1. - O registo de embarcações de recreio, previsto no Regulamento da Náutica de Recreio – aprovado pelo DLei n.º 124/2004, de 25-05 –, de pendor técnico e de propriedade, pelas limitações que lhe são inerentes, não assume a fé pública registal característica do registo predial, faltando-lhe uma semelhante presunção de verdade, por inexistência de actuação de um princípio de legalidade substancial, não logrando desencadear a aquisição de direitos dominiais.
2. - Assim, não opera neste âmbito o disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CRegPred., não sendo possível a aquisição do direito de propriedade sobre embarcações de recreio por via do registo, de si não vocacionado para publicitar a situação jurídica das embarcações em vista da segurança do respectivo comércio jurídico.
3. - O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, pressuposto do decretamento de procedimento cautelar não especificado (art.º 381.º, n.º 1, do CPCiv.), obriga à alegação e prova – esta em termos sumários – pelo requerente, não só do perigo de que outrem cause uma lesão grave do direito, mas ainda que essa lesão seja irreparável ou dificilmente reparável.
4. - O direito a acautelar é o que se pretende fazer valer na acção principal e o perigo de lesão reporta-se à morosidade própria dessa acção, por forma a obstar a que essa morosidade impeça ou inviabilize a realização de tal direito.(sumário do Relator)
“AY… A/S”, sociedade de direito norueguês, com sede em M…, 19 C, 4020 S…, Noruega,
intentou os presentes autos de procedimento cautelar não especificado, nos termos do disposto no art.º 381.º do Código de Processo Civil então em vigor (o decorrente da Reforma de 2007, doravante CPCiv.), contra
1.ª - “N…, S. A.”, com sede no B.., e
2.ª - “S…, LDA.”, com sede no Edifício V…,
pedindo que, na procedência do procedimento intentado, fosse apreendida à ordem do processo a embarcação identificada nos autos – embarcação de recreio desportiva de marca “S…”, modelo “M… 70”, denominada “T…”, do ano de 2008, registada na Capitania do Porto de C… sob o n.º de registo ….
Alegou que:
- a 1.ª Requerida, que era proprietária daquela embarcação de recreio, transferiu a propriedade respectiva para a esfera jurídica da 2.ª Requerida;
- em 03-02-2013, a Requerente e a 2.ª Requerida celebraram um contrato de compra e venda daquela embarcação, com todo o equipamento que a compunha, nos termos do qual a 2.ª Requerida vendeu e a Requerente adquiriu a embarcação pelo preço de € 1.015.000,00, a pagar da seguinte forma: € 100 000,00 na data da assinatura do contrato; € 400.000,00 até ao dia 08-02-2013; € 515.000,00 remanescentes até final de Fevereiro de 2013, após confirmação por parte da 2.ª Requerida à Requerente de que a embarcação estava pronta para entrega;
- a Requerente efectuou o acordado pagamento das várias prestações do preço e, com base nos documentos remetidos pela 2.ª Requerida, registou provisoriamente, em 06-03-2013, a embarcação em seu nome junto das autoridades britânicas competentes;
- porém, o novo gerente da 2.ª Requerida telefonicamente transmitiu que pretendia cancelar o contrato relativo à embarcação e devolver os montantes pagos a respeito da mesma, pois a anterior proprietária daquela – 1.ª Requerida – pretendia-a de volta, sugerindo que os representantes da Requerente se reunissem com PG…, representante da 1.ª Requerida, o que estes fizeram;
- então, PG… comunicou aos representantes da Requerente que tinha cancelado o contrato através do qual havia sido transmitida a embarcação para a esfera jurídica da 2.ª Requerida e que queria recuperá-la em virtude de não terem sido cumpridas as obrigações assumidas perante a 1.ª Requerida;
- responderam os representantes da Requerente que a embarcação lhes pertencia e que já tinham pago € 1.015.000,00 por ela, mas não conseguiram demover PG… da referida intenção, vindo a constatar que tal embarcação estava apreendida pelas autoridades marítimas e a tomar conhecimento que havia sido arrestada no âmbito de um procedimento intentado pela 1.ª Requerida contra a 2.ª Requerida, que correu termos no Tribunal Marítimo de Lisboa sob o n.º …/13.3TNLSB;
- a Requerente foi depois informada pela 2.ª Requerida que esta havia posto termo ao negócio de compra e venda que tinha permitido à 2.ª Requerida adquirir a embarcação – posteriormente vendida à Requerente – e devolvido a documentação desta à 1.ª Requerida;
- em 15-03-2013, a 1.ª Requerida registou a propriedade da embarcação novamente em seu nome e cancelou o registo do procedimento cautelar de arresto, estando ela em condições de fazer o que entender com a embarcação, adquirida e paga pela Requerente;
- só com a intervenção do tribunal e a apreensão da embarcação é que a Requerente poderá ver os seus direitos salvaguardados, sendo que a apreensão não causa às Requeridas quaisquer prejuízos e, mesmo que os provocasse, eles seriam inferiores aos sofridos pela Requerente.
Citadas as Requeridas, apenas a 1.ª (“N…”) deduziu oposição, tendo contraposto que:
- em Setembro de 2012, a sociedade “P…, Lda.”, através de PG…, iniciou processo negocial com a 2.ª Requerida, representada pelo seu sócio-gerente à data, J…, para aquisição de uma embarcação nova de recreio, modelo Y… 28 m, a ser construída em Inglaterra, pelo estaleiro naval S…, Ltd;
- a aquisição seria feita parcialmente com recurso a crédito bancário e pela entrega, para retoma, de uma outra embarcação, da marca S… – a aqui em causa –, com todo o equipamento nela incluído, avaliada esta em € 1.000.000,00 (um milhão de euros), propriedade da 1.ª Requerida, e em seu nome registada junto da Capitania do Porto de C…;
- em 28 de Janeiro de 2013, a 2.ª Requerida, por intermédio de J…, enviou para a 1.ª Requerida por email a minuta do contrato promessa de compra e venda, entre a “P…”, como promitente adquirente, e a 2.ª Requerida, como promitente alienante, da referida embarcação, juntando também contrato referente à retoma da embarcação aqui em causa;
- no dia da assinatura do contrato promessa de compra e venda, a “P…” transferiu para a conta bancária indicada pela 2.ª Requerida a quantia de € 500.000,00, para início de pagamento do preço da embarcação de recreio modelo Y… 28 m;
- no dia 30 de Janeiro de 2013, a 1.ª Requerida, empresa do grupo “P…” e proprietária da embarcação aqui em causa (a “T…”), emitiu a declaração para registo de propriedade de tal embarcação, com todo o equipamento nela incluído, a favor da 2.ª Requerida, o que fez através da celebração de contrato de compra e venda pelo preço de € 1.000.000,00, do qual deu respectiva quitação, por conta do pagamento da embarcação nova de recreio modelo Y… 28 m a adquirir pela “P…”;
- no dia 27 de Fevereiro de 2013, a dita “P...”, através de PG..., solicitou à 2.ª Requerida, na pessoa de J..., se podia adiar cerca de uma semana o pagamento do montante de € 800.000,00, ao que lhe foi comunicado que não havia qualquer inconveniente nesse adiamento;
- aconteceu que J..., tendo cessado as funções de gerente da 2.ª Requerida, continuou a agir como se gerente fosse, ludibriando quer a “P...”, quer a aqui 1.ª Requerida, quer, ainda, a “S... Y...s Espanha, S.L.”, tendo para esse efeito enviado contrato promessa de compra e venda falso, no qual alterou, entre outros aspectos, os valores de pagamento;
- a “S... Y...s Espanha, S.L.”, em resposta à “P...”, veio informá-la que não recebeu quaisquer pagamentos das quantias já transferidas por aquela (com excepção da quantia de £ 100.000 libras esterlinas), não obstante as várias interpelações junto da 2.ª Requerida, que tinha dado informação enganosa a esse respeito;
- por isso, a 1.ª Requerida intentou, em conjunto com a “P...”, um procedimento cautelar contra a 2.ª Requerida, para arresto da embarcação dos presentes autos, tendo ainda sido intentado procedimento cautelar de arresto da conta bancária daquela, processo este em que, por iniciativa da 2.ª Requerida, entre as três foi efectuada transacção, que previa a restituição da embarcação “T...” em decorrência do incumprimento do contrato promessa, desconhecendo a 1.ª Requerida, que agiu de boa fé, que a 2.ª Requerida houvesse outorgado qualquer contrato com a aqui Requerente;
- a eventual nulidade do contrato celebrado entre as Requeridas, fundada no art.º 892.º do CCiv., não pode ser oposta à 1.ª Requerida pelas 2.ª Requerida e Requerente, sendo que esta não logrou levar a mudança de propriedade a registo junto das entidades competentes, no caso a Capitania do Porto de C…;
- ao ter procedido ao registo da aquisição junto da autoridade competente, a 1.ª Requerida tornou-se a efectiva proprietária da T..., atento o disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, pelo que a Requerente não dispõe do direito de que se arroga contra as Requeridas;
- não existe periculum in mora, pois a 1.ª Requerida, na qualidade de proprietária da embarcação, faz dela um uso normal, como o faria qualquer proprietário, e não pretende desfazer-se da mesma;
- nem se pode concluir que o prejuízo resultante da providência não é superior ao dano que com ela se pretende evitar, pois qualquer prejuízo à Requerente terá sido provocado pela 2.ª Requerida, e não pela 1.ª Requerida, tudo a impor a improcedência deste procedimento.
Procedeu-se à audiência de produção de provas, vindo a proferir-se decisão, pela qual, depois de apreciadas as questões suscitadas, foi julgada procedente, por provada, a providência cautelar, com a consequente determinação de apreensão da embarcação de recreio em causa até ao termo da respectiva acção principal.
Desta decisão final veio a 1.ª Requerida interpor o presente recurso, apresentando as seguintes
Conclusões
«1) Conforme consta da factualidade provada da sentença recorrida, em 31 de Janeiro de 2013 a S... e a P... celebraram contrato-promessa de compra e venda, pelo qual esta obrigava-se a comprar e aquela obrigava-se a vender uma embarcação nova de recreio modelo Y... 28m com todo o equipamento nela incluído (alíneas oo), kk) e pp) da fundamentação facto);
2) Ficou provado que, nos termos do ponto 1 da cláusula segunda do referido contrato, na data da assinatura do contrato, a P... pagaria o montante de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) e entregaria ainda uma outra embarcação, denominada T..., propriedade da ora recorrente, como parte do pagamento da embarcação nova a adquirir (alínea rr) da fundamentação de facto);
3) No dia 30 de Janeiro de 2013, um dia antes da assinatura do contrato-promessa de compra e venda, a recorrente emitiu declaração para registo de propriedade de tal embarcação, o que fez através de celebração de contrato de compra e venda, pelo preço de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), (alíena uu) da fundamentação de facto);
4) Mais ficou provado que a S... incumpriu o contrato-promessa celebrado com a P...;
5) De facto, os pagamentos das quantias já transferidas pela recorrente à S..., com excepção da quantia de 100.000 libras esterlinas, nunca chegaram a ser transferidos para a S... Espanha, S.L, tendo sido o contrato-promessa, celebrado entre a recorrente e a S..., grosseiramente falsificado na sua cláusula segunda (alíneas aa), jjj), kkk) da fundamentação de facto);
6) Do mesmo modo, a embarcação de recreio T..., ao invés de servir de parte do pagamento acordado no contrato-promessa de compra e venda, ficou na posse do gerente da S....
7) Motivo que levou a P... a intentar contra a S... um procedimento cautelar de arresto da conta bancária daquela, processo que correu termos no 3º Juízo de Competência Cível de L… sob o n.º de processo …/13.0TBLLE.
8) Em 14 de Março de 2013, no âmbito daquele procedimento cautelar, foi celebrado entre a S... e a P... acordo, o qual veio a ser homologado nos próprios autos.
9) Pelo referido acordo, a S... assume o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 31 de Janeiro de 2013, “aceitando as partes que este é o único contrato válido celebrado entre ambas”;
10) Pelo dito acordo a S... declara “já ter restituído à requerente a embarcação S... Manhattan 70, denominada T..., que esta havia entregue àquela como retoma para parte do pagamento do preço acordado no contrato-promessa em causa avaliada em € 1.000.000,00 (um milhão de euros)”;
11) A sentença recorrida, na sua fundamentação de direito, ignorou o facto de, em 14 de Março de 2013, a P... e a S... terem celebrado acordo pelo qual as partes declaram a invalidade do contrato de compra e venda celebrado em 30 de Janeiro de 2013;
12) De facto, nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos “A anulação pode resultar de decisão judicial ou de acordo entre as partes (…). Embora não muito frequentemente utilizada, as partes têm ainda a faculdade de anular, por acordo, o negócio anulável. O artigo 291º, n.º 1 refere-se in fine ao acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. Daqui se pode concluir a subsistência de uma anulação ou declaração de nulidade, sem intervenção do Tribunal”;
13) Tendo o referido acordo sido homologado pelo Tribunal Judicial de L… no âmbito do Proc. n.º …/13.0TBLLE, a sentença recorrida, ignorou, na sua fundamentação de direito, os seus efeitos processuais, a eficácia executiva e autoridade de caso julgado;
14) Por consequência, a sentença recorrida fez uma incorrecta aplicação do direito ao caso vertente – ao considerar nulo o contrato de compra e venda celebrado entre a S... e a recorrente, em 14 de Março de 2013.
15) O Tribunal a quo, ignorando na sua fundamentação de direito os factos supra descritos e dados como provados, não vislumbrou que o contrato de compra e venda celebrado entre a S... e a recorrente, em 14 de Março de 2013, consistiu na restituição da embarcação de recreio em virtude da invalidade do negócio celebrado em 30 de Janeiro de 2013;
16) É que, atendendo ao previsto no art. 289º do CC, tanto a nulidade como a anulação de negócios jurídicos têm efeito rectroactivo, devendo, nesse caso, ser restituído tudo o que tiver sido prestado.
17) Nos termos previstos no art. 291º do CC a nulidade ou a anulação de negócio jurídico é em princípio oponível a terceiros, excepto se o terceiro, de boa fé, adquirir, onerosamente, coisa imóvel ou móvel sujeita a registo e registar a aquisição em momento anterior ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
18) As embarcações de recreio estão obrigatoriamente sujeitas a registo de propriedade, designadamente, no caso de mudança de proprietário, nos termos previstos no art. 19º, n.º 1 e n.º 2, b) do RNR;
19) A recorrida não procedeu ao registo de propriedade da embarcação de recreio T... em data anterior à homologação da transação supra. Aliás nunca o veio a fazer, pelo que;
20) A invalidade do contrato de compra e venda celebrado em 14 de Março de 2013 é oponível à recorrida, por força do disposto no art. 291º do CC, e;
21) Neste sentido, atendendo ao efeito rectroactivo da invalidade do negócio jurídico, a recorrida nunca chegou a adquirir a embarcação T...;
22) E, mesmo seguindo a linha de raciocínio da sentença recorrida, que considera o registo de propriedade das embarcações de recreio ineficaz perante terceiros, dada a sua natureza administrativa, e com a qual não se concorda, não se poderia lançar mão do previsto no n.º 1 do art. 291º in fine, sendo, nesse caso, a invalidade do negócio sempre oponível à recorrida;
23) E mesmo que se entenda não ser o contrato de compra e venda, celebrado entre a S... e a recorrente em 30 de Janeiro de 2013, inválido, tendo sido incumprido o contrato-promessa de compra e venda, aquele é sempre revogável pelas partes.
