RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
FUTEBOLISTA AMADOR
Sumário

1. No n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, segundo o qual “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”, estabelece-se a inversão do ónus da prova (uma presunção de culpa na produção dos danos causados por alguém no exercício de uma atividade perigosa).
2. O legislador parte do princípio de que, dadas as circunstâncias do caso, o lesante deve ser responsabilizado pelas consequências resultantes do exercício dessa actividade, permitindo-lhe, contudo, que possa ilidir essa presunção, mostrando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos.
3. Uma actividade deve ser considerada perigosa, para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, quando, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tenha ínsita, ou envolva, uma probabilidade de causar mais danos do que a verificada na generalidade das restantes actividades.
4. Ou, dito doutro modo: será actividade perigosa aquela que, face às circunstâncias envolventes, implica para outrem uma situação de perigo agravado de dano face à normalidade das coisas, pelo que a sua perigosidade concreta deve ser apreciada caso a caso, de acordo as referidas circunstâncias.
5. Assim, para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do CC, a actividade há-de ser perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados. Mas não pode considerar-se perigosa apenas porque é susceptível de causar lesões graves, uma vez que isso pode suceder, em maior ou menor grau, em qualquer actividade humana, razão pela qual deve ser aferida a priori e não em função dos resultados danosos que se venham a verificar, embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da atividade, ou risco dessa atividade.
6. Mas uma actividade não pode ser considerada perigosa, para os efeitos em causa, pelo simples facto de, com frequência, poder causar danos graves. É ainda necessário que a perigosidade seja intrínseca à própria atividade, quer pela sua própria natureza, quer pelos meios utilizados no seu exercício.
7. O futebol, em princípio, não se reveste de uma especial perigosidade, quer pela sua própria natureza (embora haja frequentes lesões), quer porque não são utilizados meios em si especialmente perigosos.
8. Por isso, deve considerar-se que, para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, a prática do futebol não é uma actividade perigosa.
9. Considerar-se que um jogo de futebol é uma actividade perigosa para este efeito, equivaleria a aceitar-se a responsabilidade civil objectiva, pois o Clube não tem a mínima hipótese de ilidir a presunção de culpa, sendo certo que há situações que sendo consideradas actividades perigosas, o lesante pode, com maior ou menor dificuldade, ilidir a presunção.
10. O jogador lesado num desafio de futebol sabia, ou devia saber, que, ao aceitar participar no jogo corria o risco de vir a sofrer alguma lesão (de maior ou menor gravidade), assumindo assim, voluntariamente, esse risco, e o consentimento do lesado (anterior à lesão) constitui causa justificativa desse facto nos termos do artigo 341.º do C. Civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I-Relatório:


FM intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra Companhia de Seguros “X” e “Grupo Desportivo”…, pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe:

1). As despesas médicas que efectuou no montante de 250,76 euros;
2). As despesas em deslocações no montante de 243,50 euros;
3). As despesas de estadia no montante de 85,00 euros;
4).O valor das obras efectuadas na adaptação da casa às necessidades de mobilidade do Autor no montante de 849,95euros;
5).Uma indemnização pelas dores sofridas pelo Autor em montante não inferior a 50.000,00 euros;
6).Uma indemnização pelos danos psicológicos sofridos pelo Autor por não conseguir concluir o curso de valor não inferior a 25 000,00 euros;
7).Uma indemnização pelos valores que o Autor deixou de auferir desde a data do acidente até à presente data, no montante não inferior a 10.000,00 euros;
8).Uma renda vitalícia em montante nunca inferior a 1.000,00 euros mensais;
9).Uma indemnização ao Autor a título de incapacidade de ganho futuro, em valor não inferior a 528 000,00 euros;
10). Os juros de mora vencidos até integral e efectivo pagamento, desde a citação, sobre todas as quantias ora reclamadas.

O Autor fundamentou estes pedidos nos danos resultantes de um acidente (ferimentos graves) ocorrido no decurso de um jogo de futebol em que participava na qualidade de jogador ao serviço do segundo Réu, e na cobertura parcial desses danos por um contrato de seguro obrigatório celebrado com a primeira Ré (seguradora).

A 1ª Ré contestou, por impugnação, invocando ainda que o limite do capital seguro era de 26.000,00 euros em caso de morte ou invalidez permanente, e de 4650,00 euros no que respeita a despesas de tratamentos, sendo que este último valor já foi pago ao hospital.

O 2º Réu contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção alegou que deviam ser chamadas a intervir….

Por impugnação alegou, além do mais que o autor era um atleta amador (embora federado), estando inscrito na Associação de Futebol de Braga (AFB) e na Federação Portuguesa de Futebol (FPF)

O ISS, IP/Centro Nacional de Pensões veio reclamar o reembolso das prestações pagas ao autor a título de pensão de invalidez, no valor de 4.194,68 euros, acrescida do valor correspondente às prestações pagas a título de pensão de invalidez na pendência da acção, e respectivos juros de mora.

Oportunamente foi admitida intervenção principal de….

Foi realizada audiência preliminar em 19/2/2013, tendo os chamados sido absolvidos da instância, com o fundamento de que em relação a eles não existia causa de pedir (fls. 719). Desse despacho não foi interposto recurso.

Procedeu-se audiência de julgamento de acordo com o legal formalismo.

Seguidamente foi proferida sentença que se transcreve na parte dispositiva:
«Em face do exposto julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a Ré “X” a pagar a pagar ao Autor a quantia de 27 000,00 euros, acrescida de juros de mora desde a data da citação :
b) Condenar o Réu Grupo Desportivo.. a pagar a ao Autor a quantia correspondente às despesas médicas que efectuou no montante de € 250,76 , às despesas em deslocações no montante de € 243,50 , às despesas de estadia no montante de € 85,00, ao valor das obras efectuadas na adaptação da casa às necessidades de mobilidade do Autor no montante de € 849,95 ;
c) Condenar o Réu Grupo Desportivo…. a pagar ao Autor uma indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de 55 000,00 euros
d) Condenar o Réu Grupo Desportivo… a pagar ao Autor uma indemnização no valor de 412.800,00 euros pela incapacidade de ganho futura;
e) Condenar o Réu Grupo Desportivo a pagar ao ISS, IP/Centro Nacional de Pensões a quantia de 4.194,68 euros, acrescida do valor correspondente às prestações pagas a título de pensão de invalidez na pendência da acção
f) Condenar o Réu Grupo Desportivo…. a pagar ao Autor os juros de mora vencidos até integral e efectivo pagamento sobre as quantias referidas em b), d) e e) ,desde a citação;
g) Absolver a ré “X” e o réu Grupo Desportivo… do demais peticionado».

