ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Sumário

I-Há impossibilidade de decisão da questão cível enxertada, em sede penal, enquanto o arguido/demandado não for notificado da dedução do pedido cível contra si deduzido.
II- Em sede processual penal, impõe-se a notificação pessoal do arguido/demandado (seja por via postal, sendo o TIR válido, seja por contacto pessoal), e não sendo esta possível, não há lugar á aplicação subsidiária de normas do Código de Processo Civil, ao abrigo do disposto do artº 4º, do CPP, por não haver lacuna que deva ser integrada, o que exclui a aplicação das regras da citação edital (artº 248º, CPC).
III-Tal situação, de impossibilidade de notificação pessoal do demandado, impede o demandante de ver apreciado o seu pedido, o que configura uma situação de grande desvantagem na manutenção da adesão, a justificar que o tribunal, ao abrigo da disposição cautelar prevista no nº 3 do artº 82º do CPP, remeta oficiosamente as partes para os meios comuns.
(sumário elaborado por Conceição Gonçalves)

Texto Integral

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – relatório

1. Por decisão de 12.12.2012 foi proferido despacho que, julgando verificada excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir da demandante, determinou a absolvição dos demandados da instância cível enxertada nos presentes autos.

2. Inconformado, veio o demandante cível i.s.s.-i.p. (Instituto da Segurança Social, I.P.) recorrer de tal decisão, formulando o seguinte pedido a final:

Deve ser revogado o douto despacho recorrido e ordenado o prosseguimento da instância civil para julgamento do pedido civil.

3. Foi apresentada resposta pelo Mº Pº, no sentido da procedência do recurso.

4. O recurso foi admitido.

5. Neste tribunal, a Srª. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se igualmente pela procedência do recurso. 

II – questão a decidir.

a. Do prosseguimento da acção cível enxertada. 

iii – fundamentação.

1. O despacho alvo de recurso tem o seguinte teor:

A finalidade última da acção declarativa de condenação é a de obter, o demandante, título executivo (sentença declarativa de condenação) que lhe permita instaurar acção executiva para cobrança coerciva dos montantes em cujo pagamento os devedores tenham sido condenados por sentença transitada em julgado.

Resulta de fls. 403 e seguintes que a demandante já intentou acção executiva para cobrança coerciva das quantias em causa nos presentes autos e por ela peticionadas em sede de pedido civil deduzido.

Assim sendo e por ser já detentora do respectivo título executivo, não tem, a demandante, interesse em agir no que à acção cível enxertada nos presentes autos diz respeito.

Em face do exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 493, nºs 1 e 2, 494 (enumeração exemplificativa) e 495, todos do CPC, julgo verificada excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir da demandante e absolvo os demandados da instância cível enxertada nos presentes autos.

Notifique.

Após trânsito, arquive.

2. As razões de discórdia do recorrente, expressas nas suas conclusões, são as seguintes:

 1º No processo penal deve ser arbitrada indemnização não só quando os factos preenchem os requisitos da responsabilidade criminal, mas ainda quando, não existindo responsabilidade criminal, os factos preenchem os requisitos da responsabilidade civil conexa, de âmbito menor.

2° Por outro lado, recorde-se que a indemnização, no caso, não assenta na responsabilidade contratual, mas, como acima se evidenciou, nos mesmos pressupostos da responsabilidade penal (acto ilícito) ainda que de âmbito menor, por prescindir apenas do pressuposto (dolo) bastando para a verificação da responsabilidade civil a mera culpa.

3º O art. 377°, n.° 1, do CPP, obriga à condenação do arguido e/ou do responsável civil, na indemnização, mesmo em caso de absolvição penal, sempre que o pedido de indemnização se vier a mostrar fundado.

4° No caso dos autos, verificando-se a dificuldade em notificar os arguidos deve-se proceder à citação edital ou recorrer ao instituto da contumácia, relativamente aos gerentes, com vista a garantir a tutela das expectativas legítimas do Recorrente.

5º Do mesmo modo, atente-se no n.° 1 do artigo 73.° do CPP, que refere:

“ O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal”.