24) Pelo acordo celebrado entre a S... e a recorrente, em 14 de Março de 2013, o qual foi alvo de homologação judicial, a S... “assume que incumpriu o contrato-promessa de compra e venda (…) entre ambas celebrado em 31 de Janeiro de 2013”.
25) Ora, o contrato de compra e venda celebrado em 30 de Janeiro de 2013 apenas ocorreu em virtude e na sequência da celebração do referido contrato-promessa de compra e venda e,
26) Nessa medida, a subsistência do contrato de compra e venda celebrado em 30 de Janeiro de 2013 depende do cumprimento do contrato-promessa de compra e venda que lhe deu causa,
27) Dispõe o art. 801º do CC que “Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro”.
28) O n.º 1 do art. 433º do CC admite a resolução do contrato fundada em convenção e;
29) Ainda, de acordo com o previsto no art. 433º “a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico”, tendo, por força do disposto no n.º 1 do art. 434º efeito rectroactivo;
30) O direito de resolução é oponível a terceiros que não tenham registado o seu direito antes do registo de acção de resolução respeitante a móveis sujeitos a registo (n.º 2 do art. 435º), pelo que,
31) Não tendo a recorrida registado a aquisição da embarcação de recreio, também por esta via é-lhe oponível o acordo celebrado entre a recorrente e a S... em 14 de Março de 2013 e, consequentemente, é-lhe oponível a venda efectuada na mesma data;
32) E mesmo que assim não se entenda, o que por mera hipótese académica e dever de patrocínio se admite, o contrato de compra e venda celebrado entre a S... e a recorrente, em 14 de Março de 2013, nunca poderia ser nulo com fundamento na ilegitimidade da S... para o realizar;
33) A sentença recorrida fez incorrecta aplicação do direito ao considerar que a S... não tinha legitimidade para vender à recorrente a embarcação T... em virtude de já a ter vendido à recorrida em 3 de Fevereiro de 2013;
34) É certo que, a S... celebrou contrato de compra e venda com a recorrente, depois de já ter vendido à recorrida a embarcação objecto do contrato;
35) Contudo, e não obstante o disposto nos arts. 879º, 408º e 892º, todos do CC, a alegada ilegitimidade da S... para vender a embarcação de recreio pela segunda vez não é oponível à recorrente;
36) De facto, os arts. 879º e 408º do CC, prevêem que a transferência ou direito de propriedade ocorre com a simples celebração do contrato de compra e venda e,
37) O art. 892º do CC prevê a nulidade da venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar;
38) Todavia, conforme refere a sentença recorrida “Há situações, porém, em que mesmo faltando a legitimidade do vendedor, a lei, por razões de tutela da aparência, considera válida a alienação, não se aplicando o regime do art. 892º e ss. do CC” como seja o caso de “a venda de bem sujeito a registo efectuada pelo titular do registo a seu favor a comprador de boa fé, que procede ao registo da sua aquisição (arts. 5º e 17º, n.º 2 do CRgP)”;
39) Nos termos previstos nos arts. 19º e alínea b) do n.º 2 do art. 20º do RNR, as embarcações de recreio estão obrigatoriamente sujeitas a registo e bem, assim ao registo de mudança de proprietário;
40) Ora, em 15 de Março de 2013, a recorrente com base na Declaração de venda emitida pela S..., procedeu ao registo da aquisição da embarcação T... a seu favor, junto da Capitania do Porto de L…, cumprindo o disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 20º do RNR, pelo que,
41) A aquisição da embarcação por parte da recorrente é válida por força do disposto no art. 5º do CRgP, não obstante a alegada ilegitimidade da S... para vender;
42) Verifica-se, assim, a validade da alienação ocorrida em 14 de Março de 2013, atento o previsto no art. 5º do CRgP, uma vez que, a S... era a titular do registo de propriedade da embarcação no momento da venda da mesma à recorrente, a qual se encontrava de boa fé, conforme ficou dado como provado na sentença recorrida (alíneas iiii) e jjjj) da fundamentação de facto) e a qual procedeu ao registo de propriedade a que as embarcações de recreio estão obrigatoriamente sujeitas (arts. 19º e 20º do RNR);
43) De facto, nos termos previstos no art. 5º do CRgP os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, pelo que,
44) Não tendo a recorrida procedido ao registo de propriedade da embarcação de recreio, conforme manda a lei, tal aquisição não produziu efeitos contra a recorrente, a qual, ao invés, registou a aquisição da embarcação no dia seguinte à celebração do contrato de compra e venda (15 de Março de 2013);
45) A recorrida tão-pouco chegou a tomar posse da embarcação;
46) A sentença recorrida ignorou, assim, a importância do facto de a recorrente ter dado cumprimento ao registo de propriedade da embarcação obrigatório, ao invés da recorrida que não logrou fazê-lo;
47) Entre a data da venda da embarcação à recorrida (3 de Fevereiro de 2013) e entre a data da restituição da embarcação à recorrente (14 de Março de 2013) decorreram mais de 30 dias, tendo podido a recorrida registar a embarcação em seu nome durante esse período;
48) É, deste modo evidente que a recorrida, ao não registar a propriedade da embarcação como era sua obrigação, contribuiu para a situação sub judice, tendo havido total negligência da sua parte;
49) Aliás, caso a recorrida tivesse procedido ao registo de aquisição da embarcação como determina a lei, a recorrente não teria celebrado com a S... qualquer contrato de compra e venda posterior, porquanto do Auto de Registo da embarcação T..., solicitado pelo Tribunal de L…, figuraria como proprietária a recorrida ao invés da S...;
50) A sentença recorrida considerou que, não estando as embarcações de recreio sujeitas a registo comercial, conforme resulta da conjugação dos n.ºs 1, 2 e 3 do art. 72º do RGC e n.º 1 do art. 19º do RNR, o registo de propriedade a que estas estão sujeitas, consiste num registo meramente administrativo, o qual não tem por finalidade dar publicidade à situação jurídica do bem com vista à segurança do comércio jurídico mas antes e tão-somente possibilitar a sua utilização;
51) Com o devido respeito, e salvo melhor opinião, o registo de propriedade das embarcações de recreio têm por finalidade dar publicidade à situação jurídica do bem e, bem assim, possibilitar a sua utilização.
52) O registo de propriedade das embarcações de recreio permite aos proprietários dar a conhecer a terceiros que não são meros possuidores das mesmas e que, por isso, têm legitimidade para utilizá-las.
53) Se o registo das embarcações de recreio não tem por fim dar publicidade à situação jurídica do bem com vista à segurança do comércio jurídico, tal significa que o direito não tutela os interesses dos proprietários e futuros compradores de embarcações de recreio, embarcações estas que, tal como se pode verificar no presente caso, podem ascender a milhões;
54) Se o registo das embarcações de recreio não tem por fim dar publicidade à situação jurídica do bem com vista à segurança do comércio jurídico, então por que motivo solicitou o Tribunal de L…, no processo cautelar de arresto de conta bancária, Auto do Registo da embarcação T... para confirmar a propriedade da mesma;
55) Se o registo das embarcações de recreio não tem por fim dar publicidade à situação jurídica do bem com vista à segurança do comércio jurídico, então por que motivo procedeu a própria requerida ao registo da presente providência cautelar, conforme consta da folha 62-A do respectivo Livro de Registos?;
56) Mais, por que motivo o Tribunal de que se recorre ordenou o registo do decretamento da providência cautelar?
57) O Tribunal a quo formula a sua decisão com base na redacção do n.º 1 do art. 19º do RNR e do n.º 3 do art. 72º do Regulamento Geral das Capitanias, partindo do princípio que “não estando as embarcações de recreio sujeitas a registo comercial (de navios)”, a finalidade do registo das mesmas “não se confunde com a que é atribuída ao registo comercial das embarcações mercantes”.
58) As embarcações de recreio são actualmente reguladas pelo Decreto-Lei n.º 124/2004 de 25 de Maio, o qual aprova o Regulamento da Náutica de Recreio (“RNR”).
59) Como vimos supra as embarcações de recreio estão obrigatoriamente sujeitas a registo, nomeadamente, ao registo de mudança de proprietário (arts. 19º e alínea b) do n.º 2 do art. 20º RNR);
60) Dispõe o n.º 1 do art. 72º do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72 de 31 de Julho, sob a epígrafe “Registo de propriedade e registo comercial” que “As embarcações nacionais, com excepção das pertencentes à Armada estão obrigatoriamente sujeitas a registo de propriedade”;
61) Por seu turno o n.º 3 do mesmo preceito legal estipula que “As embarcações mercantes estão também sujeitas a registo comercial nos termos da lei respectiva”;
62) Nos termos do disposto no art. 19º do Regime Geral das Capitanias classificam-se em embarcações nacionais as embarcações: (i) De Comércio; (ii) De pesca; (iii) De recreio; (iv) Rebocadores; (v) De investigação; (vi) Auxiliares; (vii) Outras Do Estado;
63) Por força do disposto no n.º 2 do referido preceito legal, apenas as embarcações de comércio, de pesca, rebocadores e auxiliares são designadas por embarcações mercantes, pelo que;
64) Daqui resulta que, de facto, as embarcações de recreio, não sendo embarcações mercantes, não estão sujeitas ao registo comercial mas apenas ao registo de propriedade;
65) O registo de navios é regulado pelo Decreto-Lei n.º 42644 de 14 de Novembro de 1959 que aprovou o ordenamento jurídico do registo comercial, por força do disposto no n.º 2 do art. 5º do Decreto-Lei n.º 403/86 de 3 de Dezembro, que aprovou o Código do Registo Comercial;
66) Tendo, de acordo com o art. 1º do Decreto-Lei n.º 42644 de 14 de Novembro de 1959, o registo comercial “essencialmente por fim dar publicidade à qualidade de comerciante das pessoas singulares e colectivas, bem como aos factos jurídicos especificados na lei, referentes aos comerciantes e aos navios mercantes”;
67) Nos termos do art. 19º do mesmo diploma legal “são aplicáveis ao registo comercial, com as necessárias adaptações todas as disposições legais relativas ao registo predial (…) ao registo de navios são ainda aplicáveis, nos mesmos termos, as normas regulamentares da marinha mercante”;
68) Contudo, e salvo melhor opinião, não obstante as embarcações de recreio não estarem sujeitas ao registo comercial, tal não prejudica a finalidade e eficácia do registo de propriedade a que estas embarcações estão obrigatoriamente sujeitas, senão vejamos:
69) De acordo com o previsto no n.º 12 do art. 20º do RNR “Em matéria de ER, aplicam-se, subsidiariamente, as regras em vigor para o registo das embarcações nacionais”;
70) A recorrente entende que, não obstante as embarcações de recreio não estarem sujeitas ao registo comercial, tal regime é-lhes aplicável, a título subsidiário, por força do disposto no n.º 12 do art. 20º do RNR;
71) No entanto, surpreendentemente, o Tribunal a quo a este propósito refere que o n.º 12 do art. 20º do RNR não tem aplicabilidade já que as embarcações de recreio além de não estarem sujeitas ao registo comercial, “o legislador reservou legislação especial para o registo das embarcações de recreio, como flui da remissão plasmada no art. 78º, n.º 7 do RGC”;
72) Ora, com o devido respeito, em primeiro lugar as embarcações de recreio são reguladas pelo Decreto-Lei n.º 124/2004 de 25 de Maio que aprovou o Regulamento da Náutica de Recreio e não pelo Diploma de 1959 que aprovou o Regime Geral das Capitanias e, em segundo, a legislação especial para o registo das embarcações de recreio a que o legislador se refere no n.º 7 do art. 78º do Regime Geral das Capitanias é, precisamente, o Regulamento da Náutica de Recreio.
73) Ora, sendo, subsidiariamente, aplicável ao registo de embarcações de recreio o regime previsto para o registo comercial de navios (registo para embarcações nacionais), então também lhe será, subsidiariamente aplicável o disposto no Registo Predial, tal como dispõe o art. 19ºdo Decreto-Lei n.º 42 644 de 14 de Novembro de 1959.
74) No mesmo sentido refira-se o Acórdão de 31/01/2012, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Proc. n.º 1358/03.5TBFIG-A.C1, o qual entendeu que “ao registo das embarcações de recreio aplicam-se: (i) os artigos 19.2 e seguintes do RNR (…); (ii)subsidiariamente, as normas (…) referentes ao registo de navios; e (iii) subsidiariamente, as disposições do registo predial”;
75) Tal entendimento não podia ser, de resto, diverso, se pensarmos por exemplo no Registo de automóveis, ao qual é subsidiariamente aplicável o regime do Código Predial;
76) Por que motivo proteger a aquisição de veículos a motor terrestres e não proteger a aquisição de embarcações de recreio, as quais podem, de resto, ascender a milhões de euros?
77) O Código do Registo de bens Móveis, o qual não chegou a entrar em vigor, previa no seu art. 44º que “considera-se navio qualquer embarcação no comércio jurídico, obrigatoriamente sujeita a licenciamento nas repartições marítimas competentes e que seja destinada a comércio, pesca, recreio, reboque ou serviços auxiliares, com excepção das embarcações da Armada”;
78) O n.º 3º daquele diploma previa que “os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as partes, mas só produzem efeitos perante terceiros após a data do respectivo registo”;
79) Os bens móveis sujeitos a registo, nos termos do n.º 2 do art. 1º do referido diploma legal, seriam os veículos, os navios e as aeronaves, encontrando-se as embarcações de recreio.
80) Ora, pese embora, o Código do Registo de Bens Móveis não tenha chegado a entrar em vigor, pela sua redacção é notória a intenção do legislador em publicitar a situação jurídica das embarcações de recreio com vista à segurança do comércio jurídico.
81) De facto, conforme explanado no aludido Acórdão de 31/01/2012 proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra “não se afasta, claro está, o disposto no art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial (…). Bem se compreende que assim seja. Caso contrário, o adquirente que confiou no registo e na segurança da publicidade dos actos ver-se-ia ultrapassado por direitos ocultos, com prejuízo sério – e não pretendido pelo legislador – da segurança do comércio jurídico (…)”;
82) Nestes termos, verifica-se mais uma vez que a o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorrectamente a lei ao caso vertente;
83) Por tudo quanto ficou exposto, entende a recorrente não ser verosímil o direito invocado pela recorrida;
84) O Tribunal de que se recorre, na sua apreciação de direito, tendo analisado em profundidade o mérito da questão e não apenas a probabilidade da procedência da acção principal a intentar, ignorou factos dados como provados na sentença recorrida;
85) Acresce que o verdadeiro fundamento utilizado pelo Tribunal a quo para concluir pela verificação do requisito do fumus boni juris assenta numa incorrecta interpretação da lei, a qual levada à última consequência, acabaria com o comércio das embarcações de recreio em Portugal uma vez que, ninguém, nem os compradores mais diligentes, iria comprar embarcações no clima de insegurança jurídica proposto;
86) A recorrente considera, assim, não estar preenchido o requisito do fumus boni juris de que depende o decretamento da providência cautelar;
87) A recorrente mais entende não se encontrar preenchido o requisito do periculum in mora do qual também depende o decretamento da providência cautelar, conforme infra se demonstrará:
88) O argumento utilizado na sentença recorrida de que “É sabido que as embarcações de recreio são um bem semovente, facilmente alienável, que num instante podem ver alterada a sua designação e pavilhão ou serem colocados pelos seus próprios meios em qualquer parte do mundo (marítimo)”, não poderá colher, não provando qualquer perigo;
89) De facto, todos os bens do mesmo tipo da embarcação de recreio T... são bens semoventes, não servindo este argumento para diferenciar ou para provar qualquer perigo;
90) Acresce que, as situações de fácil alienação, alteração de designação e pavilhão e transporte da embarcação para qualquer parte do mundo marítimo, referidas pelo Tribunal a quo, apenas ocorrem nos casos em que os adquirentes não procedem ao registo das embarcações e, é exactamente, por isso, que este registo é obrigatório, para prevenir situações de insegurança do comércio jurídico;
91) O Tribunal a quo, com o referido argumento, acaba por confirmar a importância e a necessidade lógica de o registo de propriedade dar publicidade à situação jurídica do bem com vista à segurança do comércio jurídico;
92) De facto, se a requerida tivesse procedido ao registo da aquisição da embarcação, como manda a lei, a recorrente não teria celebrado com a S... o contrato de compra e venda datado de 14 de Março de 2013, ou seja, não teria havido restituição da embarcação em virtude da invalidade do contrato celebrado em 30 de Janeiro.
