DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INSTRUÇÃO CRIMINAL
VÍCIOS
Sumário

I – Para a documentação das diligências de prova realizadas em fase de instrução rege o disposto no artigo 296º, do CPP, não se cominando com a nulidade a sua omissão, ao contrário do consagrado no artigo 363º, do mesmo Código.

II – Assim, a aludida omissão apenas poderá consubstancia uma irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no nº1, do artigo 123º, do CPP, devendo ser arguida perante o tribunal de 1ª instância.

III- Nas fases de Inquérito e Instrução não existe, propriamente, prova, mas sim indícios probatórios (ou prova indiciária) e, esta, embora permitindo a sujeição a julgamento do agente ou agentes, não constitui prova, no sentido rigoroso do conceito, pelo que não tem cabimento a pretensão da recorrente de impugnar a matéria de facto com recurso à prova gravada, uma vez que a reapreciação da prova gravada diz respeito à sentença (ou acórdão) que, a final, realizada a audiência de julgamento, conheça de facto e de direito.

IV - Os vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do CPP, dizem respeito à sentença e não à decisão instrutória, pois reportam-se à matéria de facto provada (e não provada) que, como já não existe na decisão instrutória, onde apenas consta a matéria de facto indiciada ou não indiciada.

V - As nulidades da sentença previstas no artigo 379º, nº 1, do CPP, não são aplicáveis à decisão instrutória.

VI – No requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente não é admissível a narração factual por remissão para a queixa ou participação e para o conjunto dos documentos apresentados, pois tal obliteraria as garantias de defesa do arguido e seria uma violação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32º, nº 5, da Lei Fundamental.
(Sumário do relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

           1. Nos presentes autos com o NUIPC 2135/12.8TAFUN, da Comarca da Madeira Funchal - Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J1, foi proferida, aos 17 de Novembro de 2014, decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos T e B, após ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público e pela assistente “C & P, Lda.” sido requerida a abertura da Instrução imputando factos que, em seu entender, integravam a prática pelo primeiro de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alíneas d) e e) e um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos artigos 202º, alínea a) e 205º, nºs 1 e 3, alínea a), todos do Código Penal e, pelo segundo, de um crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231º, nº 1, do mesmo diploma legal.

           2. A assistente “C & P, Lda.” não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que se determine a prolação de decisão de pronúncia do arguido T pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alíneas d) e e) do Código Penal e, quando assim não se entenda, deverá ser ordenada a repetição da instrução”.

           2.1 Retirou a recorrente/assistente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):


1a
A documentação da audiência é imposta por Lei para permitir o recurso da matéria de facto.

A falta e ou imperceptibilidade dos depoimentos gravados em audiência, além de omitir acto imposto por Lei, impede o recurso sobre a matéria de facto.

A gravação dos depoimentos das testemunhas PR, JC, CS e J F é de todo imperceptível ou inaudível.

Consequentemente verifica-se nulidade da decisão ora recorrida por violação do artigo 363.º do CPP.

O crime de falsificação de documento, na sua modalidade ideológica, traduz-se numa declaração falsa juridicamente relevante, para prejudicar terceiro ou para que dela o autor retire benefício ilegítimo.

Ora a decisão recorrida dá como provada falsidade em acta de assembleia geral societária.

Das regras da experiência comum resulta que a acta de dissolução duma sociedade é acto juridicamente relevante por extinguir definitivamente uma pessoa e extinguir ou modificar defensivamente as relações jurídicas por ela estabelecidas.

Resulta dos autos que o recorrido descaminhou valores e bens da sociedade querendo e logrando o prejuízo da ora recorrente e ou o benefício ilegítimo dele.

Incorreu assim a decisão recorrida em erro de julgamento resultante da própria decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e, consequentemente no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPC.
10ª
Sem prescindir, a decisão recorrida omite, quando devia conhecer importantes elementos do crime de falsificação de documento, tais como:
- a determinação dos prejuízos causados pelo arguido ao recorrente;
- a identificação do total do activo ocultado ou descaminhado da sociedade "T SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.";
- e a identificação de quem presentemente detém tal activo, ou seja, quem foi prejudicado por essa premeditada ocultação e quem com ela ilegitimamente beneficiou.
11ª
Por esta razão a decisão recorrida incorre na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.
12ª
Como no mesmo vício incorre ao ter omitido a responsabilidade criminal resultante do uso de documento falso para registo, violando a alínea e), do n.º 1, do artigo 256.º Código Penal, em conjugação com o artigo 153.º, n.º 1, do Código de Registo Predial (aplicável subsidiariamente ao registo comercial por força do artigo 115.º do Código do Registo Comercial).
13ª
Consequentemente a decisão viola por erro de interpretação e de aplicação as sobreditas normas, designadamente as seguintes: os artigos 256.º, n.º 1, al.s d) e e), 255.º, alínea a), e 363.º do Código Penal, o artigo 153.º, n.º 1, do Código de Registo Predial (aplicável subsidiariamente ao registo comercial por força do artigo 115.º do Código do Registo Comercial), os artigos 146.º, n.ºs 1 e 2, 147.º e 163.º do Código das Sociedades Comerciais, os artigos 3.º, 18.º e 186.º do CIRE, o artigo 1020.º do Código Civil e os artigos 363.º, 379º, n.º 1, al. c), e 410.º, n.º 2, alínea c) do Código Processo Penal
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser revogada a decisão recorrida, substituída por outra que pronuncie o arguido T pelo crime de falsificação ou contrafacção de documento, p.p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al.s d) e e) do Código Penal e, quando assim não se entenda, deverá ser ordenada a repetição da instrução, assim se fazendo JUSTIÇA.

           3. Respondeu o Ministério Público à motivação de recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

           4. Resposta apresentou também “T–Sociedade Unipessoal, Lda.” concluindo no sentido da improcedência do recurso, sendo que a ela não é de atender porquanto a sociedade não é afectada pelo recurso, visto que o arguido é a pessoa singular, não a sociedade e além disso intitula-se como executada e apelada, posição processual que nada tem a ver com o recurso interposto.