Inconformados apelaram ambos os RR, formulando as conclusões que se transcrevem:

Da Seguradora:
1. A sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação de facto nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 615.°, n.° 1, alínea b) e 607.°, n.° 4, ambos do CPC.
2. O Tribunal não procedeu a uma análise crítica das provas produzidas em julgamento, da respectiva credibilidade e alcance, nos termos do artigo 607.°, n.° 4, do CPC.
3. Elencar a matéria de facto provada sem proceder a uma análise crítica da prova equivale a não especificar os fundamentos de facto da decisão.
4. Deve a douta sentença recorrida ser nesta parte revogada e substituída por douto acórdão que declare a respectiva nulidade, com as legais consequências.
5. Salvo melhor opinião a sentença recorrida padece de contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615 °, n.° 1, alínea c), do CPC.
6. Ficou dado corno assente em despacho saneador, concretamente no ponto H) dos factos assentes, que o capital seguro era de € 26.000,00 (vinte e seis mil euros).
7. Não obstante, o Tribunal condenou a ora Recorrente no pagamento de € 27.000,00 (vinte e sete mil euros).
8. A decisão encontra-se, por isso, em clara contradição com o respectivo fundamento de facto.
9. Deve a douta sentença ser revogada, na parte ora em crise, e substituída por douto acórdão que declare a respectiva nulidade, com as legais consequências.
10. De acordo com o preceituado no artigo 49.°, n.° 1 da Lei do Contrato de Seguro o capital seguro representa o valor máximo da prestarão a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro.
11. Nos termos do artigo 128.° do mesmo diploma a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro
12. Ao condenar a ora recorrente a pagar um montante superior ao capital seguro dado como assente, a douta sentença recorrida violou o disposto nestas duas normas.
13. A sentença deve ser revogada e substituída por acórdão que reduza a condenação ao limite do capital seguro.

Do Grupo Desportivo…
1) A Sentença recorrida é nula por falta de fundamentação de facto e por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto nos artigos. 607°, n°4 e 615e, N°1, als. b), c) e d).
2) - Não deveria ser responsabilizado o Apelante da maneira como foi, uma vez que, atentas as condições em que ocorreu o evento e a sua especial casualidade, não se inferiria tal desfecho no douto aresto recorrido, uma vez que não se verificou nem alegada foi qualquer acção ou omissão que o Apelante pudesse ter promovido ou efectuado para prevenir o acidente a que se reportam os autos, certo sendo que o evento danoso ocorreu por motivo fortuito, dentro da dinâmica de um desafio de futebol e dentro das suas regras peculiares, não resultando até dos autos que tenha sido infringida qualquer regra desportiva.
3) -A Meritíssima Juíza a quo, no seu douto aresto, esquecendo-se do que foi provado nos autos, vai muito mais além e afirma que o Apelante não empregou todas as diligências exigidas para prevenir a produção do evento danoso e que este evento se trata de uma actividade perigosa, mas não explica como é que o Apelante poderia atuar perante um caso destes.
4) - Obviamente que, no caso em análise, o Apelante não causou danos a quem quer que fosse, designadamente ao Autor, e que, para evitá-lo, deveria ter tomado outra atitude ou empregado algumas providências para o prevenir, pelo que o Tribunal recorrido andou mal quando extrapolou da sua competência e foi para além do alegado no petitório, onde nem se qualifica a fonte de responsabilidade que imputada ao Apelante, e demais peças processuais, ao dar a volta e afirmar que o Apelante violou ilicitamente o direito do A. pelo que terá de indemnizá-lo pelos danos resultantes da violação, quando é certo que estava vinculado aos factos articulados pelas partes.
5) - Entende o aqui Recorrente que não está em causa qualquer actividade perigosa, tratando-se de um risco próprio da actividade desportiva que, nos moldes em que foi descrito o evento, é de recorte muito raro e estatisticamente improvável, sendo que o Autor ofereceu o corpo à bola, expondo-se ao impacto que sofreu de forma que, ele próprio incorreu voluntariamente nos riscos relacionados com o próprio jogo, facto de que teve perfeita consciência.
6) - É óbvio que a Sentença é nula por falta de fundamentação de facto e por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto nos arts. 607°, n°4 e 615a, n°1, a/s. b), c) e d).
7) -Deveria antes o Tribunal a quo cingir-se ao que efectivamente se lhe colocou para decidir, que foi justamente um caso que tinha a ver com um contrato de seguro e se este havia sido cumprido, por um lado e, por outro, se tal contrato era suficiente para indemnizar o lesado, pois estamos perante um caso de manifesta responsabilidade civil contratual.
8) - Entende, por isso, o aqui Recorrente que, tendo sido chamada à demanda a Associação de Futebol… e, caso o Autor tivesse invocado todos os factos pertinentes para a sua responsabilização, deveria ter sido esta a condenada para suprir o que ia para além do montante segurado para a Ré “X”.
9) - O Tribunal não procedeu a uma análise crítica das provas produzidas em julgamento, fazendo um enquadramento dos factos no direito no mínimo curioso, quando o Tribunal recorrido transforma uma responsabilidade civil contratual, que é justamente o caso dos autos, numa responsabilidade civil emergente de factos ilícitos.
10) - Deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare a respectiva nulidade, uma vez que não se encontra na douta sentença recorrida qualquer fundamento de direito que justifique a decisão tomada de condenar o Réu, ora Recorrente, no pagamento ao Autor das indemnizações acima referidas.
11) - De resto, com o devido respeito - que é muito -, afigura-se-nos que a Sra. Juíza a quo, proferindo o douto Aresto de que ora se recorre, embora não pugnando pela prossecução nua e crua do princípio dispositivo (o princípio individualístico do juiz passivo, no dizer do Prof. Dr. Pessoa Vaz, in Atendibilidade de Factos Não Alegados), não curou de saber adequadamente de factos que emergem dos autos, de interesse público e cujo conhecimento não podia ignorar, tendo a função inquisitorial do Juiz ido para além do aconselhável, pois estava vinculado aos factos articulados pelas partes.
12° - O douto aresto recorrido violou, outrossim, o disposto no Art. 664° CPC (o que a douta sentença faz referência na fundamentação de direito e que, como é consabido, é da legislação anterior), e nos Arts. 483°, N°1 e 493°, N°2, ambos do Código Civil, deixando de apreciar factos instrumentais evidenciados nos autos por documentos e testemunhas, pelo que a douta Sentença em crise não se acha adequadamente fundamentada.
13- Como quer que seja, uma vez que a douta decisão está em manifesta oposição com os fundamentos invocados, a sentença proferida é nula nos termos do Art. 607°, N°s 3, 4 e 5 e das Alíneas b), c) e d) do N° 1 do Art. 615°, ambos do C.P.C., não podendo produzir qualquer efeito, o que levará à absolvição do Apelante do pedido.
14- De resto, ao julgar a acção como o fez, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do direito à factualidade apurada, violando, entre outros, o disposto nos Artigos 5° e 413°, do C.P.C.