93) Isto porque, a homologação judicial do acordo supra referido e a celebração do contrato de compra e venda entre a recorrente e a S... em 14 de Março dependeram da junção aos respectivos autos do Auto de Registo de Embarcação, o qual comprovou que a embarcação era da propriedade da S...;
94) Tal quer significar que foi a recorrida que contribuiu para a situação em apreço e para a insegurança do comércio jurídico;
95) Não obstante, a sentença recorrida concluiu que existe o risco de alienação da embarcação a terceiros por parte da recorrente e que a recorrida “está sem embarcação e importância que desembolsou por conta do preço que pagou”, fundamentando, assim, a possibilidade de lesão grave e dificilmente reparável para a recorrida;
96) No entanto, não ficou provado na sentença recorrida a intenção da recorrente em proceder à alienação da embarcação, antes pelo contrário, a recorrente garantiu não pretender desfazer-se da mesma;
97) De facto, desde a restituição da embarcação à recorrente, esta manteve-se sempre na Marina de V…, não tendo a recorrente qualquer intenção de fazê-la “desaparecer”, nem nunca procedido à sua alienação, tendo podido fazê-lo se fosse sua intenção;
98) Ao invés, ficou provado na sentença recorrida que a embarcação, antes de ser restituída à recorrente, tinha como destino Antibes (alínea sss) da fundamentação de facto);
99) Mais, conforme ficou provado na sentença recorrida, em 25 de Março de 2013, ou seja, depois da reunião tida com PG..., a recorrida solicitou a uma pessoa da sua confiança, C…, que se deslocasse a Portugal para vir buscar embarcação e a transportasse para Antibes (alínea ee) da fundamentação de facto);
100) Em 26 de Março de 2013 a referida pessoa deslocou-se à Marina de V…, tentou entrar na embarcação e apenas não a levou para a Antibes pelo facto de esta estar selada, em virtude da providência cautelar de arresto que correu termos no Tribunal Marítimo de L…;
101) Ainda, a sentença recorrida não equacionou os prejuízos em que a recorrente incorre com o decretamento da providência cautelar;
102) Encontrando-se a embarcação de recreio T... apreendida, a recorrente deixa de poder utilizá-a;
103) A recorrente viu-se, assim, obrigada a alugar embarcação idêntica à T... para os fins pretendidos;
104) A recorrente encontra-se a suportar custos avultados com o aluguer de embarcação idêntica à T..., os quais ascendem a € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) semanais;
105) Acresce que, a embarcação encontra-se, presentemente, ao cuidado da recorrida, uma vez que o fiél depositário foi por esta nomeado (Sr. M…), pelo que;
106) Atendendo ao facto de ter ficado provado, na sentença recorrida, que a embarcação se destinava a Antibes e que a recorrida deslocou-se rencentemente a Portugal para levá-la para o referido território estrangeiro, não deixa de existir, com o decretamento da providência cautelar, perigo de fuga da embarcação;
107) Neste sentido, entende a recorrente não estar preenchido o requisito do periculum in mora, de que o decretamento da providência depende, em virtude de não ter ficado provado a existência de risco de alienação da embarcação a terceiros e pelo facto de a recorrente, ao contrário do alegado na sentença recorrida, estar a sofrer prejuízos significativos com a apreensão da embarcação;
108) Por fim, a recorrente entende que, a apreensão da embarcação não é adequada dada a existência de transacção judicial, dado o comportamento negligente da recorrida e atendendo aos prejuízos que a recorrente se encontra a suportar com o decretamento da providência;
109) Do mesmo modo, não é a apreensão da embarcação adequada para evitar a eventual fuga da embarcação na medida em que, tendo sido o fiel depositário nomeado pela recorrida, ficou provado que esta tentou levá-la, recentemente, para Antibes;
110) De tudo quanto vem exposto, entende a recorrente não estarem verificados os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora dos quais depende o decretamento da providência cautelar, nem tão-pouco verificada a adequação da medida decretada».
Pugna, assim, pela revogação da sentença recorrida, julgando-se a providência cautelar improcedente e levantando-se a apreensão da embarcação aludida.
Contra-alegou a Requente/Recorrida, formulando conclusões – onde, para além do mais, afirma que a contraparte apresenta, na sua alegação de recurso, questão nova, que se prende com a alegada invalidade do contrato de compra e venda celebrado em Janeiro de 2013, questão essa a não poder ser apreciada pelo Tribunal ad quem – e pugnando pela improcedência do recurso.
Mantidos nesta Relação o regime e o efeito fixados e colhidos que foram os vistos, cumpre então apreciar e decidir.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (exceptuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 660.º, n.º 2, 661.º, 672.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, todos do CPCiv. revogado ([1]) –, constata-se que o thema decidendum, incidindo exclusivamente sobre decisão de matéria de direito, consiste em saber:
- se deve conhecer-se, ou não, da questão da invalidade convencional do contrato de compra e venda celebrado em 30/01/2013 e respectivas consequências;
- se as embarcações de recreio são, ou não, móveis sujeitos a registo ou equiparados, com as inerentes implicações registais para efeitos aquisitivos;
- se foi, ou não, provada a factualidade necessária a demonstrar os pressupostos de decretamento do procedimento cautelar;
- se tal decretamento causa prejuízo consideravelmente excedente ao dano que a Requerente pretende evitar.
A) Matéria de facto
É a seguinte a factualidade julgada provada na decisão recorrida:
«a) A 1.ª Requerida é uma sociedade que se dedica, entre outras actividades, ao aluguer, compra e venda de barcos, comércio a retalho de embarcações e acessórios náuticos, e importação e exportação de embarcações e acessórios marítimos.
b) A 2.ª Requerida é uma sociedade que se dedica ao comércio de maquinaria, equipamento industrial, embarcações e aeronaves.
c) A 1.ª Requerida era proprietária da embarcação de recreio desportiva marca S..., modelo M… 70, denominada “T…”, equipada com motores MAN, 2x 1.360 Hp, a diesel, do ano de 2008, registada na Capitania do Porto de C... sob o n.º de registo ….
d) Em 30 de Janeiro de 2013, a 1.ª Requerida vendeu a referida embarcação à 2.ª Requerida, que a registou em seu nome no dia 5 de Fevereiro de 2013, nos termos do documento n.º 3 junto com o requerimento inicial.
e) Em 3 de Fevereiro de 2013, a Requerente e a 2.ª Requerida celebraram um contrato de compra e venda da mesma embarcação, com todo o equipamento que a compõe, junto com o requerimento inicial como documento n.º 4.
f) Nos termos do referido contrato, a 2.ª Requerida comprometeu-se a vender e a Requerente obrigou-se a comprar a embarcação, com todo o equipamento que a compunha, pelo preço de € 1 015 000 (um milhão e quinze mil euros), IVA incluído.
g) O preço acima mencionado seria pago da seguinte forma:
- € 100 000 na data da assinatura do contrato (3 de Fevereiro de 2013);
- € 400 000 até ao dia 8 de Fevereiro de 2013;
- € 515 000 remanescentes até final de Fevereiro de 2013, após confirmação por parte da 2.ª Requerida à Requerente de que a embarcação estava pronta para entrega.
h) O pagamento das referidas quantias seria realizado por transferência bancária para uma conta de que a 2.ª Requerida é titular no Banco …, com o IBAN ….
i) Requerente e 2.ª Requerida acordaram ainda que a documentação da embarcação e a respectiva factura de venda, necessárias para o registo definitivo da propriedade em nome da Requerente, seriam entregues à Requerente pela 2.ª Requerida após pagamento integral do preço, assumindo aquela todos os custos de registo.
j) A embarcação seria vendida livre de quaisquer ónus e/ou encargos de quaisquer natureza.
k) Em 5 de Fevereiro de 2013, a Requerente efectuou o pagamento da primeira prestação do preço, no valor de € 100 000, nos termos do documento n.º 5 junto com o requerimento inicial.
l) Em 7 de Fevereiro de 2013, a Requerente efectuou o pagamento da segunda prestação do preço, no valor de € 400 000, nos termos do documento n.º 6 junto com o requerimento inicial.
m) Em 12 e 14 de Fevereiro de 2013, a 2.ª Requerida, através do seu sócio-gerente à data, J…, enviou os emails juntos com o requerimento inicial como documentos n.ºs 7 e 8, nos termos dos quais informou a Requerente que a embarcação se encontrava pronta para ser entregue e confirmou que a sua entrega podia ser efectuada em Antibes (França) no início de Abril do corrente, tal como pretendido pela Requerente.
n) Posteriormente, a 2.ª Requerida emitiu e entregou à Requerente a factura proforma junta com o requerimento inicial como documento n.º 9, com data de 22 de Fevereiro de 2013, relativa à compra e venda da embarcação.
o) A 2.ª Requerida entregou, também, à Requerente o certificado de construção da embarcação em apreço, junto com o requerimento inicial como documento n.º 10.
p) Nessa sequência, em 26 de Fevereiro de 2013, a Requerente efectuou o pagamento da terceira e última prestação do preço, no valor de € 515 000, nos termos do documento n.º 11 junto com o requerimento inicial.
q) Com base nos mencionados documentos, a Requerente, em 6 de Março de 2013, registou provisoriamente a embarcação em seu nome, junto das autoridades britânicas competentes (Registo de Navios e Marinheiros – Agência Marítima e de Guarda Costeira), tendo sido emitido um certificado de registo provisório válido até 5 de Junho de 2013, junto com o requerimento inicial como documento n.º 12.
r) Por email de 9 de Março remetido à Requerente, junto com o requerimento inicial como documento n.º 13, a 2.ª Requerida, desta vez na pessoa de um dos seus colaboradores, Sr. T…, confirmou a entrega da embarcação em Antibes, no máximo, até 7 de Abril, e enviou cópia da documentação (facturas) relacionada com o mesmo e identificando a tripulação que a levaria até àquele local.
s) Em 14 de Março de 2013, J…, enviou um novo email à Requerente, junto com o requerimento inicial como documento n.º 14, confirmando que a embarcação se encontrava pronta para ser entregue a esta.
t) Em 19 de Março de 2013, a Requerente, na pessoa do seu representante IG…, recebeu um email, junto com o requerimento inicial como documento n.º 15, remetido da morada de email da 2.ª Requerida, mas desta vez assinado por JR…, informando este que havia comprado/adquirido a 2.ª Requerida no dia 19 de Fevereiro de 2013, identificando a nova morada e os novos contactos desta, que o J… havia renunciado às suas funções de gerência com referência a 1 de Março de 2013, que se encontrava ainda em processo de tomada de conhecimento dos assuntos correntes da sociedade, que tinha conhecimento da existência do contrato e que estava disponível para uma reunião sobre o assunto.
u) A Requerente ficou extremamente surpreendida com tais notícias e algo apreensiva com o facto de o alegado novo representante legal da 2.ª Requerida referir que tinha conhecimento da existência do contrato e oferecendo-se para a realização de uma reunião sobre o assunto, o que lhe causou estranheza, visto pensar que nada havia mais para discutir, pois o preço estava pago e tratava-se agora somente de proceder à entrega da embarcação.
v) A Requerente acedeu a tal convite e os seus representantes, IG… e TN…, em 21 de Março de 2013, deslocaram-se a Portugal com vista à realização de tal reunião.
w) Uma vez chegados a Portugal e, em concreto, à Marina de V…, contactaram o Sr. JR… para a realização de tal reunião, tendo sido então informados de que tal não seria possível, por indisponibilidade deste.
x) Confrontados com tal informação, acabaram por manter naquela mesma data somente uma conferência telefónica com aquele.
y) Nessa conferência telefónica, o referido JR… transmitiu aos representantes da Requerente que pretendia cancelar o contrato relativo à embarcação e devolver os montantes pagos pela Requerente com vista à aquisição da mesma.
z) Questionado sobre porque motivo pretendia fazê-lo, o referido JR… transmitiu-lhes que tal se devia ao facto de a anterior proprietária da embarcação – a 1.ª Requerida – e que a havia vendido à 2.ª Requerida, a pretender de volta.
aa) Mais sugeriu aos representantes da Requerente que contactassem PG…, que alegadamente seria o representante da 1.ª Requerida.
bb) Preocupados, os representantes da Requerente assim fizeram e no dia 21 de Março de 2013, reuniram com o referido PG…, no Hotel S…, em L….
cc) Nessa reunião, os representantes da Requerente afirmaram a PG… que a embarcação lhes pertencia e que já tinham pago € 1 015 000 por ela.
dd) Perante esta situação, a Requerente passou a temer não receber a embarcação pela qual havia já pago € 1 015 000.
ee) Nessa sequência, no dia 25 de Março de 2013, solicitaram a uma pessoa da sua confiança, C…, colaborador de uma empresa espanhola dedicada também ao comércio de embarcações, que se deslocasse a Portugal para vir buscar a embarcação e a transportasse para Antibes, conforme havia acordado com a 2.ª Requerida, tendo-o habilitado para tal nos termos da declaração que junta com o requerimento inicial como documento n.º 16.
ff) Este assim fez e no dia 26 de Março deslocou-se à marina de V… onde a embarcação se encontrava aportada, tendo constatado in loco que a mesma estava apreendida pelas autoridades marítimas.
gg) A Requerente tomou depois conhecimento que a embarcação tinha sido apreendida no âmbito de uma providência cautelar de arresto requerida pela 1.ª Requerida contra a 2.ª Requerida em 13 de Março de 2013 e cujos autos correm termos por este Tribunal Marítimo de L…, sob o n.º …/13.3TNLSBB.
hh) Nessa sequência, a Requerente contactou novamente JR…, representante da 2.ª Requerida, que lhe declarou que, na sequência da exigência por parte da 1.ª Requerida para a devolução da embarcação e da providência para esse efeito requerida por esta, havia supostamente posto termo ao negócio de compra e venda que havia permitido à 2.ª Requerida adquirir a embarcação e devolvido a documentação desta à 1.ª Requerida.
ii) Em 15 de Março de 2013, a 1.ª Requerida registou a propriedade da embarcação novamente em seu nome.
jj) E nessa mesma data cancelou o registo da sobredita providência cautelar de arresto.