           5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu “Visto”.

            6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

            Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1.   Âmbito do Recurso

           O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

           No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação do recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

           Nulidade da decisão recorrida por violação do artigo 363º, do CPP.

           Verificação do vício previsto no artigo 410, nº 2, alínea c), do CPP.

            Nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia.

2.   A Decisão Recorrida


2.1 A decisão recorrida, na parte que para aqui releva, para tem o seguinte teor (transcrição):

Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente à denúncia apresentada por “C & P, Lda.” na imputava a T a prática de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d) e e) e de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 202.º, alínea a) e 205.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a) do Código Penal e a B a prática de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de receptação, p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

Por discordar do teor do despacho de arquivamento, “C & P, Lda.” constitui-se assistente e requereu a abertura de instrução, nos termos do disposto no art.º 287.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que os factos em causa nos autos respeitam à produção pelo arguido T de uma acta da assembleia geral da sociedade “T-Sociedade Unipessoal, Lda.”, a acta número quinze datada de 13 de Dezembro de 2011 que assinou, na qual foi deliberada a dissolução dessa sociedade no pressuposto, falsamente feito constar dessa acta, que a sociedade se encontrava em condições de poder ser liquidada e dissolvida, em virtude de “à presente data já não ter qualquer activo nem passivo, bem como bens a partilhar (…) tudo conforme decorria da contabilidade social.” e com recurso à aprovação nessa mesma assembleia, consignada na discutida acta, de contas da sociedade inexistentes e/ou falsas.

Refere que os autos se reportam ainda à utilização pelo arguido T dessa acta falsa, com aprovação de contas inexistentes e/ou falsas, para proceder ao registo da dissolução e encerramento da dita sociedade, ou seja da sua definitiva extinção e à apropriação pelo arguido T de diversos bens da referida sociedade comercial que haviam sido penhorados em execuções movidas por si contra a dita sociedade, um estabelecimento oficinal e diversos equipamentos, máquinas e ferramentas, ou seja, apreendidos judicialmente, e haviam sido entregues e confiados ao arguido, na qualidade de seu fiel depositário, dando-lhes este um destino diferente, que consistiu na sua transmissão e/ou disponibilização para o arguido B, a quem o arguido cedeu o referido estabelecimento oficinal e entregou todos os ditos equipamentos, máquinas e ferramentas penhorados, tendo este B passado a ocupar o referido o estabelecimento e a nele exercer actividade, com utilização dos demais bens penhorados, colhendo para si as respectivas vantagens patrimoniais, bem como à sonegação pelo arguido T de importantes activos sociais da mencionada sociedade unipessoal.

Entende que, ao contrário do que consta do despacho de arquivamento, o facto de no processo de execução n.º 4366/11.9TBFUN ter sido integralmente paga pela adjudicação dos bens móveis penhorados nesses autos pertencentes ao arguido e aí executado em substituição da sociedade “T – Sociedade Unipessoal, Lda.”, não significou o pagamento de todos os prejuízo patrimoniais sofridos, uma vez que, como está suficientemente documentado nos autos, para além da dívida objecto de tal execução, se encontram ainda em dívida os valores peticionados nas execuções intentadas contra “T-Sociedade Unipessoal, Lda.”, que perfazem o valor total de €72.584,26, ao qual acrescem juros vencidos desde a data da sua interposição, custas judiciais e despesas e honorários da Agente de Execução, na ordem de múltiplos milhares de euros, ainda em dívida os quais, como é inquestionável, constituem um prejuízo seu.

Mais alega que as mencionadas execuções, nos termos do disposto no artigo 162.º do Código das Sociedades Comerciais, face à ilegal dissolução da executada “T– Sociedade Unipessoal. Lda.”, efectivamente poderão e deverão continuar contra o sócio único e gerente dessa sociedade, o arguido T, para satisfação do passivo social não satisfeito constituído pelas aludidas dívidas exequendas, respectivos juros, custas e honorários de Agente de Execução mas o pagamento desses valores não se poderá satisfazer com a penhora de todo e qualquer do património pertencente ao arguido, mas, por força do artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais, apenas a com penhora e venda dos bens que o arguido tenha recebido no âmbito da partilha do activo social.

Afirma que, salvo quanto aos bens penhorados e adjudicados na dita execução n.º 4366/11.9TBFUN, todos os demais bens da sociedade, que perfazem activos totais valor global de €320.070,30, não foram partilhados e foram ocultados, ou pura e simplesmente desapareceram por extravio, sendo, assim, insusceptíveis de penhora.

Refere que, para além das vantagens implicadas pelos sobreditos prejuízos causados, com a falsificação da dita acta de dissolução da “T – Sociedade Unipessoal. Lda.”, o arguido T visou alcançar e alcançou outros importantes benefícios ilegítimos, como sejam, por exemplo, o de, através da utilização dessa acta, com a invocação das contas inexistentes e/ou falsas aprovadas na mesma, ter logrado registar facto não registável, a dissolução da dita sociedade unipessoal, ter ilegalmente escapado à obrigação legal de proceder à liquidação do património social da dita sociedade e, até, face ao descaminho dos activos da sociedade, no valor de €320.070,30, ter conseguido esquivar-se a um mais que certo processo de insolvência da dita sociedade, necessariamente qualificável como dolosa.

Considera que dos autos resulta que o arguido T, com a produção, subscrição e utilização da referida acta e a aprovação na mesma de contas sociais inexistentes e/ou falsas, praticou o crime de falsificação de documento e que, face aos elementos probatórios contantes do inquérito, o MP deveria decidido pela acusação desse crime e não pelo arquivamento do inquérito.

Afirma também que é o próprio Ministério Público que reconhece no despacho de arquivamento “que os bens penhorados eram da sua propriedade (dele arguido T) encontravam-se e permaneceram no interior do estabelecimento” o que só pode significar que aquele arguido ilegitimamente se apoderou desses bens da dita sociedade unipessoal e lhes deu um destino diferente daquele para o qual foi investido na respectiva posse e os facultou e/ou cedeu ao arguido B, que os utilizou no exercício da actividade de mecânico de automóveis, por um longo período, com as inerentes vantagens patrimoniais e com o prejuízo da assistente. 

