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GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
PROVA TESTEMUNHAL
ACTO NOTARIAL
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
DANOS
NEXO DE CAUSALIDADE
BURLA
Sumário
1. A gravação deficiente da prova pessoal é suscetível de configurar uma nulidade secundária, quando possa influir no exame ou na decisão da causa, só podendo ser invocada pelo interessado na impugnação da decisão em matéria de fato e devendo ser arguida no prazo geral de dez dias, a contar do seu conhecimento ou da possibilidade desse conhecimento, agindo o interessado com a devida diligência.
2. Não configura essa nulidade o fato de as cópias suporte da gravação se não encontrarem em condições de audição, encontrando-se audíveis os originais, tendo estes sido facultados à parte, a qual, teve a possibilidade de os ouvir para efeitos de impugnação da decisão em matéria de fato. 3. As afirmações e conceitos de direito e a matéria conclusiva são insuscetíveis de prova direta, nomeadamente através de depoimento em que a testemunha se pronuncia sobre essas matérias de um ponto de vista técnico, da profissão de notário, segundo o quadro legal de exercício e as legis artis da profissão. 4. Constitui ação negligente a conduta de notária que, ao lavrar escritura pública, para a qual lhe foi presente procuração com o consentimento de cônjuge previsto nos art.ºs 1682.º-A, n.º 1, al. a) e 1684.º, do C. Civil, não atentou em que a mesma se apresentava como lavrada por trabalhador notarial e não pelo próprio notário, aceitando-a para o ato. 5. Tendo essa omissão ocorrido num contexto em que estava preparada uma escritura de compra e venda de seis frações de um imóvel e em que, à última hora, já no próprio ato, as partes outorgantes mudaram a sua vontade negocial, propondo-se celebrar, nesse mesmo momento, uma escritura de mútuo com a hipoteca das frações, em que a procuração foi entregue no próprio ato, agindo os outorgantes a um ritmo próprio do crime de burla que estava a ser praticado e que eles próprios transportaram para o cartório notarial, com a premência do negócio, o interesse, o enrolamento de circunstâncias, a encenação e a emoção, este conjunto de circunstâncias determinou à notária um esforço acrescido na preparação do novo ato, com o qual não contava, e diminuiu e obnubilou o seu poder de observação e análise do instrumento procuração, que era falsa, assumindo a sua conduta a modalidade de negligência inconsciente, prevista no art.º 15.º, al. b), do C. Penal. 6. Não existe nexo de causalidade entre a conduta da notária e os danos do mutuante, correspondentes à quantia que entregou ao mutuário/autor do crime de burla, uma vez que a norma que impõe ao notário a análise da procuração se destina a proteger os interesses dos intervenientes no ato, na perspetiva da emissão de vontade pelo outorgante do mandato contido na procuração, e não a evitar o resultado danoso de um crime de burla, sendo certo que o dano sofrido pelo mutuante, vitima desse crime, não ocorreu no circulo de interesses da “…disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”, a que se reporta o art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil, mas no circulo de interesses protegidos com a tipificação do crime de burla, previsto no art.º 217.º, n.º 1, do C. Penal. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.
1. RELATÓRIO:
… Merchandizing, Lda, propôs contra Companhia de Seguros … S. A. e Maria … esta ação declarativa de condenação, ordinária, pedindo a condenação destas a entregarem-lhe a quantia de € 200.000,00, despesas com a realização de uma escritura e despesas com a propositura da ação, correspondes aos prejuízos sofridos com a omissão da 2.ª R na verificação da autenticidade de uma procuração que lhe foi presente numa escritura de mútuo com hipoteca, perante ela outorgada, tendo esta celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil profissional com a 1.ª R, titulado pela apólice n.º 2030209/00.
Citadas as RR, contestou a R, Companhia de Seguros, por exceção, dizendo que celebrou um contrato de seguro de grupo com a Ordem dos Notários, sendo a 2.ª R “pessoa segura” nos termos e para os efeitos desse contrato, até ao limite máximo de € 99.000,00, pois o contrato prevê uma franquia de € 1.000,00, que só teve conhecimento dos fatos através desta ação, não lhe tendo sido feita reclamação nem comunicação em prazo, pelo que os fatos, a terem ocorrido, se não enquadram no âmbito da cobertura da apólice, e por impugnação, dizendo que a 2.ª R não é responsável pelos danos, pois, não havia motivos para desconfiar da veracidade da documentação, pedindo a absolvição do pedido.
Contestou também a 2.ª R, deduzindo a exceção da litispendência com fundamento em que um terceiro propôs ação contra a A ela própria, entre outros, em que é pedida a declaração de falsidade da procuração e da escritura, sendo idêntico o objeto de ambos os processos, relativamente ao pedido e causa de pedir, pelo que existe risco de contradição ou de mera repetição das decisões, aduzindo por impugnação que a decisão de contratar pertenceu à A, sobre ela recaindo os riscos do negócio e que os documentos apresentados não suscitavam dúvidas quanto à sua veracidade, pedindo a procedência da exceção da litispendência e a absolvição da instância e se assim se não entender a absolvição do pedido.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação improcedente e absolvendo as RR do pedido.
Inconformada com essa decisão, a A dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que condene as RR no pedido, formulando as seguintes conclusões:
A) A decisão recorrida incorreu em erro de apreciação da prova e na aplicação do direito ao caso.
B) Pela Sentença exarada sob conclusão de 15 de Outubro de 2014, decidiu a Mmª Juiz a quo absolver as Rés Notária e Seguradora do pedido de indemnização pelos danos causados à A. derivados do acto profissional negligente da Ré Notária, ao permitir, no exercício da sua profissão de notária, a realização de uma determinada escritura de mútuo com hipoteca,
C) Por entender, basicamente, que não estavam reunidos os pressupostos da responsabilidade civil para tanto, nomeadamente quanto à ilicitude do facto e quanto ao nexo de causalidade entre o facto e o dano.
D) Sem razão porém.
E) Pois está provado que a Ré instruiu o acto com uma procuração,
F) E essa procuração era nula,
G) Pelo que, consequentemente, a Ré realizou uma escritura com base nessa procuração quando não o deveria ter feito - pois deveria antes ter declarado que não realizava a escritura com aquele documento - logo actuou negligentemente e do seu comportamento negligente, em não impedir a realização da escritura com base nesse facto, resultou um dano patrimonial para a Autora.
H) Mas a sentença recorrida incorre em erro porque entende que aquela procuração não era nula pois tal questão não era à data pacífica e era discutível em face da redacção da lei à data vigente.
I) Erradamente, porquanto estamos perante uma suposta procuração celebrada por ajudante de notário quando obrigatoriamente deveria ser celebrada por notário.
J) Pois a lei dispunha então, no art.º 8º do Estatuto do Notariado em vigor à data dos factos, que não era permitido delegar nos ajudantes de notário (portanto era da exclusiva competência do notário) a prática de “todos os actos em que seja necessário interpretar a vontade dos interessados ou esclarecê-los juridicamente”.
K) Ora uma procuração é um instrumento que titula um mandato ou seja um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra, ou seja, um acto que manifestamente impõe a quem o celebra o dever de interpretar a vontade do outorgante e o esclarecer juridicamente quanto ao conteúdo do documento;
L) Obrigações que, segundo a lei aplicável, só ao notário eram assacadas porque só este tem competência técnica para tanto.
M) Sendo que o Bastonário da Ordem dos Notários, ouvido na qualidade de testemunha, foi inequívoco ao classificar a procuração em causa como nula, respondendo peremptoriamente que esta procuração não devia ter sido efectuada pelo ajudante de notário, que era de competência exclusiva do notário, portanto não poderia ter sido aceite, não era válida na escritura, e ainda que:
N) “ Tenho uma procuração nula, não posso instruir este acto. Quantas vezes isso não nos acontece.”
O) E também: “No meu entendimento houve uma falha na qualificação jurídica que a notária fez desta procuração e que … se tivesse sido bem feita (a qualificação jurídica da procuração) obstaria à outorga da escritura em causa. ”
P) Ou seja, era evidente que a procuração utilizada era nula em face da lei (não tinha sido celebrada perante notário e faltava-lhe a assinatura do notário – art.º 70º, n.º 1 al. f) do Código do Notariado) e que a Ré não devia ter celebrado a escritura em causa com base naquela procuração.
Q) No entanto, a decisão sob recurso fez uma interpretação errada da lei e não deu devida relevância a este depoimento, julgando erradamente a matéria de facto, em consequência, ao não dar como provado que a escritura foi celebrada pela negligência da Sr.ª Notária e que por isso a Autora perdeu € 200.000,00 que não tem como recuperar (pontos 38 e 39 dos temas de prova).
R) Com efeito, é sabido que relativamente às condições que, em concreto, se têm de verificar para que o notário possa ser civilmente responsabilizado, assiste-se, em geral, à necessidade da verificação dos pressupostos exigidos para o direito privado em geral: facto voluntário do agente, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.
S) Ora a realização de uma escritura pública por uma notário no exercício da sua função tendo por base um instrumento de representação nulo, consubstancia forçosamente um acto ilícito;
T) Pois o notário deve recusar a prática do acto que lhe seja requisitado se o mesmo for nulo (artigo 173.º, n.º 1, alínea a), do Código do Notariado) e os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, conforme resulta dos art.ºs 280.º e 294º do Código Civil.
