(Elaborado pela relatora)
I - Quando se tenha em vista a aplicação do disposto no art 490º do CSC, impõe-se proceder à interpretação correctiva do nº 2 do art 481º CSCom, de modo a concluir-se que basta que uma das sociedades em causa tenha conexão espacial com o território nacional, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal.
Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - José .......e Maria ……., instauraram a presente acção declarativa comum com processo ordinário, contra A……., S.A., com sede em Pontevedra, Espanha, e P….. – Conservas e Pesca, S.A., com sede na Zona ……, Lote ….., Cabo da Praia, Praia da Vitoria, pedindo:
a) A declaração da nulidade da oferta de aquisição de acções da sociedade P ......., efectuada por parte da 1.ª R. e bem assim a aquisição dessas mesmas acções, posteriormente operada por escrito particular, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo na conservatória do registo comercial;
b) A declaração da inconstitucionalidade do artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais, por violação expressa dos artigos 13.º e 62.º da CRP.
Para a hipótese de improcedência dos pedidos principais formulados, a título subsidiário, pediram:
c) A declaração de que as acções de que o A. é titular na sociedade P ....... sejam adquiridas pela 1.ª Ré, desde a data de propositura da presente acção, fixando-se o valor de cada acção da indicada sociedade em dinheiro, atendendo a todos os factos expostos e de acordo com avaliação judicial a ser ordenada;
d) A condenação da 1.ª R. a pagar ao A. a quantia a que tiver direito, atenta a participação detida na Ré, quantia que deverá ser acrescida dos juros legais, contados desde a data de propositura da acção, até integral pagamento.
Alegaram, para o efeito, ser o A. dono e legitimo possuidor de 75.000 acções da sociedade “P .......”, que se encontram penhoradas, sendo que as mesmas vieram a ser reduzidas a 6.000 acções, no valor nominal de € 5,00, em virtude da operação de redução e aumento de capital dessa sociedade, da qual o A. não teve conhecimento atempado, e relativamente à qual instaurou uma acção de anulação de deliberações sociais que corre termos pelo Tribunal Judicial da Praia da Vitoria, sob o nº 1078/08.4 TBAGH. Referem que no dia 31/03/2009, a 1ª R., “A ………”, fez publicar o anúncio correspondente ao documento junto como nº 3, informando os interessados dos termos da sua proposta de aquisição de 6.000 acções representativas do capital social da “P .......” ao abrigo do disposto no art 490º do CSCom, pelo preço de € 5,06 por cada acção, sendo que nesse anúncio tal R. não invocou que dispunha de 90% ou mais do capital social da “P .......”, tendo feito apenas constar que a oferta era destinada ao “domínio total do capital social” daquela empresa. A fixação do valor da contrapartida oferecida foi aparentemente “justificada” num relatório elaborado por um Revisor Oficial de Contas, supostamente independente, o qual estaria patente na sede de ambas as sociedades e depositado na respectiva conservatória do registo comercial. O prazo da oferta decorreria entre os dias 30 de Março e 6 de Abril de 2009, tendo ficado referido que os accionistas deveriam enviar as suas intenções de venda para a sede da sociedade oferente (que em lado algum se encontrava referida) mediante carta registada com aviso de recepção. O A. teve conhecimento através da CRCom da existência de uma carta, que lhe terá sido dirigida, datada de 30/03/2009, mas que não recebeu, da qual consta, aí sim, a indicação da sede da 1ª R. e a invocação da sua titularidade de 97,97% do capital social da “P .......”, na qual é apresentada ao A. uma “oferta de aquisição das seis mil acções (…) de que é titular, pelo montante de € 30.370,00 a pagar em numerário e imediatamente”. No dia 08/04/2009, a 1ª R. fez publicar um acto de registo referente a “Aquisição de Acções Tendente ao Domínio Total”, aquisição com a qual o A. não concorda, não aceita e não reconhece como válida, não aceitando ainda a contrapartida oferecida pela 1ª R. para a aquisição das suas acções, motivo pelo qual não as alienou no período determinado no anúncio, entendendo que não se encontram preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 490º do C.S.C para que a oferta acima referida seja válida.
