JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
USUCAPIÃO
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Sumário

I - Não sendo dada satisfação aos ónus impostos pela lei ao apelante que impugne a decisão sobre a matéria de facto, haverá que rejeitar a impugnação da matéria de facto a que a apelante procedeu.
II - A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de apreciação negativa e, estando ou não feito o registo da aquisição com base na mesma, era à R. que competiria demonstrar a realidade dos factos conducentes à aquisição do direito de propriedade invocado na escritura sem que beneficiasse da presunção prevista no art. 7 do CRP.
III - Actuando a A. por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, exercendo o poder de facto, usando e fruindo o imóvel desde que por escritura pública foi celebrada a compra e venda do mesmo, o exercício do “corpus” da posse fará presumir a existência do respectivo “animus” - que, aliás, se compagina com a circunstância da A. figurar como compradora naquela escritura de compra e venda.
IV - Sendo a posse por parte da A. pública e pacífica e tendo derivado do contrato de compra e venda, pelo que titulada, assim se presumindo de boa fé, o prazo da usucapião é de quinze anos.
V - Porque o pedido de declaração da nulidade da escritura de justificação notarial (ou, mais precisamente, de declaração de ineficácia da mesma) contém implicitamente o de cancelamento do registo, não se verifica a nulidade da sentença por a condenação haver excedido o pedido quando, apesar de não peticionado, foi determinado aquele cancelamento.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

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RELATÓRIO:

    I - A MM intentou acção declarativa de condenação com processo comum ordinário contra «R A T, SA».

            Alegou a A., em resumo:
A A. é proprietária de um prédio urbano por si adquirido por escritura pública de compra e venda de ...1979 à «Cotapo - Empreendimentos Comerciais e Industriais, SARL», pelo preço de € 42.500,00, imóvel que à data da aquisição se encontrava omisso na matriz.

O terreno para construção, tem área de 1663 metros quadrados e dez centímetros e confronta a norte com a Rua do ..., a sul com a Rua da ..., a nascente com a Travessa conhecida por Travessa do ... e a poente com os armazéns de «Martins e..., Irmão», confrontações que ainda hoje se mantêm.

Neste terreno existe uma muralha, sob a qual foi edificada uma casa com um só pavimento, ocupando a área coberta de 38 m2, e que tem o nº 129 para a Rua do..., tendo atualmente o número matricial de 182.

A A. adquiriu o referido terreno com o intuito de proceder à implantação de infraestruturas de apoio ao supermercado da sede, passando desde a aquisição a utilizar o imóvel para fins diversos, de forma continuada e ininterrupta, à vista de todas as pessoas e sem oposição de ninguém, na convicção de que era a única proprietária.

 Tendo o portão que limitava o acesso ao terreno sido retirado pelos trabalhadores da A. para ser reparado na oficina de serralharia da mesma, no 3º fim de semana de Novembro de 2012, o encarregado de vigilância que exerce funções ao serviço da A., no âmbito da fiscalização de rotina, apercebeu-se que a R. estava a realizar obras no muro que delimita o terreno, tendo sido alargada a abertura de acesso ao terreno e colocado um portão. Para além das obras realizadas, a R. passou a estacionar veículos pesados de transporte de passageiros no local.

A A. contactou a R., tendo esta informado que a propriedade era titulada por escritura pública de justificação notarial. A R. bem sabia que o terreno sempre fora utilizado pela A..

Pediu a A. que:
- A R. seja condenada a reconhecer que a A. é a proprietária do imóvel e a restituir a posse do mesmo à A.;
- a R. seja condenada a abster-se de fazer uso do imóvel, cujo uso tem vindo a exercer de forma abusiva;
- a R. seja condenada a reconhecer que causou prejuízos à A. e a pagar uma indemnização pelos danos causados e pela ocupação e utilização de propriedade alheia, em montante não inferior a € 3.000,00 mensais;
- seja decretada a nulidade da escritura de justificação notarial celebrada no Cartório Notarial de Matosinhos.

Citada, a R. contestou, alegando essencialmente:
Por escritura de justificação notarial de ... de 2012, outorgada no Cartório Notarial de Matosinhos, a R., através do seu representante legal, declarou ser dona e legítima possuidora do direito de propriedade plena sobre o prédio urbano com área de 1402,74 m2, sito na Rua da ..., 73, 75, 77, 79, na freguesia do .... Aquele prédio está descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ... da freguesia do ... e a sua aquisição por usucapião foi inscrita na mesma Conservatória pela apresentação 2841 de 2012-8-31.O prédio em referência fora adquirido pelo então sócio-gerente da R., JR, já falecido, e a R. destinou o imóvel a apoio da sua atividade industrial de exploração de transportes públicos rodoviários. Em Agosto de 2010, a R. procedeu à colocação de um portão para impedir o acesso ao terreno, tudo fazendo como legítima proprietária, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém. O prédio que a A. afirma ser seu tem descrição própria, não tem inscrição matricial (com excepção da casa de 30 m2) e é contíguo ao prédio da R.

            Concluiu pela improcedência da acção com a sua absolvição do pedido.