6º O despacho de que se recorre viola o douto acórdão de fixação de jurisprudência n° 1/2013 de 7 de Janeiro de 2013

7º E tal como bem refere o STJ “ A lei indica, com suficiente clareza, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto

8º Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não "faz lei", parece despropositado tomar outro caminho que não o acolhido no Plenário do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada» (Cfr acórdão do STJ, n.° 04P711, datado 29/04/2004, no qual foi relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Santos Carvalho, disponível in www.dgsi.pt.).

9º Da mesma forma, encontra-se igualmente inobservado o n.° 3 do artigo 445.° do CPP que dispõe:

"A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”, e no acórdão de fixação de jurisprudência n° 3/2002 do STJ, bem como, não fundamenta porque diverge do STJ.

10° Uma vez que está em causa responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), nos termos do artigo 483.°

11° Como sustenta o Acórdão da Relação do Porto de 28/02/2007, o pedido civil que é deduzido e conhecido no processo-crime de abuso de confiança não respeita a qualquer acto de natureza tributária, mas sim à obrigação de indemnizar por danos causados, baseada na responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, nos termos do art. 483.°, n.° 1, do Código Civil, que se subsume - como vimos - no princípio da adesão.

12° Ainda que esteja a correr termos uma execução numa SPET, o ISS, IP mantêm o interesse em agir em sede de pedido de indemnização civil num processo por crime de abuso de confiança, como aliás sustenta o Acórdão da Relação de Lisboa de 03/03/2010, destruindo o argumento da inexistência de tal interesse pelo facto de o ISS, IP estar munido de um título executivo contra os arguidos, título esse que segundo uns poucos definiria com suficiente precisão os seus direitos.

13° O título executivo na SPET e uma sentença condenatória não se referem à mesma obrigação, pois a responsabilidade pelo pagamento das contribuições não se confunde com a responsabilidade civil emergente da eventual prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, como sustenta o Prof. Germano Marques da Silva (“Direito Penal Tributário - Sobre as Responsabilidades das Sociedades e dos seus Administradores Conexas com o Crime Tributário”, Lisboa 2009).

14° Não se pode dizer que o demandante ISS, IP pretende usar o processo declarativo para definir um direito que já se encontrava estabelecido em termos idênticos num título com manifesta força executiva, como o que está presente nas execuções nas SPET, porque tal não corresponde à verdade.

15° Como refere o Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2009, a causa de pedir invocada no pedido civil deduzido pelo ISS, IP não é a obrigação legal que impendia sobre os arguidos de descontar nas remunerações dos trabalhadores da sociedade arguida as suas contribuições obrigatórias para a segurança social e de as entregar à respectiva entidade, bem como a percentagem que por lei cabe à entidade patronal, mas antes o facto ilícito de que os arguidos estão acusados em co- autoria e que constitui o crime de abuso de confiança previsto e punido no n.° 1 do art. 107.° do RGIT.

16° Assim, a causa de pedir subjacente ao título no processo executivo é o incumprimento da obrigação legal de entregar as prestações devidas à segurança social, enquanto que a causa de pedir subjacente ao pedido de indemnização civil é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social que a acusação imputa em co- autoria aos arguidos.

17° Ora, a boa jurisprudência (v.g. Acórdãos STJ de 11/12/2008 e de 29/10/2009) sustenta que a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina como vimos a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.

18° Nem há identidade da causa de pedir, pois a pretensão deduzida nas execuções nas SPET e a pretensão formulada nos pedidos de indemnização civil não procedem do mesmo facto jurídico (cfr. art.º 498.°, n.° 4, do CPC), o que determina a impossibilidade de verificação de litispendência.

19° Estamos perante causas de pedir diferentes no processo executivo e no pedido de indemnização civil no processo-crime, os sujeitos a quem é imputada responsabilidade são distintos.

21° Como enuncia o Acórdão da Relação de Lisboa de 03/03/2010, a responsabilidade do gerente da sociedade é, quanto às obrigações perante a segurança social, de natureza subsidiária (arts. 22.° n.° 3 e 24.° da LGT), só se efectivando como enunciam os Acórdãos do STJ de 26/01/2006 e de 11/12/2008, por reversão do processo de execução nas SPET, o que está sujeito aos condicionalismos previstos na lei (art.º 23.° ns. I e 2 da LGT).

