerido, decorria ainda a fase da instrução, circunstância suficiente para se ajuizar da oportunidade do requerimento a deduzir a acareação das duas testemunhas identificadas.

Assegurada a tempestividade da dedução da acareação, interessa agora saber se a mesma tem fundamento, isto é, se os depoimentos testemunhais estão em oposição direta.

A testemunha Eric, arrolada pela Agravada, prestou depoimento sobre toda a base instrutória, tendo declarado, como razão de ciência, o ser diretor de exportação da Agravada, para quem trabalha desde 1987 (fls. 847). Por sua vez, a testemunha Manuel, arrolada pela Agravante, prestou depoimento também sobre a mesma matéria, tendo declarado estar reformado e ter sido representante legal da Agravante até há cerca de um ano (fls. 989).

Os mencionados depoimentos, podendo embora revelar uma ou outra contradição, são sobretudo divergentes entre si. Existindo, no entanto, alguma oposição direta quanto a alguns factos, tal seria suficiente para que fosse admissível a acareação entre as duas testemunhas.

Todavia, se em geral já é escassa a utilidade da acareação, neste caso, ainda seria mais, dado que a testemunha Manuel, tendo sido representante legal da Agravante, até cerca de meados de 2011, não podia estar nas melhores condições para prestar um depoimento isento e imparcial. Foi, aliás, tal testemunha que, em 29 de abril de 2002, outorgou a procuração forense dos autos (fls. 63). Nestas circunstâncias, este depoimento apresenta-se desvalorizado, pois é difícil a alguém, tendo sido parte na ação, vir depor com a isenção e imparcialidade, como se exige a qualquer testemunha. Um depoimento testemunhal, nestas condições, embora admissível, carece de cuidado na sua apreciação.

Podendo os factos contraditórios ser ainda esclarecidos por outros meios de prova, designadamente testemunhal, e de certo mais isenta e imparcial, perde interesse a necessidade de realização da acareação para a descoberta da verdade.

Por outro lado, depois da prolação da decisão sobre a matéria de facto, verifica-se ainda que certos pontos, como o contrato de exclusividade e o plafond de crédito, vieram a ter uma resposta favorável às posições da Agravante, acabando por tornar inútil a diligência da acareação, se porventura fundamento existisse.

Não se justificando a diligência ou tornando-se inútil, apresenta-se despropositada e sem sentido a alegação de ter havido uma limitação da utilização dos meios de prova, sendo certo também que não ocorreu qualquer violação ao princípio da igualdade das partes, a qual, de resto, nem sequer foi fundamentada.

Nestes termos, conclui-se pela negação de provimento ao agravo.

2.3. Passando ao recurso de apelação, regista-se que vem impugnada a decisão relativa à matéria de facto, nomeadamente as respostas aos quesitos 4.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 13.º, 14.º, 20.º, 21.º, 23.º, 27.º, 28.º, 29.ºe 31.º a 38.º da base instrutória.

A decisão relativa à matéria de facto pode ser alterada nos casos previstos no art. 712.º, n.º 1, do CPC, nomeadamente quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A do CPC.

 Sobre o recorrente, porém, recai o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida – n.º 1 do art. 690.º-A do CPC.

A importância deste ónus de alegar é de tal ordem, quer para a compreensão da impugnação pela parte contrária e pelo tribunal de recurso quer ainda para simplificar a reponderação daquele tribunal, que o seu incumprimento acarreta, fatalmente, a rejeição do recurso, nos termos expressos no n.º 1 do art. 690.º-A do CPC.

A Apelante, como se aludiu, impugnou a grande maioria das respostas dadas à base instrutória, as quais constam do despacho de fls. 1183 a 1193, e que antes foram identificadas, estando assim especificados os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados. Por outro lado, discriminou também os concretos meios probatórios, mencionando genericamente as testemunhas e os documentos que impunham decisão diversa.

No contexto descrito, podendo aceitar-se o cumprimento do ónus de alegar por parte da Apelante, não há motivo para a rejeição do recurso.

Mas, seguindo-se a reapreciação das provas em que assentou a parte impugnada da decisão relativa à matéria de facto, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 712.º do CPC, desde logo, ressalta uma questão, traduzida na circunstância da Apelante não ter impugnado, verdadeiramente, a decisão sobre a matéria de facto.