            O processo prosseguiu e, a final, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«Por todo o exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência,
a) Reconhece-se a autora como proprietária do imóvel constituído por terreno situado em Lisboa, na Rua da ..., 73, 75, 77, 79, da freguesia do ..., que confronta a norte com a Rua do ..., a sul com a Rua da ..., a nascente com o prédio militar nº ... (anteriormente com Travessa do ...) e a poente com os armazéns de “Martins e ..., Irmão”;
b) Condena-se a ré a reconhecer a autora como proprietária do identificado imóvel e a restituir o mesmo à autora;
c) Condena-se a ré a abster-se de fazer uso do identificado imóvel;
d) Decreta-se a nulidade da escritura de justificação notarial celebrada no Cartório Notarial de Matosinhos a ... de 2012 e, consequentemente, ordena-se o cancelamento do registo de propriedade existente a favor da ré;
e) Absolve-se a ré do demais peticionado».
    Apelou a R., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
A - A ação em causa no processo e no presente recurso é uma ação de simples apreciação negativa.
B - A Ré/recorrente beneficia da presunção do registo: art.º 7º do Código do Registo Predial.
C -A A. não logrou ilidir, mediante prova em contrário, a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito: artigos 7º, 8º, 10º, e n.º 1 do art.º 116º todos do CRP e n.º 1 do art.º 344º e 350º do Código Civil.
D - Do depoimento das testemunhas da A. não se retira com grau de probabilidade bastante que a ocupação do terreno e sua utilização tenha ocorrido há mais de vinte anos.
E - As duas primeiras testemunhas apenas conhecem factos de 2010 e 2011 ano em que a primeira iniciou o seu trabalho na MM, tendo a segunda exercido funções apenas a partir de 2006.
F - O facto justificado na escritura respetiva é impugnável a todo o tempo. Porém, tem de reconhecer-se que tendo já decorrido o prazo para aquisição, por usucapião, pela R/recorrente, do terreno, e não tendo a A./Recorrida logrado provar factos que consubstanciam a sua alegada propriedade, devem julgar-se verificada a presunção do art.º 7º do CRP e do art.º 350º CC que é uma situação com correspondência com a realidade.
G - A A. não alegou factos bastantes, nem deles fez prova, que pudessem evidenciar a utilização pública, pacifica e de boa fé de atos de posse relativamente ao terreno: não é possuidora, nem sequer mera detentora do terreno.
H - Das declarações que não continham certeza bastante o Tribunal retirou grau de probabilidade bastante.
I - O supermercado encerrou em 1994, como decorre da informação n.º ..., MM, de 18.02.94 (doc.9 da p.i. onde se refere expressamente:”… encontrando-se o terreno em causa devoluto”.
J - Não sendo sólida na argumentação e capacidade de convencimento da prova testemunhal, verifica-se erro de julgamento da matéria de facto.
K - Dos depoimentos testemunhais verifica-se que a A. nunca exerceu atos de posse sobre o terreno de que se arroga proprietária: há confusão entre este terreno e o que corresponde ao da entrada no portão 7, este sim propriedade da A. recorrida.
L - Verifica-se falta de conhecimento da matéria de facto, pelo menos na amplitude que lhe foi conferida pela douta sentença “a quo” por referência à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
M - Há manifesta confusão/generalização de factos que parecem memorizados a propósito, em especial da testemunha n.º 4, Adelino ..., sem conhecimento concreto da realidade.
N - O que conduziu a um manifesto erro de interpretação da matéria de facto. Sem grau de convicção suficiente (atendendo que nem sequer viu autocarros da R. que diariamente e há longos anos acedem à garagem contigua ao terreno em causa nos autos).
O - Havendo dúvidas sobre a credibilidade dos depoentes o sentido dos respetivos depoimentos deve alterar-se a decisão sobre a matéria de facto, particularmente a matéria sob os n.ºs 19), 20) e 21), que deve ser dada por não provada: al. a) e b) do n.º 2 do art.º 662º CPC
P – A falsidade das afirmações justificatórias constantes da escritura de justificação notarial não figura entre os casos típicos de nulidade de atos notariais previstas nos artigos 70º e 71º do Código do Notariado.
Q - Está a apelante dispensada de efetuar prova dos factos que levaram à usucapião, por via da presunção do art.º 7º do CRP e, por esses factos, terem sido alegados em juízo e constarem da escritura de justificação notarial que serviu de base ao registo:
“o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
R - Assim sendo, inverte-se o ónus da prova, que é da responsabilidade da apelada, impugnante do facto justificado.
S - Decorrido o prazo de impugnação da escritura de justificação notarial sem que a ela tenha havido lugar, isto é, cumprida que seja a fase da publicidade da respectiva outorga e inscrita a aquisição do direito, como é o caso, passa esta inscrição a constituir a presunção da titularidade do direito em causa, nos termos do artigo 7.°, CRP. Por virtude da mencionada presunção, o ónus de prova da falsidade da mencionada escritura de justificação notarial, ou seja, de que o direito nela declarado
não existe, passa a incumbir ao autor (artigos 342.°, n.º 1, 344.°, n.º 1 e 350.°, Código Civil e 7.°, CRP).
T - Caso o Tribunal “ad quem” considere não existirem factos suficientes quer na escritura, quer alegados na ação, para fundarem a usucapião, deverá sempre a ação improceder, dando-se provimento à presente apelação.
U - Com o devido respeito, verifica-se pois erro de julgamento devendo proceder-se à reapreciação da prova gravada, determinando-se como não provados os factos referidos nos pontos 19), 20), e 21) da douta sentença “a quo”: al. a), b) e c) do n.º 1 do art.º 640º do CPC
W - Ao ordenar o cancelamento do registo de propriedade do terreno existente a favor da R., o que não foi objeto do pedido da A. condenou “extra vel ultra petitum”, numa prevalência injustificada da justiça material sobre a formal.
V - Durante todo o processo não foi facultado à R. o exercício do contraditório relativamente a esta matéria, que constitui uma surpresa da sentença.
X - Cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir impondo-se ao Juiz o dever de fundar a decisão nesses factos. Com o devido respeito, o tribunal está impedido de condenar em objeto diverso do pedido, sob pena de nulidade da sentença. É a obediência ao princípio do dispositivo.
Z - Verifica-se assim nulidade da sentença nos termos do n.º 1 do art.º 609º e alínea e) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.
A.A) A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 7º, 8º, 10º, n.º 1 do art.º 116º todos do Código de Registo Predial; n.º 1 dos art.ºs 342º, 344º e 350º do Código Civil; art.º 414º, n.º 1 do art.º 609º, al. e) do n.º 1 do art.º 615º, al. a) e b) do n.º 2 do art.º 662º todos do CPC.