Coloca, no entanto, como questão prévia, a decisão da acção de anulação de deliberações sociais acima referida, pois que era titular de 25% do capital social da “P .......” e viu a sua participação reduzida a 2,03% daquele capital por virtude de deliberações ilegais tomadas numa assembleia geral não convocada com a antecedência legal e na qual não participou, sendo que a ser julgada procedente tal acção será anulada toda a operação que conduziu a redução e ao aumento de capital da “P .......” por parte da 1ª R., motivo pelo qual aquela ficará titular tão só de uma participação de 75% do capital social daquela empresa, caindo por terra o primeiro fundamento para que possa proceder a aquisição das acções pertença do A.
E entendem, em última análise, que a acção terá que ser julgada procedente, porque a 1ª R. não tem sede em Portugal, mas sim em Pontevedra, Espanha, pelo que não se mostra preenchido o primeiro pressuposto de que a lei faz depender a aplicação do art 490º do CSC, sendo, consequentemente, nulo todo o processo de aquisição das acções do A.
As RR. contestaram, em contestações autónomas, arguindo a incompetência internacional e territorial do tribunal, a coligação ilegal dos pedidos, a ilegitimidade da 2ª R., e a não inconstitucionalidade do art 490º CSC. Requereram a suspensão da presente acção até que se mostre transitada em julgada a sentença que venha a ser proferida na referida acção de impugnação de deliberações sociais da R “P .......” , no mais pugnando pela improcedência total da acção, admitindo a relação de domínio, oferta e aquisição em causa, considerando-as não viciadas e perfeitamente válidas, pugnando ainda pela condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Replicaram os AA., defendendo a competência do tribunal e a inexistência de cumulação ilegal de pedidos.
Em audiência prévia foi julgada improcedente a excepção de incompetência internacional e territorial, bem como a de ilegitimidade da 2ª R. e, tendo-se considerado prejudicial a aludida acção de anulação de deliberações sociais, foi declarada suspensa a instância nestes autos até ao trânsito em julgado dos autos nº 1078/08 .4TBAGH.
Essa acção foi julgada improcedente na 1ª instância, improcedência que foi confirmada no Tribunal da Relação, e, após, no STJ, aí por acórdão de 16/2/2016.
Na prossecução da acima aludida audiência prévia, foi decidida a admissibilidade da cumulação de pedidos e procedeu-se ao imediato conhecimento do mérito da causa, julgando-se a acção procedente por se ter entendido ser requisito de aplicação do disposto no art 490º CSC que ambas as sociedades tenham sede em Portugal e, em consequência, declarou-se a nulidade da oferta de aquisição de acções da 2ª R. P ....... – Conservas e Pesca, S.A. efectuada pela 1ª R. A…………, S.A. mencionada em IV. dos factos provados e a nulidade da aquisição de acções registada e mencionada V. dos factos provados, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo na conservatória do registo comercial, julgando-se improcedente o pedido de litigância de má fé formulado pelos RR.
II – Do assim decidido, apelaram as RR. que concluíram as respectivas alegações do seguinte modo:
I. O n.º 2 do artº 481º do Código das Sociedades Comerciais viola frontalmente os princípios de não-discriminação em razão da nacionalidade emergente do Tratado de União Europeia e os princípios da igualdade e da equilibrada concorrência empresarial estabelecidos pela Constituição da República Portuguesa.
II. Assim, a interpretação literal e irrestrita da referida norma apresenta-se como inconstitucional e contrária ao direito europeu, que àquela norma se sobrepõe.
III. Assim, deverá considerar-se aquela norma do n.º 2 do art.º 481.º tacitamente revogada por força da aprovação do Tratado que Institui a Comunidade Europeia e do Tratado de União Europeia ou, pelo menos, ser a mesma restritivamente interpretada, no sentido de que a referência à necessidade de sede em Portugal, se refere à necessidade de sede em Estado-Membro da União Europeia,
IV. Ou, em todo o caso, ser a referida norma desaplicada, por via da sua inconstitucionalidade.
V. O despacho-sentença recorrido viola assim o n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil, os artigos 9.º, 18.º, 49.º, 54.º e 61.º do Tratado de União Europeia e os artigos 13.º e 81.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa.