23° Não é demais sublinhar, como faz o Acórdão da Relação de Évora de 30/06/2004: nos termos do art.º 162° do CPPT a execução na SPET só pode ser intentada contra a sociedade, devedora originária, só depois é que poderá reverter.

24° Por outro lado, na responsabilidade civil por facto ilícito o arguido gerente, como co-autor, responde solidariamente com a sociedade arguida pelo pagamento da indemnização por danos causados à segurança social, nos termos do art. 497.° do Código Civil, art.º 3.° do RGIT, arts. 8º e 129.° do CP, razão pela qual, para obter título executivo contra todos os arguidos - incluindo os não susceptíveis de figurar originariamente no título na SPET - sempre o ISS, IP terá que formular o pedido civil contra todos no processo crime (Neste sentido, (Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, vol. I, Almedina, 1998, págs. 232-234, e Abílio Neto, Código De Processo Civil Anotado, 16.a ed., pág. 630, nota 15.).

25° Como afirma o Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2009, faz toda a diferença em termos de garantias de exequibilidade patrimonial por parte da segurança social.

26° Como também decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2007, a existência de título executivo, ou título de igual valor, não impede que se demandem os arguidos no enxerto civil deduzido em processo penal. Sendo embora o título executivo presente nas SPET equiparável à sentença criminal, a verdade é que, como refere o Acórdão da Relação de Guimarães de 21/10/2002, o valor de um e outra são diferentes, pois enquanto que a oposição à execução baseada em sentença só pode ter por base algum dos fundamentos do art.0 813° do CPC, na execução baseada no título emitido pela segurança social, os fundamentos de oposição são muito mais alargados, como resulta do art° 286.° do C.P.Tributário.

27° É que o título executivo de que a Segurança Social dispõe nas SPET não lhe garante os mesmos direitos de exequibilidade relativamente ao gerente, cuja responsabilidade é meramente subsidiária, isto é, só pode fazer reverter a execução contra este depois de executado o património da sociedade.

28° Enquanto que, obtendo uma sentença condenatória que o responsabilize solidariamente pelo pagamento das mesmas prestações, o assistente pode accioná-lo imediatamente e a título principal e executar desde logo o seu património individual, sem qualquer moratória.

29° A única consequência é que o assistente não poderá servir-se ao mesmo tempo dos dois títulos executivos para cobrar a mesma quantia (podendo contudo utilizar os dois títulos executivos para cobrar quantias distintas), cobrando-a através de um dos títulos, o outro fica inutilizado.

30° E, como alerta o Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2009, não se diga que, com o reconhecimento dos créditos a favor do Estado em dois processos diferentes, acarreta prejuízo para a arguida, pois que esse prejuízo só se efectivará com o pagamento em duplicado. E, desde que pague uma vez, a arguida poderá então requerer, nessa altura, a extinção da dívida, pelo pagamento. E se por mero absurdo pagasse duas vezes, sempre poderia alegar o enriquecimento sem causa por parte do Estado.

31° Por último são distintos os mecanismos prescricionais previstos para as execuções fiscais (art.° 49.° n.° 1 da Lei de Bases da Segurança Social e 175.° CPPT), e para os processos criminais (art° 21.° do RGIT), pelo que podemos dizer, quanto ao efeito que a prescrição do procedimento em curso nas SPET terá na responsabilidade civil emergente da prática de crime de abuso de confiança contra a segurança social, que o mesmo é nenhum.

32° Não configura excepção à regra o facto de a legislação tributária permitir ao demandante obter o pagamento das quantias em dívida por outros meios, concretamente pela execução fiscal.

33° Não obstante o Instituto ser portador dum título executivo, a verdade é que a responsabilidade da Sociedade demandada assume, a natureza de responsabilidade subsidiária e a responsabilidade conjunta dos gerentes assumirá a natureza de responsabilidade solidária.