Requereu a pronúncia do arguido T pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 202.º, alínea a) e 205.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a) e de um crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355.º, todos do Código Penal e do B pela prática de um crime de receptação, p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

            Em sede de instrução foi interrogado o arguido B e foram inquiridas as testemunhas indicadas pelo assistente.

           Foram analisados os documentos juntos e aqueles cuja junção se determinou referentes à contabilidade da “T – Sociedade Unipessoal. Lda.”.

           Realizou-se o debate instrutório com observância do formalismo legal.

            O tribunal é competente.

            O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.

           Não existem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra, conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

           Segundo o disposto no art.º 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

           O art.º 283.º, n.º 2, ex vi art.º 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estipula que “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias - os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova..., tem de ser sempre valorado a favor do arguido. - Direito Processual Penal,1º, 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 65.

Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumida pela Relação de Coimbra (Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T.II, p.65) da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado.

Neste sentido se pronunciou o S.T.J. (Ac. de 10.12.92, citado no Código de Processo Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p.131), que definiu “indiciação suficiente” como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder.

           Deve assim o juiz de instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

A assistente imputa ao arguido T a prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 202.º, alínea a) e 205.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a) e de um crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355.º, todos do Código Penal e ao B a prática de um crime de receptação, p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

          No que respeita ao crime de falsificação, estabelece o referido artigo 256.º, n.º 1, “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;

é punido (...)”.

           O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a “segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente do tráfico probatório”, ou seja, “a verdade intrínseca do documento enquanto tal” (Figueiredo Dias/Costa Andrade in “O Legislador de 1982 optou pela Descriminalização do Crime Patrimonial de Simulação, Parecer”, C.J. VIII, pp. 3 e ss.).

            Integra o tipo legal de crime não só a falsificação material como a falsificação ideológica, o que abrange a falsificação intelectual e a falsidade em documento, sendo certo que, em qualquer dos casos, se falsifica o documento enquanto declaração, isto é, falsifica-se a declaração incorporada no documento.

           Na falsificação material o documento não é genuíno e na falsificação ideológica, o documento é inverídico.

No âmbito da falsificação intelectual integram-se todas as situações em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante.

Importa ainda referir que o crime de falsificação de documento é um crime de perigo, uma vez que, após a falsificação, ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação do mesmo.

Além disso, é um crime de perigo abstracto, bastando para que o tipo legal esteja preenchido, que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico protegido.

É também um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessária a produção de qualquer resultado, pese embora se exija uma certa actividade do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento. Como refere Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pp. 681, “podemos assim considerar que se trata de um crime material de resultado, isto é, um crime formal considerado o resultado final que se pretende evitar (violação da segurança no tráfico jurídico em virtude da colocação neste do documento falso), mas um crime material considerado o facto (modificação exterior) que o põe em perigo. Assim, se considerarmos, por um lado, a actividade e os interesses que este tipo legal visa proteger estamos perante um crime formal; se, por outro lado, considerarmos a actividade do agente – isto é, o acto de falsificar o documento – já estamos perante um crime material”.

O tipo legal de crime comporta diversas modalidades de conduta:

- fabricar documento falso;

- falsificar ou alterar documento;

- abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;

- fazer constar falsamente facto juridicamente relevante;

- usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa.

- facultar ou deter tais documentos.

No que diz respeito ao tipo subjectivo, importa referir que, além do dolo genérico relativo aos elementos normativos do tipo, o crime de falsificação de documento exige ainda um dolo específico, uma vez que o agente necessita de actuar com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”.

Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem patrimonial ou não patrimonial que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado.

No caso dos autos a assistente sustenta a imputação deste ilícito na na produção pelo arguido T de uma acta da assembleia geral da sociedade “T - Sociedade Unipessoal, Lda.”, a acta número quinze datada de 13 de Dezembro de 2011 que assinou, na qual foi deliberada a dissolução dessa sociedade no pressuposto, falsamente feito constar dessa acta, que a sociedade se encontrava em condições de poder ser liquidada e dissolvida, em virtude de “à presente data já não ter qualquer activo nem passivo, bem como bens a partilhar (…) tudo conforme decorria da contabilidade social.” e com recurso à aprovação nessa mesma assembleia, consignada na discutida acta, de contas da sociedade inexistentes e/ou falsas, causando-lhe prejuízo patrimonial correspondente aos valores por si peticionados nas execuções intentadas contra “T - Sociedade Unipessoal, Lda.”, que perfazem o valor total de €72.584,26, ao qual acrescem juros vencidos desde a data da sua interposição, custas judiciais e despesas e honorários da Agente de Execução e visando alcançar benefícios ilegítimos, como sejam, por exemplo, o de, através da utilização dessa acta, com a invocação das contas inexistentes e/ou falsas aprovadas na mesma, ter logrado registar facto não registável, a dissolução da dita sociedade unipessoal e ter ilegalmente escapado à obrigação legal de proceder à liquidação do património social da dita sociedade.

Da acta constante de fls. 147-148, resulta que, no dia 13 de Dezembro de 2011 reuniu a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade por quotas de responsabilidade limitada “T - Sociedade Unipessoal, Lda.”, estando presente o sócio único, o agora arguido T, com vista a deliberar sobre a dissolução da sociedade e a “aprovação do Balanço e Contas de Demonstração de Resultados do ano económico de Dois Mil e Onze, reportados a data de Dissolução, com declaração simultânea da sociedade, de inexistência de activo e passivo.”

Da referida acta consta que “(…) o sócio T abordou de imediato o Ponto Um da Ordem de Trabalhos, declarando que a empresa ao ser constituída no passado ano de 2002, visando o exercício da actividade de manutenção e reparado de veículos automóveis, e considerando que conseguiu cumprir de forma meritória o seu objecto social, propunha à Assembleia que a mesma fosse dissolvida, por se reconhecer que o mesmo se encontra esgotado.”, proposta que foi aprovada por unanimidade.