VI. E em consequência e no que diz respeito aos presentes autos, ser revogada a sentença recorrida e ordenado o prosseguimento dos autos.
O A. apresentou contra alegações concluindo-as nos seguintes termos:
1- O douto despacho de fls. dos autos ora em crise, deve manter-se pois não padece de qualquer nulidade e consubstancia uma solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competentes.
2- O art. 490º do CSC, apenas é aplicável quando ambas as sociedades Rés tenham sede em Portugal. (neste sentido, vd. o novo “Código das Sociedades Comerciais Anotado” da Clássica de Lisboa, com a coordenação de António Cordeiro, Almedina, 2009, anot. 5 b) ao artº 490º por Ana Perestrelo de Oliveira
3- Na verdade, esse artigo aparece consagrado no capítulo III, do Título VI, do CSC, relativo às sociedades coligadas, e a disposição geral de tal título, constante do art. 481º do CSC, refere que: nº 1 – O presente título aplica-se apenas a relações que, entre si, estabeleçam sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por acções. nº 2 – O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto às excepções previstas nas alíneas a), b), c) e d). (sublinhado nosso)
4- Assim, como a situação em causa, não é contemplada em qualquer uma dessas excepções previstas nas alíneas referidas, o mencionado art. 490º do CSC. só poderá ser aplicado quando quer a sociedade dominante (a Ré A……., S.A.) quer a dominada (P ....... – Conservas e Pesca, S.A.) tenham sede em Portugal e,
5- As próprias excepções supra mencionadas, tal como o Tribunal refere “aparecem como uma necessidade legislativa e são um reforço de tal entendimento”. (entre outros, cfr. Liliana da Silva Sá, in a contrapartida patrimonial na aquisição tendente ao domínio total, publicado na Revista Julgar, nº 9, 2009, pág. 161)
6- Ora, como consta dos autos (cfr. fls. dos autos), a Ré A……….., S.A tem sede em Espanha.
7- Pelo que, os actos objecto de apreciação nos presentes autos, estão viciados, sendo nulo todo o processo de aquisição das acções dos aqui Apelados.
8- Independentemente do DUE (Direito da União Europeia), ora invocado pelas Apelantes que não se aplica a esta situação concreta.
9- E, tanto assim é que o próprio TJUE (Tribunal de Justiça da União Europeia), nunca pôs em causa essa norma nem entendeu que a mesma fosse discriminatória ou estabelecesse algum entrave injustificado à sociedade estrangeira.
10- Na verdade, o art. 490º do CSC promove a transição de um domínio qualificado para uma situação de domínio total o que tutela o interesse geral na medida em que passa a aplicar-se o regime protector das sociedades dominadas e dos seus credores sociais.
11- Ora, como nas situações de domínio total transfronteiriço tal regime não se aplica, “cai por terra”, pelo menos em, parte, aquele interesse geral.
12- Face ao exposto, entende-se que o nº 2 do art. 481º do CSC não só não viola o princípio da não descriminação como nem sequer é inconstitucional como as Apelantes querem fazer crer (entre outros, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 08.01.2008 (Proc. nº 0725170), e Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.10.2002, ambos in www.dgsi.pt,)
13- Por outro lado, o que se verifica é uma enorme desproporção entre os benefícios que emergem para a sociedade dominante da aplicação do nº3º do art.490º CSC e os prejuízos que daí advêm para os sócios minoritários, que ficam arbitrariamente despojados da sua qualidade de sócios, violando-se o seu direito de propriedade.
14- E, tal desproporção não respeita o princípio da proporcionalidade, pelo que se revela inadmissível enquanto restrição ao direito de propriedade privada e ao direito de livre iniciativa económica.