O recorrido, com as contra-alegações, juntou também conclusões:

1. O Recorrido pugna pela improcedência do recurso interposto pelo ora Recorrente.
2. Na verdade, a Douta sentença encontra-se criteriosamente e coerentemente sustentada, não merecendo qualquer reparo a sua fundamentação, a qual se dá integralmente como reproduzida e se subscreve.
Posto que,
3. O Apelante não impugnou a matéria de facto e que se encontra assente, da qual se salienta:
- o Autor foi vítima de um acidente desportivo que ocorreu durante um jogo de futebol em que o Autor jogava como membro da equipa e de jogador de futebol do Clube de Futebol do Grupo Desportivo… (vide ponto 1º a 3º da fundamentação de facto), ou seja, por conta, interesse e risco desse clube.
- durante o jogo e no decorrer de um lance de bola de outro jogador, o Autor apanhou em cheio com a bola na face (vide ponto 4º da fundamentação de facto).
- por apólice número 0001468730 foi transferida para a 1ª Ré a responsabilidade relativamente ao Autor com as coberturas constantes nas condições gerais e particulares da apólice (vide ponto nº 8 e 9º da fundamentação de facto).
4. Em relação à matéria de facto, o Meritíssimo Juiz tem o poder de conhecer os factos articulados pelas partes e ainda os constantes no nº 2 do artº 5º do NCPC.
5. O tribunal “a quo” não está vinculado à qualificação jurídica efetuada pelas partes, nos termos do artº 664º do C. P. C., como nos termos do artº 607º nº 3 e artº 5º nº 3 do NCPC.
6. Cotejando os factos e aplicando o direito, bem andou o tribunal recorrido ao entender que, no caso em concreto, em relação ao 2ª Réu, estamos perante um caso de responsabilidade civil extracontratual prevista nos artsº 483º nº 1 e 493º nº 2 do C. C..
7. Ou seja, a obrigação do ora Apelante, de indemnizar o Autor, assenta na responsabilidade civil pela prática de facto ilícito, prevista nessas disposições legais, em virtude do evento danoso ter ocorrido no âmbito da atividade perigosa desenvolvida pelo clube onde o Autor se encontrava a jogar futebol por conta, risco e interesse daquele.
8. Algo completamente diferente resulta da responsabilidade contratual da 1ª Ré, derivada do contrato de seguro de acidentes pessoais, peticionado ao abrigo do qual os danos do Autor estavam parcialmente cobertos, porque o valor do capital seguro se encontrava limitado (vide artº 8º e 9º da fundamentação da matéria de facto), o que implicou a sua demanda e respetiva condenação nos valores do capital seguro.
9. O Apelante veio também pôr em causa que a atividade desenvolvida – o futebol - pelo 2º Réu através dos seus jogadores tenha natureza perigosa e por via dessa circunstância se enquadre o caso concreto no artº 493º nº 2 do C. C..
10. Não se afigura que tal entendimento possa merecer acolhimento visto que, essa disposição legal dá-nos a definição de actividade perigosa, ou seja, aquela que: “...por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados...” tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral.
11. Como bem refere a sentença ora recorrida: “Subjacente à disciplina legal está a constatação estribada na realidade que nos rodeia, que o exercício de determinadas actividades comporta em si um risco elevado de lesão para terceiros mesmo que observadas as normas e os regulamentos que a tutelam, e que por esse motivo se justifica o estabelecimento de uma presunção de culpa por parte de quem retira os benefícios dessa actividade.”
12. E: “Resulta evidente que a actividade desenvolvida pelo 1º Réu através dos seus jogadores – futebol – assume natureza perigosa tendo em conta a circunstância de os jogadores se encontrarem num local de dimensões determinadas sem proteção para a cara e cabeça perante um objecto de borracha dura que pode atingir uma força e velocidade letais quando impulsionado pela forma prevista nas regras próprias – o pé.”
13. Nesse sentido, como bem refere a sentença ora recorrida, pronunciaram-se: “os Acórdãos do S. T. J. de 11/9/2012 (rel. Fernandes do Vale) relativamente a jogo de hóquei em patins, e da Relação de Lisboa de 5/11/2013 (rel. Anabela Carvalho) relativamente ao jogo de paintball. (disponíveis em www.dgsi.pt)”.
14. Face ao exposto, o Recorrido não tem dúvidas que o futebol é uma atividade perigosa e portanto enquadrável no artº 493º nº 2, ou seja, nas situações onde a lei estipula uma presunção de culpa do responsável que retira o benefício do exercício dessa atividade perigosa.
15. Por outro lado, o Apelante não logrou demonstrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos (vide artº 493º nº 2 in fine),a fim de ilidir a presunção legal de culpa prevista nesta disposição legal.
16. Seja porque não articulou factos que mostrassem tais providências - logo não fez prova das mesmas – como não afastou o nexo causal entre o dano e o evento, tudo nos termos do artº 493º nº 2, e para efeitos de afastar tal presunção de culpa.
17. O Recorrente, bem ciente da sua responsabilidade em reparar os danos sofridos pelo Autor, não a impugnou em sede de contestação, tendo contestado tão somente os valores peticionados.
18. Acresce que, por decisão proferida em sede de audiência preliminar, em 19/02/3013, a chamada Associação de Futebol de… foi absolvida da instância e o ora Apelante não recorreu de tal decisão, a qual transitou em julgado, nos termos e para os efeitos do artº 510º nº 3 e 677º do anterior C.P.C. em vigor à data.
19. Face ao precedente não se compreende de que modo a sentença ora recorrida deixou de apreciar factos instrumentais evidenciados nos autos por documentos e testemunhas, ou não curou de saber adequadamente de factos que emergem dos autos, de interesse público e cujo conhecimento não podia ignorar e, tão pouco, que a função inquisitorial da Meritíssima Juíza do Tribunal “ a quo” tenha ido para além do aconselhável, em violação dos artsº 483º nº 1 e 493º nº 2 do C. C. e 607º nº 3, 4 e 5, 5º e 413º e das alíneas b), c) e d) do nº 1 do artº 615º, todos do C. P. C..

E termina dizendo que não se verifica qualquer das arguidas nulidades, não merecendo a sentença qualquer reparo.

II-

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

Foram dados como provados os seguintes factos:

No dia 4 de Fevereiro de 2007, pelas 15.03 horas, o Autor foi vítima de um acidente desportivo.

O acidente referido sucedeu no decorrer de um jogo de futebol que o Autor efectuava no campo de futebol da…..

O Autor jogava o jogo em causa na qualidade de membro da equipa e jogador de futebol do Clube de Futebol do Grupo Desportivo…..

Sucedeu que durante o jogo e no decorrer de um lance de bola de outro jogador, o Autor apanhou em cheio com a bola na face.

O Autor foi transferido para o Hospital de Santo António, no Porto.

Onde ficou internado em estado crítico na Unidade de Cuidados Intensivos até dia 27/02/2007.

Pois como consequência directa, necessária e adequada da bolada sofrida, o Autor apresentou Escala de Coma de Glasgow (ECG) 8, com edema cerebral difuso, contusões bifrontais, HSA traumática e fractura temporal.