Mais consta daquela acta que “(…) o sócio tomando de novo a palavra afirmou que em virtude de a sociedade à presente data já não ter qualquer activo nem passivo, bem como bens a partilhar, encontrava-se assim em situação de poder ser dada como liquidada, conforme tudo decorreria da contabilidade social.” e que foi ainda “proposta a aprovação dos documentos correspondentes à prestação de contas e Balanço do Exercício Final, reportados à data de dissolução e que reconhece a inexistência de activo e passivo ou quaisquer bens a partilhar, ficando assim os livros e demais escrituração comercial da sociedade confiados à guarda do sócio único T (…), sendo que “Colocadas a votação, foram então aprovadas, por unanimidade, as contas e o respectivo Balanço de Exercício Final, bem como a declaração de encerramento da liquidação, por inexistência de activo e passivo ou quaisquer bens a partilhas (…)”.

Ora, face às declarações prestadas pelo arguido T em sede de inquérito, ao depoimento da testemunha PR e aos documentos juntos com a queixa referentes às execuções em curso contra a mencionada sociedade e ainda os referentes à contabilidade da mesma, resulta indiciado que naquela data a sociedade tinha activo, passivo e bens a partilhar.

Dos referidos elementos probatórios, com excepção dos juntos à queixa, resulta também indiciado que não foi elaborado qualquer balanço de exercício final ou encerradas as contas da sociedade.

Assim, dos autos resulta suficientemente indiciado que a acta em causa contém uma declaração falsa.

Porém, para que se mostre preenchido o tipo objectivo de ilícito é necessário que a declaração de facto falsa seja juridicamente relevante, isto é, apta a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica.

Ora, a acta da Assembleia Geral aqui em causa nestes autos não serve para infirmar a existência da assistente nem constitui um meio de prova passível de excluir a existência desse mesmo crédito.

Na verdade, não há relevância jurídica na suposta declaração falsa de ausência de passivo nem se pode afirmar a intenção de causar prejuízo, pois, e como bem refere se refere no Acórdão da Relação do Porto de 21 de Abril de 2010, “a divida e o direito do credor pode ser judicialmente exigível para além da liquidação e extinção da sociedade”, em conformidade também com o disposto no art. 1020.º do Código Civil quando estipula que encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação.

Por outro lado, e perfilhando o entendimento explanado nos Acórdãos da Relação do Porto de 14 de Abril de 2010 e 21 de Abril de 2010, há que considerar que a referida acta configura um documento preciso, na medida em que reproduz fielmente as declarações prestadas pelo arguido e que ficaram consignadas em acta.

A acta configura um documento exacto que contém uma declaração inverídica, mas esta não tem alcance suficiente para violar o bem jurídico protegido com a incriminação do crime de falsificação, isto é, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, a confiança comunitária no valor probatório dos documentos.

De resto, e ao contrário do que estende a assistente no que respeita à limitação da possibilidade de executar agora todo o património do sócio único, a verdade é que, ainda que não tivesse sido dissolvida, apenas o património da sociedade responderia pelas suas dívidas, nada sendo alterado com a possibilidade de executar apenas os bens que hajam sido recebidos pelo sócio.

Ainda que assim não se entendesse, sempre teria que se ter em conta que, de acordo com o depoimento da testemunha PR a dissolução da sociedade nos termos em que foi efectuada foi uma iniciativa sua, porque entendeu que o anterior TOC da empresa estava a protelar a situação e queria manter o cliente. Afirmou também que apenas perguntou ao arguido T se tinha dívidas ao Fisco e à Segurança Social, nada tendo perguntado quanto ao demais, acabando por elaborar a acta em causa nos autos antes mesmo de ter recebido a contabilidade, acta essa que o arguido se limitou a assinar.

Esta testemunha, que não obstante em sede de inquérito ter afirmado ser TOC, confirmou em sede de instrução que não o é, sendo proprietário de uma firma que faz contabilidade, referiu também que depois da elaboração da acta o arguido o contactou tentando reverter a dissolução, razão pela qual já não entregou documentação à Finanças.

Face a este depoimento, conjugado com as declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito, nunca se poderia ter por suficientemente indiciados os factos integradores do crime de falsificação de documento.

A assistente imputa ainda ao arguido T a prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 202.º, alínea a) e 205.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a) e de um crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355.º, todos do Código Penal

 Ora, quanto ao primeiro, estabelece o artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal que, quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

Estabelece o n.º 4 do preceito (norma que se entende ser a imputada pela assistente já que o n.º 3 do preceito não tem qualquer alínea) que, se a coisa for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (alínea a); se a coisa for de valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos (alínea b).

Conforme ensina Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 94, “Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, (…), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (...).”

São, deste modo, elementos do tipo: a) a apropriação ilegítima; b) de coisa alheia móvel; c) entregue por título não translativo da propriedade.

O abuso de confiança consiste em o agente fazer sua (apropriar-se) uma coisa móvel alheia que já detém. A apropriação não acompanha a posse ou detenção da coisa, sucedendo antes a essa mesma posse ou detenção. Com efeito, o agente começa por receber a coisa validamente, passando a possuí-la ou a detê-la de forma lícita, embora a título precário ou temporário, só que, a posteriori, vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor dela ut dominus. Deixa, pois, de possuir em nome alheio, fazendo entrar a coisa no seu património ou dispondo dela como se fosse sua, em qualquer dos casos com o propósito de não a restituir.

Com efeito, como salientam Simas Santos e Leal-Henriques, “de início, o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus” (In Código Penal Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Rei dos Livros, 2000, p. 686.)

           Assim, a verificação do crime de abuso de confiança pressupõe uma entrega válida de coisa móvel, sendo que esta entrega terá, forçosamente, de ser realizada por título que não implique a transferência da propriedade nos termos previstos no artigo 1316.º do Código Civil.