            A A. contra alegou nos termos de fls. 303 e seguintes.

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  II – 1 - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

      1) Por AP 6 de 1912/02/07 encontra-se registada a favor de «COTAPO - Empreendimentos Comerciais e Industriais, SARL, por aquisição a Emília..., a Emília A... F..., a Augusto A... F... e a Beatriz..., do terreno com a área total de 1298,1 m2, sendo a área coberta de 38 m2, estando construída em parte do terreno uma muralha sobre a qual foi edificada uma casa de um só pavimento com a área coberta de 32 m2, sito na Rua do ..., 129, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia do ..., sob o nº ..., tendo sido desanexado o prédio descrito sob o nº ... do Livro ... com a área de 135m2. (certidão da CRP de fls. 181 a 183 e de fls. 188 a 197).

2) Por escritura pública lavrada em de 1979 no 10º Cartório Notarial de Lisboa, «COTAPO Empreendimentos Comerciais e Industriais, SARL» declarou vender à MM, que declarou comprar o prédio acima descrito, com a área actual de 1163 m2 e 10 cm pelo preço de 8 milhões e quinhentos mil escudos que já recebera. (certidão de escritura pública de fls. 18 a 25).

3) À data da aquisição o imóvel encontrava-se omisso na matriz predial. (certidão de escritura pública de fls. 18 a 25).

4) O terreno descrito no nº 1 confronta a norte com a Rua do... , a sul com a Rua da ..., a nascente com a Travessa conhecida por Travessa do... e a poente com os Armazéns de M... e..., Irmão. (certidão da CRP de fls. 188 a 197).

5) A travessa do ... não existia já nestas datas. (acordo das partes).

6) Esta casa com o número 129 para a Rua do ..., estava inscrita na matriz sob o artigo quatrocentos e setenta e três. (certidão das Finanças de fls. 36).

7) Esta casa existe atualmente, tendo-se verificado a alteração do número matricial, que é agora o nº 182. (certidão das Finanças de fls. 36).

8) A autora paga as taxas municipais referentes a este imóvel. (acordo das partes).

9) Por escritura de justificação notarial de... de 2012, outorgada no Cartório Notarial de Matosinhos, a fls. 17 a 18vº do Livro nº..., a R., através do seu representante legal, declarou que “é dona e legitima possuidora do direito de propriedade plena, sobre o prédio urbano composto por um prédio em propriedade total, sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, com a área de mil quatrocentos e dois virgula setenta e quatro metros quadrados, sito na Rua da ..., 73, 75, 77, 79, na freguesia de..., concelho de Lisboa omisso na competente Conservatória do Registo Predial inscrito na matriz sob o artigo Nº..., com o valor patrimonial de 12.856,63 e ao qual atribui idêntico valor”. (certidão da escritura pública da justiça notarial de fls. 53 a 55).

10) Mais declarou que “segundo a certidão de omissão no registo predial, consta que o imóvel poderá ser o descrito sob o número mil setecentos e setenta e sete, da freguesia do..., declarando o primeiro outorgante, na respetiva qualidade, não corresponder à mesma realidade física e jurídica do indicado imóvel”. E ainda que “adquiriu este prédio urbano, no ano de mil novecentos e oitenta e sete, ainda como sociedade com a denominação Sociedade de Transportes ..., Lda., levada a cabo pelo então gerente, JR, já falecido, por compra verbal feita à extinta sociedade Companhia Portuguesa de Tabacos, que teve a sua sede em Lisboa, no Largo de ..., nº...” E que, desde então “… entrou na posse do imóvel, e passou a exercer sobre o mesmo todos os atos materiais de fruição e de defesa, de forma exclusiva, pacífica, contínua e pública, nele exercendo os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade utilizando como armazém, com a convicção que a sua atuação era como a de um direito próprio, à vista da generalidade das pessoas da referida freguesia de Beato, lugares e freguesias vizinhas, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, sem prejuízo de interesses alheios”. (certidão da escritura pública da justiça notarial de fls. 53 a 55).

11) O extrato desta escritura foi publicado, na íntegra, no Jornal “Diário de Notícias” em ... de 2012, Edição nº .... (documento de fls. 67).