U) E existe obviamente também culpa da Ré sua neste caso porque infelizmente actuou com menos cuidado do que o que lhe era exigível;
V) Ou seja, faltou-lhe neste acto a diligência e zelo a que estava obrigada em razão do cargo que ocupa e a que socialmente é reconhecido rigor e confiança enquanto função pública (embora agora de actividade privada) e que é exigível a um notário mediano.
W) Aliás, a culpa da Ré presume-se, pois a actuação do notário não pode deixar de ser vista como a prestação de um serviço mediante o pagamento de um preço (responsabilidade contratual) e nesta sede presume-se que a R. é culpada pelo defeito do serviço, salvo prova em contrário (art.º 799.º 1, do CC).
X) E existe também dano, já que com a realização daquele acto que a Ré não impediu e que devia ter impedido, a Autora entregou a um vigarista a quantia de € 200.000,00 a título de mútuo, que este não lhe devolveu no prazo acordado e que está impossibilitada de reaver por accionamento da garantia prestada, já que o imóvel dado em garantia do pagamento da dívida não foi hipotecado pelo seu verdadeiro dono.
Y) Dano esse de que a conduta negligente da Ré é causa adequada, no sentido em que, independentemente da vigarização havida, foi ela mesma, notária, que adoptou um comportamento profissional que, ainda que o documento fosse verdadeiro, sempre geraria a sua responsabilidade, na medida em que permitiu a realização de uma escritura nula, baseada numa procuração nula!
Z) Concluindo, não fora a negligência da Ré, a Autora teria evitado a desvantagem do prejuízo reclamado, pelo que é manifesto que existe um nexo de causalidade adequada entre os danos sofridos pela Autora e a conduta da Ré.
AA) Pelo que mal andou a sentença recorrida ao decidir em sentido contrário, fazendo uma incorrecta apreciação da prova e do Direito aplicável nessa exacta medida e devendo ser revogada em conformidade.
As apeladas contra-alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
A. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. Em dezembro do ano de 2010, a Autora tomou conhecimento que se encontravam à venda seis frações autónomas designadas com as letras “B”, “C”, “D”, “E”, “F” e “G”, correspondentes ao primeiro andar direito, ao primeiro andar esquerdo, segundo andar direito, segundo andar esquerdo, terceiro andar direito e terceiro andar esquerdo, respetivamente, todas sitas no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua Penha de França, freguesia dos Anjos, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob nº … e inscrito na matriz sob o artigo … (1.º)
2. A Autora deslocou-se ao local para conhecer o referido prédio, e também conhecer o proprietário do mesmo – Sr. António.... (2.º)
3. Aí chegada, uma pessoa que se apresentou como António... e dono do edifício, apresentou as partes comuns do mesmo, não tendo mostrado as frações autónomas em virtude de as mesmas se encontrarem arrendadas, mas exibiu e entregou à Autora os correspondentes contratos de arrendamento de todas as frações. (3.º)
4. O alegado proprietário informou a Autora que precisava de vender as referidas frações porque tinha um grande investimento no Porto, de aquisição e construção de um imóvel. (4.º).
5. Depois de diversas conversações, foi acordada a venda das referidas frações pelo valor global de € 300.000,00. (5.º)
6. O alegado proprietário ficou, então, de preparar toda a documentação com vista à outorga da escritura de compra e venda das referidas frações. (6.º)
7. Após ter sido remetida a documentação das referidas frações para a aqui A., foi constatado que a documentação referente às frações estava em conformidade (ou seja, as certidões matriciais, prediais e a licença de utilização correspondiam aos imóveis e estavam registados em nome de António...), mas faltava a remessa dos documentos comprovativos de que a C.M. de Lisboa, o IGESPAR e os arrendatários prescindiam dos direitos de preferência, bem como a documentação de identificação referente aos proprietários. (7.º)
8. O alegado proprietário remeteu, então, as preferências da C.M. Lisboa e do IGESPAR, bem como a cópia dos documentos de identificação dos proprietários (bilhetes de identidade e nºs de contribuinte). (8.º)
9. Informou que a documentação em falta (preferência dos arrendatários) seria entregue no dia da escritura. (9.º)
10. Foi marcada a escritura de compra e venda das referidas frações, para o dia 27 de janeiro de 2011, no Cartório da Dr.ª Maria..., sito na Avenida António Augusto de Aguiar, …, 1050-020 Lisboa. (10.º)
11. No referido dia 27 de janeiro de 2011, o alegado proprietário António... compareceu no referido Cartório Notarial, na companhia do seu neto que identificou como João.... (11.º)
12. Solicitado o comprovativo do exercício do direito de preferência (referente aos arrendatários), o alegado António... informou que tinha decidido não dar preferência aos arrendatários porque já sabia que o proprietário da loja do R/C, em conluio com os demais arrendatários, iria preferir na aquisição e que, àquele (por razões pessoais) não lhe venderia, nunca, as referidas frações, mais informou que, estava disposto a assumir o risco do não exercício do direito de preferência. (12.º).
13. A Autora, confrontada com tal facto, não aceitou outorgar a escritura de compra e venda, nessas circunstâncias, uma vez que não pretendia correr qualquer risco e pretendia adquirir os imóveis livres de ónus e encargos. (13.º)
14. O alegado proprietário ficou desesperado, informando que tinha uma escritura marcada no dia seguinte, à tarde, no Porto, e que sem o dinheiro da venda daquelas frações iria perder o negócio e o sinal já adiantado. (14.º)
15. A Autora foi, no entanto, intransigente, pois sem a demonstração de ter sido dada preferência aos arrendatários não outorgava a escritura de compra e venda das frações. (15.º)
16. Contudo, face ao desespero do alegado António..., a Autora aceitou outorgar escritura de mútuo, com a hipoteca das referidas frações, pelo prazo de três meses, contra a entrega do valor acordado para a aquisição das mesmas. (16.º)
17. E o alegado António... comprometeu-se a remeter as cartas para o exercício do direito de preferência, a fim de, posteriormente, no referido prazo de três meses, ser efetuada, então, a escritura de compra e venda. (17.º)
18. No momento, foi, então, solicitado à Senhora Notária o favor de alterar a escritura prevista, por forma a passar a ser uma escritura de mútuo com hipoteca. (18.º)
19. E foi assim que, no dia 27/01/2011, perante a Notária Maria...e no seu Cartório, em Lisboa, foi celebrada a escritura pública de mútuo com hipoteca, junta de fls. 326 a 330, cujo teor dou aqui por reproduzido.
20. A 2.ª R. exercia, à data dos factos, a atividade profissional de notária, tendo o seu domicílio profissional registado junto da Ordem dos Notários na Av. António Augusto de Aguiar, ..., 1050-019 Lisboa.
21. No momento da leitura da escritura, a Sr.ª Notária solicitou os documentos de identificação de todos os intervenientes e o alegado António... exibiu o bilhete de identidade (cuja cópia já tinha sido remetida via fax e com pouca nitidez) e um nº de contribuinte provisório (e não o cartão de contribuinte definitivo cuja cópia tinha anteriormente remetido). (19.º)
22. O suposto António... entregou também uma procuração de sua mulher com poderes para a celebração do contrato. (20.º).
23. A Senhora Notária verificou a procuração (que era uma cópia de procuração lavrada pelo Cartório do Dr. João..., autenticada pelo Sr. Dr. Gil...). (21.º)
24. E considerou que a referida procuração e os documentos de identificação de todos os intervenientes estavam em conformidade, leu a escritura, e explicou o seu conteúdo. (22.º)
25. Depois de assinada a escritura, a A. entregou ao suposto António... dois cheques: um cheque bancário no valor de € 200.000,00 (duzentos mil euros), ao portador (ou seja, endossável), conforme solicitado pelo alegado António..., uma vez que o referido cheque se destinava a ser entregue no dia seguinte, na referida escritura a celebrar no Porto, aos vendedores do terreno. (23.º)
26. Um cheque de € 100.000,00 (cem mil euros), à ordem do suposto António.... (24.º)
27. O suposto António... recebeu o cheque de € 200.000,00 (duzentos mil euros) e pediu à Autora que o outro cheque de € 100.000,00 (cem mil euros) fosse também ele endossável, ou seja, um cheque ao portador (tendo a A. Acedido na troca do cheque no dia seguinte e ficando a A. na posse do cheque de € 100.000,00 à ordem de António...). (25.º)
28. Uma vez que a A. não tinha possibilidade de, àquela hora (por volta das 20 horas), pedir a emissão de um novo cheque bancário, combinaram, a A. e o suposto António..., encontrar-se logo de manhãzinha no Cartório (antes de o referido António... partir para o Porto para a escritura), a fim de o legal representante da A. entregar um novo cheque endossável e procederem ao levantamento de uma certidão da escritura (uma vez que face à hora tardia a Sr.ª Notária só a disponibilizaria no dia seguinte de manhã). (26.º)
29. O suposto António... não apareceu. (27.º)
30. Preocupado, o legal representante da A. solicitou à Sr.ª Notária, aqui Ré, que verificasse, novamente, se tudo estava em conformidade com a escritura celebrada. (28.º)
31. A Sr.ª Notária telefonou, então, para o cartório onde fora lavrada por instrumento público a procuração supostamente emitida pela mulher de António.... (29.º)
32. Do outro lado da linha informaram-na que tal procuração não existia, que a procuração exibida pelo alegado António... era, portanto, falsa. (30.º).