Apropriar-se significa, então, fazer a coisa sua, integrá-la no seu património, tornar-se o seu proprietário, exigindo-se que tal se revele por actos concludentes (Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, Coimbra Editora, 1999, p. 104).

É a apropriação “o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido”: “o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus”; é “exactamente nesta realidade que se traduz a ‘inversão do título de posse e detenção’ e é nela que se traduz e se consuma a apropriação” (In Comentário...cit., p. 103.).

Um dos “actos concludentes” de que se pode deduzir “que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa como proprietário” é - para além da “disposição (da coisa) de forma injustificada” - a sua dolosa “não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos” (In Comentário...cit., e neste sentido, v. igualmente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2003, Processo n.º 3P852, in www.dgsi.pt.)

Com efeito, o crime de abuso de confiança pressupõe a inversão do título de posse ou detenção, i. e. exige que o agente passe a comportar-se relativamente à coisa como seu proprietário e isto terá, inequivocamente, de resultar de actos objectivamente idóneos e concludentes.

No que diz respeito ao tipo subjectivo, importa referir, como faz Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 107, que se exige o dolo relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, “tratando-se pois de crime de congruência total.”

            Por seu turno e quanto ao crime de crime de descaminho, os termos do disposto no art. 355.º do Código Penal, incorre no mesmo quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providencia cautelar.

O crime de descaminho consuma-se quando o agente frustra a finalidade da custódia, através de uma acção directa sobre a coisa, inutilizando-a ou descaminhando-a.

Trata-se de um crime doloso, uma vez que se exige que o agente tenha actuado com dolo, enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime), em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual), em conformidade com o disposto no artigo 14.º do Código Penal.

Face aos factos alegados no requerimento de abertura de instrução, a imputação do assistente reporta-se a dois tipos de bens, àqueles que haviam sido penhorados e dos quais o arguido foi nomeado fiel depositário e àqueles que, constituindo o activo da sociedade dissolvida, teria recebido e ocultado.

Quanto a estes últimos, embora da contabilidade da referida sociedade resulte a existência de activo reportado ao exercício de 2010, a verdade é que não é possível determinar se de facto, existiam quaisquer bens que não os que foram penhorados.

De resto, nesta matéria, a assistente limita-se a alegar a existência de activos que perfazem o valor global de €320.070,30 que não foram partilhados e foram ocultados, ou pura e simplesmente desapareceram por extravio, mas não os concretos bens existentes à data da dissolução, os factos integradores da sua entrega ao arguido ou a conduta deste que integrará a sua apropriação.

Ainda que se tivesse apurado a existência real de quaisquer bens, não poderia o tribunal substitui-se à assistente na alegação dos concretos factos integradores do crime de abuso de confiança imputado.

Resta pois a factualidade referente aos bens penhorados.

Quanto a estes, conjugando as declarações dos arguidos com o teor das certidões referentes aos processos executivos em curso, o que resulta dos autos é que o arguido T, após a penhora dos equipamentos existentes no estabelecimento da sociedade “T - Sociedade Unipessoal, Lda.” permitiu que o seu filho, o arguido B, os utilizasse na sua actividade profissional até à sua venda judicial.

Dos autos de penhora constantes dos autos resulta que o arguido T foi constituído fiel depositário de tais bens e, nessa qualidade, advertido das suas responsabilidades enquanto tal.

Ora, face à configuração do crime de abuso de confiança, tal como acima descrito, temos, desde logo que considerar que os bens penhorados não foram entregues ao arguido, pertenciam e continuaram a pertencer à sociedade “T - Sociedade Unipessoal, Lda.” até à sua venda, constituindo a penhora um ónus que não implica nem implicou em concreto, qualquer transferência da posse, assim se excluindo a existência de indícios da prática do crime de abuso de confiança imputado.

Por outro lado, estes bens penhorados, embora utilizados, não foram objecto de qualquer apropriação por qualquer dos arguidos, na medida em que foram posteriormente vendidos para ressarcimento parcial do crédito da assistente, conforme resulta dos documentos que a própria juntou em sede de debate instrutório e que dão conta da redução da dívida.

Não resulta assim indiciado que tais bens tenham sido destruídos, danificados, inutilizados ou subtraídos ao poder público e, como tal, os factos indiciados no que respeita ao arguido Tomás Fernandes não integram a prática de um crime de descaminho mas são susceptíveis de integrar a prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348.º n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Nos termos do disposto no art. 303.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.

Estabelece o n.º 3 do preceito que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância, sendo que, conforme previsto no n.º 4 do artigo, a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

Tendo em conta que a imputação do crime de desobediência implicaria, não só a alteração da qualificação jurídica dos factos mas também uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução e considerando ainda que estão em causa factos autonomizáveis relativamente ao objecto deste processo, deverão ser estes comunicados ao Ministério Público para que prossiga criminalmente pelos mesmos.

Face ao apurado quanto aos bens penhorados, há que concluir que dos autos não resultam indícios da prática pelo arguido B do crime de receptação imputado.

Com efeito, nos termos do disposto no art.º 231.º n.º 1 do Código Penal incorre na prática do crime de receptação, “quem, com intenção de obter para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

No caso dos autos os bens utilizados pelo arguido B não foram obtidos pelo arguido T mediante facto ilícito típico contra o património, antes pertenciam, embora onerados, à “T - Sociedade Unipessoal, Lda.”.

Em suma, não se afigura provável que, em sede de julgamento, os arguidos venham a ser sujeitos a qualquer pena pela prática dos factos que lhes foram imputados pela assistente.

            Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos art.º 283.º n.º 2, 307.º e 308.º do Código Penal, decido:

- não pronunciar o arguido T a prática do crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), do crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 202.º, alínea a) e 205.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a) e do crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355.º, todos do Código Penal, que lhe foram imputados pela assistente;

- não pronunciar o B a prática do crime de receptação, p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1 do Código Penal,  que lhe foi imputado pela assistente;

- comunicar ao Ministério Público a acima descrita alteração substancial de factos para efeitos de procedimento autónomo.