12) Por apresentação Nº... de 2012/08/31 encontra-se inscrita a aquisição a favor da ré por usucapião do prédio urbano situado na Rua da ..., nºs 73, 75, 77 e 79, com a área total de 1402/74m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ... da freguesia do .... (certidão da CRP de fls. 68).

13) O referido prédio estava anteriormente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº... 384 da freguesia do .... (certidão da caderneta predial urbana de fls. 69).

14) Sucede que no terceiro fim-de-semana de novembro de 2012, o encarregado da vigilância que exerce funções ao serviço da autora no âmbito da sua fiscalização de rotina se apercebeu que a ré estava a realizar obras no muro que delimita o terreno. (acordo das partes).

15) A ré tinha partido uma parte do muro e alargou a abertura de acesso ao terreno e colocou um portão. (acordo das partes).

16) Estava a ser rebocado o muro, já existente e tinha sido colocada uma vedação de arame de cerca de 2 metros de altura, tinha sido também colocado em portão e havia obras de pavimentação do espaço, tudo realizado pela ré. (acordo das partes).

17) As confrontações supra descritas no nº 4 ainda se mantêm, com exceção do lado nascente, dado que já não existindo a Travessa conhecida por Travessa do..., o terreno descrito no nº 1 confronta com o prédio militar nº ....

18) A autora adquiriu o terreno, objeto desta ação judicial, com o intuito de proceder à implantação de infraestruturas de apoio ao supermercado da sede (Supermercado nº l/Supermercado do Beato).

19) O terreno foi usado para estacionamento de viaturas que aguardavam descarga no tempo em que ainda funcionava o Supermercado nº 1, cujo encerramento ocorreu no final de 1994 (artigo 22º da pi corrigida).

20) Como é contíguo com o prédio ... nº..., zona Sul deste Estabelecimento Fabril, onde se encontra implantada a área fabril, também as viaturas que faziam abastecimentos/carregamentos, de matérias-primas e mercadorias, aguardavam a sua vez para descarregar ou carregar, utilizando o terreno objeto de litígio para parqueamento.

21) Por se tratar de um espaço aberto, quando eram realizadas obras de conservação/manutenção/reparação dos edifícios da zona sul da autora em que se encontravam instaladas as fábricas, oficinas, supermercado, armazéns, este terreno era também utilizado para apoio às obras, onde eram colocados materiais, utensílios e depósitos de obra.

22) Em 2011, na sequência de obras realizadas na parte fabril, nomeadamente na Fábrica de ... e na Fábrica de..., como este terreno se encontrava vago foram aí depositados os entulhos provenientes das obras efetuadas nestes edifícios.

23) A autora, com a colaboração da Câmara Municipal de Lisboa, procedeu à remoção de entulhos e limpou o terreno em 2012.

24) O acima descrito ocorreu à vista de todas as pessoas e sem oposição de ninguém.

25) O portão que limitava o acesso foi nessa altura retirado pelos trabalhadores da autora.

26) Em Agosto de 2010 a ré procedeu à colocação de um portão para impedir o acesso ao terreno.

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II – 2 – O Tribunal de 1ª instância julgou não se encontrarem provados os seguintes factos:

A) A partir de 1987, a ré destinou o prédio objeto de escritura judicial notarial a apoio da sua atividade industrial de exploração de transportes públicos rodoviários, nomeadamente para parqueamento de viaturas ligeiras e autocarros e como complemento às suas instalações sitas na Rua da ..., n.ºs 63, 65, e quase confinantes com aquele prédio/terreno.
B) A ré fez tudo isto durante muitos anos, à vista de todos, de forma pública, pacífica, continuada e sem oposição de ninguém.

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III – Sabendo-se que são as conclusões da alegação de recurso que delimitam o âmbito da apelação, temos que as questões que se nos colocam são, essencialmente, as seguintes:

- se há lugar à alteração da matéria de facto provada consoante proposto pela apelante;
- se a R. beneficia da presunção do art.º 7º do Código do Registo Predial;
- se estão demonstrados factos bastantes caracterizadores de uma posse da A. susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião;
- se o Tribunal de 1ª instância condenou em objeto diverso do pedido, pelo que a sentença é nula.

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IV – 1 - Refere a apelante: «Havendo dúvidas sobre a credibilidade dos depoentes o sentido dos respetivos depoimentos deve alterar-se a decisão sobre a matéria de facto, particularmente a matéria sob os n.ºs 19), 20) e 21), que deve ser dada por não provada: al. a) e b) do n.º 2 do art.º 662º CPC».

Pretende, pois, a apelante que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto no que concerne aos pontos 19), 20) e 21) dos Factos Provados que, na sua perspectiva, deverão ser dados como não provados.

Vejamos.

Nos termos do nº 1 do art. 640 do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A reapreciação dos meios de prova pelo tribunal da Relação destinar-se-á a diligenciar a correcção de eventuais erros de julgamento na decisão sobre a matéria de facto. Assim, dispõe o nº 2-a) do mesmo art. 640 do CPC que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso - e proceder, se assim o entender, à transcrição de quaisquer excertos.

Diz-nos, a propósito, Abrantes Geraldes ([1]) que relativamente «a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos». Bem como que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se na situação de «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda».

A apelante refere com exactidão os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e indica qual a decisão que, em seu entender deveria, nessa parte ser proferida.