Com efeito, as respostas aos trinta e oito quesitos da base instrutória foram fundamentadas, exaustivamente, tal como consta de fls. 1186 a 1193, com a indicação das testemunhas e documentos determinantes da livre convicção do julgador. A Apelante, porém, limitou-se a esclarecer o sentido diverso das respostas impugnadas, com a simples invocação dos depoimentos de certas testemunhas e de variados documentos, que também identifica. Não alegou, no entanto, qualquer erro de apreciação (incluindo o erro flagrante ou evidente), nomeadamente dos depoimentos e documentos levados em consideração pelo julgador, na formação da sua convicção, e convenientemente expressos na fundamentação da decisão recorrida.

Neste contexto, a impugnação não se dirige tanto para a reapreciação da prova, como é o seu fim, mas antes para abalar a credibilidade das testemunhas e a idoneidade dos documentos, sem contudo especificar, para o efeito, qualquer motivo.

Evidentemente, tanto um efeito como o outro não se obtêm com a impugnação da matéria de facto, dispondo as partes de outros meios processuais para alcançar tal desiderato, como sucede, designadamente, com a contradita (art. 640.º do CPC).

Acontece que esses meios processuais têm um tempo próprio para poderem ser utilizados e, nesta fase, tal uso encontra-se naturalmente precludido. Por isso, a falta de credibilidade das testemunhas ou a falta de idoneidade dos documentos, não expressamente alegada, não pode servir, agora, de fundamento à reapreciação da prova, nos termos do art. 712.º, n.º 2, do CPC. Neste sentido, e em caso com alguma similitude, decidiu o acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa de 4 de julho de 2013 (Processo n.º 499/08.7TCFUN.L1-6).

De resto, a posição da Apelante apresenta uma notória e flagrante fragilidade, não só por a impugnação se estender a uma parte substancial da base instrutória, nada comum, como também, sendo a decisão bastante exaustiva na sua fundamentação, não se contrariar a sua motivação, nomeadamente quanto aos depoimentos e documentos que, para a prova, foram determinantes.

Nesta perspetiva, perante a fundamentação das respostas dadas à base instrutória e a ausência de alegação que, expressamente, a contrarie, sem especificação ainda de qualquer erro na formação da convicção do julgador, improcede, de forma manifesta, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, mantendo-se esta, sem qualquer modificação, nos termos anteriormente descritos.

2.4. Delimitada a matéria de facto, interessa agora apreciar a questão substantiva colocada pelo recurso de apelação.

A sentença recorrida qualificou a relação comercial, estabelecida entre a Apelante e a Apelada, como sendo um contrato de distribuição atípico, qualificação jurídica que não vem sequer questionada, nem se justificava.

Com efeito, como já se escreveu no acórdão subscrito em 26 de abril de 2012 (acessível em www.dgsi.ptProcesso n.º 4224/07.0TBOER.L1-6), os contratos de distribuição destinam-se a disciplinar as relações jurídicas entre o produtor de bens ou serviços e o distribuidor, regulando a atividade de intermediação comercial que se interpõe antes dos produtos chegarem aos consumidores (A. PINTO MONTEIRO, Do Regime Jurídico dos Contratos de Distribuição, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. I, 2002, pág. 565).

Como contratos de distribuição comercial mais correntes, no âmbito da distribuição indireta integrada, contam-se o contrato de agência, concessão e franquia, sendo o primeiro a “figura-matriz” dos contratos de distribuição (A. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Comercial, I, 2001, págs. 494 e 496).

Para além desses contratos, podem ainda existir outros contratos de distribuição, como no caso da denominada distribuição autorizada, nos termos da qual um produtor confere a um comerciante, escolhido em razão da sua aptidão técnica e comercial, a qualidade distribuidor dos seus produtos (HELENA BRITO, O Contrato de Concessão Comercial, 1990, págs. 13 e 14).

Esta modalidade de distribuição, em que o risco e as despesas são transferidos para o distribuidor, representando uma vantagem para o produtor, não inclui a obrigação de exclusividade do produtor, nem a atribuição ao distribuidor da exclusividade de revenda dos produtos. No quadro da distribuição autorizada, o distribuidor não fica com a obrigação de promover a revenda dos produtos, mas apenas com a obrigação de orientar a clientela para os produtos que distribui (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de janeiro de 2009, acessível em www.dgsi.ptProcesso n.º 2008/08-7). Por isso, enquanto o distribuidor consegue uma posição privilegiada ou preferencial na distribuição dos produtos, o produtor fica também com a possibilidade, ainda que limitada, de seguir e orientar a comercialização dos seus produtos, o que permite afirmar que, economicamente, o distribuidor está integrado na rede de distribuição do produtor (HELENA BRITO, Ibidem, págs. 13 e 15).