34° Encontram-se violados no douto despacho impugnado proferido pelo Tribunal “a quo ” os seguintes preceitos legais: Artigos 71°, 73° n.° 1, 311°, e 445° n.° 3 todos do Código de Processo Penal; Artigo 483° do Código Civil, e Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 1/2013 (DR l-A Série de 07/01/2013)

3. Apreciando.

Para melhor se situar a questão, esclarecem-se os seguintes pontos:

a. Neste processo, foram três arguidos (uma sociedade e duas pessoas singulares), acusados da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts. 105°, n°s 1 a 5 e 107°, n° 1 do RGIT, com referência ao disposto nos arts. 6º e 7º do mesmo diploma;

b. O i.s.s.-i.p. deduziu pedido de indemnização civil contra os três arguidos.

c. A acusação e o pedido cível foram recebidos e ordenada a respectiva notificação aos arguidos/demandados.

d. Não foi todavia possível proceder à sua notificação, por ser desconhecido o seu paradeiro.

e. Foi proferido despacho declarando extinto o procedimento criminal, por prescrição, em 30 de Maio de 2012.

f. Foi então pedido pelo ora recorrente o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido cível deduzido.

g. Em 3 de Outubro de 2012, foi notificada a demandante cível para informar o paradeiro dos demandados.

h. Em 17 de Outubro de 2012, o i.s.s.-i.p. informou desconhecer tal paradeiro, solicitando a realização de pesquisas à base de dados do M. da Justiça e requerendo ainda que, caso não fosse viável a sua notificação, se procedesse a notificação edital.

i. Em 6 de Dezembro de 2012, o ora recorrente vem ainda informar que todos os processos executivos propostos conta os demandados se mostram suspensos, por insolvência decretada em 19 de Novembro de 2008, anexando documentos que ilustram tais processos executivos.

j. Foi então proferido, em 12 de Dezembro de 2012, o despacho acima transcrito e ora alvo de recurso.

4. Vejamos então.

i. No caso em apreço, constata-se a existência de uma questão prévia – que obsta ao conhecimento do mérito da causa – e que é de conhecimento oficioso, como adiante melhor se referirá.

Na verdade, e embora o tribunal “a quo” tenha entendido que ocorre uma excepção inominada fundada na falta de interesse em agir da demandante, que determina a absolvição da instância, pugnando o recorrente pela sua não verificação, a verdade é que, decorre dos autos a existência de um impedimento de ordem processual, de conhecimento prévio ao da aludida excepção.

ii. Estamos a referir-nos à circunstância de os demandados nem sequer se mostrarem notificados do pedido cível deduzido e de ser totalmente desconhecido o seu paradeiro, há já longos anos, pese embora as inúmeras diligências que foram desenvolvidas no sentido de se obter tal informação, ao longo de todo o processado.

iii. E a questão que primeiramente surge e que tem de ser resolvida é a seguinte:

Para que o processo possa seguir seus termos e possa ser apreciado o pedido cível deduzido pelo recorrente, em qualquer uma das suas vertentes – e, desde logo, na do interesse em agir da demandante – necessário se mostra que seja legalmente possível que o tribunal “a quo” possa conhecer esse pedido cível, pese embora a ausência de notificação aos demandados e a impossibilidade da sua notificação pessoal.

E o que sucede é que tal operação não se mostra possível, face à lei, em sede de processo penal.

Expliquemos porquê. 

iv. Nos termos do art.º 71 do C.P.P o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, o que corresponde ao chamado princípio da adesão ou da interdependência.

Nos presentes autos, o recorrente deu cumprimento a tal princípio, deduzindo pedido cível, que foi oportunamente admitido.

v. Cremos não sofrer dúvidas que, atenta tal obrigatória adesão, o pedido cível passa a submeter-se às regras do processo penal, como aliás refere o Ac. do STJ de 9.06.96, proc. 6/95, citado por Maia Gonçalves Código, de Processo Penal Anotado, 12ª ed., pág. 243. “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada quantitativamente e nos seus pressupostos pela lei civil, mas no aspecto processual é regulada pelo C.P. Penal”.

vi. Significa isto que, a partir do momento em que o demandante interpõe uma acção cível enxertada na acção penal, sabe que terá de se submeter, em termos processuais, ao que se mostra definido em sede criminal e não na cível.