33. O sinal colocado para divisão dos elementos de identificação no bilhete de identidade falso era um asterisco (*) enquanto o dos bilhetes de identidade autênticos é algo de parecido à sobreposição de ˆ e ˇ, o que resulta em algo de muito parecido a um asterisco. (31.º)
34. Nos bilhetes de identidades verdadeiros, os elementos de identificação começam logo no início da linha, enquanto no bilhete de identidade falso e apresentado à Srª Notária há um espaço entre a margem do documento e o início dos dizeres. (32.º)
35. No bilhete de identidade exibido, a data de nascimento indicada era 26/09/1935, ou seja, o alegado António... teria 75 anos de idade, contudo, a pessoa que estava na sala de escrituras não tinha essa idade, era muito mais nova (pelo menos 15 anos mais nova). (33.º)
36. Na referida procuração consta uma aposição digital como sendo da proprietária do imóvel e resultante da sua eventual impossibilidade de assinar. (34.º)
37. Contudo, a menção de “impossibilidade de assinar” não consta da referida procuração utilizada para a celebração da escritura. (35.º)
38. A A. apenas reclamou a responsabilidade da 2.ª R. Notária por via desta ação, e nada reclamou à 1.ª R. Seguradora. (40.º e 41.º)
39. No âmbito da sua atividade, a 1.ª R. celebrou, em 18 de junho de 2010, um contrato de seguro de grupo com a Ordem dos Notários, sob a apólice número 2030209/00.
40. O seguro contratado pela Ordem dos Notários, válido para o ano de 2011, tinha como âmbito de cobertura a responsabilidade civil profissional, traduzida na garantia de pagamento de indemnizações emergentes de responsabilidade civil legalmente exigíveis ao Segurado, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros, em consequência do exercício da atividade profissional de Notário.
41. Dispõe o ponto 5 das Definições vertidas nas Condições Particulares da Apólice, que um “Sinistro” é “qualquer ocorrência suscetível de gerar a responsabilidade civil do segurado nos termos e condições cobertos pela presente apólice, conforme estes se encontram detalhados nas respetivas cláusulas e estipulações, especialmente, na condição especial relativa ao alcance da “Delimitação Temporal do Seguro: Cobertura Retroativa” do Título III ”.
42. Apenas estão a coberto da Apólice os “danos causados a terceiros, por erros não conhecidos, reclamados contra o segurado pelo terceiro lesado pela primeira vez durante a vigência do contrato, ainda que os referidos erros hajam sido cometidos após data retroativa indicada nas condições particulares ”.
43. Estabelecendo-se, ademais, que “para efeitos deste contrato constitui uma reclamação qualquer comunicação escrita de terceiro lesado dirigida ao segurado, exigindo responsabilidade pelos danos causados e o respetivo ressarcimento”.
44. À luz das condições prescritas na Apólice, “entender-se-á por reclamação qualquer comunicação escrita feita pelo lesado ao Segurado e comunicada por este à Seguradora ou diretamente comunicada pelo lesado à Seguradora, solicitando a reparação de um dano e/ou a indemnização pelos prejuízos dos quais poderia resultar civilmente responsável o Segurado, de acordo com os termos e condições previstos na apólice”.
45. O n.º 11 das Condições Gerais da Apólice exige que “o tomador do seguro [in casu, a Ordem dos Notários] ou o segurado [in casu, a 2.ª R.] deverão comunicar à seguradora [1.ª R.] a ocorrência de um sinistro no prazo máximo de sete (7) dias a partir da data em que tenham tomado conhecimento da sua ocorrência, salvo tenha sido fixado prazo diferente nas Condições Especiais ou Particulares”.
46. Acresce que, o ponto 2 do n.º 11 das Condições Gerais da Apólice estabelece que “Caso a falta de comunicação à seguradora [1.ª R.] da ocorrência de um sinistro nos termos referidos no número anterior tenha origem em ato doloso do tomador do seguro ou do segurado e tenha determinado dano significativo para a seguradora, as coberturas contratadas ficarão sem efeito, ficando, nesse caso, a seguradora exonerada de qualquer obrigação de indemnizar ou suportar quaisquer gastos ou despesas que tenham sido contratados”.
47. O “limite por sinistro e anuidade para cada Segurado é €100.000,00” (cem mil euros).
48. Estabelecendo-se, ademais, que “O Segurado suportará em todos os sinistros, a título de franquia a) €1.000,00 por sinistro”.
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consistem em saber se:
a) Os art.ºs 37 e 38 dos temas da prova devem ser declarados provados em face do depoimento do Bastonário da Ordem dos Notários, ouvido na qualidade de testemunha, sob pena de contradição com o fato n.º 23 da sentença (conclusões M) a Q) e art.ºs 74.º e 75.º das alegações).
b) A 2.ª R agiu negligentemente (conclusões F), G), J), K), L), R) a V)).
c) Existe nexo de causalidade entre a conduta profissional da 2.ª R e os danos invocados pela apelante (conclusões X) a Z))
d) A culpa da 2.ª R presume-se por a atuação do notário não poder deixar de ser vista como a prestação de um serviço mediante o pagamento de um preço- responsabilidade contratual (conclusão W)).
Antes de iniciarmos a análise de cada uma destas questões não podemos deixar de abordar duas questões prévias, tendo a primeira sido suscitada nas alegações e resultando a segunda da certidão de fls. 681 a 776, junta pela apelada, 2.ª R.
I. Questões prévias.
I. A. Nulidade secundária.
Apesar do silêncio das conclusões da apelação, no corpo das suas alegações a apelante argui a nulidade da deficiência da gravação da prova testemunhal, apresentando-se inaudíveis em vários pontos, quer as perguntas feitas, por um lado, quer as respostas dadas pelas testemunhas, por outro, reconduzindo essa nulidade ao art.º 195.º, n.º 1, do C. P. Civil.
As apeladas responderam, cada uma nas suas contra-alegações, que a apelante não indica as passagens dos depoimentos que reputa deficientes, nem indica os concretos pontos da matéria de fato a que tais depoimentos se reportariam.
Como é entendimento pacífico da jurisprudência, a gravação deficiente da prova pessoal é suscetível de configurar uma nulidade secundária, só produzindo nulidade “…quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa…”, como dispõe o art.º 195.º, n.º 1, do C. P. Civil, a qual “…só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato…”, como dispõe o art.º 197.º, n.º 1, do C. P. Civil, devendo ser arguida no prazo geral de dez dias, previsto no art.º 149.º, do C. P. Civil, a contar do seu conhecimento ou da possibilidade desse conhecimento “...agindo com a devida diligência”, como dispõe o art.º 199.º, n.º 1, do C. P. Civil.
A arguição dessa nulidade nas alegações de recurso para o tribunal superior só pode ser feita nas condições previstas no art.º 199.º, n.º 3, do C. P. Civil, a saber, “Se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo … contando-se o prazo desde a distribuição”.
Como se decidiu no acórdão deste Tribunal da Relação, de 30/5/2012[1] “A arguição de nulidade atinente a deficiência de gravação do julgamento pode ter lugar na própria alegação de recurso, desde que se mostre tempestivamente arguida de acordo com o regime das nulidades”.
Seguindo aqui esta orientação, por configurar uma maior abertura relativamente à arguição da nulidade em sede de recurso, e atenta a data em que a alegada deficiência da gravação terá sido conhecida, entre 12 e 17 de novembro de 2014, consoante fls. 406 e 407 destes autos, e a data de entrada da apelação, 20 de Novembro de 2014, constatamos que a nulidade foi arguida em tempo, como tal devendo ser conhecida.
Ora, ao contrário do expendido pela apelante ou, pelo menos, numa descrição mais fiel da realidade, como consta na informação de fls. 408, o que apresentaria deficiência seriam as cassetes cópias, que “não se encontram em condições de audição” e não também as cassetes com a gravação da prova pessoal, ditas “originais”, as quais “estavam audíveis”, sendo certo que estas cassetes originais foram entregues à apelante (fls. 407) que, assim, teve a possibilidade de as ouvir para efeitos de impugnação da decisão em matéria de fato.
Não obstante, ainda que a asserção da apelante relativamente à inaudibilidade das cassetes devesse prevalecer em face da informação de fls. 407, o certo é que a apelante não habilitou este tribunal com a informação suficiente para aquilatar sobre se a apontada deficiência de gravação é suscetível de “…influir no exame ou na decisão da causa”, uma vez que, como contrapõem as apeladas, nem identifica as passagens da gravação que reputa deficientes, nem indica os pontos da matéria de fato cujo julgamento pode ser afetado por essa deficiência, como lhe impõe o art.º 640.º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 2, al. a), do C. P. Civil.
Improcede, pois, a arguida nulidade, com um duplo fundamento, uma vez que não está demonstrada a deficiência da gravação da prova pessoal, nem que a mesma, a existir, seja suscetível de influi no exame ou na decisão da causa.
I. B. Fatos do acórdão condenatório proferido no Processo n.º 387/13.5TCLSB, transitado em julgado, cuja certidão se encontra a fls. 681 a 776 destes autos (provados por documento autêntico)[2].
Os fatos em julgamento nestes autos, no seu todo ou pelo menos em parte, foram também objeto de julgamento criminal, no processo n.º 387/13, em que tiveram a qualidade de demandantes cíveis, cada uma de per se, a apelante e a apelada, 2.ª R, tendo sido julgado procedente o pedido cível aí deduzido pela apelante (fls. 715, verso, 1.º §, destes autos) e improcedente o pedido cível deduzido pela apelada, 2.ª R (fls. 715, 1.º §).