Por apólice número 0001468730 foi transferida para a primeira Ré a responsabilidade relativamente ao Autor com a seguinte cobertura:
“- para despesas de tratamento até ao limite de € 4.650,00; e
- por morte ou invalidez permanente até ao limite de € 26.000,00.”.

Das Condições Particulares da apólice referida no facto anterior consta o seguinte:
“ 3 – Garantias e Capitais Seguros
3.1 O presente contrato garante em relação a cada Pessoas Seguras, até ao limite dos capitais indicados, as seguintes garantias:


Restantes jogadores de futebol amador



Garantias Capitais
Morte ou Invalidez Permanente€ 26.000,00
Despesas de tratamento e Repatriamento€ 4.650,00


3.3 Ao abrigo da Garantia "Morte ou Invalidez Permanente", o risco de morte será extensivo à denominada morte súbita, entendendo-se como tal, a morte quando ocorrida durante a prática do futebol. quando não provocada directamente por acidente, desde que não resulte de doença ou situação clínica previamente diagnosticada.

3.4 Caso se verifique uma situação de Invalidez Permanente, garantida ao abrigo das garantias "Invalidez Permanente" ou "Morte ou Invalidez Permanente". fica estabelecido que o pagamento da indemnização far-se-á nos seguintes termos:
- Se o grau de invalidez permanente for inferior a 10%, não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização;
- Se o grau de invalidez permanente for igual ou superior a 10% e inferior a 66%, será paga à Pessoa Segura uma indemnização na proporção do respectivo grau de invalidez permanente;
- Se o grau de invalidez permanente for igual ou superior a 66%, será considerado exclusivamente para efeitos de indemnização um grau de invalidez de 100%, sendo pago à Pessoa Segura a totalidade do capital seguro previsto para a respectiva cobertura. ".
10°
Consta das Condições Gerais da apólice referida no facto 8° a seguinte tabela:
TABELA PARA BASE DE CÁLCULO DAS INDEMNIZAÇÕES DEVIDAS POR INVALIDEZ PERMANENTE

A — INVALIDEZ PERMANENTE TOTAL
%.

- Perda total dos dois olhos ou da visão dos dois olhos:    
100
- Perda completa do uso dos dois membros inferiores ou superiores:
100 
- Alienação mental incurável e total, resultante directa e exclusivamente de um acidente:  
100
- Perda completa das duas mãos ou dos dois pés:                        100                                          
- Perda completa de um braço e de uma perna ou de unia mão e de uma perna: 100                                                                                                         
- Perda total de um braço e de um pé ou de uma mão e de um pé: 
100                 
- Hemiplegia ou paraplegia completa:                                         
100
                                                         
B - INVALIDEZ PERMANENTE PARCIAL:
Cabeça
%
- Perda completa dum olho ou redução a metade da visão biocular:   
25   
- Surdez total:                                                                                      60                                                                         
-Surdez completa dum ouvido:                      15                                                       
- Síndroma pós-eomocional dos traumatismos cranianos, sem sinal objectivo:
5
- Epilepsia generalizada pós-traumática, uma ou duas crises convulsivas por mês, com tratamento:                                    50                                                                                
-Anosmia absoluta:                                                                         4                                                                       
-Fractura dos ossos próprios do nariz ou do septo nasal com mal-estar respiratório:  
3
Estenose nasal total unilateral: 4                                                                                                  
- Fractura não consolidada do maxilar inferior:                               20                                         
- Perda total ou quase total dos dentes:
- com possibilidade de prótese: 
10
- sem possibilidade de prótese:                                                          35
- Ablação completa do maxilar inferior:                                         70                                                  
- Perda de substância do crânio interessando as duas tábuas e com um diâmetro máximo:
-superior a 4 cm:                                                                               35
- superior a 2 e igual ou inferior a 4 em:                                            25
- de 2 em: 
15
Membros Superiores e Espáduas
%  
DE                                                                                                 
- Fractura da clavícula com sequela nítida:  
53           
- Rigidez do ombro, pouco acentuada:  
53       
- Rigidez do ombro, projecção para a frente e a abdução não atingindo 90%:
15 11
- Perda completa do movimento do ombro:
30 25                                                      
- Amputação do braço pelo terço superior ou perda completa do uso do braço:           
70 55
- Perda completa do uso de uma mão: 
60 50                                                     
- Fractura não consolidada de um braço:                                            40  30       
- Pseudartrose dos dois ossos do antebraço:                                   25 20           
- Perda completa do uso do movimento do cotovelo:                       20 15             
- Amputação do polegar:
-Perdendo o metacarpo
25 20
- Conservando o metacarpo
20 15
- Amputação do indicador: 
15 10          
- Amputação do médio:
86
- Amputação do anelar:   
86       
- Amputação do dedo mínimo:      
86     
- Perda completa dos movimentos do punho:
12 9                  
- Pseudartrose dum só osso do antebraço:                                        10-8      
- Fractura do primeiro metacarpo com sequelas que determinem incapacidade funcional: 
43                               
-Fractura do 5° metacarpo com sequelas que determinem incapacidade,funcional:   
21
       
Membros Inferiores
%
-Desarticulação dum membro inferior pela articulação coxo-femural ou perda completa do uso de um membro inferior:   60                                    
- Amputação da coxa pelo terço médio:        
50         
- Perda completa do uso de uma perna abaixo da articulação do joelho:                                                                                                    40
-Perda completa do pé:                                                      40                                                                  
- Fractura não consolidada da coxa:      
45      
- Fractura não consolidada duma perna:                                          40       
- Amputação parcial dum pé, compreendendo todos os dedos e uma parte do pé:
25
- Perda completa do movimento da anca:                         
35     
-Perda completa do movimento do joelho:   
25        
-Anquilose completa do tornozelo em posição favorável: 12                                                                                                                                   
- Encurtamento dum membro inferior em:
- 5 cm ou mais:                                                                                   20
-3 a 5 cm:                                                                                           15
-2 a cm:  10
- Amputação do dedo grande do pé com o seu metatarso:           10                       
- Perda completa de qualquer dedo do pé, com exclusão do dedo grande:           
3

Raquis — Tórax
%
- Fractura da coluna vertebral cervical sem lesão medular:      10            10
- Fractura da coluna vertebral dorsal ou lombar: compressão com rigidez raquidiana nítida, sem sinais neurológicos: 
10
- Cervicalgias com rigidez raquidiana nítida:   
5
- Lombalgias com rigidez raquidiana nítida:  
5
- Paraplegia fruste, marcha possível, espasmodicidade dominando a paralisia:  
20
-Algias radiculares com irradiação (forma ligeira):  
2
-Fractura isolada do esterno com sequelas pouco importantes:
3
-Fractura unicostal com sequelas pouco importantes:                        1
-Fracturas múltiplas de costelas com sequelas importantes:
8
-Resíduos dum derrame traumático com sinais radiológicos:
5

Abdómen
%
-Ablação do baço, com sequelas hematológicas, sem manifestações clínicas:                                                                                                 10
-Nefrectomia:                                                                                        20
- Cicatriz abdominal de intervenção cirúrgica com eventração de 10 cm, não operável:
15