Apreciemos.

         Nulidade da decisão recorrida por violação do artigo 363º, do CPP

Sustenta a recorrente na sua motivação de recurso, que se encontra impossibilitada de impugnar a decisão recorrida sob tal matéria de facto e comprovar o correspondente erro de julgamento, por falta, inaudibilidade e/ou imperceptibilidade absoluta da documentação efectuada através de registo áudio das declarações prestadas oralmente pela testemunha PR, bem como pelas testemunhas JC, CS e JF, também estas com depoimentos de grande relevância para uma decisão em matéria de facto contrária à tomada na decisão recorrida, verificando-se, por isso, a nulidade prevista no artigo 363º, do CPP.

Resulta do transcrito que o argumento avançado pela recorrente é o de que não pode impugnar determinada matéria de facto vertida na decisão revidenda por inexistir o registo áudio dos depoimentos das testemunhas ou apresentar ele deficiências que inviabilizam a sua audição.

           Ora, o normativo legal invocado enquanto cominador de nulidade por omissão da documentação de declarações orais mostra-se inserido no Capítulo  do CPP “da documentação da audiência” e não tem aplicação, por isso, às prestadas em fase processual diversa, como sendo a de Instrução.

            Para esta, rege o estabelecido no artigo 296º, do CPP, onde se consagra que “as diligências de prova realizadas em acto de instrução são documentadas, mediante gravação ou redução a auto (…)”, não se cominando com a nulidade a sua omissão, ao contrário do consagrado no aludido artigo 363º.

As consequências da inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática dos actos processuais encontram-se reguladas nos artigos 118º a 123º, do CPP.

           Este Código estabelece em matéria de nulidades o princípio da legalidade que se traduz em só haver nulidade dos actos quando expressamente cominada na lei, sendo que quando a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular - cfr. nºs 1 e 2, do artigo 118º.

           As nulidades insanáveis encontram-se elencadas no artigo 119º, para além das que como tal são cominadas em outras disposições legais, referindo-se às nulidades sanáveis ou dependentes de arguição o artigo 120º.

           Sendo taxativa a enumeração das nulidades, terão estas, pois, que ser especificadas entre os mencionados preceitos que indicam as nulidades insanáveis e as dependentes de arguição ou em qualquer outro preceito legal.

Assim sendo, a aludida omissão, a existir, apenas se poderá traduzir numa irregularidade, que não afecta a validade do acto enquanto tal e, nessa medida, teria de ser arguida dentro do prazo consagrado no nº 1, do artigo 123º, do CPP.

           Não tendo a recorrente/assistente invocado – concretamente através do seu mandatário que presente esteve na diligência de inquirição das testemunhas que refere e que é também o ilustre causídico subscritor da motivação do recurso aqui em apreciação - a invalidade no prazo de três dias a contar do seu conhecimento, requerendo que a Sr.ª Juíza a quo determinasse a documentação das provas que o não foram ou cujo registo se mostrava imperceptível, sempre estaria sanada a irregularidade

É que, posto que se não está perante questão de conhecimento oficioso, o seu conhecimento não competiria a este Tribunal sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância, porquanto, os recursos têm por objecto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas.

Aliás, mesmo no que concerne à omissão ou deficiência de documentação de declarações orais prestadas em audiência de julgamento fixou já o nosso Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência nos seguintes termos:

“A nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada” - Acórdão nº 13/2014, DR, I Série, nº 183, de 23/09/2014.

De qualquer forma, tendo-se procedido à audição do registo áudio disponibilizado pelo tribunal recorrido não se alcança que tenha sido omitida a gravação de qualquer dos apontados depoimentos e nem a recorrente indica qual o efectivamente em falta.

           Os depoimentos gravados não são facilmente audíveis, é vero, mas não é de todo impossível com o recurso a auscultadores.

Acresce que, nas fases de Inquérito e Instrução não existe, propriamente, prova, mas sim indícios probatórios (ou prova indiciária) e, esta, embora permitindo a sujeição a julgamento do agente ou agentes, não constitui prova, no sentido rigoroso do conceito, pelo que não tem cabimento a pretensão da recorrente de impugnar a matéria de facto com recurso à prova gravada, uma vez que a reapreciação da prova gravada diz respeito à sentença (ou acórdão) que, a final, realizada a audiência de julgamento, conheça de facto e de direito.

Na Instrução, os indícios recolhidos têm por função habilitar o tribunal a pronunciar-se sobre se estão verificados ou não os pressupostos necessários para que o processo prossiga para julgamento, mormente se estão indiciados factos integradores da prática do crime e não a conhecer do fundo da causa, pelo que não existe “matéria de facto provada” que possa ser objecto de impugnação. O que se pode discutir é a existência ou não desses indícios, o que será objecto de análise infra.

Face ao que, improcede o recurso neste segmento.

Verificação do vício previsto no artigo 410, nº 2, alínea c), do CPP

           Pretende também a recorrente que a decisão recorrida está ferida do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do CPP.

Mas, os vícios elencados no dito artigo dizem respeito à sentença e não à decisão instrutória, como se refere no Ac. R. Porto de 18/04/2012, Proc. nº 4454/10.9TAVNG.P1 e Ac. R. de Évora de 03/07/2012, Proc. nº 4016/08.0TDLSB.E1, consultáveis em www.dgsi.pt, pois reportam-se à matéria de facto provada (e não provada) que, como já se viu, não existe na decisão instrutória, onde apenas consta a matéria de facto indiciada ou não indiciada.

Por outro lado, como é sabido, têm os vícios mencionados no artigo 410º, do CPP, mormente o erro notório na apreciação da prova, de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, estando defeso, para apurar da sua verificação, que se consultem ou tomem em consideração quaisquer elementos exteriores à mesma ainda que constantes do processo, como seja a prova gravada.

E, tem de ser passível de ser descortinado pelo homem médio. Ou seja, quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

            Também se verifica este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.