Atenta a conexão com a matéria destes autos, que poderia ter determinado a suspensão desta instância cível até prolação de decisão no processo penal, e a sua relevância para apreciação do objeto da apelação, este tribunal não poderá deixar de considerar na sua decisão as seguintes passagens do acórdão proferido no processo-crime:
1) “…Ofendido António… Considerando a matéria que a propósito deste ofendido ficou provada dúvidas não subsistem que o arguido em co-autoria com outros indivíduos, praticou os ilícitos de burla e falsificação de documento Falsificou ainda a procuração…Por se ter identificado como António da Chão no respetivo Cartório Notarial...recebeu o cheque endossável de duzentos mil euros entregue por…, fazendo crer a este que o prédio da Penha de França era efetivamente de sua propriedade” (fls. 710);
2) Absolver o demandado … (o arguido) do pedido de indemnização civil contra si formulado pela demandante (a 2.ª R) … (fls. 715);
3) Julgar procedente o pedido de indemnização cível formulado pelo demandante…, por si e na qualidade de legal representante da sociedade … (a apelante), contra o demandado… (o arguido), condenando-o a pagar solidariamente ao indicado demandante a titulo de danos patrimoniais a quantia global de € 209.967,26 a que acresce o pagamento das quantias devidas a título de juro anula sobre o capital mutuado de 4% que entretanto se venham a vencer por conta do empréstimo contraído de € 50.000,00 até ao seu integral e definitivo pagamento, a liquidar em execução de sentença, e, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 15.000,00. Sobre as quantias referidas acrescem juros à taxa legal, sendo contados a partir da notificação do demandado, quanto aos danos patrimoniais e a partir desta data quanto aos danos não patrimoniais” (fls. 715, verso).
Apreciando agora as questões da apelação, propriamente dita:
II. Quanto à primeira questão da apelação, a saber, se os art.ºs 37 e 38 dos temas da prova devem ser declarados provados em face do depoimento do Bastonário da Ordem dos Notários, ouvido na qualidade de testemunha.
Nas conclusões M) a Q) da apelação, que a esta questão se reportam, a apelante não identifica os concretos pontos da matéria de fato de que discorda.
Nos art.ºs 74.º e 75.º do corpo das alegações, a apelante reporta-se aos temas da prova n.ºs 37 e 38, como sendo aqueles de cuja resposta discorda e nos art.ºs 21.º e 56.º do mesmo corpo das alegações refere os temas da prova n.ºs 38 e 39, como tendo sido mal julgados.
Decidindo a dúvida a seu favor, apreciaremos uns e outros.
Ora, os art.ºs 37, 38 e 39 dos temas da prova, fixados a fls. 339, têm o seguinte conteúdo:
37. Ou pelo menos ter suspeitado da sua falsidade e averiguado a sua genuinidade. 38. A escritura foi celebrada por causa da sua negligência. 39. Em consequência da celebração da escritura a A perdeu € 200.000,00, que não tem como recuperar.
Como de imediato resulta da sua leitura, o conteúdo do tema da prova n.º 37 não tem autonomia, constituindo uma adversativa/alternativa do anterior n.º 36, o qual tem o seguinte conteúdo: 36. A senhora notária podia e devia ter observado os documentos que lhe foram exibidos e ter concluído pela sua falsidade.
O tribunal a quo declarou não provados estes temas da prova (n.ºs 36 a 39) com a seguinte fundamentação:
“A matéria dos temas 36.º e 37.º não pode concluir-se. Os documentos falsos apresentados à R. Notária (BI e procuração) eram de molde a ser aceites como bons por qualquer notário diligente. É certo que a situação fugiu à normalidade, com a ausência de documentos (comprovativos das notificações para preferência aos arrendatários) que determinou uma alteração do tipo de negócio pretendido, com a insistência do vendedor para obter um cheque endossável, com a pressa do vendedor na realização do negócio. Porém, estas eram talvez razões para que a compradora ficasse de pé atrás. Se a compradora – que conhecia o vendedor antes da escritura, que já tinha mantido conversas e negociações com ele – não tinha razões para desconfiar da identidade do vendedor, como poderia a R. Notária tê-las? Sobre os temas 38.º e 39.º não foi produzida prova, além de conterem matéria conclusiva.
Não podemos deixar de concordar, de imediato, com a resposta do Tribunal a quo relativamente aos n.ºs 38 e 39 dos temas da prova, pelo duplo fundamento invocado, mas invertendo a sua ordem de chamamento à colação.
De fato, o tema n.º 38 contém duas afirmações de direito, a saber, uma relação de causalidade entre uma conduta da 2.ª R e a celebração da escritura e a qualificação desta conduta como negligente.
Por sua vez, o tema n.º 39 contém um outro conceito de direito, qual seja, o nexo de causalidade entre a celebração da escritura e os danos sofridos pela apelante, para além da afirmação conclusiva de que “…não tem como recuperar”.
As afirmações e os conceitos de direito são insuscetíveis de prova direta, nomeadamente através de prova testemunhal, pelo que o Tribunal a quo se não poderia pronunciar sobre eles em sede de decisão da matéria de fato, sob pena de na resposta a estes art.ºs 38 e 39, proferir uma decisão de direito, contendo o destino da decisão de direito da causa ao estabelecer, como do seu conteúdo resulta, que “a 2.ª R foi negligente ao elaborar a escritura e com a sua negligência causou à A um prejuízo de € 200.000,00”.
Acresce que, como o próprio Tribunal a quo refere, não foi produzida qualquer prova a esses temas da prova, pelo que não poderiam ser declarados provados, sem prejuízo da ulterior apreciação do seu conteúdo, ao nível da aplicação do direito, como aliás, foi feito.
Resta-nos o n.º 37.º e o seu anterior e conexo n.º 36.º, os quais têm a seguinte formulação sequencial:
36. A senhora notária podia e devia ter observado os documentos que lhe foram exibidos e ter concluído pela sua falsidade. 37. Ou pelo menos ter suspeitado da sua falsidade e averiguado a sua genuinidade.
Analisado o conteúdo destes temas da prova, constatamos que o mesmo é constituído por conclusões genéricas sobre o que a 2.ª R podia e devia ter feito, alvitrado ou investigado, olvidando os mesmos que, exercendo a 2.ª R uma profissão ao pormenor regulada e constituída por atos legalmente tipificados, o que ela fez, como o que devia ter feito, como o que deixou de fazer, tem de ser estabelecido por referência ao quadro legal que regula os seus atos e não por referência a qualquer outro padrão de comportamento, qualquer que ele seja.
E o que a 2.ª R fez não pode ser separado do que os restantes intervenientes no ato, entre eles a apelante, fizeram, pelo que, para a afirmação ou infirmação da matéria conclusiva destes temas da prova, importante seria que aquele evento naturalístico tivesse sido apreciado na sua globalidade, com precedência da apreciação da matéria crime, só depois seguida da eventual vertente cível, por ela não acautelada.
Não obstante essa natureza conclusiva, o certo é que sobre a matéria destes temas da prova foi produzida prova, que o Tribunal a quo analisou e que considerou insuficiente para dar como provado o seu conteúdo.
Discordando dessa decisão, a apelante pretende que a mesma seja alterada, declarando-se provado o n.º 37, segundo o qual a 2.ª R podia e devia ter observado os documentos que lhe foram exibidos (e) ter suspeitado da sua falsidade e averiguado a sua genuinidade, invocando para tanto o depoimento da testemunha, Bastonário da Ordem dos Notários.
Ouvido o depoimento desta testemunha, constatamos que, sobre o caso concreto dos autos, a testemunha nada sabe porque não teve nele qualquer intervenção.
A testemunha pronuncia-se sobre a situação dos autos e sobre as afirmações conclusivas dos temas sob os n.ºs 36 e 37, de um ponto de vista técnico, da profissão de notário, segundo o quadro legal de exercício e as legis artis, ou seja, a testemunha emite a sua opinião técnica, porque mais não podia fazer, atento o seu desconhecimento das circunstâncias do caso concreto, como demonstram as seguintes afirmações:
- “E nesse elenco o legislador deixou ao notário, única e exclusivamente, a possibilidade de tudo o que tiver que ver com interpretação do sentido e alcance da vontade das partes, declarações das partes ao ordenamento jurídico tem que ser feito pelo notário”;
- “Ninguém tem dúvida nenhuma disso, é de competência exclusiva do notário”;
- “O sistema está inseguro, mas aqui foi o notariado que falhou, claramente”;
- “…é claro que se a procuração me aparece no próprio dia, no próprio momento, eu tenho menos tempo para ter o dever de atuação conforme”;
- “…trabalhei no Conselho Fiscalizador do Conselho Deontológico da Ordem dos Notários e não tivemos um caso destes. Tivemos sim, como disse, casos de procuração por documento particular autenticada…”;
- “No meu entendimento houve uma falha na qualificação jurídica que a notária fez desta procuração…”.
Este inequívoco juízo técnico coloca a testemunha numa posição processual mista, entre a testemunha propriamente dita, aquela que tem conhecimento direto ou indireto, mas próximo, dos fatos a que depõe, como resulta do disposto no art.º 516.º, n.º 1, do C. P. Civil, e a função de perito, aquele que com “…reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa…” sobre ela se pronuncia, como estabelece o art.º 467.º, n.º 1, do C. P. Civil, devendo o seu depoimento ser apreciado segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 607.º, n.º 5, do C. P. Civil, segundo o qual “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Neste sentido, o recente o acórdão deste Tribunal da Relação, de 12/3/2015[3], decidiu que “Se determinada testemunha, …, faz um depoimento técnico-pericial, …para concluir aquele nexo de causalidade, nem por isso deve ser valorado como um juízo técnico-pericial porque nem as partes a arrolaram como tal nem o Tribunal oficiosamente o requisitou nos termos do art.º 649, sendo o seu depoimento valorado livremente nos termos do art.º 655”.