Todavia, não dá cumprimento ao disposto na lei no que respeita à designação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, na medida em que fundando-se a decisão sobre aqueles pontos da matéria de facto em provas gravadas, se verifica a falta de indicação exacta das passagens da gravação em que a apelante se funda.

Admitindo que estas referências não teriam de constar, como não constam, das conclusões da alegação de recurso, a verdade é que no caso dos autos também não estão presentes no corpo da alegação.

A apelante, no corpo da alegação de recurso, limita-se a dizer: que do depoimento da testemunha Luís ..., no dia ... de 2014, «com 5613 kb na gravação áudio extrai-se o seguinte» - que depois descreve; que do depoimento da testemunha Manuel..., no dia ... de 2014, «com 3258 kb na gravação áudio extrai-se o seguinte» - que seguidamente expõe; que do depoimento da testemunha António ..., no dia ...de 2014, «com 4060 kb na gravação áudio extrai-se o seguinte» - que depois relata; que do depoimento de Adelino ... no dia ...de 2014, «com 4592 kb na gravação áudio extrai-se o seguinte» - que após narra…

Não é, pois, dada satisfação aos ónus impostos pela lei ao apelante que impugne a decisão sobre a matéria de facto.

Saliente-se que, ao contrário do que a apelante argumenta no corpo da sua alegação de recurso, no novo CPC mantém-se a regra sobre a livre apreciação das provas pelo julgador, segundo a sua prudente convicção ([2]) – nº 5 do art. 607 daquele Código. O que não significa que a decisão sobre a matéria de facto provada, tendo em consideração a livre apreciação da prova produzida, não seja sindicável por este Tribunal que aferirá se ocorreu, ou não, um erro de julgamento – desde que o apelante cumpra os ónus que a propósito a lei processual lhe impõe.

 Pelo que, não cumpridas integralmente as imposições da lei, haverá que rejeitar a impugnação da matéria de facto a que a apelante procedeu.

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IV – 2 - O Tribunal de 1ª instância considerou que a A. logrou demonstrar ser a proprietária do imóvel a que se reportam os autos, havendo-o adquirido por escritura pública de ... de 1979 à sociedade a favor de quem se encontrava registada a propriedade do dito imóvel e, de qualquer modo, sempre havendo comprovado factos de que decorreria a aquisição originária através da usucapião.

Entendeu, ainda, o Tribunal de 1ª instância que tendo a A. feito a prova dos factos constitutivos do direito alegado logrou ilidir a presunção constante do art. 7 do CRP de que beneficiava a R. e que esta não fez prova dos factos constitutivos do seu direito conforme havia declarado na escritura de justificação notarial.

Daí haver concluído pela (parcial) procedência da acção.

A R., na alegação de recurso, por um lado sustenta que estamos perante uma acção de simples apreciação negativa - que seria de impugnação de justificação notarial - mas, por outro, defende que está dispensada de efectuar prova dos factos que levaram à usucapião, por via da presunção do art. 7 do CRP, incumbindo à A. a prova de que o direito declarado na escritura de justificação notarial não existe.

Vejamos.

A A., pediu o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel a que se reportam os autos e que o mesmo lhe seja restituído, condenando-se a R. a abster-se de dele fazer uso; pediu, também, que seja decretada a nulidade da escritura de justificação notarial celebrada no Cartório Notarial de Matosinhos em ... de 2012.

Será que, nesta parte, a presente acção corresponde a uma impugnação da justificação notarial de ... de 2012?
Admite-se que assim é.

Globalmente, a A. põe em causa o afirmado naquela escritura quanto ao espaço - a concreta porção de terreno - a que se reportam os autos da qual afirma ser ela, e não a R., a proprietária. Muito embora a A. peça que seja declarada a nulidade da escritura de justificação notarial, na verdade ela visará paralisar os efeitos da justificação notarial, querendo que seja atingido o direito invocado pela R. na escritura de justificação, sendo esta ineficaz. Do que se tratará verdadeiramente é da ineficácia daquela escritura, declarando-se que não produz efeitos, por a R. não ter adquirido aquele prédio por usucapião ([3]).

Como a apelante salienta na alínea P) das suas conclusões, a falsidade das afirmações constantes da escritura de justificação notarial não figura entre os casos típicos de nulidade de actos notariais.

A propósito, no acórdão de uniformização de jurisprudência proferido em 4-12-2007 ([4]) concluiu-se: «O autor pede que se declare nula a escritura de justificação notarial de 14 de Fevereiro de 1996, com fundamento na falsidade das afirmações justificatórias constantes da mesma escritura.

Ora, a falsidade das afirmações dos outorgantes não figura entre as causas típicas de nulidade dos actos notariais, previstas nos arts 70º e 71º do Código do Notariado.

Do que se trata é antes da ineficácia de tal escritura, declarando-se que não produz efeitos, por os réus não terem adquirido o prédio por usucapião.

Tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em vez da sua nulidade, o tribunal deve corrigir, oficiosamente, tal erro, e declarar tal ineficácia da escritura de justificação notarial, como permitido pelo art. 664º do C.P.C. (Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 3/01, de 23-1-01, publicado no Diário da República, 1ª Série A, de 9-2-01)».
É neste contexto que se admite que, na vertente em referência, a A. estará, afinal, a deduzir contra a R. uma impugnação daquela justificação notarial ([5]).