           Como se salienta no Ac. do STJ de 20/04/2006, Proc. nº 06P363, que pode ser lido no já referenciado sítio, consiste ele “em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova; existe erro notório na apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto» (Acórdão de 30/1/2002, Proc. n.º 01P3264, da 3ª Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual 2002, p. 16/17), sendo que essa prova, não pode ser outra que não a que serviu de base à fundamentação da convicção do tribunal, visto o erro ter de decorrer do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos extrínsecos”.

           Acrescentando-se ainda no mesmo aresto que, “em qualquer caso, o erro tem de ser perceptível pelo homem médio, que é uma outra forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como tem postulado a quase esmagadora maioria da jurisprudência deste Supremo”.

Ora, desde logo, como anota Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora 2008, pág. 909, a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os presentes no Inquérito como os produzidos já na fase de Instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado.

           E, que este é o entendimento consentâneo com a lei, extrai-se também de a verificação de qualquer dos vícios enunciados no artigo 410º ter como consequência (quando não for possível decidir da causa) o “reenvio do processo para novo julgamento”, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, do Código de Processo Penal, o que pressupõe que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior e não de diligências realizadas em fase de instrução que culmina numa decisão instrutória que reveste a forma de um despacho.

            Termos em que, improcede também esta questão.

Nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia

           Alega também a recorrente que a decisão revidenda está ferida de nulidade por omissão de pronúncia – prevista na alínea c), do nº 1, do artigo 379º, do CPP – pois devia conhecer “de importantes elementos do crime de falsificação de documento, tais como (…) a determinação dos prejuízos causados pelo arguido ao recorrente; a identificação do total do activo ocultado ou descaminhado da sociedade “T, Sociedade Unipessoal, Lda.”; e a identificação de quem presentemente detém tal activo, ou seja, quem foi prejudicado por essa premeditada ocultação e quem com ela ilegitimamente beneficiou”.

           E, aponta ainda o mesmo vício, por a decisão instrutória “ter omitido a responsabilidade criminal resultante do uso de documento falso para registo (…)”.

Vejamos se tem a recorrente a razão pelo seu lado.

           Como já se explicitou, a decisão instrutória não se configura como uma sentença, antes um despacho, como consta do artigo 307º, nº 1, do CPP: “encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, de onde resulta que as nulidades da sentença previstas no artigo 379º, nº 1, do CPP, não são aplicáveis à decisão instrutória – cfr. Ac. R. do Porto, de 06/07/2011, Proc. nº 356/08.7PIPRT-A.P1, disponível no sítio já referenciado.

E, como também retro se mencionou, o regime das nulidades mostra-se submetido aos princípios da legalidade e tipicidade, consagrando o artigo 118º, nº 1, do CPP, que “a violação ou inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.

Não se mostra admissível a integração das eventuais faltas de pronúncia sobre as aludidas problemáticas, quer nas nulidades enunciadas no artigo 119º, quer nas dependentes de arguição e não existindo norma que a preveja como nulidade, só podemos ter tal omissão, a existir, como uma irregularidade, que sempre estaria sanada, por não ter sido arguida atempadamente e perante o tribunal recorrido, nos termos do artigo 123º, nº 1, do CPP.

Mas, verdadeiramente, o que está em causa é saber se existem indícios suficientes da prática pelo arguido T de factos que integrem o crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alíneas d) e e) do Código Penal, em ordem à sua submissão por eles a julgamento.

Conforme estabelecido no artigo 287º, nº 1, do CPP, o assistente tem a possibilidade legal de requerer a Instrução em crimes de natureza pública ou semipública, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.

            O crime agora em causa imputado ao arguido reveste natureza procedimental pública (a falsificação de documento), pelo que podia a assistente requerer a abertura da Instrução.

           No que tange a este requerimento, consagra-se no nº 2, do artigo 287º, do CPP que, “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (...) não acusação do MP, bem como se for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º”.

           Por força desta remissão, o RAI, quando apresentado pelo assistente, tem de conter também:

            A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - alínea b).

            A indicação das disposições legais aplicáveis - alínea c).

           De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt “a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do Requerimento para Abertura da Instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução”.

Face ao que, conclui o mesmo tribunal, “o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada”.

Acrescenta-se ainda no mesmo aresto que “a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito”.

            Ou, como se salienta no Acórdão do STJ de 07/05/2008, Proc. nº 07P4551, consultável em www.dgsi.pt, “sendo o requerimento para abertura da instrução a causa de pedir da actividade instrutória, o mesmo só fará sentido se contiver a descrição de substrato fáctico e a indicação dos elementos probatórios, com base nos quais será proferido o despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, podendo ainda no mesmo se ler que “substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real”.

Temos assim que, a importância da delimitação de um modo suficientemente rigoroso do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação judicial (cfr. artigo 289º, nº 1, do CPP, na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa - artigo 32º, nºs 1 e 5, da Lei Fundamental.

           Assente está, destarte que, findando o Inquérito com uma decisão de arquivamento, o RAI apresentado pelo assistente consubstancia-se numa autêntica acusação, tendo de cumprir os requisitos estabelecidos para a mesma no nº 3, alíneas b) e c), do artigo 283º, do CPP, ou seja, impõe-se que contenha os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo (ou tipos) criminal que o assistente considere terem sido preenchidos.

           Retornando ao caso concreto e analisando o RAI apresentado pela recorrente, facilmente se chega à conclusão que não reveste as características de uma acusação, não observando as exigências de conteúdo impostas pelo aludido artigo 287º, nº 2 do CPP, porquanto omite os factos concretos, objectivos, essenciais para a integração no tipo de crime imputado (ou outros), quedando-se por menções, maioritariamente sem qualquer individualização ou localização temporal, de diversas situações que terão ocorrido, envolvidas em considerações sobre as deficiências do Inquérito e a errada interpretação das normas legais aplicáveis feita pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, com explicitação argumentativa da que, em seu entender, seria a correcta.