No que respeita ao depoimento desta testemunha, o tribunal a quo relevou apenas o seu conhecimento direto, que lhe adveio de uma conversa telefónica com a 2.ª R no dia a seguir à escritura, relativa à procuração em causa nos autos, e não terá deixado de relevar também o seu juízo técnico, em sede apropriada, qual seja, a da valoração da conduta profissional da 2.ª R, mas não o considerou para efeitos do conteúdo do n.º 37 dos temas da prova.
Relativamente a este n.º 37 não podemos deixar de confirmar o primeiro juízo do tribunal a quo, no sentido de que “A matéria dos temas 36.º e 37.º não pode concluir-se”.
De fato, como acima referimos, essa matéria é conclusiva e nessa medida não podia ser adquirida para os autos através de prova testemunhal ou de juízo técnico emitido pela testemunha, sem prejuízo da consideração desse juízo técnico, no que respeita à caraterização do dever de cuidado que impendia sobre a 2.ª R e seu cumprimento ou incumprimento por parte desta, como a própria sentença, longamente, faz no título “b) Do ato ilícito e culposo praticado pela R. Notária”.
E nesta perspetiva também não existe qualquer contradição com o fato sob o n.º 23, segundo o qual “A Senhora Notária verificou a procuração…”, uma vez que esta ao observar esse escrito só viu o que, na realidade viu, como em sede própria melhor explicitaremos.
Improcede, pois, a pretensão da apelante relativamente à alteração da decisão em matéria de fato.
III. Quanto à segunda questão, a saber, se a 2.ª R agiu negligentemente.
Na ausência de preceito civilista que defina o conceito de negligência, socorrer-nos-emos da noção que nos é dada pelo artigo 15.º do C. Penal, segundo o qual:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
Do proémio deste preceito resulta que uma conduta negligente pressupõe a existência de um dever de cuidado e a sua violação, reportando-se a sua al. a) à representação do dever e sua violação pelo agente (negligência consciente) e a al. b) à ausência de representação por parte do agente (negligência inconsciente).
Segundo esta noção legal, a existência de uma conduta negligente pressupõe, antes de mais, a existência de um concreto dever de cuidado e a sua não observância/violação por parte do agente, pressupostos de cuja existência aquilataremos em primeiro lugar.
No caso sub judice, a negligência, ou diligência, da 2.ª R tem de ser aferida em relação à atividade que estava obrigada a desenvolver e que, de forma simplista, podemos apelidar como a prestação a que se obrigou perante a apelada[4].
Exercendo a 2.ª R uma profissão sujeita a autorização/concessão/fiscalização de natureza pública, cujo objeto é constituído pela prática de um conjunto de atos, há muito tipificados na lei e nas legis artis, o notariado, a diligência/negligência num seu concreto ato de exercício tem de ser aferida em relação a um concreto dever que lhe seja imposto pelas condições de exercício da profissão.
Importa, por isso, determinar qual seja esse dever, o comportamento devido, para em seguida aferirmos do seu cumprimento ou violação.
O art.º 23.º do Estatuto do Notariado (EN), aprovado pelo Dec. Lei n.º 26/2004, de 4 fevereiro, apesar da sua epígrafe, “Deveres dos notários”, estabelece os respetivos deveres de uma forma muito genérica, de que destacamos, por possível conexão com o caso sub judice, as suas alíneas a) e b), com o seguinte conteúdo:
“1 — Constituem deveres dos notários: a) Cumprir as leis e as normas deontológicas; b) Desempenhar as suas funções com subordinação aos objetivos do serviço solicitado e na perspetiva da prossecução do interesse público;”.
Sendo deveres genéricos do notário “cumprir as leis e as normas deontológicas e desempenhar as suas funções com subordinação aos objetivos do serviço solicitado e na perspetiva da prossecução do interesse público”, importa saber se os mesmos foram cumpridos no ato concreto em causa nos autos e neste no que respeita à procuração acima identificada sob os n.ºs 22 a 24 da matéria de fato, apresentada no ato pelo autor dos crimes identificados no acórdão proferido no processo-crime n.º 387/13.5TCLSB e que não é parte nestes autos.
Como acima consta sob o n.º 23 da matéria de fato, a procuração apresentada “…era uma cópia de procuração lavrada pelo Cartório do Dr. João..., autenticada pelo Sr. Dr. Gil...” e como consta sob os n.ºs 36 e 39 da matéria de fato “Na referida procuração consta uma aposição digital como sendo da proprietária do imóvel e resultante da sua eventual impossibilidade de assinar. Contudo, a menção de “impossibilidade de assinar” não consta da referida procuração utilizada para a celebração da escritura”.
Atenta tal factualidade, expende a apelante que a procuração era nula, porque devia apresentar-se lavrada por notário e não por um seu funcionário e que atenta essa invalidade não devia ter sido aceite pela apelada/2.ª R e, em consequência, não devia ter sido lavrada a escritura em causa nos autos.
A procuração apresentava ainda um outro vício, consistente na ausência de indicação de qual o motivo da aposição de impressão digital pela suposta mandante no lugar da assinatura, mas a apelante, nas conclusões da apelação, restringiu o conhecimento da apelação à questão anterior, pelo que só a qualidade do agente que a lavrou importa para decisão da apelação.
Ora, o dever da apelada/2.ª R em relação à procuração que lhe foi apresentada consubstanciar-se-ia em verificar a vontade da outorgante da procuração, aqui concretizado na mera observação dos requisitos formais da procuração, a tal destinados.
Um desses requisitos formais, que a apelada/2.ª R devia e podia sindicar, era a qualidade do agente que lavrou a procuração, que deveria ser o próprio notário, como expendido pela apelante, e que o Tribunal a quo considerou duvidoso como resulta do seguinte trecho da sentença:
“Perante a redação do art.º 8.º do Estatuto do Notariado vigente à data dos factos sub judice, e face à redação do n.º 3 do art.º 41 do Código do Notariado, era, pelo menos, discutível, que o notário não pudesse delegar em trabalhador do seu cartório a outorga de uma procuração por instrumento público”.
O cerne desta questão, sobre a diligência ou negligência da apelada/2.ª R, situa-se, pois, primeiramente, em saber, se segundo o quadro legal aplicável, a procuração devia ser lavrada pelo próprio notário, sem possibilidades de delegação nos seus funcionários, e só em seguida em aferir do dever da apelada em conhecer esse quadro legal, observar essa circunstância e agir em conformidade, recusando a procuração e os termos subsequentes do ato notarial que se encontrava a praticar.
Sendo a causa de pedir da ação constituída, além do mais, pela violação com mera culpa de “…qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”, um dos fundamentos de responsabilidade civil previstos no art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil, a concreta disposição legal cuja inobservância é imputada à apelada 2.ª/R, por incumprimento do dever de cuidado no exercício das suas funções notariais, é o art.º 8.º, n.º 2, do Estatuto do Notariado (EN).
O art.º 8.º, n.º 1, do EN, ao dispor que “O notário pode, sob sua responsabilidade, autorizar um ou vários trabalhadores com formação adequada a praticar determinados atos ou certas categorias de atos” estabelece o princípio geral de que o notário pode delegar nos seus funcionários a prática dos atos da sua competência.
Esta delegação é delimitada pelos seguintes pressupostos:
- O notário mantém a sua responsabilidade;
- Os trabalhadores devem ter formação adequada;
- A delegação deve identificar os atos delegados ou a categoria dos atos delegados.
Consagrado este princípio geral, logo o n.º 2, do art.º 8.º, do EN estabelece diversas exceções, identificando alguns atos concretos cuja prática não pode ser delegada, a saber:
-Atos titulados por escritura pública;
-Testamentos públicos;
-Instrumentos de aprovação, de abertura e de depósito de testamentos cerrados ou de testamentos internacionais e respetivos averbamentos;
-Atas de reuniões de órgãos sociais;
e abrangendo um conjunto de muitos outros com uma norma aberta, que consagra uma exceção genérica para todos os atos notariais “em que seja necessário interpretar a vontade dos interessados ou esclarecê-los juridicamente”.
A violação deste art.º 8.º do EN, com a prática de ato por trabalhador sem delegação ou com delegação ilegal, determinará a nulidade do ato respetivo, por incompetência do funcionário que o praticou, nos termos do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Código do Notariado (CN), o qual dispõe que “É nulo o ato lavrado por funcionário incompetente, em razão da matéria…”.
No caso sub judice, o que está em causa relativamente à procuração, tal como se apresentou na sua materialidade, é saber se a mesma e o mandato por ela outorgado é um ato em que é “…necessário interpretar a vontade dos interessados ou esclarecê-los juridicamente”.
O Exm.º Bastonário da Ordem dos Notários, ouvido na qualidade de testemunha, pronunciou-se neste sentido e o seu juízo técnico, não obstante não ter sido produzido na qualidade de perito, não pode deixar de ser ponderado, tanto mais que não foi produzida prova pericial a essa matéria, não foi solicitado parecer aos órgãos próprios da Ordem dos Notários, à Direção Nacional dos Registo e Notariado do Ministério da Justiça ou a outra entidade com especiais conhecimentos e atribuições na matéria, nem o tribunal a quo usou da faculdade de designar técnico para o assistir na audiência, como também lhe permite/impõe o art.º 601.º, n.º 1, do C. P. Civil.