Nesta perspetiva, atendendo aos termos como a atividade da Apelante foi desenvolvida, de forma estável e duradoura, confirma-se uma clara vinculação das partes a um contrato de distribuição atípico, nomeadamente de distribuição autorizada. A Apelante, por essa via contratual, integrou-se na rede de distribuição da Apelada.

Tratando-se de um contrato atípico, o regime legal aplicável é o que resulta da interpretação e integração do estipulado pelas partes e, subsidiariamente, dos princípios e regras gerais dos contratos e do regime do contrato com mais afinidades, como seja o contrato de agência (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de fevereiro de 2006, acessível em www.dgsi.pt – Processo n.º 9219/2004-6).

O regime jurídico do contrato de agência ou representação comercial encontra-se estabelecido no DL n.º 178/86, de 3 de julho, alterado pelo DL n.º 118/93, de 13 de abril, na sequência da Diretiva n.º 86/653/CEE, do Conselho, de 18 de dezembro de 1986.

Resulta dos autos que a Apelada, em 9 de março de 2005, comunicou à Apelante a cessão do contrato que reciprocamente as vinculava, com efeitos a partir de setembro de 2005, baseando-se na falta de pagamento de faturas, no valor de € 141 746,74, depois da insistência no pagamento se ter frustrado.

A Apelante, não obstante dispor de um prazo de noventa dias para liquidar as faturas, não observava tal prazo.

Deste modo, dado o reiterado e grave atraso no pagamento das faturas liquidadas, com incumprimento do contrato, por violação da obrigação de pagar o preço devido, assistia à Apelada legitimidade para resolver o contrato de distribuição, designadamente nos termos dos artigos 801.º, n.º 2, e 432.º, n.º 1, do Código Civil (CC). Na verdade, a falta do pagamento do preço dos produtos adquiridos pela Apelante foi sempre sistemática, ascendendo ultimamente ao valor de € 141 746,74, reconhecido pela compradora, sendo certo ter chegado a atingir o valor de € 234 023,83, nomeadamente em 12 de fevereiro de 2002.

Alegou a Apelante que a outra contraente alterou, unilateralmente, as condições do contrato de distribuição, nomeadamente a redução do plafond de crédito.

De facto, os autos mostram que o plafond começou por ser de € 500.000,00 (assegurado por uma seguradora da Apelada), passou depois para € 300.000,00 e, já nos anos de 2002 e 2003, estava fixado no valor de € 130.000,00.

Não resulta dos autos, contudo, que a alteração, quanto ao limite do plafond de crédito, tivesse provindo unicamente da Apelada. Esta até podia ter tomado a iniciativa porque, relacionando-se contratualmente com a seguradora que garantia o crédito, certamente, também suportava os seus encargos. Mas, tais alterações foram consentidas pela Apelante, ainda que tacitamente, pois não consta da matéria de facto qualquer oposição ou extração de qualquer efeito jurídico decorrente da sua alteração, continuando com a relação jurídica comercial iniciada em 1994. Havendo mútuo consentimento dos contraentes, mesmo que tácito de uma das partes, o contrato pode ser modificado (art. 406.º, n.º 1, do CC).

Por outro lado, também não resulta da matéria de facto que, no âmbito da relação contratual estabelecida, a alteração do plafond de crédito não fosse admissível, sendo certo que, num mercado comercial dinâmico e concorrencial, os ajustamentos negociais são frequentes, para mais tratando-se de um contrato celebrado por tempo indeterminado.

Assim, sendo a alteração contratual lícita e igualmente lícita a resolução do contrato, nomeadamente por incumprimento da Apelante, não é possível imputar à Apelada um comportamento suscetível de ser enquadrado no âmbito do instituto do abuso do direito, consagrado no art. 334.º do CC, designadamente por manifesta ofensa ao princípio da boa fé. Da matéria de facto provada, com efeito, não se retira qualquer circunstancialismo que, de forma ostensiva e evidente, tipifique a violação do cumprimento das regras da boa fé, nomeadamente no âmbito contratual.

A resolução do contrato, para além de ser lícita, podia naturalmente ser realizada a todo o tempo, na medida da persistência da situação de incumprimento justificativa da sua resolução. Permanecendo a situação de incumprimento grave e reiterado, a resolução do contrato podia ter sido declarada no tempo que o credor entendesse.

Todavia, sendo o facto instantâneo, a declaração de resolução do contrato está sujeita ao prazo de um mês após o conhecimento do facto, como se prescreve, especificamente, no contrato de agência (art. 31.º do DL n.º 178/86, de 3 de julho). 