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IV – 3 - Defende a apelante que está dispensada de efectuar a prova dos factos que levaram à usucapião, por via da presunção do art. 7 do CRP, invertendo-se o ónus da prova que é, assim, da responsabilidade da apelada, tendo em conta que decorreu o prazo de impugnação antes que ela tivesse lugar (conclusões Q) a S) da alegação da apelante).

Em nosso entender não será assim.

 Com a justificação notarial pretende-se estabelecer o trato sucessivo nos termos dos arts. 116 do C. Reg. Predial e 89 a 101 do C. do Notariado.

Trata-se de um meio ou expediente técnico simplificado de obter a primeira inscrição registral ou reatar o trato sucessivo no registo predial de um prédio que alguém afirma ser seu.

No caso dos autos, sendo declarado na escritura de justificação que o prédio ali referido estava omisso na competente Conservatória de Registo Predial, estaríamos perante a situação a que alude o nº 1 do art. 116 do C. Reg. Predial e o art. 89 do C. do Notariado.

Todavia, como observado no já aludido acórdão do STJ de 4-12-2007 ([6]) o expediente em referência «não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a realidade, potenciando, mesmo, a sua utilização fraudulenta e permitindo que o justificante dela se sirva para titular direitos que não possui, com lesão de direitos de terceiros.

Efectivamente, trata-se de uma forma especial de titular direitos sobre imóveis, para efeito de descrição na Conservatória do Registo Predial, baseada em declarações dos próprios interessados, embora confirmadas por três declarantes, em que a fraude é possível e simples de executar».

Mais se dizendo no aludido acórdão:

«A impugnação da escritura de justificação significa a impugnação dos factos com base nos quais foi celebrado o registo.

A impugnação desses factos, traduzida na alegação da sua não verificação ou da sua não correspondência com a realidade, não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e a sua eficácia prevista no art. 7º do Cód. Reg. Predial, que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção.

Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado».

Uniformizando-se então a jurisprudência nos seguintes termos:
«Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.»

Entendimento que se vem mantendo, como resulta do acórdão do STJ de 7-4-2011 ([7]), no qual se escreveu: «… dúvidas não nos restam que, tratando-se de uma acção de impugnação de escritura de justificação notarial, prevista nos arts 116.º, nº 1 do CdRP e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo os réus nela afirmado terem adquirido por usucapião o direito de propriedade sobre o imóvel ora questionado, que registaram depois – com base em tal escritura – a seu favor, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu arrogado direito (art. 343.º, nº 1 do CC), sem poderem, para tal, gozar da presunção do registo que, em regra, lhes seria concedida pelo art. 7.º do citado CdRP – acórdão do STJ, para uniformização de jurisprudência, nº 1/08, cuja firmada doutrina aqui não se vê razões para alterar».

Sendo se referir que o art. 101 do Cod. do Notariado, não fixa qualquer prazo para propositura da acção de impugnação do facto justificado; não estando a acção sujeita a qualquer prazo de caducidade é indiferente que já tenha sido lavrado o registo com base na escritura de justificação ([8]).

E comentando Isabel Pereira Mendes ([9]) que a acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de apreciação negativa e, esteja ou não feito o registo da aquisição com base na mesma, o ónus da prova deve competir ao registante.

Assim, seria à R. que competiria demonstrar a realidade dos factos conducentes à aquisição do direito de propriedade invocado na escritura ([10]).
O que manifestamente não fez.

Sabemos, apenas, que em Agosto de 2010 a R. procedeu à colocação de um portão para impedir o acesso ao terreno e que no terceiro fim-de-semana de Novembro de 2012 - já depois de outorgada a escritura de justificação notarial - o encarregado da vigilância que exerce funções ao serviço da A. se apercebeu que a R. estava a realizar obras no muro que delimita o terreno, tendo partido uma parte do muro e alargado a abertura de acesso ao terreno e colocado um portão, que estava a ser rebocado o muro, já existente e tinha sido colocada uma vedação de arame de cerca de 2 metros de altura e havia obras de pavimentação do espaço, tudo realizado pela R..

A R. não provou que a partir de 1987 destinou o prédio objeto de escritura judicial notarial a apoio da sua atividade industrial de exploração de transportes públicos rodoviários, nomeadamente para parqueamento de viaturas ligeiras e autocarros e como complemento às suas instalações sitas na Rua da ..., n.ºs 63, 65, e que fez tudo isto durante muitos anos, à vista de todos, de forma pública, pacífica, continuada e sem oposição de ninguém.
Na vertente correspondente à impugnação da justificação notarial teremos, pois, que concluir que aquela escritura não produz efeitos (é ineficaz) uma vez que a R. não adquiriu o prédio a que se reportam os autos por usucapião.

*

IV – 4 - Como vimos, a presente acção não se reconduz a uma pura e singela acção de simples apreciação negativa. Para além dessa vertente, já apreciada, temos uma outra que se traduz nos pedidos formulados pela A. quanto ao reconhecimento a seu favor do direito de propriedade sobre o prédio e respectiva restituição, com abstenção por parte da R. de dele fazer uso.

Quanto a este segmento argumenta fundamentalmente a apelante que a «A. não alegou factos bastantes, nem deles fez prova, que pudessem evidenciar a utilização pública, pacifica e de boa fé de atos de posse relativamente ao terreno: não é possuidora, nem sequer mera detentora do terreno» (G) das conclusões da apelação) ([11]).