kk) Em finais do ano de 2012, a sociedade P…, Lda., através de PG..., iniciou processo negocial com a 2.ª Requerida, representada pelo seu sócio-gerente à data, J..., para aquisição de uma embarcação nova de recreio, modelo Y... 28 m, equipada com dois motores MTU de 1950 cv cada, a ser construída em Inglaterra em Poole, pelo estaleiro naval S... International, Ltd.
ll) Uma vez que a aquisição da referida embarcação por parte da P... Investimentos, Lda. seria feita parcialmente com recurso a crédito bancário, a conclusão do processo negocial só ocorreu em Dezembro de 2012 quando se conseguiu o referido financiamento.
mm) Para a aquisição da supra referida embarcação seria ainda dada pela P... Investimentos, Lda., para retoma, uma outra embarcação da marca S..., modelo M… 70 denominada T..., com todo o equipamento nela incluído, avaliada em € 1 000 000 (um milhão de euros) como parte do pagamento do preço da embarcação nova a adquirir, propriedade da 1.ª Requerida, e em seu nome registada junto da Capitania do Porto de C....
nn) Em 28 de Janeiro, a 2.ª Requerida, por intermédio de J..., enviou para PG... por email junto com a oposição como documento n.º 2 a minuta do contrato de promessa de compra e venda da referida embarcação, juntando também contrato referente à retoma do M… 70 T... a ser entregue na Capitania.
oo) Em 31 de Janeiro de 2013, foi assinado contrato de promessa de compra e venda entre a P... Investimentos, Lda. e a 2.ª Requerida, junto com a oposição como documento n.º 3, com assinaturas reconhecidas, referente à embarcação nova de recreio modelo Y... 28 m.
pp) Pelo referido contrato a P... Investimentos, Lda. obrigava-se a comprar e a 2.ª Requerida comprometia-se a vender a supra referida embarcação com todo o equipamento nela incluído e que se encontra descrito no anexo I junto ao contrato e que dele faz parte integrante.
qq) Nos termos do ponto 2. da cláusula primeira do contrato, a compra da referida embarcação pela P... Investimentos, Lda. seria realizada pelo preço de cinco milhões e quatro mil libras esterlinas ao qual acresceria IVA à taxa legal em vigor.
rr) Nos termos do ponto 1. da cláusula segunda, o pagamento do preço para compra da embarcação de recreio modelo Y... 28 m deveria ser efectuado pela P... Investimentos, Lda. da seguinte forma:
- Na data da assinatura do contrato, a P... Investimentos, Lda. pagaria o montante de 500.000,00€ (quinhentos mil euros) e entregaria ainda uma outra embarcação S... Manhattan 70, denominada T... (embarcação dos presentes autos), com todo o equipamento nela incluído avaliada em € 1 000 000 (um milhão de euros), propriedade da 1.ª Requerida, como parte do pagamento do preço da embarcação nova a adquirir;
- Até ao dia 28 do mês de Fevereiro de 2013, a P... Investimentos, Lda. pagaria o montante de € 800 000 (oitocentos mil euros);
- O restante pagamento do preço da embarcação a adquirir pela P... Investimentos, Lda. seria pago em 60 prestações mensais, no dia 30 de cada mês, no valor de € 79 385 cada, acrescido de IVA, a começar no dia 30 de Março de 2013.
ss) Nos termos da cláusula primeira, número 2, e cláusula segunda, número 1.5, do referido contrato-promessa, o pagamento deveria ser efectuado em libras esterlinas uma vez que os valores pagos pela P... Investimentos, Lda. destinavam-se a ser transferidos para a S... Y...s em Espanha e ulteriormente para a empresa-mãe sediada em Inglaterra, a S... International, Ltd., pois seria esta empresa que iria construir a embarcação de recreio modelo Y... 28 m.
tt) No dia da assinatura do contrato-promessa de compra e venda, a P... Investimentos, Lda. transferiu para o NIB … indicado pela 2.ª Requerida a quantia de € 500 000 (quinhentos mil euros) para início de pagamento do preço da embarcação de recreio modelo Y... 28 m, nos termos do documento n.º 4 junto com a oposição.
uu) No dia 30 de Janeiro de 2013, um dia antes da assinatura do contrato-promessa acima referido, a 1.ª Requerida, empresa do grupo P… e dona e legítima proprietária da embarcação S... M… 70 denominada T..., emitiu declaração para registo de propriedade de tal embarcação, com todo o equipamento nela incluído, a favor da 2.ª Requerida, o que fez através da celebração de contrato de compra e venda – junto com a oposição como documento n.º 5 - pelo preço de € 1 000 000 (um milhão de euros) do qual deu respectiva quitação, por conta do pagamento da embarcação nova de recreio modelo Y... 28 m a adquirir pela P... Investimentos, Lda..
vv) No dia 27 de Fevereiro de 2013, a P... Investimentos, Lda., através de PG..., solicitou a J..., se podia adiar cerca de uma semana o pagamento do montante de € 800 000 (oitocentos mil euros), isto caso esse atraso não representasse qualquer problema para a empresa-mãe sediada em Inglaterra, nem comprometesse o bom cumprimento do contrato.
ww) J... comunicou à P... Investimentos, Lda. que não havia qualquer inconveniente no adiamento do pagamento dos € 800 000 (oitocentos mil euros) por uma semana.
xx) No dia 6 de Março de 2013, a P... Investimentos, Lda., na pessoa de PG... (que se encontrava fora de Portugal), foi contactado por ML…, director da S... Y...s Espanha, S.L., o qual lhe solicitava o envio da cópia do contrato-promessa de compra e venda assinado entre a P... Investimentos, Lda. e a 2.ª Requerida, por considerar existirem incongruências entre a cópia do contrato de que dispunham e o contrato assinado entre as partes na posse da P... Investimentos, Lda., uma vez que no dia anterior, 5 de Fevereiro de 2013, apenas tinham recebido uma transferência de 100 000 libras (cem mil libras), o que não correspondia aos € 500 000 (quinhentos mil euros) que aquele lhe dizia ter transferido no dia 31 de Janeiro de 2013.
yy) PG..., que se encontrava fora de território nacional, tendo ficado apreensivo com tal telefonema, tentou contactar o representante da 2.ª Requerida, J..., mas sem sucesso.
zz) No dia 7 de Março de 2013, ML…, director da S... Y...s Espanha, S.L., enviou a mensagem de email – junta com a oposição como documento n.º 6 - para a P... Investimentos, Lda., na pessoa de PG..., agradecendo o contacto telefónico do dia anterior e solicitando a cópia do contrato-promessa por suspeitar das tais incongruências.
aaa) No dia 7 de Março de 2013, pelas 16h49m17ss., a P... Investimentos, Lda., em Portugal, fez a transferência do montante de € 800 000 (oitocentos mil euros) para o NIB … indicado pela 2.ª Requerida para reforço do pagamento do preço da embarcação de recreio modelo Y... 28 m, nos termos do documento n.º 7 junto com a oposição.
bbb) Cerca de uma hora depois, pelas 17h41m23ss., a P... Investimentos, Lda., na pessoa de PG..., que ainda se encontrava ausente de Portugal, recebeu outro email – junto com a oposição como documento n.º 8 - de CR…, da S... Y...s Espanha, S.L., com conhecimento para ML…, no qual aquele declarou mostrar-se muito preocupado com a imagem da marca “S...” devido à actuação da S... Portugal, aqui 2.ª Requerida, sugerindo que a P... Investimentos, Lda. fizesse urgentemente consultas sobre a situação fiscal e financeira dos representantes da 2.ª Requerida quanto ao paradeiro dos fundos que a P... Investimentos, Lda. havia transferido para aquisição da embarcação.
ccc) No referido email enviado à P... Investimentos, Lda., os representantes da S... Y...s Espanha, S.L., solicitavam ainda o preenchimento de um formulário, que juntavam em anexo ao mesmo – apresentado com a oposição como documento n.º 9 -, com os pagamentos efectuados pela P... Investimentos, Lda. à S... Portugal para cruzamento com os pagamentos efectivamente recebidos por aquela.
ddd) Do mesmo passo, os representantes da S... Y...s Espanha, S.L., informavam a P... Investimentos, Lda., que estava no absoluto desconhecimento, de que existiram mudanças na estrutura societária e na gestão da S... Portugal, Lda. da qual tinham acabado de ser informados.
eee) Em face da informação prestada agora pela S... Y...s Espanha, S.L., a P... Investimentos, Lda. ficou bastante preocupada pois, no cumprimento do contrato-promessa de compra e venda, havia já transferido para a S... Portugal, Lda. € 2 300 000 (dois milhões e trezentos mil euros), dos quais € 1 300 000 (um milhão e trezentos mil euros) em dinheiro e 1.000.000,00€ (um milhão de euros), através da retoma do barco cuja declaração para registo de propriedade havia sido emitida pela 1.ª Requerida a favor da 2.ª Requerida.
fff) PG..., que se encontrava fora de Portugal e desconhecia que naquela data e naquela hora a P... Investimentos, Lda. já havia procedido ao pagamento da segunda tranche de € 800 000 (oitocentos mil euros), recebeu, pelas 18 horas e 13 minutos do dia 7 de Março de 2013, uma mensagem de J... dizendo que “tem a S... a pressionar com o pagamento” e se aquele lhe “pode enviar email confirmando o dia em que o pagamento vai ser efectuado”, nos termos do documento n.º 10 junto com a oposição.
ggg) Em resposta, PG... solicitou a J... que o contactasse, pois tinha urgência em falar com ele, voltando a insistir no dia 8 de Março através de nova mensagem, atenta a indisponibilidade deste em lhe atender o telefone, sendo certo que J... não mais lhe atendeu o telefone.
hhh) No dia 8 de Março de 2013, o Advogado da P... Investimentos, Lda. e da 1.ª Requerida, Dr. P…, enviou a ML…, director da S... Y...s Espanha, S.L. o email junto com a oposição como documento n.º 6, pelo qual remeteu enviou cópia do contrato-promessa de compra e venda celebrado, manifestando preocupação com a presente situação e solicitando com urgência uma tomada de posição da S... Y...s Espanha, S.L., concretamente se assumia o contrato assinado com a 2.ª Requerida, quais as quantias monetárias por aqueles recebidas, bem como esclarecimento sobre as alegadas incongruências contratuais.
iii) Ainda na mesma data, a S... Y...s Espanha, S.L., através de CR… e em consonância com instruções recebidas da S... International, veio responder ao email enviado, remetendo um outro, junto também junto com a oposição como documento n.º 6, afirmando que a S... Portugal, aqui 2.ª Requerida, é um vendedor independente dos produtos com a marca S..., não tendo a S... em Espanha qualquer relação societária com sua congénere portuguesa.
jjj) Afirmou ainda o representante da S... Y...s Espanha, S.L. que tinha razões para crer que o(s) gerente(s) da S... Portugal, aqui 2.ª Requerida, em particular J..., não foram transparentes no que concerne aos pagamentos nos termos acordados da cláusula segunda, enviando para tanto, em anexo ao referido email, uma cópia do contrato-promessa de compra e venda, junta com a oposição como documento n.º 12, que se encontra modificado no que se refere à cláusula dos pagamentos.
kkk) O contrato modificado que foi enviado pela S... Y...s Espanha, S.L. para a P... Investimentos, Lda. foi-lhes remetido por J... no dia 27 de Fevereiro de 2013 – nos termos do referido email junto com a oposição como documento n.º 6 – e nele é visível a alteração do clausulado pelo diferente posicionamento da letra e da configuração da página e das rubricas e assinaturas, como foi ainda modificado o equipamento extra constante do respectivo anexo.
lll) J..., desde o passado dia 19 de Fevereiro de 2013 (data da deliberação) já havia cessado funções de gerente, o que levou a registo no dia 26 de Fevereiro de 2013, conforme resulta do documento junto com o requerimento inicial sob o n.º 2.
mmm) Desde o dia 26 de Fevereiro de 2013 encontra-se registado como gerente da 2.ª Requerida JR…, que a P... Investimentos, Lda. e a 1.ª Requerida desconhecem quem seja.
nnn) J..., mesmo após a cessação das funções de gerente, continuou a agir como se gerente fosse e jamais comunicou tal facto quer à P... Investimentos, Lda., quer à 1.ª Requerida, quer, ainda, à S... Y...s Espanha, S.L., tendo para esse efeito enviado contrato-promessa de compra e venda no qual alterou, unilateralmente e entre outros aspectos, os valores de pagamento.
ooo) A S... Y...s Espanha, S.L. em resposta à P... Investimentos, Lda., veio informá-la através do email de 8 de Março de 2003, junto com a oposição como documento n.º 6, de que não receberam quaisquer pagamentos das quantias já transferidas por aquela (com excepção da quantia de 100 000 libras esterlinas), não obstante as várias interpelações junto da 2.ª Requerida.
ppp) Informou ainda a S... Y...s Espanha, S.L., como fez constar do referido email, que J... teria, alegadamente, renunciado à gerência no passado dia 19 de Fevereiro de 2013, sendo que a S... Y...s Espanha, S.L. não tem qualquer documento de suporte que permita constatar tal situação, e que J... afirmou que está em processo de vender a empresa e deixar Portugal para ir viver para o Brasil, aí começando uma nova vida.
qqq) A S... Y...s Espanha, S.L aconselhou que urgentemente a P... Investimentos, Lda. desenvolvesse todos os esforços no sentido de reaver o seu dinheiro bem como a embarcação que deu de retoma, se possível arrestando-o, enquanto não se esclarecer toda a verdade sobre a posição societária e a conduta do J... em relação à P... Investimentos, Lda..
rrr) No dia 8 de Março de 2013, a P... Investimentos, Lda., na pessoa de PG..., recebeu um telefonema de JR… apresentando-se como gerente da 2.ª Requerida uma vez que J... tinha cessado funções, mas que ainda estava a instalar-se, desconhecendo em pormenor as condições contratuais e que nem sequer tinha acesso à conta bancária da S... Portugal no sentido de confirmar as entradas de capital.
sss) Entretanto, no dia 11 de Março de 2013, PG... recebeu um telefonema do capitão (“Skipper”) da embarcação dada em retoma que ainda se encontra na Marina de V…, que lhe transmitiu que J... pretendia que a mesma fosse levada para Antibes (França) e que este tinha já jantar de despedida agendado para o próximo dia 15 do mês de Março de 2013 e que de seguida partiria para o Brasil.
ttt) J..., não obstante já ter renunciado à gerência da 2.ª Requerida, continuava a manter acesso à conta bancária no Banco …, correspondente ao NIB de destino das transferências para pagamento que a P... Investimentos, Lda. efectuou.
uuu) A P... Investimentos, Lda. receou ficar desapossada de cerca de dois milhões e trezentos mil euros que entregou para pagamento de um contrato-promessa de compra e venda que a S... Internacional não reconhece e que pela mesma não será cumprido.
vvv) A P... Investimentos, Lda. e a 1.ª Requerida depreenderam que a 2.ª Requerida não pretende, nem pretendia, nem mesmo irá cumprir qualquer contrato e recearam perder as quantias monetárias e património que lhe entregaram.
www) Desconheciam, e ainda desconhecem, a P... Investimentos, Lda. e a 1.ª Requerida qual a relação de J... com JR…, até porque a S... Internacional não foi informada e desconhece as alterações societárias que foram levadas a cabo pela 2.ª Requerida.
xxx) A S... Internacional não sabe se JR… é gerente da 2.ª Requerida.