15- Aliás, entende-se ser manifesta a desproporção entre o benefício auferido pela sociedade dominante e a desvantagem suportada pelos sócios minoritários, pois enquanto à sociedade maioritária é permitida a aquisição da totalidade do capital social tendo unicamente em vista a tomada de um reduzido número de decisões que obrigam à aquiescência unânime dos sócios, os sócios minoritários têm de suportar a extinção do seu direito de propriedade relativamente à participação no capital social da sociedade dominada, sendo certo que seria possível alcançar os mesmos objectivos - aquisição de domínio total da sociedade - através de outros meios que não implicassem a perda do direito de propriedade de participações sociais. (in Ac. Do STJ de 03.02.2005 – Proc. nº 04B4356, in www.dgsi.pt)
II – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
I. O Autor José .......e a 1.ª Ré A ......., S.A., eram, em 31/03/2009, sócios da 2.ª Ré P ....... – Conservas e Pesca, S.A.
II. O Autor José .......detinha 6.000 acções da 2.ª Ré, correspondentes a 2,03 % do capital social da mesma.
III. A 1.ª Ré A ......., S.A.. detinha acções da 2.ª Ré, correspondentes a 97,97% do capital da mesma.
IV. No dia 31/03/2009, a 1.ª Ré fez publicar no site de publicações do RNPC o anúncio que adiante se junta sob o nº 3, e aqui se da por reproduzido.
V. No dia 08/04/2009, a 1.ª Ré fez publicar um acto de registo referente a “Aquisição de Acções Tendente ao Domínio Total”, correspondente ao documento junto sob o nº 5.
VI. A 1.ª Ré tem domicílio social na Avenida de la Seca, n.º 3, 3994, Apartado 221, Pontevedra, Espanha.
IV – Constitui objecto do presente recurso, em função do confronto das conclusões das respectivas alegações com a decisão recorrida, saber se o nº 2 do artº 481º do CSC viola os princípios de não-discriminação em razão da nacionalidade emergentes do Tratado de União Europeia e, por isso, se deve ter por tacitamente revogado ou, pelo menos, ser restritivamente interpretado, no sentido de que a referência à necessidade de sede em Portugal se refere à necessidade de sede em Estado-Membro da União Europeia; ou se viola e os princípios da igualdade e da equilibrada concorrência empresarial estabelecidos pela Constituição da República Portuguesa, e por isso, deve tal norma ser desaplicada, por via da sua inconstitucionalidade.
Dispõe o art 490º, sob a epígrafe “Aquisições tendentes ao domínio total”
“1 - Uma sociedade que, por si ou conjuntamente com outras sociedades ou pessoas mencionadas no artigo 483.º, n.º 2, disponha de quotas ou acções correspondentes a, pelo menos, 90% do capital de outra sociedade, deve comunicar o facto a esta nos 30 dias seguintes àquele em que for atingida a referida participação.
2 - Nos seis meses seguintes à data da comunicação, a sociedade dominante pode fazer uma oferta de aquisição das participações dos restantes sócios, mediante uma contrapartida em dinheiro ou nas suas próprias quotas, acções ou obrigações, justificada por relatório elaborado por revisor oficial de contas independente das sociedades interessadas, que será depositado no registo e patenteado aos interessados nas sedes das duas sociedades.
3 - A sociedade dominante pode tornar-se titular das acções ou quotas pertencentes aos sócios livres da sociedade dependente, se assim o declarar na proposta, estando a aquisição sujeita a registo por depósito e publicação.
4 - O registo só pode ser efectuado se a sociedade tiver consignado em depósito a contrapartida, em dinheiro, acções ou obrigações, das participações adquiridas, calculada de acordo com os valores mais altos constantes do relatório do revisor.
5 - Se a sociedade dominante não fizer oportunamente a oferta permitida pelo n.º 2 deste artigo, cada sócio ou accionista livre pode, em qualquer altura, exigir por escrito que a sociedade dominante lhe faça, em prazo não inferior a 30 dias, oferta de aquisição das suas quotas ou acções, mediante contrapartida em dinheiro, quotas ou acções das sociedades dominantes.
6 - Na falta da oferta ou sendo esta considerada insatisfatória, o sócio livre pode requerer ao tribunal que declare as acções ou quotas como adquiridas pela sociedade dominante desde a proposição da acção, fixe o seu valor em dinheiro e condene a sociedade dominante a pagar-lho. A acção deve ser proposta nos 30 dias seguintes ao termo do prazo referido no número anterior ou à recepção da oferta, conforme for o caso.