Ora, a procuração agora em análise constitui, grosso modo, o consentimento do cônjuge do proprietário de imóvel para a sua alienação ou oneração, imposto pelo art.º 1682.º-A, n.º 1, al. a), do C. Civil, assumindo a forma especial estabelecida pelo art.º 1684.º do mesmo Código, sendo ambos os preceitos o corolário da importância que o legislador atribui aos atos de alienação do acervo de imóveis do casal, sejam eles comuns ou próprios de qualquer dos cônjuges, pelo que nela está, indubitavelmente, em causa a interpretação a vontade da outorgante do mandato e o seu esclarecimento jurídico.
Ao contrário da dúvida exarada pelo Tribunal a quo ao expender que “Perante a redação do art.º 8.º do Estatuto do Notariado vigente à data dos factos sub judice, e face à redação do n.º 3 do art.º 41 do Código do Notariado, era, pelo menos, discutível, que o notário não pudesse delegar em trabalhador do seu cartório a outorga de uma procuração por instrumento público” e de acordo com o juízo técnico expendido pelo Exm.º Bastonário da Ordem dos Notários, não podemos, pois, deixar de entender que a procuração em análise só podia ser lavrada por notário, nos termos do disposto no art.º 8.º,n.º 2, in fine, do EN e art.ºs 1682.º-A, n.º 1, al. a) e 1684.º, do C. Civil, e que, apresentando-se lavrada por trabalhador notarial, com ou sem delegação de poderes por parte do notário respetivo, a mesma seria nula, nos termos do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do CN.
Sabemos agora que a procuração era simplesmente falsa, mas essa sua desqualidade não podia ser aferida pela notária apelada.
O que a esta seria exigível, atenta a qualidade em que praticava o ato e os conhecimentos que lhe são próprios, era já não a interpretação a vontade da outorgante do mandato e o seu esclarecimento jurídico, as quais deviam ter sido aferidas pelo notário a cujo cartório era imputado o escrito procuração, mas a aferição do cumprimento, por aquele concreto instrumento, dos requisitos formais que, de forma indireta, se dirigem ainda à mesma aferição dessa vontade, em suma, aquilatar da legalidade aparente da procuração que lhe era presente, para constituir o consentimento do cônjuge exigido para o ato de alienação, primeiro, e para o ato de oneração, depois, que se encontrava a lavrar.
Atentos, pois, a qualidade de notária e os conhecimentos de legis artis que lhe são próprios e exigíveis, a Exm.ª Notária devia ter visto, que a procuração se apresentava como lavrada por trabalhador do notário e não por este, sem conter a menção de delegação de poderes para o ato e que, de qualquer modo, a procuração não podia ser lavrada por funcionário notarial, sendo nula e não podendo valer como consentimento do cônjuge do alienante/onerante.
Ao não ter procedido deste modo e praticando o ato para que era necessária a procuração, a Exm.ª Notária não agiu com o cuidado que lhe era exigível e possível, violando, por mera culpa, disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Não podemos, pois, deixar de entender que a Exm.ª Notária agiu com negligência.
Na delimitação e concretização desta negligência, tendo em vista a determinação do seu grau de gravidade, em face do critério geral de apreciação da culpa previsto no art.º 487.º, n.º 2, do C. Civil, o qual dispõe que “A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”, não podemos deixar de considerar todas as circunstâncias concretas em que a Exm.ª Notária agiu e que passamos a descrever, porventura com imperfeição atenta a circunstância de os fatos do processo-crime não terem sido recebidos na totalidade neste litigio cível.
A Exm.ª Notaria tinha preparada uma escritura de compra e venda de seis frações de um imóvel (n.ºs 1 a 10 da matéria de fato), presumivelmente, com a presença da mulher do vendedor.
O escrito procuração foi-lhe entregue no ato (n.º 22 da matéria de fato).
À última hora, já no próprio ato, as partes outorgantes mudaram a sua vontade negocial, propondo-se celebrar outro negócio nesse mesmo momento (n.ºs 18 e 19 da matéria de fato), o que determinou à Exm.º Notária um esforço acrescido na preparação do novo ato, com o qual não contava (art.ºs 349.º e 351.º, do C. Civil).
Todo isto aconteceu a um ritmo em que a premência do negócio, o interesse, o enrolamento de circunstâncias, a encenação e a emoção, próprios do crime de burla que estava a ser praticado e que os outorgantes transportaram para a Exm.ª Notária (n.ºs 11 a 17 22, e 25 a 28 da matéria de fato), retirou a esta algum discernimento na observação do instrumento procuração (n.ºs 23 e 24 da matéria de fato e art.ºs 349.º e 351.º do C. Civil).
Em condições normais, um notário ter-se-ia apercebido dos vícios da procuração e a Exm.ª Notária também (cfr. os n.ºs 30 a 32 da matéria de fato), mas naquelas circunstâncias, em que os outorgantes transportaram para o seu cartório aquela auréola, de neblina envolvente, própria do crime em causa, o seu poder de observação e análise foi obnubilado e diminuído.
Reportando-nos às formas de negligência previstas no art.º 15.º do C. Penal, acima referidas, tendo em atenção todas estas circunstâncias em que a Exm.ª Notária agiu, afigura-se-nos que a sua conduta omissiva, na observação da procuração, assume a forma menos grave de negligência, a saber, a forma de negligência inconsciente prevista na al. b), do art.º 15.º, do C. Penal.
IV.Quanto à terceira questão, a saber, se existe nexo de causalidade entre a conduta profissional da 2.ª R e os danos invocados pela apelante.
Relativamente a esta questão, da existência ou inexistência de nexo de causalidade entre a conduta da apelada/2.ª R, o tribunal a quo expendeu, episodicamente, uma vez que, ao concluir pela não violação do seu dever de cuidado, o conhecimento da questão se encontrava prejudicado, que “Diga-se, a latere, que inexiste nexo de causalidade adequada entre a atuação da R. Notária e o prejuízo causado à A. O facto de um notário lavrar uma escritura aceitando como interveniente uma pessoa que se faz passar por outra não é causa adequada de um prejuízo patrimonial”.
Mas este juízo de inexistência de nexo de causalidade entre a conduta da Exm.ª Notária e os danos cujo ressarcimento é pedido pela apelante afigura-se-nos posto em crise pelo próprio Tribunal a quo ao considerar, também, que “Claro que várias circunstâncias externas tornaram possível o sucesso do suposto António.... Entre elas também o facto de a R. Notária, ainda que sem culpa, não ter suspeitado do logro. Mas maior foi o contributo da A. na sua credulidade e na emissão de um cheque ao portador a alguém que mal conhecia”, inculcando-nos a ideia de que, afinal, a ação/omissão da Exm.ª Notária também foi, em parte, causa adequada dos danos sofridos pela apelante.
Inversamente, a apelante começa por afirmar uma concausalidade entre a ação do autor do crime de burla e a ação da Exm.ª Notária, ao expender no art.º 71.º das suas alegações que “independentemente de o imediato causador do prejuízo ser evidentemente o burlão, a Ré Notária também deu realmente causa ao prejuízo referido”, para em seguida pugnar pela imputação dos seus prejuízos à ação exclusiva da apelada 2.ª R, afirmando na conclusão X) que:
“com a realização daquele ato que a Ré não impediu e que devia ter impedido”,
na conclusão Y) que:
“…a conduta negligente da Ré é causa adequada, no sentido em que, independentemente da vigarização havida, foi ela mesma, notária, que adotou um comportamento profissional que, ainda que o documento fosse verdadeiro, sempre geraria a sua responsabilidade, na medida em que permitiu a realização de uma escritura nula, baseada numa procuração nula”
e na conclusão Z) que:
“...não fora a negligência da Ré, a Autora teria evitado a desvantagem do prejuízo reclamado, pelo que é manifesto que existe um nexo”.
Esta aparente admissão de existência de concausalidade, entre a conduta do autor do crime de burla e a ação/omissão da 2.ª R, na produção do resultado danoso, permite-nos, desde já, afirmar que, mesmo naturalisticamente falando, os danos da apelante foram causados pela conduta do autor do crime e que a ação/omissão da 2.ª R, mais do que uma das causas do crime, constituirá antes a violação de um dever de o evitar, na perspetiva em que, se a notária tivesse recusado a prática do ato por ilegalidade da procuração, apesar da ação do autor do crime e da conduta por ele induzida na apelante, o resultado danoso não teria ocorrido.
Mas estas são meras considerações naturalísticas, insuficientes para a afirmação de um nexo de causalidade, juridicamente relevante, entre a conduta da apelada/2.ª R e os danos da apelante.
No caso sub judice, a existência ou inexistência desse nexo de causalidade, como conceito jurídico, tem de ser procurado na relação entre a violação da “…disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”, que o art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil prevê como fundamento da obrigação de indemnizar, e os danos sofridos pela apelante.
Como nos dá conta o Prof. Meneses Cordeiro[5], o art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil, provirá da influência do BGB, § 823, o qual dispõe que “A mesma obrigação assiste a quem atua contra uma lei destinada à proteção de outrem”, sendo que, face a este preceito, a doutrina tem entendido que estão em causa, entre outras, “disposições que tendem a proteger a coletividade, isto é, o público, com inclusão do prejudicado”.
Ora, a norma que estabelece o dever do notário de sindicância dos requisitos formais de uma procuração, que lhe é presente para um ato, in casu, de alienação/oneração, é uma dessas disposições que se destinam a proteger todos os cidadãos, incluindo todo o cidadão que em concreto se apresente perante o notário, mas não a proteger a apelante da ação do autor de um crime de burla.