Tanto assim é que ninguém discute que, nestes processos que correm na competência criminal, não se mostra prevista ou possível a realização de audiência preliminar, selecção da matéria de facto, resposta a quesitos (julgamento da matéria de facto), reclamação, nem se mostram aplicáveis, para efeitos da atribuição da competência a tribunal colectivo ou singular, as regras vigentes no processo civil, por exemplo.

vii. Por seu turno, o artº 82º nº 3 do C.P. Penal estabelece a possibilidade do tribunal remeter oficiosamente as partes para os tribunais civis – isto é, prevê mais uma excepção ao princípio da adesão, um princípio cautelar, para além das que se mostram vertidas no artº 72 do C.P. Penal – estipulando que “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal”.

E é essa, precisamente, a questão que aqui está em causa, a de saber como entender e enquadrar a excepção prevista no nº 3 do citado artigo 82º do C.P. Penal e se o caso que ora apreciamos – dadas as suas particularidades – se deve entender como abrangido na mesma.

viii. De facto, e ao inverso do que o recorrente invoca, não se põe aqui em questão a violação nem do Acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2002 que cita - pois o tribunal “a quo” não se declarou impedido de realizar o julgamento nestes autos ou de conhecer do pedido cível, por força da prescrição do procedimento criminal – nem do princípio da adesão, uma vez que o pedido de indemnização foi liminarmente admitido e as razões que fundam o seu não prosseguimento, como se demonstrará, prendem-se com a existência de razões que constituem, precisamente, uma excepção legal a tal princípio.

ix. Prosseguindo.

Atento o teor do citado artº 82 nº3 do C.P. Penal, constatamos que aí se mostram previstas duas situações que fundam a possibilidade de o tribunal remeter as partes para os meios comuns, a saber:

- Quando surjam questões relativas ao pedido cível que inviabilizem uma decisão rigorosa;

- Quando surjam questões relativas ao pedido cível, susceptíveis de gerar incidentes que levem ao retardamento intolerável do processo penal.

x. O caso que ora apreciamos reconduz-se à primeira das situações, uma vez que se constata a ocorrência de um problema processual que, em bom rigor, determina que tal excepção seja levada até ao seu extremo – a impossibilidade de, neste processo, se poder sequer chegar a conhecer e decidir o pedido cível. 

xi. De facto, apenas se mostraria possível o prosseguimento dos autos, caso se mostrasse viável a aplicação subsidiária das normas do C. P. Civil, ao abrigo do disposto no artº 4º do C.P. Penal, o que permitiria a aplicação das regras relativas à citação edital (artº 248 do C. P. Civil), bem como as demais normas que permitem, em sede cível, a decisão de um pleito, nos casos em que é desconhecido o paradeiro do demandado e este não se mostra citado do pedido contra si deduzido, permitindo, inclusive, a designação de dia para julgamento e a sua realização.

xii. O cerne da questão é precisamente esse – existe ou não lacuna, em sede processual penal, que possa e deva ser integrada, pela aplicação analógica das normas processuais civis, no que se refere a esta situação?

E a resposta – com o devido respeito por opinião contrária – é, em nosso entender, negativa; isto é, não só não há lacuna como, ainda que a mesma se verificasse, não poderia ser aqui aplicável o vertido no C. P. Civil, a respeito de citação edital, por se mostrar tal solução oposta ao que a legislação processual penal estatui a tal propósito.

xiii. Na verdade, o artº 113 nº10 do C.P. Penal dispõe o seguinte:

As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado (…).

xiv. O que daqui decorre é simples:

Existe norma expressa, em sede processual penal, que impõe a notificação pessoal (seja por via postal sendo o TIR válido, o que não é o caso; seja por contacto pessoal) ao arguido/demandado do pedido cível contra si deduzido.