NOTA: De acordo com o estipulado no n.° 4 do Artigo 3.° da Condição Especial de Morte ou Invalidez Permanente, quando a lesão da Pessoa Segura não constar da presente tabela e a aplicação de outras regras de desvalorização não tenham sido acordadas. a “X” procederá à determinação da invalidez permanente com base na Tabela Nacional de Incapacidades, considerando para o efeito 75% da incapacidade aí definida".
11º
Ao abrigo da cobertura de despesas com tratamentos do autor, a primeira Ré já liquidou a quantia de 4.650,00€ ao Centro Hospitalar do Porto — EPE, tituladas pela factura n.° 8106415 datada de 31/12/2008, despesas estas que tiveram origem nos tratamentos efectuados ao autor na sequência do sinistro invocado nos autos.
12º
FM é o beneficiário n° 10296456612 do ISS, IP/Centro Nacional de Pensões.
13°
Em 2010.06.23 o referido beneficiário requereu ao ISS, IP/Centro Nacional de Pensões, a pensão de invalidez.
14°
Pelo ISS, 1P/Centro Nacional de Pensões foi-lhe deferida uma pensão de invalidez, com início em 04-02-2010, no valor mensal de € 303, 23.
15°
De 2010.02.04 a 2011.01.31, foram pagos ao Autor pensões de invalidez no valor de € 4.194,68.
16°
Ao tempo do acidente, o Autor era estudante finalista do quarto ano do Curso de Direito da Universidade do Minho.
17°
E começou de imediato a deitar sangue pelo nariz e pelos ouvidos.
18°
O Autor ficou logo inconsciente.
19°
E foi levado de imediato para o Hospital de S. Marcos, em Braga.
20°
Em 27/02/2007 o Autor foi transferido do Hospital de Santo António, no Porto, para o Hospital de S. Marcos, em Braga, onde permaneceu internado até ao dia 17/08/2007.
21°
Durante este ultimo internamento, o Autor teve como intercorrência, pneumonia com insuficiência respiratória.
22°
Em 15/03/2007, o Autor foi admitido no UCIP por quadro choque séptico com disfunção multiorgánica e necessidade de ventilação mecânica, e em 01/04/2007 foi entubado.
23°
Em 23/04/2007 foi observado pela Medicina Física e Reabilitação e apresentava ECG 9, em ventilação espontânea, hemodinamicamente estável, com quadro neuromotor de tetraparesia espástica de predomínio esquerdo e mobilizava espontaneamente os membros inferiores e o membro superior direito.
24°
Quando em 17/05/2007 foi transferido para o Serviço de Medicina Física e Reabilitação do referido Hospital de S. Marcos para iniciar programa de reabilitação funcional, obedecia a ordens simples, não falava, apresentava hipotrofia generalizada e utilizava SNG para se alimentar.
25°
Em 17/08/2007 teve alta para o domicílio ainda com uso de fralda e só conseguia dar pequenos passos e somente com o apoio de outra pessoa.
26°
Em 18/09/2007 foi avaliado pelo CMR Sul e mantinha o quadro que apresentara na data da referida alta, e continuava com uso de fraldas e totalmente dependente para banho, vestuário, utilização de sanita e todas as movimentações, só trocava passos e não subia ou descia escadas.
27°
Apresentava um défice de memória com incapacidade para aprender e recordar, que lhe impediam o funcionamento social e ocupacional.
28°
Apenas podia ingerir alimentos líquidos.
29°
Possuía um discurso não fluente e dificuldades na compreensão verbal e na identificação de objectos.
30°
Manifestava comportamentos de oposição e agressividade.
31°
E o Autor teve que ser submetido a um programa de reabilitação intensivo interdisciplinar e realizou tratamento 6 horas diárias, 6 dias por semana, com Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Psicologia, Dietista, Enfermagem de Reabilitação e Enfermagem.
32°
Ainda apresenta sinais de inibição emocional e ansiedade.
33°
Apresenta dificuldades na resolução de problemas e na habilidade construtiva em geral.
34°
Mantém problemas na leitura e na escrita e na expressão verbal e não automatizou a produção correcta dos fonemas.
35°
E está obrigado a tornar medicação vária para sempre.
36°
Mantém a Epilepsia que contraiu como causa directa, necessária e adequada do embate da bolada e do acidente que a mesma deflagrou.
37°
Com o acidente e com os tratamentos que foi obrigado a fazer por via do mesmo, o Autor sofreu dores, aflições, incómodos e angústias.
38°
A mãe do Autor teve de fazer obras de adaptação da sua residência para o respectivo uso pelo Autor.
39°
Que custaram € 849,95.
40°
Em virtude do acidente que padeceu, o Autor não pode concluir o curso de Direito.
41°
À data do acidente o Autor, nascido em 3/5/1981, estava matriculado no 4° ano da Licenciatura de Direito na Universidade do Minho.
42°
O Autor ficou com uma incapacidade permanente total para o trabalho.
43°
O Autor suportou despesas médicas no montante de € 250,76.
44°
E com deslocações que efectuou para tratamentos no valor de € 243,50.
45°
E suportou despesas de estadia para os tratamentos no valor de € 85.00.
Estes os factos.
Há que aplicar o direito.
É pelas conclusões que se determinam o âmbito e os limites do recurso (art.º 639.º do CPC).
Assim, há que apreciar e decidir:
- as arguidas nulidades;
- se o pedido, em relação à “X”, deve ser reduzido para €26.000,00 (em vez dos 27.000,00);
- se, em relação ao R Grupo Desportivo , se pode considerar que o futebol é uma actividade perigosa para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do C Civil, ou se deve ser condenado a outro título.

III-

1. A R “X” diz ser objecto do seu recurso:
A) Da nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 615.º n.º 1, alínea b) e 607.º, n.º 4, ambos do CPC.

B) Da nulidade da sentença recorrida por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.°, n.º 1, alínea c), do CPC.

C) Da errada aplicação do direito à matéria de facto provada no que tange ao limite do capital seguro e ao montante da condenação da Ré – violação do disposto nos artigos 49.° e 128.° da Lei do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n.° 72/2008).

Vejamos para já as arguidas nulidades:

Nos termos do n.º 4 do artigo 607.º do C.P.Civil, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para sua convicção…

Há falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, quando o juiz não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Todavia, só a falta absoluta de fundamentação e não a motivação deficiente, incompleta ou errada é motivo de nulidade da sentença.

Ora, em relação a cada artigo da BI foi indicada a prova testemunhal e/ou documental respectiva. A grande maioria dos factos foram dados como provados com base em documentos clínicos, que não foram impugnados. Por outro lado, em relação a alguns dos factos dados como provados a ré apenas alegou na PI que desconhecia a sua existência, ou seja, embora impugnados, a ré não os contrariou. Por outro lado alguns factos foram dados como não provados, nomeadamente os que se referem à alegação de que o autor era remunerado pelo Clube, designadamente com prémios de jogo e ajudas de custo.     
                                                                                    
Na sentença, com base nesses factos, foi a ré condenada nos termos referidos, ou seja, tendo em consideração que o montante do seguro estava limitado a 26.000,00 euros (embora com o lapso de escrita que a seguir referiremos).