yyy) Por ter considerado que a 2.ª Requerida não tinha intenção de cumprir o contrato assinado, supra referido, a 1.ª Requerida intentou, em conjunto com a P... Investimentos, Lda., um procedimento cautelar contra a 2.ª Requerida, para arresto da embarcação dos presentes autos, o qual correu termos neste Tribunal Marítimo de L… sob o n.º de processo …/13.3 TNLSB,
zzz) A P... Investimentos, Lda. intentou contra a S... Portugal, Lda., J… e JR…, uma participação criminal com pedido de arresto preventivo, a qual se encontra a correr termos nos Serviços do Ministério Público de L….
aaaa) Intentou, ainda, a P... Investimentos, Lda. contra a S... Portugal, Lda., um procedimento cautelar de arresto da conta bancária daquela, processo que correu termo no 3.º Juízo de Competência Cível de L… sob o n.º de processo …/13.0 TBLLE.
bbbb) No âmbito da acção de procedimento cautelar que correu termos neste Tribunal Marítimo de L…., este Tribunal, em conjunto com a Capitania do Porto de F…, tomou diligências preventivas sobre a embarcação, nomeadamente, apondo-lhe selos.
cccc) Entretanto foi decretado o arresto da conta bancária da 2.ª Requerida, ordenado por força do procedimento cautelar referido em aaaa), e chegou ao conhecimento da 2.ª Requerida e demais visados, que havia sido apresentada a participação criminal referida em zzz).
dddd) Estes, e em especial, a 2.ª Requerida, por iniciativa própria, procuraram a 1.ª Requerida e a P... Investimentos, Lda. no sentido de lograrem obter um acordo e, nessa medida, foi efectuada uma transação, junta com a oposição como documento n.º 13, nos autos de procedimento cautelar n.º …/13.0 TBLLE a qual, entre outros, previa a restituição da embarcação T... em decorrência do incumprimento do contrato-promessa, a qual havia sido entregue como retoma para parte do pagamento do preço acordado.
eeee) Em virtude da transacção efectuada, em 14 de Março de 2013, a 2.ª Requerida emitiu, assinou e entregou à 1.ª Requerida a Declaração para Registo de Propriedade – Contrato de Compra e Venda junta com a oposição como documento n.º 14.
ffff) Contrato esse, apresentado junto da Capitania do Porto de C... no dia imediatamente seguinte, dia 15 de Março de 2013 e que motivou o averbamento de registo de propriedade a favor da 1.ª Requerida.
gggg) Bem como determinou o requerimento de inutilidade superveniente da lide no âmbito do procedimento cautelar referido em yyy).
hhhh) A 1.ª Requerida, quando intentou as acções supra referidas, bem como quando logrou obter acordo com a 2.ª Requerida no âmbito de uma delas, desconhecia que a 2.ª Requerida tivesse outorgado qualquer contrato com uma terceira entidade, designadamente com a Requerente.
iiii) No contacto havido com PG... no dia 21 de Março de 2013, este relatou à Requerente toda esta situação, e a transacção a que se havia chegado com a 2.ª Requerida por força das acções judiciais contra ela intentadas.
jjjj) A 1.ª Requerida desconhecia, até àquele encontro, a relação contratual havida entre a 2.ª Requerida e a Requerente».
1. - Do conhecimento da questão da invalidade do contrato de compra e venda celebrado em 30/01/2013 e das respectivas consequências restitutórias
Nas suas conclusões de recurso, a Apelante, sustentando que a 2.ª Requerida (“S...”) incumpriu o contrato promessa outorgado – de que dependia a compra e venda da embarcação de recreio discutida nestes autos –, invoca que foi celebrado, entre a “S...” e a “P...”, um acordo/transacção, que veio a ser objecto de homologação em processo judicial, acordo esse onde a Requerida “S...” assumiu o incumprimento, por si, daquele contrato promessa, aceitando as partes ser esse o único contrato válido celebrado entre ambas, declarando a “S...” já ter restituído à contraparte a embarcação “T...”, que havia sido entregue como retoma para parte do pagamento do preço acordado no contrato promessa.
Desta base parte a Apelante para o entendimento de ter a sentença recorrida ignorado o facto de aquelas “P...” e “S...” terem celebrado acordo, judicialmente homologado, com a inerente força vinculativa, em que declararam a invalidade do contrato de compra e venda, entre ambas celebrado em 30/01/2013, referente à embarcação discutida nestes autos.
Daí a conclusão no sentido de incorrer a sentença em crise em incorrecta aplicação do direito ao caso, ao considerar nulo o contrato de compra e venda celebrado entre a “S...” e a Apelante em 14/03/2013, sem vislumbrar que o mesmo mais não era do que a restituição da embarcação de recreio em virtude da invalidade do negócio celebrado em 30/01/2013.
A isto logo contrapõe a Requerente/Apelada que apenas em sede de alegação de recurso a Apelante vem, pela primeira vez, invocar nunca ter deixado de ser proprietária da embarcação, em virtude da invalidade do contrato de compra e venda de Janeiro de 2013. Precisa que até então, maxime em sede de oposição à providência, a Recorrente não punha em causa a validade daquele contrato de compra e venda, defendendo antes que através do posterior contrato de compra e venda de 14/03/2013 recomprou a embarcação à “S...”, sendo este último contrato plenamente válido.
Donde que, na óptica da Apelada, estejamos agora perante questão nova, de que, por isso, o Tribunal ad quem não pode conhecer.
Ora, é certo que, como refere a mesma Apelada na sua peça de contra-alegação recursória, face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância, sendo que, a função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa.
Todavia, há que exceptuar, como anteriormente esboçado, questões de conhecimento oficioso, tenham ou não sido suscitadas pelas partes, questões essas de que, desde que pertinentes e com utilidade para a decisão do pleito, o juiz sempre pode ocupar-se (art.º 660.º, n.º 2, in fine, do CPCiv.).
E é consabido que, dentre as invalidades do negócio jurídico, a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art.º 286.º do CCiv.), donde que tal matéria de nulidade seja de configurar como questão de conhecimento oficioso.
Não assim, ainda dentro da figura daquelas invalidades, quanto à anulabilidade, pois que esta só pode ser arguida, em certo lapso temporal, pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, só estas tendo legitimidade para o efeito (art.º 287.º, n.º 1 do CCiv.). Por isso, não pode o tribunal dela conhecer ex officio ([2]).
Tais invalidades – nulidade e anulabilidade – traduzem sempre vícios originários do negócio jurídico e não patologias supervenientes (surgidas posteriormente à celebração do negócio/contrato), pois que, como ensina a doutrina, a invalidade resulta de “… vícios ou deficiências do negócio, contemporâneos da sua formação” ([3]).
Ora, é sabido, por isso, que as causas de invalidade nada têm que ver com o incumprimento do contrato, posto que este constitui patologia que se prende, não com a formação/conclusão do negócio, mas com as vicissitudes da sua posterior (in)execução.
In casu, a Apelante invoca, em sede de conclusões recursórias, invalidade de um contrato, convencionalmente exercida, em transacção, e judicialmente homologada, sem, porém, referir se a situação é de nulidade ou de anulabilidade e sem invocar qualquer causa de invalidade, de que pudesse concluir-se pela nulidade ou, diversamente, pela anulabilidade.
Acresce que a parte Apelante apenas invoca o incumprimento de um contrato promessa, que sempre constituiria, como dito, patologia subsequente à formação/conclusão do contrato, atinente à fase da execução do programa contratual, e não qualquer vício/deficiência originário, gerador, como tal, de invalidade.
Donde que o incumprimento contratual definitivo pudesse, a verificar-se, levar à resolução do contrato (cfr. art.ºs 798.º, 801.º, n.º 2, 804.º 808.º, n.º 1, todos do CCiv.), mas nunca, à face da nossa lei civil, à invalidade desse contrato.
Daí a conclusão no sentido de a questão da invalidade contratual invocada nas conclusões da Recorrente, não resultando que se trate de nulidade – que, só esta, permitiria o conhecimento ex officio do Tribunal ad quem –, somente pudesse agora configurar-se como anulabilidade, a qual, para poder ser aqui conhecida, sempre teria de ter sido objecto de invocação perante a 1.ª instância, mormente no articulado de oposição.
Doutro modo, tratar-se-á inapelavelmente de questão nova, de que este Tribunal não pode conhecer ([4]).
Ora, compulsado tal articulado de oposição, logo se constata que essa invalidade/anulabilidade não foi ali invocada, antes se verificando que, como refere a Apelada, a Requerida aqui Apelante se posicionou no sentido da validade do contrato que esgrima agora ser inválido.
Com efeito, afirmou que, com homologação, foi celebrada transacção ([5]), que previa a restituição da embarcação aqui discutida em decorrência do incumprimento do contrato promessa, desconhecendo a 1.ª Requerida, por ter agido de boa fé, que a 2.ª Requerida houvesse outorgado qualquer contrato com a Requerente.
Donde a perspectivação, pela parte opoente, apenas de uma (só) eventual nulidade de contrato celebrado entre as Requeridas, a fundada no art.º 892.º do CCiv. (atinente à nulidade da venda de bem alheio), que, invocada nos autos pela Requerente – quanto ao ulterior contrato de compra e venda, o datado de 14/03/2013 –, não poderia ser oposta à 1.ª Requerida, fosse pela 2.ª Requerida ou por tal Requerente e aqui Apelada.
E, assim sendo, cabe a conclusão, deste Tribunal, salvo o devido respeito, no sentido de não poder conhecer-se na sede recursória, como defende a Apelada, da questão, só agora suscitada, da invalidade/anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado em 30/01/2013 e consequente invocada consideração do posterior contrato de compra e venda de 14/03/2013 como traduzindo apenas a restituição da embarcação em virtude da invalidade daqueloutro contrato de 30/01/2013.
Aliás, sempre seria de dizer que, a ocorrer a invalidade só agora suscitada, o efeito restitutório do bem não careceria de uma (nova) compra e venda, como a aludida de 14/03/2013, pois que a destruição dos efeitos do negócio inválido (nulo ou anulado) opera por força da lei e tem efeito retroactivo, com a inerente restituição do que houver sido prestado (cfr. art.ºs 289.º, n.º 1, e 290.º, ambos do CCiv.), não carecendo, pois, de acto negocial das partes que, complementarmente, lhe confira ajuda ou eficácia.
Acresce que, mesmo que assim não se entendesse, nada se prova no sentido da invocada motivação desse contrato de 14/03/2013.
O que vem provado é, diversamente, que foi procurada a obtenção de acordo, logrando-se alcançar transação, que previa a restituição da embarcação, que fora entregue em retoma, em decorrência do incumprimento do contrato-promessa, e não de qualquer invalidade contratual.
Daí que, por força dessa transacção, em 14/03/2013, a 2.ª Requerida tenha emitido, assinado e entregue à 1.ª Requerida a declaração para registo de propriedade – contrato de compra e venda.
A problemática, e inerente motivação, apurada é, pois, em linha com o alegado em sede de articulado de oposição, a da restituição por incumprimento do contrato promessa e não qualquer invalidade contratual, que, como tal, não careceria de contrato operador da restituição.
Termos em que se não conhecerá da questão nova assim suscitada nas conclusões da Apelante.
2. - Se as embarcações de recreio são móveis sujeitos a registo ou equiparáveis, com as inerentes consequências registais para efeitos aquisitivos
Nas suas conclusões recursórias, a Apelante expende que “… as embarcações de recreio estão obrigatoriamente sujeitas a registo, nomeadamente, ao registo de mudança de proprietário (arts. 19º e alínea b) do n.º 2 do art. 20º RNR)” (cfr. conclusão 59.ª), pois que dispõe o art.º 72.º, n.º 1, do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31-07 (RGC), sob a epígrafe “Registo de propriedade e registo comercial”, que “As embarcações nacionais, com excepção das pertencentes à Armada estão obrigatoriamente sujeitas a registo de propriedade”, sendo ainda que, por sua vez, «o n.º 3 do mesmo preceito legal estipula que “As embarcações mercantes estão também sujeitas a registo comercial nos termos da lei respectiva” (conclusões 60.ª e 61.ª).
Admite a Recorrente que apenas são legalmente consideradas embarcações mercantes as de comércio, de pesca, rebocadores e auxiliares, com exclusão, pois, das de recreio, termos em que, “…de facto, as embarcações de recreio, não sendo embarcações mercantes, não estão sujeitas ao registo comercial mas apenas ao registo de propriedade”, em conformidade com o disposto no art.º 19.º, n.ºs 1 e 2, do dito RGC (conclusões 62.ª a 64.ª, com itálico aditado).
É, pois, a própria Apelante quem reconhece, em conformidade com o entendimento adoptado, nesta parte, na decisão recorrida, que as embarcações de recreio, como a dos autos, não estão sujeitas ao registo comercial – o qual apenas abrange as embarcações mercantes –, mas tão só ao registo de propriedade.
Porém, dissentindo da sentença apelada, a Recorrente acrescenta que, “não obstante as embarcações de recreio não estarem sujeitas ao registo comercial, tal não prejudica a finalidade e eficácia do registo de propriedade a que estas embarcações estão obrigatoriamente sujeitas” (conclusão 68.ª).
Assim, invocando o disposto no n.º 12 do art.º 20.º do RNR (Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo DLei n.º 124/2004, de 25-05), segundo o qual, em matéria de embarcações de recreio, se aplicam, subsidiariamente, as regras em vigor para o registo das embarcações nacionais, defende que, apesar daquela não sujeição ao registo comercial, o regime deste é aplicável a essas embarcações, a título subsidiário, por força daquele preceito legal (conclusão 70.ª).
Daí que, na sua óptica, aplicando-se “ao registo de embarcações de recreio o regime previsto para o registo comercial de navios (registo para embarcações nacionais), então também lhe será, subsidiariamente aplicável o disposto no Registo Predial, tal como dispõe o art. 19º do Decreto-Lei n.º 42 644 de 14 de Novembro de 1959” (conclusão 73.ª).
A Apelante invocou, aliás, um aresto da Relação de Coimbra ([6]), no qual, sem maiores desenvolvimentos neste âmbito, foi referido:
«Neste particular, confirme-se, pressuponentemente, que, tal como no enunciado de suporte à proposição expressa em decisório nos Autos,
“ao registo das embarcações de recreio aplicam-se: (i) os artigos 19.2 e seguintes do RNR (“Regulamento da Náutica de Recreio”, aprovado pelo Decreto-Lei n. 124/2004, de 25 de Maio, que revogou o anterior Regulamento, que havia sido aprovado pelo Decreto-Lei n.° 329/95, de 9 de Dezembro); (ii) subsidiariamente, as normas do Decreto-Lei n. 42614, de 14 de Novembro de 1957, e do Decreto-Lei n. 42645, de 14 de Novembro de 1957, referentes ao registo de navios; e (iii) subsidiariamente, as disposições do registo predial».
No preâmbulo do DLei n.º 124/2004, de 25-05 – cujo art.º 1.º aprovou o Regulamento da Náutica de Recreio (RNR), em anexo a esse diploma legal – pode ler-se que o crescente desenvolvimento da actividade náutica de recreio, “implicando um número cada vez maior de embarcações e de desportistas náuticos, justifica a necessidade de um permanente ajustamento do regime jurídico em vigor que, mantendo o nível de segurança exigível para as embarcações e seus utilizadores, permita uma maior celeridade e flexibilidade no processo de registo das embarcações e certificação dos navegadores de recreio”, para o efeito se introduzindo “significativas alterações ao actual quadro legal”, destacando-se, designadamente, a “adopção de uma nova classificação das embarcações de recreio, quanto à zona de navegação, que põe termo a uma certa confusão entre zona de navegação e categoria de concepção da embarcação …” e a “aplicação de novas regras respeitantes a vistorias e a registo das embarcações, a cartas de navegadores de recreio e seus limites e à avaliação da aptidão física e mental dos candidatos a navegadores de recreio, bem como a actualização do valor das coimas a aplicar por violação do disposto no presente diploma” (itálico aditado).