E se assim é, não existe aqui lacuna que possa ser suprida, por via de aplicação ao processo penal das regras relativas à citação edital previstas no C. P. Civil; isto é, não há lugar à aplicação do disposto no artº 4º do C.P. Penal, nem se justifica qualquer aplicação subsidiária daquelas.

xv. O que esta conclusão implica é, na prática, a impossibilidade de decisão da questão cível enxertada, em sede penal, enquanto os demandados não forem notificados do pedido deduzido, sendo certo que, no caso que aqui apreciamos, tal notificação terá de ser feita por contacto pessoal, uma vez que a via postal ou edital se mostra afastada.

xvi. Ora, as razões que presidiram à consignação da excepção vertida no artº 82 nº3 do C.P. Penal são a possibilidade de o juiz avaliar as questões suscitadas pela dedução do pedido cível, reenviando-o para os meios comuns, se concluir que ocorre grande desvantagem na manutenção da adesão (vide Ac. de 2.12.09, proc. nº150/98.1GTALQ-A.L1-3, relatora Conceição Gonçalves).

O que resulta do que deixámos exposto é, precisamente, que a manutenção da adesão trará grandes desvantagens para o próprio recorrente, uma vez que teria de aguardar o eventual conhecimento do paradeiro dos demandados e sua notificação por contacto pessoal, para poder obter uma decisão, sendo certo que, face aos anos já decorridos e às diligências sucessivamente realizadas para tal fim, sem qualquer sucesso, é mais do que duvidoso que se consiga alcançar sequer tal desiderato.

xvii. Para além do mais, e no estado actual do processado, não é sequer possível determinar-se – como pretende o recorrente – o prosseguimento da instância civil para julgamento do pedido civil, pois tal implicaria, desde logo, a designação de dia para julgamento, algo que se mostra vedado ao tribunal realizar, por a lei processual penal o não permitir.

xviii. Assim sendo, no caso concreto, tem de se concluir que, face ao circunstancialismo atrás descrito, a única forma de se poder ultrapassar este impasse processual – que impede o próprio recorrente de ver apreciado o seu pedido – é através da disposição cautelar prevista no mencionado artº 82 nº3 do C.P. Penal, que permite a cessação do princípio da adesão, mostrando-se justificada a decisão de reenvio para os meios comuns.

5. Diga-se ainda, em sede final, que o raciocínio que ora se expôs se mostra reforçado nos seus fundamentos, se tivermos em conta que a questão da notificação edital para apreciação do pedido cível, em sede de processo penal, na tese proposta pelo recorrente, se pode suscitar em qualquer fase processual (desde que posterior ao inquérito e/ou à instrução), em que se desconhece o paradeiro dos demandados, não existindo TIR e mostrando-se inviável a notificação pessoal, independentemente de o processo-crime estar já extinto ou ainda em curso.

i. Na verdade, se as regras da notificação edital, previstas no processo civil, fossem aplicáveis em jurisdição criminal, teríamos de admitir como possível que num processo-crime em pleno curso, em que se não mostra possível designar dia para julgamento da matéria crime, se mostraria admissível proceder-se à notificação edital de um demandado (ainda que o mesmo até estivesse declarado contumaz), podendo proceder-se ao julgamento e decisão do pedido cível e, posteriormente, quando fosse conhecido o paradeiro do arguido e se mostrasse viabilizada a sua notificação pessoal, proceder-se-ia a nova audiência de julgamento, para apreciação da matéria crime, com elaboração de nova e autónoma decisão, desta vez restrita à questão penal.

ii. Como é bom de ver, não cremos que tal solução seja remotamente admissível em termos legais (mas seria uma forçosa consequência do entendimento que o recorrente perfilha quanto à aplicabilidade das normas de natureza processual civil aos pedidos cíveis enxertados) nem, tanto quanto é do nosso conhecimento, defendida por quem quer que seja, quer a nível jurisprudencial, quer doutrinal.

iv – decisão.

Face ao exposto, acorda-se em julgar verificada a questão prévia acima enunciada, pelo que se revoga o despacho recorrido e se remetem as partes para os tribunais civis, ao abrigo do disposto no art.° 82°, n.° 3 do Cód. Processo Penal.

Sem tributação.

       Lisboa, 18 de Dezembro de 2013

                                                      Margarida Ramos de Almeida-relatora

  Ana Paramés