Não se verifica, pois, a arguida nulidade.

Nos termos do n.º 1, alínea C) do CPC a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

A sentença seria nula nesta parte, uma vez que, considerando que o seguro estava limitado a 26.000,00 euros, a ré foi condenada, sem qualquer justificação, em 27.000,00 euros. Como é óbvio tratou-se de mero lapso de escrita que podia ter sido corrigido por simples despacho do juiz. Mas, como não o foi, terá de ser agora julgada procedente a apelação nesta parte, condenando-se a ré a pagar a quantia de 26.000,00 euros e não 27.000,00. O próprio apelado reconhece que se trata de mero lapso de escrita que podia se rectificado nos termos do artigo 614.º do CPC.

Portanto, a ré será condenada a pagar apenas a quantia de 26.000,00 euros (os aludidos 4.650,00 euros não estão agora em causa).

2. Também o apelante, Grupo Desportivo…, diz que a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação de facto e por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto nos artigos. 607°, n°4 e 615e, n°1, als. b), c) e d) do CPC.

Não se percebe bem se estas questões se referem à falta de fundamentação das respostas à base instrutória ou à própria sentença.

Em qualquer dos casos não tem razão
Nos termos do artigo 615e, n°1, als. b), c) e d), a sentença é nula quando:
b) não se especificam os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
d) o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Em relação à fundamentação sobre a matéria de facto, dá-se aqui por reproduzido o que foi dito em relação à R “X”.
A fundamentação sobre a matéria de facto poderá não ter sido exaustiva, mas o apelante não pede a sua alteração (nem a põe em causa). Todavia, como se disse, só a falta absoluta de fundamentação e não a motivação deficiente, incompleta ou errada é motivo de nulidade da sentença. Ora, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito não existe falta de fundamentação.

Não se verifica, pois, a nulidade prevista na alínea b).

A alínea c) só pode referir-se à sentença. Mas não existe a invocada oposição entre a decisão e os fundamentos. Por um lado foi decidido que o futebol é uma actividade perigosa e, por outro, tendo em consideração os danos sofridos pelo autor, condenou o réu em conformidade.

E não vemos que tenha deixado de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou que tenha conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento. O apelante diz que o Tribunal a quo devia ter-se cingido ao que efectivamente se lhe colocou para decidir, que foi justamente um caso que tinha a ver com um contrato de seguro e se este havia sido cumprido, por um lado e, por outro, se tal contrato era suficiente para indemnizar o lesado, pois estamos perante um caso de manifesta responsabilidade civil contratual.

Em relação ao Clube, o autor alega que o acidente ocorreu no decorrer de um jogo de futebol em que actuava sob as ordens, direcção efectiva e fiscalização do réu, na qualidade de membro da equipa e jogador de futebol. Nada diz, pois, nem podia dizer, quanto ao seguro, relativamente ao 2.º réu. E invocou o seguro, e bem, mas quanto à seguradora.

O apelante, salvo o devido respeito, parece confundir as nulidades da sentença com eventual erro de julgamento.

O tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dos factos dada pelas partes (não está sujeito às alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito), como resulta do preceituado no artigo 664º do anterior C. P. C. e nos artigos 607.º, nº 3, e 5º, nº 3, do NCPC.

IV-

1. Na PI, o autor não caracterizou juridicamente a responsabilidade do réu Grupo Desportivo….
Antes desta acção, o autor já tinha proposta outra, com a mesma finalidade, no tribunal de trabalho de Braga. Mas este foi julgado incompetente em razão da matéria, por decisão transitada em julgado.
O réu defende que estamos perante um caso de responsabilidade contratual.
Na sentença recorrida, o Exmo. juiz entendeu que não se está perante um caso de responsabilidade civil extracontratual nos termos do artigo 483.º do CC, mas sim do exercício de uma actividade perigosa, pelo que seria aplicável o n.º 2 do artigo 493.º, n.º 2, do mesmo código.
Esta disposição normativa está incluída na secção V do Livro II, relativa à responsabilidade civil por actos ilícitos (subsecção I). A subsecção II refere-se à responsabilidade pelo risco.
Os princípios gerais em matéria de responsabilidade civil constam dos artigos 483º e seguintes do C. Civil.
Determina o artigo 483.º, relativo à responsabilidade civil por actos ilícitos:
«1- aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
2- só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei»

São, assim, requisitos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito:

a)  o facto ilícito;
b)  a imputação do facto ao agente;
c)  o dano;
d)  o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Assim, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, compete, em princípio, ao lesado o ónus da prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa, nos termos do disposto pelos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, do C.Civil.
Com efeito, ao contrário da responsabilidade contratual/obrigacional em que a culpa sempre se presume, “ex vi” do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, na responsabilidade delitual ou aquiliana”, a prova da culpa cabe, em princípio, ao lesado. Só não será assim se existir presunção legal de culpa.
Entretanto, estipula o n.º 2 do artigo 493.º: quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

Estabelece-se aqui uma inversão do ónus da prova, (uma presunção de culpa na produção dos danos causados por alguém no exercício de uma atividade perigosa).

Para estes casos, a lei parte do princípio de que, dadas as circunstâncias do caso, o lesante deve ser responsabilizado, havendo presunção de culpa. Mas permite-lhe também que possa ilidir essa presunção, mostrando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos. Isto é, em relação aos danos causados no exercício de uma actividade perigosa, o lesante só poderá exonerar-se da sua responsabilidade perante o lesado, se provar que empregou todos os meios para os prevenir, ou seja, que foi cuidadoso e diligente de acordo com as circunstâncias exigíveis no caso.

2. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 493.º, nº 2, do CC (CC Anotado) não se diz naquele artigoo que deve entender-se por uma actividade perigosa” – e bem, como se disse no ac. do STJ, de 13.10.09 (COL/STJ – 3º/94), uma vez que essa é tarefa da doutrina e da jurisprudência. “Apenas se admite, genericamente, que a perigosidade derive da própria natureza da actividade…ou da natureza dos meios utilizados (tratamentos médicos com raios x, ondas curtas, etc). É matéria, pois, a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias”.
Segundo Almeida Costa[1], deve tratar-se de uma actividade que, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, “tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral”.  
Antunes Varela[2] sustenta igualmente que “o carácter perigoso da actividade (causadora dos danos) pode resultar…ou da própria natureza da actividade (fabrico de explosivos, confecção de peças pirotécnicas, navegação aérea, etc) ou da natureza dos meios utilizados (tratamento médico com ondas curtas ou com raios x, corte de papel com guilhotina mecânica, tratamento dentário com broca, etc.)” ou até da natureza inflamável dos materiais guardados e que exigem certos cuidados.

Como se disse, tem sido objecto de tratamento jurisprudencial e doutrinário o que deve entender-se por actividade perigosa, uma vez que não existe uma definição legal.