No art.º 1.º daquele RNR, com a epígrafe “Objecto e âmbito”, pode ler-se:
“1 – O presente Regulamento estabelece as normas reguladoras da actividade da náutica de recreio.
2 – O presente Regulamento aplica-se às embarcações de recreio, qualquer que seja a sua classificação, aos respectivos equipamentos e materiais e aos seus utilizadores.
3 – Não são abrangidas pelo presente Regulamento:
a) As embarcações exclusivamente destinadas a competição, incluindo os barcos a remos de competição, reconhecidas nessa qualidade pelas respectivas federações;
b) As canoas, caiaques, gaivotas, cocos e outras embarcações de praia desprovidas de motor ou vela, que naveguem até à distância de 300 m da borda de água;
c) As pranchas à vela;
d) As embarcações experimentais.
4 – A utilização de embarcações de recreio com fins lucrativos é regulada por legislação especial”.
E, nos termos do respectivo art.º 2.º, entende-se por “«Embarcação de recreio (ER)» todo o engenho ou aparelho, de qualquer natureza, utilizado ou susceptível de ser utilizado como meio de deslocação de superfície na água em desportos náuticos ou em simples lazer”.
Perante este enunciado legal, logo se compreende que, vista a finalidade recreativa (navegação de recreio) subjacente a estas embarcações, sem fins lucrativos, não lhes seja aplicável o CRegCom., cujo art.º 1.º, por seu lado, dispõe:
“1 - O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.
2 - O registo das cooperativas, das empresas públicas, dos agrupamentos complementares de empresas e dos agrupamentos europeus de interesse económico, bem como de outras pessoas singulares e colectivas por lei a ele sujeitas, rege-se pelas disposições do presente Código, salvo expressa disposição de lei em contrário”.
Bem se compreendendo também, desde logo por razões de segurança e de fiscalização, a cargo da autoridade marítima, que se imponha um registo técnico e de propriedade.
Dispõe o art.º 19.º do RNR, inserido em capítulo com a epígrafe “Registo de embarcações de recreio e papéis de bordo”, que:
“1 – Sem prejuízo do disposto no artigo 22.º, as ER estão obrigatoriamente sujeitas a registo e só podem ser utilizadas depois de devidamente registadas.
2 – O registo das ER é efectuado pela autoridade marítima.
3 – As ER são passíveis de registo provisório nos consulados, nas condições a fixar por portaria …”.
Quanto ao processo de registo das embarcações de recreio, preceitua o art.º 20.º do mesmo RNR:
“1 – O registo das ER é efectuado a pedido dos interessados, através de requerimento contendo os seguintes elementos:
a) Identificação do requerente, da qual conste a seguinte informação:
i) Nome completo e residência;
ii) Denominação da firma e respectiva sede, no caso de pessoa colectiva;
b) Identificação do registo pretendido, da qual conste a seguinte informação:
i) Primeiro registo, com ou sem reserva de propriedade;
ii) Mudança de proprietário, com ou sem reserva de propriedade;
iii) Alteração das características principais da ER, da zona de navegação ou da lotação;
iv) Transferência de registo;
c) Assinatura do requerente, comprovada mediante apresentação do respectivo bilhete de identidade.
2 – O requerimento deve ainda ser acompanhado dos seguintes documentos:
a) Tratando-se de primeiro registo:
i) Pedido de registo da embarcação sem reserva de propriedade (modelo n.º 3 constante do anexo C do presente Regulamento);
ii) Pedido de registo da embarcação com reserva de propriedade (modelo n.º 4 constante do anexo C do presente Regulamento);
iii) Título de aquisição da embarcação a comprovar nomeadamente mediante exibição de contrato de compra e venda, declaração de venda, certidão de decisão judicial ou certidão relativa a processo de sucessão ou doação;
iv) Apresentação de documento comprovativo do desalfandegamento [documento único (DU)] para as ER adquiridas ou importadas directamente de países terceiros pelos seus proprietários;
v) Informação técnica para efeito de registo;
b) No caso de mudança de proprietário:
i) Pedido de alteração de registo (modelo n.º 5 constante do anexo C do presente Regulamento);
ii) Título de aquisição da embarcação;
c) No caso de alteração das características principais da ER ou da zona de navegação:
i) Pedido de alteração de registo (modelo n.º 5 constante do anexo C do presente Regulamento);
ii) Informação técnica para alteração de registo de ER, no caso de haver alteração às características técnicas da ER;
d) No caso de transferência de registo para outro porto de registo:
i) Pedido de alteração de registo (modelo n.º 5 constante do anexo C do presente Regulamento);
ii) Pedido de registo na nova repartição de registo (modelo n.o 5 constante do anexo C do presente Regulamento).
3 – Se as alterações das características técnicas implicarem a substituição de motores, deve ainda ser apresentado documento comprovativo da compra desses motores, indicando expressamente a marca, o modelo, a potência e o número de série.
4 – A reserva de propriedade é permitida em todas as transmissões e deve constar do pedido de registo da ER, cessando mediante declaração apresentada, nesse sentido, pela pessoa a favor de quem tenha sido efectuada.
6 – A informação técnica, para efeitos de registo, é solicitada ao IPTM ou à autoridade marítima, consoante se trate, respectivamente, de embarcações referidas no n.º 1 ou no n.º 2 do artigo 11.º.
7 – O pedido a que se refere o número anterior deve ser acompanhado de cópia da parte do manual de instruções para o proprietário que contenha as características de embarcação e da declaração escrita de conformidade, no caso de ER abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 96/97, de 24 de Abril, ou do certificado do construtor ou equivalente no caso das ER não abrangidas pelo referido diploma, devendo ainda conter a seguinte informação:
a) Classificação da ER;
b) Características dimensionais (comprimento, boca e pontal);
c) Arqueação;
d) Lotação máxima;
e) Cor e material de construção do casco;
f) Cor da superstrutura;
g) Modelo, número e data de construção;
h) Características do motor;
i) Meios de radiocomunicações;
j) Meios de salvação;
l) Meios de combate a incêndio;
m) Meios de esgoto;
n) Declaração de que a ER possui as inscrições exteriores regulamentares e satisfaz as normas em vigor sobre segurança e prevenção da poluição.
8 – Os elementos referidos no número anterior são transcritos do Manual de Instruções para o Proprietário, previsto no anexo I da Portaria n.º 276/97, de 24 de Abril, quando aplicável, e são confirmados através de verificação a bordo da ER, que inclui:
a) Uma inspecção a seco ao casco, à estrutura, ao veio, à manga, ao leme e à hélice, dispensável para as ER construídas há menos de cinco anos, com limitação no prazo para a primeira vistoria de manutenção;
b) Uma inspecção, a flutuar, aos equipamentos a que se refere o n.º 1 do artigo 18.º;
c) A arqueação da ER;
d) As inscrições exteriores regulamentares e o cumprimento das normas em vigor sobre segurança e prevenção da poluição.
9 – No primeiro registo é lavrado um auto de registo, em livro próprio, contendo as características da ER, conforme o modelo n.º 2 constante do anexo B do presente Regulamento.
10 – Os registos são alterados por averbamento, devendo ser emitido um novo livrete nos departamentos de registo, nos casos de mudança de residência do proprietário, mudança de nome da embarcação, transferência de propriedade e alteração das características das ER.
11 – Os registos são cancelados a pedido dos interessados nos departamentos de registo, por motivo de reforma, transferência ou de abate da ER, conforme o modelo n.º 6 constante do anexo C do presente Regulamento.
12 – Em matéria de registo de ER, aplicam-se subsidiariamente as regras em vigor para o registo das embarcações nacionais”.
Quanto às formalidades de registo e livrete de embarcação de recreio, dispõe o art.º 21.º do RNR:
“1 – Do primeiro registo definitivo é lavrado um auto em livro próprio, segundo o modelo n.º 2 constante do anexo B do presente Regulamento, do qual devem constar as características da embarcação, o conjunto de identificação, o nome da ER e o distintivo do proprietário, se for o caso.
2 – Depois de concluídas as formalidades de registo, o livrete da embarcação é entregue ao seu proprietário, conforme o modelo n.º 1 constante do anexo B do presente Regulamento, dele devendo constar os principais elementos relativos ao auto referido no número anterior.
3 – O livrete da embarcação, onde são também anotadas as vistorias de manutenção, previstas no artigo 26.º, corresponde, para todos os efeitos legais, ao certificado de navegabilidade”.
Por fim, quanto ao que aqui importa, estabelece o art.º 24.º, n.º 1, do RNR, no respeitante ao registo técnico de embarcação de recreio, que “O IPTM deve manter actualizado o Registo Técnico Central de Embarcações de Recreio (RETECER), com o objectivo de centralizar os elementos relativos à segurança das ER”.
Assim visitados os preceitos relevantes do RNR, reforça-se a conclusão no sentido de serem razões de segurança e de fiscalização, a cargo da autoridade marítima, bem como de celeridade e flexibilidade, que impõem o registo técnico e de propriedade das embarcações de recreio, consabidos os perigos que tal actividade, com o uso desses meios marítimos, pode comportar, para os respectivos navegadores e para terceiros.
Concorda-se, assim, com a decisão recorrida, ao considerar que o aludido DLei n.º 124/2004, de 25-05, “foi publicado num contexto em que o crescente desenvolvimento deste tipo de actividade, implicando um número cada vez maior de embarcações e de desportistas náuticos, justificou a necessidade de um permanente ajustamento da disciplina jurídica em vigor que, mantendo o nível de segurança exigível para as embarcações e seus utilizadores, devia permitir uma maior celeridade e flexibilidade no processo de registo das embarcações e certificação dos navegadores de recreio”.
Parte depois aquela decisão para a conclusão de que o registo das embarcações de recreio se apresenta como “uma mera condição para o exercício da actividade e um factor de determinação da classificação das mesmas, assumindo assim uma natureza estritamente administrativa …”, não tendo por fim “dar publicidade à situação jurídica do bem com vista à segurança do comércio jurídico, mas antes e tão-somente possibilitar a sua utilização nos termos da classificação que lhe for atribuída”.
Daí que, para o Tribunal a quo, a realização, ou não, do registo de aquisição junto da Capitania do Porto de C... seja indiferente para determinação do domínio da embarcação em causa, não beliscando nenhum dos efeitos decorrentes dos negócios celebrados entre as partes, pois que “o registo efectuado pela 1.ª Requerida não dispõe de uma eficácia atributiva conducente à aquisição (tabular) da embarcação, estribada no art. 5.º, n.º 1, do CRgP …”.
De notar, por fim, que foi junto aos autos parecer jurídico ([7]) no sentido de o registo das embarcações de recreio, tal como delineado no RNR, atentas as suas características, estar “rigorosamente sujeito à normal lógica de publicidade da situação jurídica do bem, assim como à normal lógica de segurança do tráfico jurídico”. E ali se acrescenta: “Tal decorre, de forma directa, da protecção mínima face a terceiros inerente a qualquer sistema registal: a do artigo 5.º do Código do Registo Predial”.
Ora, segundo o art.º 1.º do CRegPred., “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”, sendo que, nos termos do respectivo art.º 5.º, n.º 1, “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo” (itálico aditado).
Como esclarece a doutrina, “Sempre se sentiu a necessidade de tornar conhecida a situação jurídica das coisas. Teve-se sobretudo em vista evitar a possível existência de ónus ocultos, que entravariam a circulação dos bens”, sendo que, actualmente, “revestem especial importância os registos públicos” ([8]).
Seguindo o mesmo Autor, pode dizer-se que a doutrina do registo predial elaborou certos princípios que têm acolhimento na lei dos registos.
Tais princípios, que conferem identidade ao registo predial, podem ajudar-nos, no confronto com a disciplina registal decorrente dos preceitos citados do RNR, a compreender os pontos de contacto entre os dois regimes, por forma a verificar da aplicabilidade do aludido art.º 5.º do CRegPred. ao caso dos autos.
Assim, o Autor citado alude, desde logo, ao princípio da instância, segundo o qual, “Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o registo não será efectuado oficiosamente, mas a requerimento dos interessados” ([9]), podendo tratar-se de um sistema de registo facultativo (deixado ao critério dos interessados) ou obrigatório (imposto por lei).
Outro princípio a atender é o da legalidade, segundo o qual “O conservador está necessariamente sujeito à lei”, podendo, porém, tratar-se de legalidade formal ([10]) ou substancial ([11]).
Quanto à técnica do registo, vale o princípio da descrição, segundo o qual “toda a organização técnica do registo predial assenta numa descrição do prédio cuja situação jurídica se visa tornar pública. O fim da descrição é «a identificação física, económica e fiscal do prédio»”, tratando-se de um sistema que “é pois de base real”, sendo efectuada uma “descrição distinta” de cada prédio, realizada em livro próprio e centralizando “tudo o que respeita à situação jurídica do prédio: não pode haver menções ignoradas” ([12]).
Já se viu, assim, que no sistema registal português a entidade competente para o registo – o conservador, um técnico especializado em matérias de registo – é chamado a proceder a um controlo, não apenas formal, mas também substancial dos actos registandos, competindo-lhe, por isso, a verificação quanto à substância dos actos requeridos, incluindo a sua validade, sem o que não será de admitir o registo ([13]).
Por outro lado, está em causa a situação jurídica dos bens objecto do registo, situação essa que se visa tornar pública – como dito, a função essencial do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos prédios.
Quanto, por seu turno, ao objecto de registo, esclarece ainda Oliveira Ascensão, distinguindo, que “O objecto da publicidade registal são situações jurídicas”, “pois o conservador proclama, não apenas que se verificaram factos, mas as situações jurídicas por eles produzidas. Esse é o resultado da consagração do princípio da legalidade”, enquanto “o objecto do acto de registo, a inscrição ou o averbamento, são factos (tal como o objecto do acto de descrição são situações de facto). Inscrevem-se factos para se comprovarem direitos” ([14]).
Prosseguindo a enunciação de princípios, vale ainda, em matéria registal, o princípio da tipicidade (ou do numerus clausus),visto que “os factos sujeitos a registo são enumerados por lei”, sendo, todavia, que a tipificação legal incide sobre direitos e não propriamente sobre factos, donde que haja “uma tipicidade taxativa, que só indirectamente delimita os factos a registar” ([15]).
Outro princípio a considerar é o do trato sucessivo, entendendo-se que o registo predial “pretende patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição desta até à actualidade. Para isso, exige-se um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre a coisa”, sendo que no nosso sistema registal se faz depender, em termos mais latos, o registo definitivo de aquisição de direitos ou de constituição de encargos por negócio jurídico “da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite ou onera”, significando que, “ainda que o prédio não estiver descrito, se considera que há que satisfazer o trato sucessivo para poder realizar a primeira inscrição”. Quer dizer, tratando-se de prédio omisso, “a lei exige a prévia inscrição a favor do disponente, ameaçando um recuo ilimitado até uma inscrição originária” ([16]).
Com uma tão exigente lógica de trato sucessivo, bem se compreende que tenham sido estabelecidos meios se suprimento, como a justificação notarial e a justificação judicial, tal como legalmente previstas.