Mesmo que a causa da extinção do contrato fosse a denúncia, também o prazo de aviso prévio corresponderia a uma antecedência razoável e adequada, dada a regra de três meses, estabelecida no contrato de agência com duração superior a três anos – art. 28.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 178/86.

Com efeito, a extinção do contrato foi comunicada a 9 de março de 2005, mas com os efeitos reportados apenas a partir de setembro de 2005, o que equivale a um prazo superior a três meses, praticamente a atingir seis meses.

No âmbito do contrato de agência, prevê-se ainda a denominada indemnização de clientela, destinada a compensar o agente dos proveitos de que, após a cessação do contrato, poderá continuar a usufruir a outra parte, como decorrência da atividade desenvolvida por aquele (art. 33.º). Mais do que uma indemnização, é uma compensação atribuída ao agente, no termo do contrato, pelos benefícios de que a outra parte continua a auferir com a clientela angariada ou desenvolvida pelo agente, aproximando-se do instituto do enriquecimento sem causa, com realça A. PINTO MONTEIRO (Contrato de Agência, 5.ª edição, 2004, pág. 133).

O regime jurídico do contrato de agência, como já se deixou subentender, pode ser aplicado a outros contratos de distribuição comercial, como se refere no preâmbulo do DL n.º 178/86, de 3 de julho. Para o efeito, nomeadamente da indemnização de clientela, é necessário que se possa afirmar uma analogia de situações que a justifique e a outra parte venha a beneficiar da clientela angariada pelo distribuidor que cessou a atividade (A. PINTO MONTEIRO, Ibidem, págs. 138 e 139).

Se bem que a indemnização de clientela não tenha uma finalidade sancionatória, como se referiu, o certo é que não é devida, se o contrato tiver cessado por razões imputáveis ao distribuidor, como resulta do disposto no n.º 3 do art. 33.º do DL n.º 178/86, introduzido pelo DL n.º 118/93, de 13 de abril.

Esta questão, discutível e com soluções diferenciadas a nível do direito comparado (A. PINTO MONTEIRO, Contrato de Agência (Anteprojeto), BMJ n.º 360, 1986, pág. 116), ficou normativamente resolvida, em conformidade com a Diretiva 86/653/CEE do Conselho de 18 de dezembro de 1986.

Já se viu, no caso presente, que o contrato de distribuição foi resolvido, por incumprimento contratual imputável à distribuidora, pelo que, sendo assim, e por aplicação analógica do disposto no n.º 3 do art. 33.º do DL n.º 178/86, a Apelante não tem direito à indemnização de clientela pela cessação do contrato.

  Neste contexto, sendo lícita a resolução do contrato de distribuição atípica e não sendo devida a indemnização de clientela, ou qualquer outra, nomeadamente por ausência de facto ilícito, não assiste à Apelante qualquer direito de crédito sobre a Apelada.

Nestes termos, improcede também o recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida, proferida em conformidade com o direito aplicável.

2.5. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I.A acareação, podendo ter lugar em qualquer altura da instrução, tem por fundamento a oposição direta entre depoimentos sobre o mesmo facto.

II.Essa oposição direta (“clara”, “manifesta” e “flagrante”) pressupõe que os depoimentos narrem o mesmo facto de forma diretamente oposta.

III.Não se justifica a acareação, por falta de interesse para a descoberta da verdade, quando o depoimento de uma das testemunhas se apresenta desvalorizado, pela falta de isenção e imparcialidade, e existem outros meios de prova que podem esclarecer os factos.

IV.O reiterado e grave atraso no pagamento de faturas liquidadas, provocando o incumprimento do contrato de distribuição, por violação da obrigação de pagar o preço, confere legitimidade à outra parte para resolver o contrato.

V.Havendo mútuo consentimento dos contraentes, mesmo que tácito de uma das partes, o contrato pode ser modificado.

VI.Permanecendo a situação de incumprimento, a resolução do contrato pode ser declarada no tempo que o credor entender.

VII.Sendo o contrato de distribuição resolvido, por incumprimento contratual imputável à distribuidora, e por aplicação analógica do disposto no n.º 3 do art. 33.º do DL n.º 178/86, aquela não tem direito à indemnização de clientela pela cessação do contrato.

2.6. A Agravante/Apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

2)Negar provimento à apelação, confirmando a sentença recorrida.

3) Condenar a Agravante/Apelante (Autora), no pagamento das custas.

Lisboa, 19 de setembro de 2013

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Fátima Galante)

(Manuel José Aguiar Pereira)