7 - A aquisição tendente ao domínio total de sociedade com o capital aberto ao investimento do público rege-se pelo disposto no Código dos Valores Mobiliários.”
Sendo muitas, e já muito debatidas, as questões específicas que este preceito tem implicado, a única questão que, por ora, está em causa, tem a ver com a inserção do mesmo no capítulo I, do Título VI do CSC, que é relativo às sociedades coligadas, e com a interpretação do disposto no art 481º, preceito que inicia tal Título e que, depois do seu nº 1 restringir objectivamente o âmbito da aplicação do mesmo «a relações que entre si estabeleçam sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por acções», refere no seu nº 2:
“O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto ao seguinte:
a) A proibição estabelecida no artigo 487.º aplica-se à aquisição de participações de sociedades com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, sejam consideradas dominantes;
b) Os deveres de publicação e declaração de participações por sociedades com sede em Portugal abrangem as participações delas em sociedades com sede no estrangeiro e destas naquelas;
c) A sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, seja considerada dominante de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º;
d) A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos números 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal.”
Sem embargo da letra da lei apontar no sentido de restringir espacialmente a aplicação do referido Titulo VI do CSC às coligações de sociedades em que intervenham apenas sociedades com sede em Portugal, cumpre saber, se se imporá uma interpretação correctiva da referida norma ou, no limite se, se imporá a sua interpretação restritiva, por exigências do Tratado da União Europeia, entendendo-se que a referência à necessidade de sede em Portugal se deverá ter como referente à necessidade de sede em Estado-Membro da União Europeia, ou se deverá tal norma ser tida por inconstitucional e, consequentemente, desaplicada no processo.
Antes de mais, convém ter presente que há para o nosso CSC quatro tipos de relações de sociedades coligadas (art 482º): relações de simples participação; relações de participações recíprocas, relações de domínio e relações de grupo.
As relações de grupo - que são as que interessam ao presente recurso - abrangem as situações de domínio total (inicial ou superveniente), contrato de grupo paritário ou contrato de subordinação – cfr arts 488º, 489º 492º e 493º.
O regime para as relações de grupo constituídas por contrato de subordinação é aplicável aos grupos constituídos por domínio total – inicial e superveniente - por força da remissão do art 491º CCS.
E este regime caracteriza-se essencialmente pelos seguintes aspectos [1]: «poder de direcção da sociedade mãe, incluindo a faculdade de dirigir instruções, ainda que de caracter desvantajoso, ao órgão de administração da sociedade filha - art 503º; responsabilidade da sociedade mãe pelos credores da sociedade filha - art 501º; obrigação da sociedade mãe de compensar as perdas anuais da sociedade filha sofridas durante a vigência do contrato de subordinação/período de domínio - art 502º».
Existe domínio total inicial, de acordo com o art 488º, conjugado com o art 481º/1, quando uma sociedade anónima é ab initio totalmente detida por uma sociedade anónima, por quotas ou em comandita por acções. Existe domínio total superveniente quando uma sociedade passe a ser detida, directamente, ou nos termos do art 483º/2 do CSC, por uma única sociedade, excepto se a assembleia geral da sociedade dominante adoptar, nos seis meses seguintes à verificação da situação de domínio total, alguma das medidas previstas no art 489º/2.
Na situação dos autos, está em causa, por via do mecanismo a que se refere o art 490º CSC, o surgimento de uma relação de domínio total superveniente.
Com efeito, tendo a 1ª R. A ......., S.A. (com sede em Espanha), em função da operação que conduziu à redução e aumento do capital social da 2º R., “P .......”, que teve lugar na assembleia geral a que se fez referência no relatório, passado a deter nela o capital social de 97,97%, procedeu, nos termos do nº 2 do referido art 490º, à oferta de aquisição das restantes acções naquele capital social que ficaram a pertencer ao A. – 6.000, correspondentes a 2,03% - vindo a adquiri-las nos termos do nº 3 daquela norma.