Ocorre ainda “imposição da inscrição prévia pelo disponente”, exigindo-se que “os próprios factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não possam ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a seu favor pelo disponente (art. 9.º/1). Assim, não se pode celebrar uma escritura de compra e venda de um imóvel sem que o alienante demonstre a inscrição no registo a seu favor” ([17]).
De salientar, por último, o princípio da prioridade, implicando a prevalência aos direitos inscritos em primeiro lugar sobre aqueles que, “por ordem da data do respectivo registo, se lhes seguiram relativamente aos mesmos bens” e aos “direitos primeiramente inscritos segundo o número de ordem das correspondentes apresentações, se concorrerem inscrições da mesma data” ([18]).
Passando aos efeitos substantivos registais, começa o mesmo Autor por salientar a fé pública do registo, pois que, constituindo o registo definitivo presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, tal importante presunção “não respeita apenas aos factos inscritos, mas às situações jurídicas decorrentes”, estando esta regra conexionada com “o papel activo que, em defesa da legalidade, é atribuído ao conservador”, notando-se aqui a grande diferença para a inscrição matricial, pois que “ela não acarreta nenhuma presunção na ordem civil”, tendo “significado meramente fiscal” ([19]).
No âmbito da fé pública do registo assiste-se, assim, a uma “presunção da verdade dos factos registados, por sua vez decorrente do princípio da legalidade”, podendo levar à aquisição de direitos dominiais, estando a razão última da aquisição naquela fé pública registal, como ocorre na hipótese normativa do art.º 291.º do CCiv. ([20]).
Já, por sua vez, o art.º 5.º do CRegPred., que aqui mais importa, vem reportar-se a situações de omissão da inscrição predial, consistindo “em o registo, que proclama uma situação que foi verdadeira, no ponto de vista substantivo, estar todavia desactualizado, por a ele não ter sido levado um facto subsequente. O registo está então incompleto”, proclamando por isso “como titular alguém que não é verdadeiramente, ou já não o é, à luz dos princípios substantivos” ([21]).
Estabelecendo este normativo que os factos sujeitos a registo apenas produzem efeitos contra terceiros depois de registados, condicionada fica a aquisição do direito, perante terceiros, ao seu registo. Assim é que, se o titular inscrito no registo transmite o direito a outrem e este não regista a sua aquisição e, após esta, aquele transmitente volta a declarar transmitir a novo adquirente (terceiro) e este regista, o aludido preceito registal protege este terceiro que registou e por ter registado, embora pseudo-adquirente, preterindo o adquirente que não registou.
Ocorre, por isso, uma aquisição por via do registo, não obstante a falta de legitimidade do transmitente, aquisição essa com base na fé pública de tal registo, protegendo-se a confiança do terceiro que recebeu de quem tinha a seu favor aquela fé pública registal.
Porém, sendo o verdadeiro fundamento da norma aquela fé pública inerente ao registo, logo bastará, independentemente da existência de uma confiança em concreto, “o facto objectivo da preexistência do registo desconforme, mas assegurado pela fé pública do registo” ([22]).
Assim sendo, cabe perguntar: a fé pública do registo, intrínseca e indispensável ao preceito do art.º 5.º do CRegPred., por ser o seu fundamento, também se encontra no registo das embarcações de recreio, tal como previsto nas citadas normas do RNR? Este registo goza de semelhante fé pública, que permita a aquisição do direito de propriedade por força do mesmo?
É certo, quanto ao princípio da instância, que, vigorando ele no registo predial, também se mostra acolhido no regime de registo previsto no RNR para as embarcações de recreio, como logo resulta dos preceitos anteriormente citados.
E, quanto ao princípio da legalidade, verifica-se que, no regime registal do RNR, embora o registo não caiba a um conservador, incumbe o mesmo a uma entidade pública, com competência atribuída por lei e necessariamente sujeita, na sua actuação, às prescrições legais, podendo ainda dizer-se, assim, que impera aqui uma certa ideia de legalidade.
Já quanto ao princípio da descrição, não se vê que a preocupação do registo previsto no RNR seja a de tornar pública a situação jurídica das embarcações de recreio, centralizando tudo o que respeite à sua situação jurídica.
Tal tónica na situação jurídica dos bens imporia, aliás, como ocorre no registo predial ou comercial, o desempenho registal por técnico de direito, com formação em matéria de registo – como o conservador, um técnico especializado em matéria de direito dos registos –, já que seria chamado a proceder, para além do controlo formal, a um efectivo controlo substancial dos actos registandos, com verificação quanto à substância dos actos requeridos, incluindo a sua validade, sem a qual seria de recusar o registo.
Ora, já se viu que, perante a massificação da náutica de recreio, foram essencialmente razões de segurança e de fiscalizaçã,a cargo da autoridade marítima, bem como de celeridade e flexibilidade, que impuseram o registo técnico e de propriedade das embarcações de recreio.
Bem longe, pois, da preocupação de tornar pública a situação jurídica dessas embarcações, não havendo lugar paraa proclamação, para além da verificação de certos factos, das situações jurídicas por eles produzidas, com vista à comprovação de direitos de pendor dominial.
No que concerne ao aludido princípio da tipicidade, não se descortina no regime registal do RNR que a tipificação legal incida sobre direitos e só indirectamente delimite os factos a registar.
Quanto ao princípio do trato sucessivo, não se vê, contrariamente ao registo predial, que vise o registo do RNR patentear a história da situação jurídica das embarcações de recreio, desde a data da descrição desta até à actualidade.
Não se vê onde, neste âmbito, se exija à autoridade competente que indague e verifique quanto a um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre a coisa, que se faça depender o registo definitivo de aquisição de direitos por negócio jurídico de uma prévia inscrição das embarcações em nome de quem as transmite, ao ponto de impor a satisfação do trato sucessivo para se poder realizar a primeira inscrição (com recuo até uma inscrição originária).
Também não se depreende do regime registal do RNR a imposição da inscrição prévia pelo disponente, em termos de os factos de que resulte transmissão de direitos sobre as embarcações não poderem ser titulados sem o registo definitivo a favor desse disponente.
Quanto à aludida fé pública do registo, abrangendo os factos inscritos e as situações jurídicas decorrentes, intimamente conexionada, no registo predial, com o papel atribuído ao conservador em defesa da legalidade (formal e também de substância), constata-se que o registo previsto no RNR não é idóneo a fundar semelhante fé pública de situações jurídicas, para o que não é vocacionado, mas, mais simplesmente, para o registo técnico e de propriedade das embarcações.
Podendo, assim, dizer-se, salvo o devido respeito, que ocorre grande diferença entre o registo predial e o registo do RNR, tal como quanto à inscrição matricial, que também não comporta presunção na ordem civil, visto o seu significado específico, sem vocação no âmbito civilístico.
As aludidas limitações do registo do RNR, por comparação ao registo predial, impedem-no de assumir a fé pública registal característica deste último, faltando-lhe uma semelhante presunção de verdade dos factos (e decorrentes situações jurídicas) objecto de registo, por inexistência de actuação de um princípio de legalidade substancial, não permitindo, por isso, que desencadeie a aquisição de direitos dominiais, como o direito de propriedade de uma embarcação.
Assim, não pode operar neste âmbito o disposto no art.º 5.º do CRegPred., não sendo defensável, nesta sede, a aquisição do direito de propriedade por via do registo, tal como este se mostra regulado no RNR, faltando, para tanto, a necessária e bastante basilar fé pública do registo, de si não vocacionado para publicitar a situação jurídica das embarcações de recreio em vista da segurança do respectivo comércio jurídico.
Donde que se conclua, com a sentença recorrida, que o registo das embarcações de recreio constitui, essencialmente, condição para o exercício da actividade e factor de determinação da classificação das mesmas, assumindo assim uma inafastável natureza administrativa, sem finalidade publicitária da situação jurídica dos bens para segurança do comércio jurídico.
3. - Dos pressupostos de decretamento do procedimento intentado
Nos autos não há controvérsia quanto à definição dos pressupostos legais de que depende o êxito do procedimento cautelar comum intentado.
Assim, apenas lembraremos, sumariamente, esses pressupostos, legalmente estabelecidos (cfr. art.º 381.º do CPCiv. aludido).
Estabelece o n.º 1 do art.º 381.º do CPCiv. que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
O procedimento, se baseado em factos devidamente alegados, deverá ser decretado desde que as provas produzidas mostrem existir uma probabilidade séria da existência do direito e ser fundado o receio da sua lesão (cfr. n.º 1 do art. 387.º de tal CPCiv.).
Todavia, o procedimento pode não vingar quando o prejuízo, resultante do seu decretamento, para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ele a parte requerente pretende evitar (vide art.º 387.º, n.º 2, do mesmo CPCiv.).
Assim, para a procedência da providência cautelar não especificada requerida terão de verificar-se, cumulativamente, os seguintes requisitos legais:
a) a aparência do direito invocado e a possibilidade séria da sua existência jurídica;
b) o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação desse direito;
c) a adequação da providência à situação de lesão eminente e a insusceptibilidade de a mesma implicar um prejuízo (consideravelmente) superior àquele que se pretende evitar.
Quanto à titularidade do direito, apenas se exige um juízo de probabilidade ou verosimilhança, impondo-se, contudo, que essa probabilidade seja justa e séria ([23]).
Já quanto ao fundado receio de lesão grave e de difícil reparação – o chamado periculum in mora –, «a violação receada não será qualquer uma mas aquela que "modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte. Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de exercer uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito". Ou seja, não basta, para o deferimento da providência, que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano. Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante (que se sente e que causa "mossa" ao requerente), de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil. Este último requisito há-de aferir-se já não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza» ([24]).
Com efeito, os procedimentos cautelares, não constituindo meios de criação ou de definição de direitos, não podem produzir a antecipação da decisão final a proferir na acção principal, apenas encontrando justificação para acautelar o direito invocado, no escopo de evitar, na pendência do processo principal, a ocorrência de danos graves e dificilmente reparáveis.
Pode, pois, dizer-se, com Abrantes Geraldes ([25]), que o requerente do procedimento cautelar visa “acautelar o efeito útil que através do processo principal pretenda ver reconhecido ou satisfeito” ([26]).
E, como também refere este Autor, só relevam aqui as “lesões graves e dificilmente reparáveis”, tendo em conta que importa “evitar abusos na utilização desta forma de composição provisória dos conflitos de interesses” ([27]), só sendo de decretar o procedimento em caso de fundado receio de que o demandado venha a obstar “à utilidade prática de uma sentença favorável ao autor” ([28]).
Ora, como também chama a atenção Abrantes Geraldes, a gravidade da lesão perspectivada “deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado”, sendo certo que, “quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva” ([29]).
Assim, embora não seja, obviamente, de excluir a protecção cautelar quanto a tais prejuízos materiais/patrimoniais, não poderão nesta sede deixar de ser ponderadas “as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados” ([30]).
Excluídas desta protecção cautelar/provisória ficam, pois, como logo decorre do texto legal, quer as lesões sem gravidade, quer as facilmente reparáveis.
O fundado receio a que alude o preceito do art.º 381.º, n.º 1, do CPCiv., terá, por sua vez, de resultar de factos – alegados, para depois poderem ser provados, ainda que sumariamente, já que cabe à parte requerente o respectivo ónus alegatório e probatório (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.) – tendentes a demonstrar “a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo” ([31]).
3.1. - Da séria probabilidade de existência do direito invocado
Concluiu-se já pela inaplicabilidade ao caso do preceituado no art.º 5.º do CRegPred..
Por isso, deve concluir-se, com o Tribunal a quo, que a realização, ou não, do registo de aquisição junto da Capitania do Porto de C... é indiferente para determinação do domínio da embarcação em causa, não contendendo com os negócios celebrados entre as partes, e respectivos efeitos jurídicos, pois que “o registo efectuado pela 1.ª Requerida não dispõe de uma eficácia atributiva conducente à aquisição (tabular) da embarcação …”.
Assim sendo, devemos situar-nos exclusivamente nos contratos firmados, no horizonte civilístico, sem quaisquer preocupações registais, que aqui não relevam.
Neste âmbito, é certo, por provado, que a compra e venda de 30/01/2013 – da 1.ª Requerida/Apelante para a 2.ª Requerida, tendo por objecto a embarcação discutida nos autos – apresenta como causa o contrato promessa que então era negociado entre a “P...” e a 2.ª Requerida, pois que as negociações, então em curso, previam que a embarcação dos autos fosse dada em retoma com vista à aquisição de outra, mais cara, a que se reportava a promessa.
De notar, porém, que então – 30/01/2013 – ainda não havia contrato promessa celebrado, já que o mesmo só veio a ser firmado no dia seguinte, 31/01/2013.
Ao que acresce que a sociedade vendedora outorgante no contrato de compra e venda de 30/01/2013, a aqui 1.ª Requerida, não é a promitente compradora no dito contrato promessa, em que se vinculou, como tal, a dita “P...”.
Daqui se conclui que, embora tendo como causa a futura celebração do contrato promessa, o contrato de compra e venda é dele autónomo, manifestando-se a sua independência na sua anterioridade temporal, tal como na diferente identidade de um dos sujeitos/partes contratuais (1.ª Requerida e “P...”), apesar das afinidades que pudessem existir entre si.
Acresce que, se era desnecessária, para o efeito de retoma acordada, a realização de um contrato de compra e venda, ademais prévio – a 1.ª Requerida podia vincular-se no âmbito do próprio contrato promessa em termos, por exemplo, de dação em cumprimento, sem necessidade de um diverso contrato (art.ºs 405.º, 406.º e 837.º, todos do CCiv.) –, também é notória a diversa natureza e efeitos dos dois contratos, pois que, enquanto no contrato promessa as partes se vinculam na celebração do contrato prometido (art.º 410.º, n.º 1, do CCiv.), sem transmissão de direitos reais (esta só ocorreria por força da prometida compra e venda), a compra e venda, por seu lado, tem como um dos seus efeitos, por regra, a transmissão imediata da propriedade da coisa vendida para o comprador (art.ºs 408.º, n.º 1, 874.º e 879.º, al. a), todos do CCiv.).
Quer dizer, antes mesmo de firmado o contrato promessa já era vendida a embarcação dos autos, com a decorrente transmissão da propriedade.
Na verdade, no sistema jurídico português vigora, em matéria de efeito real do contrato de compra e venda, o chamado sistema do título, segundo o qual o efeito translativo da propriedade decorre do próprio acto pelo qual se expressa a vontade de transmitir o direito ([32]), tendo como corolários os princípios da causalidade e da consensualidade, este último a estabelecer que «… a constituição ou modificação de direitos reais se dá “por mero efeito do contrato” (art. 408.º, n.º 1, do Cód. Civ.)», tendo como regra a “eficácia real imediata da compra e venda” ([33]).
Podem, porém, ocorrer excepções àqueles princípios da causalidade e da consensualidade, admitindo a lei em certos casos “a dissociação entre o momento da conclusão do contrato e o momento da constituição ou transmissão do direito real”, como ocorre com a compra e venda com reserva de propriedade ([34]) ou com a venda condicional.
No caso dos autos não se verifica qualquer excepção àquelas regras de direito substantivo do regime do contrato de compra e venda, pelo que a venda aludida é uma pura e imediata venda, com a consequência da imediata transmissão, por efeito do negócio, do direito de propriedade sobre o bem para a adquirente, 2.ª Requerida.