Sabemos - porque tal resultou provado -, que se encontrava registada a favor de «COTAPO - Empreendimentos Comerciais e Industriais, SARL» a aquisição do terreno com a área total de 1298,1 m2, sendo a área coberta de 38 m2, estando construída em parte do terreno uma muralha sobre a qual foi edificada uma casa de um só pavimento com a área coberta de 32 m2, sito na Rua do ..., 129, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia do ..., sob o nº ..., tendo sido desanexado o prédio descrito sob o nº ... do Livro ... com a área de 135m2. Sabemos, igualmente, que por escritura pública de ...1979 a referida «COTAPO» declarou vender à A., que declarou comprar, o prédio que acabámos de referir. Acresce que à data da aquisição, em 1979, o imóvel se encontrava omisso na matriz predial; a casa (com o número 129 para a Rua do ...) estava inscrita na matriz sob o artigo quatrocentos e setenta e três, tendo-se verificado a alteração do número matricial, que é agora o nº 182; bem como que a A. paga as taxas municipais referentes ao imóvel.

Apurou-se, ainda:
- que a autora adquiriu o terreno acima mencionado com o intuito de proceder à implantação de infraestruturas de apoio ao supermercado da sede - Supermercado nº l/Supermercado do ...);
- que o terreno foi usado para estacionamento de viaturas que aguardavam descarga no tempo em que ainda funcionava o Supermercado nº 1, cujo encerramento ocorreu no final de 1994;
- que como é contíguo com o prédio .... nº ..., zona Sul deste Estabelecimento Fabril, onde se encontra implantada a área fabril, também as viaturas que faziam abastecimentos/carregamentos, de matérias-primas e mercadorias, aguardavam a sua vez para descarregar ou carregar, utilizando o terreno para parqueamento;
- que por se tratar de um espaço aberto, quando eram realizadas obras de conservação/manutenção/reparação dos edifícios da zona sul da A. em que se encontravam instaladas as fábricas, oficinas, supermercado, armazéns, este terreno era também utilizado para apoio às obras, onde eram colocados materiais, utensílios e depósitos de obra;
- que em 2011, na sequência de obras realizadas na parte fabril, nomeadamente na Fábrica de ... e na Fábrica de ..., como este terreno se encontrava vago foram aí depositados os entulhos provenientes das obras efectuadas nestes edifícios;
- que a A., com a colaboração da Câmara Municipal de Lisboa, procedeu à remoção de entulhos e limpou o terreno em 2012.

Bem como que aquilo que descrevemos ocorreu à vista de todas as pessoas e sem oposição de ninguém.

Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real - art. 1251 do CC.

A nossa lei distingue a posse da mera detenção (art. 1253 do CC); aquela exige o «corpus» e o «animus», traduzindo-se o primeiro na actuação de facto correspondente ao exercício do direito e o segundo na intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Contudo, sendo embora necessários o «corpus» e o «animus», face ao disposto no nº 2 do art. 1252 do CC, o exercício daquele fará presumir a existência deste ([12]). Determina este preceito legal que, em caso de dúvida, «presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art. 1257».

Explicam, a propósito, Pires de Lima e Antunes Varela ([13]) que aqui se «estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus) salvo se não foi o iniciador da posse (referência ao nº 2 do art. 1257º)».

No caso dos autos a A. – que por escritura pública celebrada em 1979 comprara o prédio a que se reportam os autos – utilizou-o ao longo do tempo para estacionamento/parqueamento de viaturas, para apoio a obras, ali sendo colocados materiais, utensílios e depósitos de obra, bem como (no ano de 2011) para depósito de entulhos. Depois, em 2012, com a colaboração da Câmara Municipal de Lisboa, procedeu à remoção de entulhos e limpou o terreno. A A. paga as taxas municipais referentes a este imóvel.

Temos, pois, que a A. veio actuando de facto por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, exercendo o poder de facto, usando e fruindo o imóvel desde que por escritura pública foi celebrada a compra e venda do mesmo.

O exercício do “corpus” da posse fará presumir a existência do respectivo “animus” - que, aliás, se compagina com a circunstância da A. figurar como compradora naquela escritura de compra e venda ([14]).

Por outro lado, provou-se que a actuação da A. ocorria à vista de todas as pessoas e sem oposição de ninguém.

Não tem, pois, razão de ser a alegação da apelante no sentido de que a A. «não alegou factos bastantes, nem deles fez prova, que pudessem evidenciar a utilização pública, pacifica e de boa fé de atos de posse relativamente ao terreno: não é possuidora, nem sequer mera detentora do terreno».

Antes se justifica o entendimento do Tribunal de 1ª instância no sentido de se terem comprovado factos de que decorreria a aquisição originária através da usucapião por parte da A..

Como resulta do art. 1287 do CC, a verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo.

Para o possuidor poder adquirir por usucapião têm de estar verificados os dois componentes da posse, o material e o psicológico – o que, como vimos, sucede no caso.

A usucapião assenta numa posse reiterada que se prolonga durante um certo período de tempo fixado na lei, sendo o decurso do tempo um elemento determinante do seu regime.

Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: ser pública e pacífica; as restantes características (boa ou má fé, titulada ou não titulada) influirão, apenas, no prazo.
A lei estabelece regimes distintos para a usucapião de coisas móveis e imóveis, variando o prazo em função das características da posse (se é de boa ou de má fé, se existe, ou não, justo título ou registo da posse…). Assim, quanto aos imóveis, não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos se for de má fé (art. 1296 do CC).