Mas, uma actividade deve ser sempre considerada como perigosa, para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do CC, quando, em si mesma, ou pelos meios empregues para a levar a efeito, seja apta para produzir danos.

Ou, dito doutra maneira, é, em princípio, perigosa uma actividade que, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tenha ínsita, ou envolva, uma probabilidade maior de causar danos, do que a verificada nas outras actividades em geral, embora a sua perigosidade concreta deva ser apreciada caso a caso, de acordo as circunstâncias. E ainda: será actividade perigosa aquela que, face às circunstâncias envolventes, implica para outrem uma situação de perigo agravado de dano face a normalidade das coisas.

Portanto, para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do CC, a actividade há-de ser perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados. Mas não pode considerar-se perigosa apenas porque é susceptível de causar lesões graves, uma vez que isso pode suceder, em maior ou menor grau, em qualquer actividade humana.

Há, com efeito, actividades que, pela sua própria natureza e/ou pelos meios utilizados, são susceptíveis de provocar lesões graves em percentagem muito superior à generalidade das restantes e que, por isso, exigem cuidados redobrados. O manuseamento de explosivos, por exemplo, é uma actividade perigosa, pela sua própria natureza, pois são manipuladas substâncias facilmente inflamáveis.

O grau de perigosidade tem de ser apreciado caso a caso, segundo as circunstâncias. Assim, por exemplo, a condução automóvel em geral não é considerada actividade perigosa para os efeitos do nº 2 do artigo 493.º[3] (ver assento 1/80 do STJ), mas já o será quando os veículos são conduzidos em ralis ou na “fórmula 1”. A condução de um tractor numa estrada acarretará menos perigosidade do que quando está a ser utilizado na actividade agrícola.

Uma actividade pode também ser considerada perigosa pela natureza dos meios utilizados. Assim, é considerada perigosa a utilização de uma máquina pesada a executar um trabalho, por exemplo, em grandes aterros ou declives. O trabalho desenvolvido com um caterpillar na abertura de uma auto-estrada em local íngreme é extremamente perigoso, se não se tiver o máximo cuidado. Mas o acórdão do TRP de 29.03.2007 (CJ Ano 2007, 2.º -170) decidiu o seguinte: «o que determina a qualificação de uma atividade perigosa é a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar ou da sua própria natureza, ou da natureza dos meios utilizados. A utilização de uma escavadora na via pública, vedada ao trânsito por motivo de obras e através de sinalização visível e adequada, não integra o exercício de atividade perigosa». Ou seja, segundo este acórdão, uma actividade é considerada (ou não) perigosa conforme as circunstâncias em que é exercida (com o que se concorda). Noutras circunstâncias, a utilização da escavadora seria considerada actividade perigosa. Mas não pode ser considera perigosa apenas porque é susceptível de provocar ferimentos, ainda que graves.

3. Na sentença sob recurso foram citados dois acórdãos, nos quais foi decidido que os danos tinham sido causados no exercício de uma actividade perigosa:
- STJ de 11.09.2012 (Fernandes do Vale)
- TRL de 05.11.2013 (Anabela Carvalho).

No primeiro estava em causa um treino de hóquei em patins com rapazes de e 8 e 9 anos
E foi dado como provado que, no decurso de um treino de hóquei em patins realizado a 07-04-1998 nas instalações do clube 2.º réu, no qual participavam, entre outros, o autor, de 9 anos de idade, e o 1.º réu, de 8 anos, inscrito por este clube como atleta federado, o 1.º réu levantou o seu stick acima da sua cintura e da do autor e embateu com o mesmo no lado esquerdo da cara do autor, no olho esquerdo e respectiva arcada do globo ocular, causando-lhe ferida córneo escleral, com expulsão do conteúdo intra-ocular.

No segundo era um jogo de paintball.

Também o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no acórdão de 30 de Novembro de 2004 (Processo 04A3925), decidiu que “a prática desportiva consistente na circulação de motas de água é actividade perigosa, o que torna aplicável o disposto no artigo 493º, n.º2 do C.Civil”.
O STJ aplicou a presunção de culpa prevista nesta norma, tendo condenado o lesante a pagar uma indemnização ao lesado. Mas considerou-se nesse mesmo acórdão: Atendendo às características das motos de água, de modo particular à sua acentuada potência e rapidez, ao tipo de contacto com a água quando em circulação e à grande mobilidade, trata-se de meio em que os perigos que genericamente a navegação comporta se encontram em grau fortemente elevado; reflexo disto ou não, o certo é ainda o RNR ter disposto a seu respeito de limitações que para as outras ER condicionou menos (arts. 49 e 50) deve considerar-se, como bem qualifica a sentença, como actividade perigosa, pela sua natureza, a prática desportiva consistente na sua circulação, o que torna aplicável o disposto no art. 493-2 CC.

Na parte que agora importa considerar, consta do sumário daquele acórdão do STJ de 11.09.2012 (processo n.º 8937/09.5T2SNT.L1.S1) citado na sentença:

VII - A actividade de prática de patinagem, no circunstancialismo emergente dos autos – tendo em consideração o tamanho desproporcionado dos sticks face à idade infantil dos praticantes, bola pesadíssima e com previsível e eventual impacto mortal, ausência de protecção adequada dos sticks e de uso obrigatório de máscara e/ou capacete protector dos jogadores de campo, tudo em conjugação com a fogosidade, imprudência e emulação típicas daquela idade –, constitui actividade perigosa, nos termos previstos no art. 493.º, n.º 2, do CC.
VIII - Tem o clube 2.º réu de ser considerado responsável, a título subjectivo-culposo ou de responsabilidade delitual/aquiliana, pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor em consequência do evento em causa (arts. 483.º e segs. do CC), uma vez que não provou ter empregue as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir tais danos
E foi tido em consideração neste douto aresto: …tendo em conta o que ficou expendido, entendemos que a actividade de prática de patinagem, no circunstancialismo emergente dos autos, como aconselha a doutrina e a jurisprudência – tendo em consideração o tamanho desproporcionado dos sticks face à idade infantil dos praticantes, bola pesadíssima e com previsível e eventual impacto mortal, ausência de protecção adequada dos sticks e de uso obrigatório de máscara e/ou capacete protector dos jogadores de campo, tudo em conjugação com a fogosidade, imprudência e emulação típicas daquela idade – constitui actividade perigosa.
Daqui parece poder retirar-se, se bem interpretamos o aresto, que numa situação normal de um jogo de hóquei em patins, entre adultos, não seria considerada uma actividade perigosa.
4. De qualquer forma, as questões decididas nestes acórdãos são muito diferentes das que se suscitam no presente recurso. Aqui apenas vem provado que num normal jogo de futebol, entre duas equipas amadoras (mas federadas), um jogador da equipa contrária, deu um pontapé na bola, a qual foi embater na cara do ora autor, com as consequências descritas.
O basquetebol, o futebol e o futsal, entre outros, são desportos que, em princípio, não se revestem de uma especial perigosidade (embora haja frequentes lesões – e até normais, dizemos nós), pois a sua finalidade não é propriamente provocar o contacto entre os jogadores, (embora, como é do conhecimento geral, haja contacto físico frequente entre eles), nem são utilizados meios em si perigosos. A sua finalidade é antes, em cumprimento das regras estatutárias, introduzir a bola na baliza ou no cesto, ao contrário do que acontece com outros desportos que, pela sua própria natureza ou pelos meios utilizados são susceptíveis de provocar danos em quantidade e qualidade superior aos restantes. A título de exemplo parece-nos poder citar-se o BOXE e também o hóquei sobre o gelo em que o contacto físico é constante e fortíssimo.
O futebol é um desporto que envolve alguma violência[4], pois, apesar de não ser essa a sua finalidade, há frequentes contactos físicos entre os jogadores e, não raramente, estes sofrem graves lesões. Todavia, tal como foi decidido no acórdão do STJ de 29.04.2008 (proc. 08A867) a perigosidade a que alude o artigo 493.º, n.º 2, é uma perigosidade intrínseca da atividade exercida quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e não em função dos resultados danosos em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da atividade, ou risco dessa atividade.