Ou seja, a Exm.ª Notária estava obrigada a verificar os requisitos formais da procuração, na prossecução do interesse público e particular de que a vontade da mandante corresponda à vontade que na procuração é declarada, mas não a evitar o crime de burla.
E só a este é imputável, a título de nexo de causalidade, o prejuízo sofrido pela apelante.
De fato, a omissão da notária nunca teria a virtualidade de determinar aquele dano, mas apenas a deficiente vontade da mandante, pelo que só poderia ter repercussões na validade do ato em si e nunca no resultado danoso do crime de burla.
A ação/omissão da 2.ª R, ao não ver a ilegalidade da procuração, em abstrato, não determinaria o dano sofrido pela apelante, mas apenas, quando muito, a invalidade do ato de disposição ou de oneração das frações.
Aquele dano não é a consequência normal daquela omissão.
O ato da 2.ª R foi, aliás, indiferente para a produção do dano, pois a procuração era totalmente falsa, sendo certo que é a imperfeição da falsificação que faz sobressair o ato da Exm.ª Notária.
Como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, o art.º 563.º do C. Civil ao dispor que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, consagra entre nós a teoria da causalidade adequada.
Como escrevem os Profs. Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela[6], este preceito: “…aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores - a doutrina da causalidade adequada…”, que sintetizam em seguida, dizendo: “…a fórmula usada no art.º 563.º deve…interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito”.
Como também é pacifico entre nós, quando está em causa a responsabilidade civil por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, não basta esta formulação genérica da teoria da causalidade adequada, de danos que provavelmente não teriam ocorrido se não fosse a lesão, sendo também necessário (1) que o lesado seja titular dos interesses protegidos pela norma e que (2) a lesão o seja desses interesses.
Como escreve o Prof. Antunes Varela[7] “…importa saber se o lesado figura entre os titulares dos interesses protegidos pela disposição infringida e se a lesão se deu no círculo de interesses tutelados pela norma”.
Ora, como já referimos, a norma que impõe ao notário a análise da procuração destina-se a proteger os interesses dos intervenientes no ato, na perspetiva da emissão de vontade pelo outorgante do mandato contido na procuração, sendo certo que o dano sofrido pela apelante não ocorreu neste circulo de interesses, mas no circulo de interesses protegidos com a tipificação do crime de burla, previsto no art.º 217.º, n.º 1, do C. Penal.
Este sim, como resulta da respetiva previsão legal - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa – é que se destina a proteger a vitima contra a ação do autor do crime, como em concreto aconteceu no caso dos autos, com a condenação do autor do crime a ressarcir os prejuízos da apelante, como acima referimos na segunda questão prévia da apelação.
No mesmo sentido, ainda, de inexistência de nexo de causalidade, a lição do Prof. Pessoa Jorge[8] ao afirmar, na sua conceção da teoria da causalidade adequada que “não basta que o dano não se tivesse provavelmente dado se não fosse a lesão. É necessário uma ligação positiva entre esta e aquela ligação, que se encontra na previsibilidade do dano em face da lesão”.
Da omissão da Exm.ª Notária seria previsível que a procuração tivesse sido emitida sem a emissão de vontade ou sem completo esclarecimento da outorgante sobre o fim e efeitos a que se destinava, com repercussões sobre a validade do ato com base nela praticado, mas nunca que a mesma fosse instrumento de crime de burla, que conduzisse a apelante a entregar a quantia referida nos autos.
E à mesma conclusão aportamos através da denominada teoria da esfera de proteção da norma[9], ou teoria do fim tutelado pela norma legal infringida, segundo a qual, para que exista nexo de causalidade entre a violação da norma e determinado resultado danoso, necessário é que esse resultado seja um daqueles que a norma violada se destinava, precisamente, a evitar.
Como escreve a Prof.ª Teresa Pizarro Beleza[10] “…só faz sentido responsabilizar, em termos de imputação objetiva, uma pessoa por um resultado, quando exista uma relação direta entre o dever violado – admitindo que estamos perante um caso de negligência… e esse resultado”.
Tal não acontece também pois, como já referimos, a norma que determina a sindicância da procuração tinha apenas em vista corroborar a interpretação da vontade da outorgante, que teria sido feita pelo notário que a lavrou, destinando-se a assegurar a correspondência da vontade real do outorgante do mandato (1.º) e a validade do ato em que entra a procuração (2.º) e não a evitar que a mesma fosse utilizada na execução de um crime de burla.
O ato em que foi utilizada a procuração sempre seria inválido e a declaração de vontade da outorgante sempre inexistiria porque a procuração, pura e simplesmente, era falsa.
Assim, mesmo a este título, nenhum pedido de indemnização poderia ser formulado contra a 2.ª R porque da sua ação não decorreram quaisquer danos.
É, aliás, a inexistência de uma relação de causalidade adequada entre os danos sofridos pela apelante e a ação/omissão da 2.ª R e de uma relação de concausalidade entre esta ação e a ação do autor do crime de burla para o resultado danoso, que permite compreender a dedução e a procedência de pedido cível no processo-crime, onde o arguido foi condenado a entregar à apelante “…a titulo de danos patrimoniais a quantia global de € 209.967,26 a que acresce o pagamento das quantias devidas a título de juro anula sobre o capital mutuado de 4% que entretanto se venham a vencer por conta do empréstimo contraído de € 50.000,00 até ao seu integral e definitivo pagamento, a liquidar em execução de sentença, e, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 15.000,00. Sobre as quantias referidas acrescem juros à taxa legal, sendo contados a partir da notificação do demandado, quanto aos danos patrimoniais e a partir desta data quanto aos danos não patrimoniais”, ou seja, grosso modo, a mesma quantia peticionada nesta ação, acrescida de indemnização por danos não patrimoniais.
De fato, a haver concausalidade, sempre o pedido cível no processo-crime poderia ser formulado também contra a 2.ª R, em observância do princípio da adesão, consagrado nos art.º 71.º e 73.º do C. P. Penal, que tal permitiria, pois, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14-03-2013[11] “ A lei não exige que os responsáveis civis tenham, necessariamente, a posição de arguidos no processo. De facto, o n.º 1 do art.º 73.º, do CPP admite expressamente a intervenção de pessoas com responsabilidade meramente civil, quer porque o pedido foi deduzido contra elas, quer porque a sua intervenção foi provocada através de incidente de intervenção principal provocada (como é entendimento largamente maioritário) ou da sua própria intervenção espontânea”.
Inversamente, a existir concausalidade, também o pedido desta ação poderia ter sido formulado contra o autor do crime, como dispõe o art.º 72.º, n.º 1, al. f), do C. P. Penal.
Tal não aconteceu no caso sub judice, o que se nos afigura processualmente correto porque a causa de pedir do pedido cível deduzido no processo-crime, grosso modo, constituída pelo crime e seu resultado danoso, é diferente da causa de pedir nesta ação, grosso modo, constituída pela conduta omissiva da 2.ª R.
A apelada formulou pedidos de indemnização referentes ao mesmo resultado danoso, por causas de pedir diversas, obteve decisão favorável no processo-crime e não poderá deixar de decair na presente ação, atenta a inexistência de nexo de causalidade entre a conduta da apelada 2.ª R e os danos sofridos, relativamente aos quais, formalmente, se encontra ressarcida.
Improcede, pois, esta questão.
V. Quanto à quarta questão, a saber, se a culpa da 2.ª R se presume por a atuação do notário não poder deixar de ser vista como a prestação de um serviço mediante o pagamento de um preço-responsabilidade contratual.
Com a formulação desta questão, como resulta do art.º 64.º do corpo das alegações, pretende a apelante que ao ato notarial em causa nos autos seja aplicável o art.º 799.º, n.º 1, do C. Civil, o qual dispõe que “Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”.
A questão apresenta, desde logo, duas incongruências, sendo uma em relação à sentença e outra em relação a si própria, aos termos em que é formulada.
A primeira é que também a sentença se estruturou no pressuposto de que a responsabilidade relativa a atos notariais se situa no domínio da responsabilidade contratual, como resulta do segmento onde expressamente se declara que “Em situações como a dos autos, em que a atuação do notário se funda num acordo entre as partes no sentido de o notário prestar um serviço da sua competência, mediante um preço, estamos perante responsabilidade contratual”.
Encontramos, pois, alguma dificuldade em apreender o sentido da impugnação da sentença nesta matéria.
A segunda, esta relativa aos próprios termos da questão, é que a apelante depois de no art.º 64.º do corpo das alegações expender que “…presume-se que a R. é culpada pelo defeito do serviço…”, estende essa presunção de culpa ao resultado danoso do crime de burla, como se infere da conclusão X), onde declara que “…com a realização daquele ato que a Ré não impediu e que devia ter impedido, a Autora entregou a um vigarista a quantia de € 200.000,00 a título de mútuo…”.
Ora, dúvidas não haverá de que esta entrega foi induzida por ato doloso do autor do crime e não por ato negligente da apelada, ainda que em relação ao seu ato notarial seja aplicável a presunção de culpa no incumprimento, estabelecida pelo art.º 799.º, n.º 1, do C. Civil.
De fato, esta presunção de culpa e o correspondente dever da sua elisão, por parte do notário, só poderá funcionar em relação à prestação a que se obrigou e não em relação à ocorrência do crime que, dentro da sua função, não tinha o dever de evitar, para além do dever que assiste a qualquer outro cidadão que preste um qualquer outro serviço público, pelo que se nos afigura desprovida de enquadramento jurídico a afirmação subsequente da apelante, contida na conclusão Z) das alegações, no sentido de que “…não fora a negligência da Ré, a Autora teria evitado a desvantagem do prejuízo reclamado…”.