No caso dos autos, temos que a posse da A. era pública e pacífica, ocorrendo à vista de todas as pessoas e sem oposição de ninguém e derivou do contrato de compra e venda que acima referimos, pelo que titulada (art. 1259 do CC), assim se presumindo de boa fé(nº2 do art. 1260 do CC).

Daí o prazo da usucapião ser de quinze anos, consoante o art. 1296 do CC, não se podendo colocar em dúvida que quando da colocação do portão pela R., em Agosto de 2010, da outorga da escritura de justificação notarial em Junho de 2012 e das obras no muro e de pavimentação, no terceiro fim-de-semana de Novembro de 2012, a A. era a proprietária do imóvel, com os inerentes poderes sobre o mesmo, podendo exigir o reconhecimento do seu direito (art. 1311 do CC).

*

IV – 5 – A apelante suscita a ocorrência da nulidade da sentença nos termos do n.º 1 do art.º 609 e alínea e) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, dizendo que ao ordenar o cancelamento do registo de propriedade do imóvel, o que não fora objeto do pedido da A., o Tribunal condenou “extra vel ultra petitum”.

Vejamos.

De acordo com a alínea e) do nº 1 do art. 615 é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido. Esta disposição legal está em directa correlação com o que determina o art. 609, nº 1, do mesmo Código: a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

O juiz está limitado pelos pedidos das partes e não pode deles extravasar; a decisão não pode pronunciar-se sobre mais do que foi pedido ou sobre coisa diversa da que foi pedida. Não pode ultrapassar nem em quantidade nem em qualidade os limites do pedido formulado.

É certo que a A. não formulou o pedido de cancelamento do registo impugnado.

Sucede que na sua actual redacção, decorrente das alterações introduzidas pelo dl 116/2008, de 4-7, o art. 8 do CRP, dispõe que a «impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo».

Anteriormente, atento o nº 2 do art. 3 e o art. 8 do CRP, as acções sujeitas a registo não podiam ter seguimento após os articulados sem que fosse comprovado no processo o seu registo e as acções em que fossem impugnados factos registados mas em que não fosse formulado o pedido de cancelamento do registo não podiam ter seguimento após os articulados.

Actualmente, com a alteração introduzida no art. 8, dispensa-se o impugnante de formular expressamente o pedido de cancelamento do registo, tendo-se este como presumido e implicitamente formulado.

Assim, porque o pedido de declaração de nulidade da escritura de justificação (que, como vimos, em termos mais adequados se reconduz à ineficácia da mesma) contém implicitamente o de cancelamento do registo, não se verifica a invocada nulidade da sentença.

*

V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, com a rectificação, apenas, de que é decretada a ineficácia, que não propriamente a nulidade, da escritura de justificação notarial celebrada no Cartório Notarial de Matosinhos a ... de 2012.
Custas pela apelante.

*

Lisboa, 30 de Abril de 2015

Maria José Mouro
Teresa Albuquerque                                                                     
Sousa Pinto
             
[1] Em «Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, pags .126-128.
[2] Não abrangendo, consoante já anteriormente sucedia, os factos provados por documento, confissão ou acordo das partes.
[3] Ver, a propósito, o acórdão do STJ de 24-6-2004, ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 03B3843, o acórdão do STJ de 3-7-2003, ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 03B2066, e o acórdão de uniformização de jurisprudência proferido em 4-12-2007, ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 07A2464.
[4] Já acima aludido e ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 07A2464, correspondendo ao acórdão para uniformização de jurisprudência, nº 1/08, DR I S, DE 31-3-2008.
[5] Não se tratando embora de uma pura acção de impugnação de justificação notarial, atentos os demais pedidos que a A. formula.
[6] Acórdão de uniformização de jurisprudência ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 07A2464.
[7] Ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 569/04.0TCSNT.L1.S1.
[8] No acórdão de 26-02-2013, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. 41/06.4TBCSC.L1.S2, o STJ considerou, uma vez mais, que «o prazo de trinta dias a que alude o artº 101º, nº 1, do Código do Notariado, não é um prazo de caducidade da acção de impugnação da justificação notarial a que se refere o n.º 1 do mesmo normativo, sendo certo, por isso, que esta acção não está sujeita a qualquer prazo de caducidade».
[9] Em «Código do Registo Predial Anotado e Comentado», Almedina, 17ª edição, pag. 183.
[10] A acção de impugnação de justificação notarial na sua pureza apresenta-se como uma acção declarativa de simples apreciação negativa -  art. 10, nºs 2 e 3, al. a) do CPC – com ela se pretendendo a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura. Daí, recair sobre o R. o ónus da prova dos factos constitutivos daquele direito de que na escritura de justificação se arrogou - os factos por ele invocados como integrantes de causa de aquisição do direito de propriedade de que naquela escritura se atribuíram a titularidade - consoante decorre do art. 343, nº 1, do CC.
[11]  O que também não é desenvolvido na motivação do recurso.
[12]  Ver Mota Pinto, «Direitos Reais», Almedina, 1975, pag. 191.
[13] «Código Civil Anotado», Coimbra Editora, 2ª edição, vol. III, pag. 8.
[14] Não esqueçamos que estava inscrita a favor da vendedora «COTAPO» a anterior aquisição do imóvel.