Feitas estas considerações genéricas, importa compreender de que modo é que o âmbito de aplicação espacial das normas que integram o Titulo VI do CSC a que se reporta a letra da referida norma do nº 2 do art 481º constitui, à partida, desvio à regra de conflitos nuclear em matéria de sociedades comerciais, que é a norma do art 3º/1 do CSC.
Diz-se nesta norma que as sociedades «têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração», embora se acrescente que «a sociedade que tenha em Portugal a sua sede estatutária não pode, contudo, opor a terceiros a sua sujeição a lei diferente da lei portuguesa»[2].
Como o evidenciam as autoras no estudo acima referido (nota 1) «da simples aplicação da regra do art 3º/1 resultaria que as relações de coligação em que interviessem sociedades com sede em Portugal seriam (sempre) reguladas pelo CSC (incluindo pelas regras que neste diploma se estabelecem no respectivo Titulo VI), independentemente da localização da sede das demais sociedades intervenientes», mas não é isso que resulta do critério do art 481º/2, ao dispor que o regime específico do Titulo VI do CSC, salvo os casos excepcionais nele indicados, apenas é aplicável a sociedades com sede em Portugal.
Refere Engrácia Antunes a respeito deste desvio à regra geral: «Repare-se que do jogo normal do regime conflitual geral aqui pertinente se retiraria a aplicabilidade de princípio das normas jurídico societárias portuguesas, inclusive daquelas sobre sociedades coligadas, à disciplina das relações de coligação, quer absolutamente internas (isto é, estabelecidas entre sociedades cuja sede efectiva se situasse em Portugal), quer absolutamente internacionais (isto é, entre uma sociedade que possuísse a sua sede efectiva em Portugal e uma sociedade com sede no estrangeiro). Ora o confronto da disposição do art 481º/2 com semelhante regime geral só parece atribuir-lhe a sentido de restringir o alcance do seu próprio âmbito de aplicação – sob pena de se negar qualquer sentido útil ao preceito em análise, o âmbito de aplicação desse sector específico de normas jurídico societárias está limitado à disciplina de relações de coligação absolutamente internas, no sentido de que se pressupõe que ambas (e não apenas uma) da(s) sociedades intervenientes tenham a sua sede em Portugal».
Ora, os resultados a que este entendimento literal conduz, mostram-se tão distantes da ratio do Título VI do CSC [3], permitem tão graves distorções de protecção entre grupos nacionais e grupos estrangeiros [4] e mesmo entre filiais portuguesas entre si [5], além de que potenciam a fuga de investimento para o estrangeiro e se prestam a tão fáceis fraudes [6], que a tendência de vária doutrina tem sido o de convocar os possíveis recursos interpretativos para lograr restringir o alcance daquele nº 2 do art 481º - directamente, ou por via da interpretação de excepções consagradas nas suas várias alíneas - de modo que, ao menos no que se reporta às sociedades em relação de grupo, resulte aplicável o Titulo VI do CSC, ainda que uma das sociedades assim coligadas tenha sede no estrangeiro e correspondentemente, apenas se afaste a aplicação daquele Titulo às relações de grupo em que ambas as intervenientes tenham sede no estrangeiro.
Refere, Engrácia Antunes, na apreciação crítica que faz ao preceito em análise [7]:
« … pode efectivamente duvidar-se do acerto da autolimitação do âmbito de aplicação espacial das normas em causa. De acordo com o ensinamento geral, as normas materiais espacialmente autolimitadas, constituem um afloramento da relevância do escopo dos preceitos jurídico-substantivos no contexto do direito dos conflitos: é a consideração das especiais razões ligadas ao próprio fim material ou ratio das normas aplicandas que explicam que o legislador delimite ocasionalmente a respectiva aplicação em sentido diverso do que resultaria da actuação do sistema conflitual previsto para as normas da sua categoria. Ora o fim ou função das normas subjudice parece, justamente vedar, antes que legitimar, o estabelecimento de semelhante autolimitação» (…) «O sentido geral das normas sobre sociedades coligadas é essencialmente o de proteger as sociedades comerciais, bem assim como os respectivos sócios e credores sociais, em face dos perigos criados pela existência de uma situação de coligação intersocietaria» (…) «Parece evidente que os riscos que a lei visou acautelar se verificarão sempre da mesma forma para as sociedades participadas ou dependentes portuguesas, qualquer que seja o local da sede da sociedade que detém a participação no seu capital ou o controlo da respectiva direcção – havendo mesmo quem considere que tais riscos poderão ser porventura maiores no caso da sociedade participante ou dominante ser estrangeira: pelo que da perspectiva dos interesses que a lei visou proteger (…) se deve considerar indiferente a nacionalidade dos capitais titulares da participação ou domínio».