Ocorreu, pois, eficácia real imediata da compra e venda, transferindo-se, por isso, o direito de propriedade sobre a aludida embarcação para a parte adquirente.
Aconteceu que poucos dias após, em 03/02/2013 – ainda assim, já depois de celebrado o contrato promessa referido –, ocorreu novo contrato de compra e venda da embarcação dos autos, agora, como comprovado, entre a 2.ª Requerida, como declarante vendedora, e a Requerente/Apelada, como adquirente ([35]).
Assim, tratando-se de nova compra e venda, que também era uma venda pura, ocorreu a transmissão, ante a eficácia real imediata da compra e venda, do direito de propriedade da embarcação, assim alienada, para a parte adquirente, a dita Requerente/Apelada.
Dúvidas não nos restam, pois, de ter esta adquirido assim a propriedade da embarcação, por transmissão da então proprietária, a 2.ª Requerida.
E, se bem vemos, a eventual ulterior resolução do contrato promessa não implicaria, por si, a resolução de qualquer compra e venda, desde logo a de 30/01/2013, posto que se trata de negócios diversos, independentes na sua existência, subsistência e efeitos, apesar de um poder ser causa do outro.
Na verdade, como restituir-se – efeito restitutório da eventual resolução do contrato promessa – aquilo que se adquiriu por força de outro contrato, translativo da propriedade, e que até já se alienou a outrem, pelo que já não se encontra na esfera jurídica daquele que se pretende que efectue a restituição?
Donde que, independentemente do contrato de transacção – e sua homologação judicial –, em que a 2.ª Requerida se vinculou, obrigando-se a restituir o que já havia alienado à Requerente (a dita embarcação), e da situação de possível incumprimento definitivo da promessa, resolução desta e consequente obrigação de restituição, certo nos pareça que tal obrigação de restituir, no concernente à embarcação, esbarra com a anterior venda pela sociedade que se obrigou a tal restituição.
Na verdade, não poderia esta restituir o que já não lhe pertence, pois que perdido o domínio do bem, por transmissão a outrem, sem direito de sequela, já dele não pode dispor, por já pertencer a outrem, que em nada se obrigou no contrato promessa e não pode ser prejudicado pela resolução dele.
O que ocorreria, se bem vemos, seria a constituição da 2.ª Requerida na situação de não poder restituir o que se obrigou a restituir, com as inerentes consequências para esta perante o seu credor de restituição, a 1.ª Requerida.
Sem possibilidade, porém, de inutilizar a venda efectuada para a Requerente e de retirar o bem do património desta adquirente.
Donde que, se bem se perspectiva, a venda/transmissão posterior, da 2.ª para a 1.ª das Requeridas, datada de 14/03/2013, seja, realmente, uma venda a non domino, como tal ineficaz em relação à proprietária do bem, a Requerente/Apelada.
Daí que, como referido na decisão sob recurso, dispondo “consecutivamente da mesma embarcação, a 2.ª Requerida acabou por alienar à 1.ª Requerida um bem que não lhe pertencia e sem que tivesse legitimidade para dele dispor”, sendo esta segunda venda “ineficaz relativamente à Requerente, proprietária do bem, à luz do disposto no art. 879.º do CC, e nula quanto às Requeridas, tendo em conta o regime previsto no art. 892.º do CC”.
E, afastada a possibilidade de aquisição por via do registo, por inaplicabilidade do disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CRegPred., tem de concluir-se assistir à Requerente/Apelada o direito de propriedade sobre a discutida embarcação, ao menos em termos de juízo de probabilidade ou verosimilhança, sendo no caso manifestamente justa e séria a probabilidade desse invocado direito.
Verificado está, salvo o devido respeito, o primeiro dos pressupostos do procedimento intentado.
3.2. - Da verificação do imprescindível periculum in mora
Na decisão recorrida – a de procedência da providência deduzida – entendeu-se estar verificado também o pressuposto do fundado receio de lesão (o periculum in mora).
Vem dito na sentença que se apurou deter a 1.ª Requerida sem título válido – e contra a vontade da proprietária, a ora Requerente – uma embarcação que não lhe pertence, sendo as embarcações de recreio bens semoventes, facilmente alienáveis (veja-se o caso dos autos!), que num instante podem ver alterada a sua designação e pavilhão ou serem colocadas pelos seus próprios meios em qualquer parte do mundo (marítimo), circunstâncias que dificultam inexoravelmente a sua localização.
E mencionou-se ainda: “No caso vertente, esse risco surge agravado pelo facto de a 1.ª Requerida beneficiar da ilusão provocada pelo registo administrativo de que é a proprietária da concreta embarcação, não obstante as garantias que a mesma avançou na sua defesa de que não pretendia desfazer-se da T....
Este circunstancialismo permite concluir pela verificação do elemento do fundado receio de que outrem, antes de a competente acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da Requerente, a qual, saliente-se, está sem a embarcação e a importância que desembolsou por conta do preço que pagou”.
Contrapõe a Apelante que não tem intenção de proceder à alienação da embarcação, não pretendendo desfazer-se dela, nem de fazê-la “desaparecer”, tendo podido fazê-lo se fosse sua intenção.
Ora, também nesta parte se concorda com o decidido na 1.ª instância, pois que, atenta a natureza do bem, a sua fácil deslocação e comercialização, enquanto possibilidade, com o decorrente perigo, objectivo, de afastamento para qualquer parte mundo, o que, a ocorrer, dificultaria em muito a sua posterior recuperação, e ponderado todo o circunstancialismo e vicissitudes dos autos, como resultam da factualidade apurada, parece-nos bem real o perigo de lesão grave e dificilmente reparável do direito da Requerente, sendo justificado o receio desta, vistos até os muito elevados montantes em jogo, com o consequente perigo de grave dano de natureza pecuniária, que uma sentença favorável, se proferida, poderia não reparar cabalmente.
Donde a conclusão pela verificação também deste pressuposto de procedência do procedimento cautelar.
3.3. - Do prejuízo consideravelmente superior resultante da providência
Pugna a Apelante por não terem sido equacionados os prejuízos em que incorre com o decretamento da providência cautelar.
Defende, assim, que, com a embarcação apreendida, deixa de a poder utilizar, tendo-se visto obrigada a alugar embarcação idêntica para os fins pretendidos, suportando custos avultados com o aluguer de embarcação idêntica, ascendendo a € 120.000,00 semanais.
Por outro lado, considera que não deixa de existir, com o decretamento da providência cautelar, perigo de fuga da embarcação, pois que, tendo sido o fiel depositário nomeado pela recorrida, ficou provado que esta tentou levá-la, recentemente, para Antibes.
Ao assim concluir, pretende a Apelante convencer estar em falta, de certo modo, a adequação e proporcionalidade da providência, sendo esta susceptível de causar um prejuízo consideravelmente superior àquele que se pretende evitar.
Ora, dir-se-á, desde logo, que não resulta, ante a factualidade provada – a única a considerar aqui –, demonstrada a ocorrência dos invocados avultados custos/prejuízos derivados da privação de utilização da embarcação.
Por isso, não demonstrados os prejuízos e respectivo quantum, razões não se encontram para recusar a providência por via de um dano, dela decorrente, que fosse consideravelmente excessivo face ao dano que a Requerente pretende prevenir.
Por outro lado, cabe dizer que o decretamento do procedimento cautelar, traduzido, no caso, na apreensão de embarcação à ordem dos autos, constitui a melhor forma, nos termos da lei, de prevenir o perigo de fuga dessa embarcação.
Para isso serve a apreensão do bem, podendo o depositário – indicado pela Requerente/Apelada, por determinação do Tribunal, mas nomeado por este –, que se encontra sujeito aos deveres legais inerentes ao cargo, ser substituído, em qualquer altura, se não observar tais deveres, desde que tal seja verificado nos autos.
Assim, qualquer eventual inobservância de deveres legais por parte do depositário nomeada não seria, obviamente, motivo de não decretamento do procedimento/apreensão, mas de eventual substituição daquele.
Haverá, portanto, de improceder o procedimento cautelar, mantendo-se a decisão em crise.
1. - O registo de embarcações de recreio, previsto no Regulamento da Náutica de Recreio – aprovado pelo DLei n.º 124/2004, de 25-05 –, de pendor técnico e de propriedade, pelas limitações que lhe são inerentes, não assume a fé pública registal característica do registo predial, faltando-lhe uma semelhante presunção de verdade, por inexistência de actuação de um princípio de legalidade substancial, não logrando desencadear a aquisição de direitos dominiais.
2. - Assim, não opera neste âmbito o disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CRegPred., não sendo possível a aquisição do direito de propriedade sobre embarcações de recreio por via do registo, de si não vocacionado para publicitar a situação jurídica das embarcações em vista da segurança do respectivo comércio jurídico.
3. - O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, pressuposto do decretamento de procedimento cautelar não especificado (art.º 381.º, n.º 1, do CPCiv.), obriga à alegação e prova – esta em termos sumários – pelo requerente, não só do perigo de que outrem cause uma lesão grave do direito, mas ainda que essa lesão seja irreparável ou dificilmente reparável.
4. - O direito a acautelar é o que se pretende fazer valer na acção principal e o perigo de lesão reporta-se à morosidade própria dessa acção, por forma a obstar a que essa morosidade impeça ou inviabilize a realização de tal direito.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pela Apelante.
Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.
Versos em branco.
Lisboa, 16/01/2014
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José Vítor dos Santos Amaral (Relator)
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Fernanda Isabel Pereira (1.ª Adjunta)
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Maria Manuela Gomes (2.ª Adjunta)
([1]) Na versão decorrente da Reforma de 2007, a aplicável in casu – procedimento cautelar instaurado após 01/01/2008 e antes da entrada em vigor do NCPCiv., isto é, anteriormente a 01/09/2013 (cfr. DLei n.º 303/2007, de 24-08, e respectivo art.º 12.º, n.º 1, bem como art.º 7.º, n.º 2, da Lei n.º 41/2013, de 26-06).
([2]) Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, a nulidade “opera ipso jure. Daí poder ser conhecida oficiosamente pelo tribunal e poder ser declarada a todo o tempo” – cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 263. Na verdade, a nulidade impede a produção dos efeitos do negócio jurídico. Ao contrário da anulabilidade, pois que aqui “o acto, enquanto não for judicialmente anulado, produz provisoriamente os seus efeitos jurídicos, embora sujeitos a resolução, dada a eficácia retroactiva da anulação (cfr. art.º 289.º). O negócio anulável é, assim, um negócio válido, enquanto não for anulado” (vide Pires de Lima e Antunes Varela, op. e loc. cits.). Assim, a anulabilidade não opera ipso jure ou ipso vi legis, não sendo de conhecimento oficioso do tribunal (cfr. também Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1983, ps. 597-598).
([3]) Cfr., por todos, Carlos A. Mota Pinto, op. cit., p. 591.
([4]) Como salientado, entre outros, no Ac. Rel. Coimbra, de 08/11/2011 – Proc. 39/10.8TBMDA.C1 (Rel. Henrique Antunes), disponível em www.dgsi.pt –, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais; não meios de julgamento de questões novas, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso.
([5]) Esta configura também um contrato (cfr. art.ºs 1248.º e segs. do CCiv.).
([6]) Trata-se do Ac. de 31/01/2012, Proc. 1358/03.5TBFIG-A.C1 (Rel. Carvalho Martins), disponível em www.dgsi.pt.
([7]) Da autoria dos Professores Jorge Sinde Monteiro e Almeno de Sá.
([8]) Assim, Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 333.
([9]) Cfr. op. cit., p. 336.
([10]) O conservador apenas verifica a regularidade formal dos actos requeridos e a legitimidade dos requerentes, sem julgar quanto à substância desses actos, como ocorre nos sistemas francês e italiano.
([11]) Como ocorre nos sistemas registais português e alemão, em que o conservador deve proceder à verificação quanto à dita substância – incluindo a validade – dos actos requeridos. As partes poderão reagir, em caso de decisão desfavorável, através de recurso contencioso ou reclamação hierárquica.
([12]) Cfr., Oliveira Ascensão, op. cit., ps. 339-340.
([13]) Deve, caso não encontre legalidade no pedido, recusar o registo ou realizá-lo provisoriamente por dúvidas, nos moldes legalmente prescritos
([14]) Op. cit., p. 341.
([15]) Autor citado, op. cit., ps. 342-343. Esclarece ainda que “São hoje típicos os direitos a que se podem reportar os factos que se registam”, só estando “sujeitos a registo os factos referentes à propriedade, ao usufruto, à hipoteca, etc., bem como quaisquer outras restrições ao direito de propriedade ou outros encargos que a lei declare sujeitos a registo predial” (vide, op. e loc. cits.).
([16]) Assim, Oliveira Ascensão, op. cit., ps. 344 e segs..
([17]) Op. cit., p. 347.
([18]) Op. cit., p. 349.
([19]) Op. cit., p. 351.
([20]) Vide, op. cit., p. 368.
([21]) Op. cit., p. 372.
([22]) Op. cit., p. 376.
([23]) Cfr. Ac. Rel. Lisboa, de 19/10/2010, Proc. 1600/10.6TBCSC-A.L1-1 (Rel. António Santos), em www.dgsi.pt, e doutrina ali citada.
([24]) Vide Ac. citado e doutrina ali mencionada. No mesmo sentido, aludindo à necessidade de «um critério mais rigoroso na apreciação dos factos integradores do “periculum in mora”», Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., Almedina, Coimbra, 1998, p. 88.
([25]) Cfr. Temas da Reforma do Processo Civil cit., p. 83.
([26]) No mesmo sentido, cfr., por todos, na jurisprudência, o Ac. Rel. Lisboa, de 15/04/2010, Proc. 6572/09.7TBOER.L1-8 (Rel. Carlos Marinho), em www.dgsi.pt.
([27]) Vide Abrantes Geraldes, op. cit., ps. 83-84.
([28]) Assim também Teixeira de Sousa, in O Interesse Processual na Acção Declarativa, ed. AAFDUL, 1989, p. 34, cit. por Abrantes Geraldes, op. cit., p. 194.
([29]) Op. cit., ps. 84-85.
([30]) Cita-se ainda Abrantes Geraldes, op. cit., p. 85.
([31]) Ainda Abrantes Geraldes, op. cit., p. 87.
([32]) Cfr. Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (Do direito das coisas em geral), Centelha, Coimbra, 1977, pág. 274, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de Compra e Venda, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 36.
([33]) Assim Nuno Manuel Pinto Oliveira, op. cit., pág. 37.
([34]) Vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, op. cit., pág. 39.
([35]) Que se tratou de uma compra e venda e não, diversamente, de uma promessa de compra e venda resulta da al.ª e) da factualidade apurada, bem como, em geral, do restante circunstancialismo fáctico provado nos autos, sendo pacífica, em sede de recurso, a qualificação que a 1.ª instância operou desse contrato celebrado como correspondendo a um contrato definitivo, de compra e venda, e não a um contrato promessa, tal como é incontroversa, por não impugnada, na sede recursória, a decisão de facto. É certo que a redacção dada às al.ªs f) a j) dos factos apurados na 1.ª instância, mormente quanto ao tempo oferecido às formas verbais adoptadas, poderia lançar a dúvida quanto ao carácter definitivo do contrato celebrado pela Requerente/Apelada. Porém, como é pacífico ante a sentença proferida e as peças recursórias das partes, tratou-se de um contrato definitivo, havendo alguma imprecisão, certamente decorrente de lapso de redacção, em tempos verbais que constam daquelas al.ªs f) a j).