A assistente menciona é certo, na mesma peça processual, que “a participação contém a descrição tão pormenorizada quanto possível dos factos ocorridos e foi acompanhada de diversos documentos (…) contendo prova dos factos denunciados e da existência e sonegação pelo arguido T de activos da referida sociedade unipessoal que ascendiam a um valor total de € 320,070,30”.

Porém, também não é admissível a narração factual por remissão para a queixa ou participação e para o conjunto dos documentos apresentados, pois tal obliteraria as garantias de defesa do arguido e seria uma violação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32º, nº 5, da Lei Fundamental, como se pode ler no Ac. do Tribunal Constitucional nº 358/2004, que pode ser lido em www.tribunalconstitucional.pt, por a exigência dessa narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena estar directamente relacionada com a definição e delimitação do objecto do processo.

Com efeito, se existe um paralelismo entre o exigido ao MP e o exigido ao assistente em termos processuais, como já se concluiu afirmativamente, revestindo o requerimento para abertura de instrução a natureza de uma verdadeira acusação, não pode ter lugar a imputação ou complementação com simples remissão para outras peças processuais.

Mas, para além de descrever a materialidade da conduta ou condutas integradora(s) daquele ilícito que considera ter sido pelo arguido T praticado – factos objectivos que preenchem o tipo legal de crime – tinha a assistente de narrar igualmente os factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo. Isto é, da imputação de tais factos ao agente a título de dolo - consubstanciando-se este na vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - pois se bem que estes se possam inferir dos factos, com recurso a presunções naturais ou às regras da vida, tal não implica que se possa prescindir da narração dos factos que o integram em qualquer das suas modalidades.

           Percorrendo o RAI conclui-se que, quanto aos aludidos elementos subjectivos, se mostram eles em absoluto omitidos, não tendo sido dado cumprimento ao disposto na alínea b), do nº 3, do artigo 283º, cuja observância era imposta, sendo que, mesmo se hipoteticamente se considerasse que foram descritos factos objectivos subsumíveis no tipo legal de crime que a assistente imputa, tais factos, só por si e sem o aditamento de outros que os compusessem com os respectivos elementos subjectivos, não integram a prática de qualquer ilícito criminal.

Só que, um acrescento dessa natureza pelo tribunal, suprindo a omissão e transformando factos sem relevância criminal em factos consubstanciadores de ilícitos criminais, redundaria numa alteração substancial que cairia sob a alçada do nº 1, do artigo 309º, do CPP, conduzindo necessariamente à nulidade da decisão instrutória. O mesmo é dizer que levaria à prática de actos inúteis e inconsequentes e, portanto, ilegais, face ao princípio de que não é lícito praticar no processo actos inúteis, para além de violar frontalmente a estrutura acusatória do processo penal, o direito de defesa do arguido e as regras dos artigos 18º e 32º, nº 5, da Lei Fundamental.

Termos em que, nem sequer devia a Srª. Juíza a quo ter aceite o RAI da assistente nos termos em que formulado se mostra, pois configura-se uma situação de inadmissibilidade legal da Instrução.

Este entendimento é a veiculado de forma maioritária nas decisões dos nossos Tribunais Superiores e, designadamente, no Ac. do STJ de 07/05/2008, Proc. nº 07P4551, em www.dgsi.pt, onde se refere “no caso presente, não tendo o Ministério Público deduzido acusação e não indicando o assistente, no requerimento para abertura da instrução, os factos que imputa aos denunciados, verifica-se que a instrução carece de objecto, o qual deveria ter sido definido pelo aludido requerimento, que não cumpriu essa função imposta pelos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, assim não sendo exequível.

Consta do acórdão do STJ de 22-03-2006, proferido no processo n.º 357/05 - 3.ª, o seguinte: «Numa visão sistemática que apela a uma solução emergente de uma interpretação de conjunto dos preceitos, mas inteiramente compatível com eles, na controvérsia que se suscita em torno do sentido e alcance do conceito aberto “inadmissibilidade legal”, vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução, a falta de factos não pode deixar de ser conducente a um caso legal, porque prevista na lei a consequência daquela falta, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 286.º, 287.º, n.º 2, 283.º, n.ºs 2 e 3, al. b), 308.º, n.º 2, e 311.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, al. b), do CPP, de inadmissibilidade dessa natureza de um requerimento que substancie os factos imputados ao arguido pelo assistente».

Neste aresto, entendeu o nosso Mais Alto tribunal que é de rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a credibilidade delas, e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pela arguida, e do elemento subjectivo que lhe presidiu, para cometimento do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1, do Código Penal”.

Rematando-se que “no caso em apreciação, verificando que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente não contém a narração dos factos imputados a cada um dos denunciados, com a indicação do correspondente enquadramento jurídico, mostra-se correcta a decisão recorrida, ao rejeitar a instrução” – vd. também no mesmo sentido, Ac. R. de Coimbra de 23/01/2008, Proc. nº 2557/06.3TALRA.C1; Ac. R. do Porto de 23/09/2009, Proc. nº 1585/07.0TASTS.P1; Ac. R. de Évora de 13/04/2010; Proc. nº 671/08.0PBVFX.E1 e o já mencionado Ac. R. de Lisboa de 27/05/2010, todos em www.dgsi.pt.

Perfilhando também nós este entendimento e, posto que do Requerimento para Abertura da Instrução apresentado não consta a narração concretizada, ainda que sumária, da factualidade integradora dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado, tal sempre configuraria uma situação de inadmissibilidade legal da Instrução – artigo 287º, nº 3, do CPP – tornando esse requerimento nulo, por falta de requisitos legais mínimos, nos termos dos artigos 283º, nº 3 e 287º, nº 2, do mesmo diploma legal e conduzindo, necessariamente, neste momento da fase recursória, à inadmissibilidade do acolhimento da pretensão da recorrente de que esta Relação determine a prolação de despacho de pronúncia.

Termos em que, face à improcedência de todos os fundamentos invocados pela recorrente, tem de ser negado provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

            Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso pela assistente “C & P, Lda.” interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

            Lisboa, 12 de Maio de 2015.

                        Artur Vargues

                        Jorge Gonçalves