Portanto, uma actividade não pode ser considerada perigosa, para os efeitos em causa, pelo simples facto de, com frequência, poder causar danos graves. É ainda necessário que a perigosidade seja intrínseca à própria atividade, quer pela sua própria natureza, quer pelos meios utilizados no seu exercício.

O futebol é jogado em todo o lado e em todas as idades, e as regras são as mesmas, tal como os meios utilizados. A grande diferença está em que a nível federado os interesses a defender são de grau elevadíssimo, o que faz com que muitas vezes se ultrapassem os limites do razoável. A velocidade a que o futebol é jogado causa muitas vezes lesões graves, embora, felizmente, casos como este não sejam frequentes. Mas esse perigo não advém da natureza da actividade em si nem da natureza dos meios utilizados.

O que está em causa é saber se existe qualquer responsabilidade do Clube de futebol num caso em que numa jogada normal, sem violação das regras do jogo ou de qualquer outro evento estranho, um atleta é lesionado por um adversário no decorrer do jogo.

Está fora de questão a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito nos termos do n.º 1 do artigo 483.º do CC, pois, desde logo inexistiria a ilicitude e a culpa imputáveis ao Clube. Também não poderia o réu ser condenado a título de responsabilidade contratual, pois não teria deixado de cumprir qualquer obrigação (art.º 798.º do C. Civil). E também não pode ser responsabilizado pelo risco, uma vez que “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”. (artigo 483.º, n.º 2 do CC).

Mas, a considerar-se que um jogo de futebol é uma actividade perigosa para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º (designadamente nas condições descritas no caso em apreço), tal equivaleria a responsabilidade objectiva (não prevista), pois o Clube não teria a mínima hipótese de ilidir a presunção de culpa. É que ninguém pode ter dúvidas a esse respeito, pois é evidente que o clube nada pode fazer para evitar estas ou semelhantes situações, sendo completamente alheio ao modo como o jogo se desenrola. Mas há casos que são considerados actividade perigosa e o lesante pode, com maior ou menor dificuldade, ilidir a presunção (por exemplo na utilização duma máquina de grandes dimensões em local acidentado).

Por isso, entendemos que, para os efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, o futebol não pode ser considerado actividade perigosa.

5. Cremos, porém, que a actividade desportiva pode ser também vista por um prisma diferente.

O lesado (no caso o autor) sabe, ou deve saber, que, ao aceitar participar no jogo corre o risco de vir a sofrer alguma lesão, assumindo assim, voluntariamente, esse risco.

O consentimento do lesado (anterior à lesão) constitui causa justificativa do facto nos termos do artigo 341.º do C.Cvil.

Como refere ANTUNES VARELA, ob. cit. pág. 451/452, “no caso de certas práticas desportivas mais violentas (…) tem-se entendido que há uma aceitação tácita e recíproca dos riscos de acidentes que esses jogos envolvem”.

Neste sentido também MÁRIO JÚLIO ALMEIDA COSTA (ob. cit. pág. 529: “…A simples participação nas mencionadas actividades envolve, necessariamente, o consentimento do lesado, excluídos os casos de dolo do lesante e de inobservância das regras do jogo. Haverá, portanto, uma efectiva formação e manifestação da vontade, ao invés do que sucede com o consentimento presumido, que é ficcionado em função das circunstâncias concretas e da vontade hipotética do lesado, no quadro de idênticas circunstâncias».

Sobre esta problemática é citado BRANDÃO PROENÇA num estudo acessível na Internet da autoria de ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA (Responsabilidade Civil em Eventos Desportivos) quando afirma:
“A assunção do risco pode ter um âmbito de aplicação mais geral que o consentimento, sendo relevante para os casos de danos sofridos pelos que participam em actividades ou jogos desportivos, ou assistem, como espectadores, a essas manifestações (…).” Este instituto “traduz, essencialmente, a atitude do lesado de se expor conscientemente a um perigo típico ou específico conhecido, sem a isso ser obrigado, mas conservando a esperança de o perigo não se concretizar em dano” (A conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Coimbra, Almedina, 1997, p. 619).

A lesão do autor, embora mais grave do que as que normalmente acontecem, era uma hipótese que não podia ser posta de parte. E ele sabia disso e, apesar de tudo aceitou participar no jogo. E não é pelo facto de a lesão ser superior às que ocorrem frequentemente que se justifica solução diferente, como se disse.

O autor assumiu o risco de sofrer uma lesão, provocada no decorrer de uma jogada normal, quer em consequência de uma falta do adversário, quer, simplesmente, como aconteceu, numa jogada ocasional.

E há que reconhecer que, sendo a actividade desportiva em geral, e o futebol (ou os desportos semelhantes) em particular, susceptíveis de provocar lesões graves, dada a forma viril com que por vezes são disputados, quem a pratica corre um risco elevado de sofrer pequenas lesões e, em casos menos frequentes, lesões graves, como é o caso.

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Por todo o exposto acorda-se no seguinte:

1. Julgar improcedentes as apelações quanto às arguidas nulidades.

2. Julgar as apelações procedentes, quanto aos pedidos e, em consequência:
a) Revoga-se a sentença quanto ao R Grupo Desportivo…. e absolve-se do pedido
b) Em relação à R “X” altera-se a sentença, indo condenada a pagar apenas a quantia de €26.000,00 (em vez de 27.000,00) acrescida de juros de mora desde a data da citação.

Custas pelo autor, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, 09.07.2015


José David Pimentel Marcos
Maria do Rosário Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho.


[1] Direito das Obrigações, 9ª edição, 538.
[2] Das Obrigações em Geral, vol. I. 10ª edição, 595.
[3] Mas existe a responsabilidade pelo risco.
[4] Mas esta violência, em princípio, só se verificará quando são infringidas as regras do jogo.