A natureza jurídica da prestação do notário, relativamente a um ato notarial como o dos autos, podendo ser genericamente definida como um “serviço”, nos termos em que este é definido no art.º 1154.º do C. Civil, relativo ao contrato de prestação de serviço, consistente em proporcionar a outrem “… certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição…”, deve ser procurada no quadro legal que o cria, define e regula.
A criação do ato notarial remonta a tempos históricos fora do alcance desta nossa decisão, mas podemos aceitar que, tal como o conhecemos de data mais recente, o ato notarial se apresenta como um ato de serviço publico, caraterística que ainda se mantém.
De fato, o notário é um jurista, simultaneamente, um oficial público e um profissional liberal, a cujos escritos é conferida fé pública e a sua função notarial consiste, essencialmente, em redigir instrumentos públicos (art.ºs 1.º e 4.º do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Dec. Lei n.º 26/2004, de 4 fevereiro).
A sua faceta de profissional liberal é caraterizada, essencialmente, pela circunstância de a prestação do seu serviço ser feita em nome próprio e mediante livre escolha dos interessados, uma vez que a independência e a imparcialidade da função, além de próprias de muitos outros “oficiais públicos”, se encontram fortemente balizadas pela tipicidade dos seus serviços e o exercício em nome próprio, atenta a apertada regulação, não passa de uma singularidade (art.º 1.º, n.º 2 e 10.º do Estatuto do Notariado).
No exercício da sua função, o notário está sujeito a fiscalização e a ação disciplinar por um órgão da administração direta do Estado, o Ministério da Justiça, e por um órgão de natureza mista, corporativa porque organizativa do conjunto dos notários, e pública porque exerce poderes de jus imperii delgados pelo Estado a quem inicialmente pertenciam, a Ordem dos Notários (art.ºs 3.º e 57.º a 60.º do Estatuto do Notariado e art.º 1.º, 3.º, 35.º a 40.º e 41.º a 51.º do Estatuto da Ordem dos Notários, aprovado pelo Dec. Lei n.º 27/2004, de 4 de Fevereiro).
Os honorários devidos pela prestação de atos notariais encontram-se fixados em tabela aprovada pelo Ministério da Justiça, sem prejuízo de, em alguns casos, essa tabela permitir ao notário uma margem de liberdade na sua fixação (art.º 17.º do Estatuto do Notariado).
O acesso à profissão de notário é feito através de concurso público para atribuição do título de notário (art.ºs 25.º a 33.º do Estatuto do Notariado), seguido de concurso para atribuição de licença para instalação de cartório notarial (art.ºs 34.º a 36.º do mesmo Estatuto), ambos organizados por um órgão de natureza pública, o Conselho do Notariado (art.º 53.º, n.º 1, als. a) e b), do mesmo Estatuto).
O início de funções pelo notário é precedido de um ato público solene, a tomada de posse, próprio dos oficiais públicos e feito à semelhança destes (art.º 38.º, n.º 1, do mesmo Estatuto), e a cessação da sua atividade ocorre nas situações tipificadas na lei (art.º 41.º do Estatuto do notariado).
Por último, como dispõe o art.º 10.º do Estatuto do Notariado, o notário exerce as suas funções sob a sua responsabilidade, e como dispõe o art.º 184.º do Código do Notariado, os funcionários notariais respondem pelos danos causados, sem que um e outro definam a natureza desta responsabilidade e sem que afastem, como não podiam afastar, a ampla responsabilidade do Estado pela multiplicidade de atos que lhe cabem na definição, exercício e fiscalização dessa função.
Sem nos alongarmos mais nesta matéria, atento o quadro legal que acabámos de descrever, que define o exercício da atividade do notário, podemos dizer, em jeito de síntese, que se trata de uma atividade que, como muitas, vive de jus imperii e da fé pública do Estado, que por este lhe são delegadas, que constituem a sua essência e sem as quais, muito provavelmente, não existiria.
Temos, pois, algumas dúvidas em afirmar que a relação entre o notário e o cidadão que solicita a prática de um ato notarial, como o dos autos, se configura como um mero contrato, nomeadamente, para efeitos de aplicação a essa relação da presunção de culpa estabelecida no art.º 799.º, n.º 1, do C. Civil.
Não obstante, o desiderato prosseguido pela apelante ao suscitar esta questão foi por nós atingido por outra via, na apreciação da segunda questão da apelação, relativa à negligência na prática do ato notarial, pelo que a primeira incongruência acima apontada, de impugnação de uma sentença, quando com ela se está de acordo na parte impugnada, se encontra solucionada.
Resta-nos a segunda incongruência, consistente na invocação da presunção de culpa estabelecida pelo art.º 799.º, n.º 1, do C. Civil, relativamente à prestação do serviço notarial, com a pretensão de, em seguida, a alargar ao resultado danoso do crime de burla, mas esta encontra-se também solucionada na apreciação da terceira questão da apelação, relativa à inexistência de nexo de causalidade entre o ato notarial e os danos sofridos pela apelante, como vítima do crime de burla.
A questão da eventual natureza contratual da responsabilidade do notário por atos das suas funções, permanecendo interessante do ponto de vista académico e científico do direito, encontra-se, todavia, prejudicada nesta apelação pela solução dada às questões anteriores, pelo que, nos termos do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil, não temos que sobre ela proferir decisão.
Por todo o exposto, a apelação não pode deixar de improceder.
C) EM CONCLUSÃO:
1. A gravação deficiente da prova pessoal é suscetível de configurar uma nulidade secundária, quando possa influir no exame ou na decisão da causa, só podendo ser invocada pelo interessado na impugnação da decisão em matéria de fato e devendo ser arguida no prazo geral de dez dias, a contar do seu conhecimento ou da possibilidade desse conhecimento, agindo o interessado com a devida diligência.
2. Não configura essa nulidade o fato de as cópias suporte da gravação se não encontrarem em condições de audição, encontrando-se audíveis os originais, tendo estes sido facultados à parte, a qual, teve a possibilidade de os ouvir para efeitos de impugnação da decisão em matéria de fato.
3. As afirmações e conceitos de direito e a matéria conclusiva são insuscetíveis de prova direta, nomeadamente através de depoimento em que a testemunha se pronuncia sobre essas matérias de um ponto de vista técnico, da profissão de notário, segundo o quadro legal de exercício e as legis artis da profissão.
4. Constitui ação negligente a conduta de notária que, ao lavrar escritura pública, para a qual lhe foi presente procuração com o consentimento de cônjuge previsto nos art.ºs 1682.º-A, n.º 1, al. a) e 1684.º, do C. Civil, não atentou em que a mesma se apresentava como lavrada por trabalhador notarial e não pelo próprio notário, aceitando-a para o ato.
5. Tendo essa omissão ocorrido num contexto em que estava preparada uma escritura de compra e venda de seis frações de um imóvel e em que, à última hora, já no próprio ato, as partes outorgantes mudaram a sua vontade negocial, propondo-se celebrar, nesse mesmo momento, uma escritura de mútuo com a hipoteca das frações, em que a procuração foi entregue no próprio ato, agindo os outorgantes a um ritmo próprio do crime de burla que estava a ser praticado e que eles próprios transportaram para o cartório notarial, com a premência do negócio, o interesse, o enrolamento de circunstâncias, a encenação e a emoção, este conjunto de circunstâncias determinou à notária um esforço acrescido na preparação do novo ato, com o qual não contava, e diminuiu e obnubilou o seu poder de observação e análise do instrumento procuração, que era falsa, assumindo a sua conduta a modalidade de negligência inconsciente, prevista no art.º 15.º, al. b), do C. Penal.
6. Não existe nexo de causalidade entre a conduta da notária e os danos do mutuante, correspondentes à quantia que entregou ao mutuário/autor do crime de burla, uma vez que a norma que impõe ao notário a análise da procuração se destina a proteger os interesses dos intervenientes no ato, na perspetiva da emissão de vontade pelo outorgante do mandato contido na procuração, e não a evitar o resultado danoso de um crime de burla, sendo certo que o dano sofrido pelo mutuante, vitima desse crime, não ocorreu no circulo de interesses da “…disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”, a que se reporta o art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil, mas no circulo de interesses protegidos com a tipificação do crime de burla, previsto no art.º 217.º, n.º 1, do C. Penal.
3. DECISÃO:
Nos termos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida
Custas pela apelante.
[1]In dgsi.pt. (Relator: Leopoldo Soares). [2]O acórdão tem a data de 15/10/2014, tendo transitado em julgado em 16/1/2015. A sentença destes autos foi proferida em 15/10/2014 e o encerramento da discussão ocorreu em 8/9/2014. [3]In dgsi.pt (Relator: Vaz Gomes). [4]Esta atividade é mais complexa que uma simples prestação contratual, como mais adiante veremos. [5]Direito das Obrigações, 2.º volume, 1994, pág. 344. [6]Código de Processo Civil Anotado, 1982, I Vol., págs. 547-548, citando também os Profs. Inocêncio Galvão Teles e Manuel de Andrade. [7]Das Obrigações em Geral, I VOL., 4.ª ed., pág. 810, 1.º §. [8]Lições do Direito das Obrigações 1975-1976, Edição da Associação Académica, FDL, pág. 593. [9]Prof. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, aafdl, 1996, 2.º volume, pág. 155, citando Roxin e Jescheck. [10](Ob. e loc. Cit.) [11] In dgsi.pt (Relator: Carlos Benido).