E mais adiante [8] : « (…) semelhante autolimitação acaba por estabelecer uma discriminação dos grupos nacionais em face dos grupos estrangeiros[9], cuja compatibilidade com os princípios jurídico-constitucionais e jurídico-comunitários em matéria de igualdade de tratamento se afigura algo duvidosa (…) Dum lado, e da perspectiva dos sujeitos activos das relações internacionais de coligação, isso significa designadamente que os grupos estrangeiros que pretendam operar movimentos de agrupamento com sociedades portuguesas podê-lo-ão fazer nos mesmos termos em que os grupos nacionais o podem (máxime através de participações de capital) sem que com isso, no entanto, se vejam sujeitos aos deveres, ónus e restrições legais a que os últimos estão expostos» (…) «Doutro lado e agora na perspectiva dos sujeitos passivos de tais relações, isto significa na prática que as filiais portuguesas de grupos estrangeiros não poderão beneficiar em princípio da mesma protecção que é dispensada às filiais portuguesas de grupos nacionais pelo mesmo regime das sociedades coligadas – estabelecendo-se assim um inadmissível tratamento discriminatório entre as próprias sociedades (participadas, dependentes ou agrupadas) portuguesas entre si, consoante a nacionalidade do respectivo parceiro».
Terminando esta apreciação crítica do seguinte modo[10]:
«Em suma, a autolimitação contida na norma do art 481º/2 conduz assim a uma dupla discriminação: desde logo, entre as sociedades-mãe estrangeiras e portuguesas, beneficiando as primeiras de um quadro jurídico mais favorável de investimento do que as segundas em território português (!), E depois, das próprias sociedades-filhas portuguesas entre si, cuja sorte passa a depender directamente da nacionalidade da “paternidade” da participação ou domínio. Ora semelhante tratamento de favor dos grupos estrangeiros e semelhante desigualdade da tutela oferecida às sociedades filiais portuguesas afigura-se de duvidosa compatibilidade com o princípio jurídico-constitucional de igualdade de tratamento (art 13º CRP) e com o princípio jurídico-comunitário da não discriminação em razão da nacionalidade (art 7º do Tratado de Roma)».
Ideia que repete e reforça em «O Âmbito de Aplicação do Sistema das Sociedades Coligadas»[11], referindo ser «duvidosa a compatibilidade desta solução com os princípios jurídico-constitucionais da igualdade de tratamento e da livre concorrência (artigos 13.º, n.º 2, 15.º e 81.º al. e) da Constituição da República Portuguesa) e com os princípios jurídico-comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento (artigos 12.º e 43.º do Tratado da União Europeia).
Menezes Cordeiro considera também inadmissível que a lei estabeleça um regime mais favorável para as sociedades com sede no estrangeiro [12] referindo no «Código das Sociedades Comerciais Anotado» que coordena [13]: «O elemento adicional de conexão espacial previsto pelo art 481º/2 discrimina, todavia, infundadamente, o regime a aplicar às coligações societárias internas e internacionais, criando até regime mais favorável para as sociedades estrangeiras que actuam em Portugal e desprotegendo do mesmo passo as filiais portuguesas».
Carvalho Fernandes e João Labareda [14] sustentam uma interpretação restritiva do artigo 481º/2, no sentido de que a exigência da localização da sede em Portugal está limitada à sociedade dominada, sendo indiferente a nacionalidade da sociedade dominante. Para tanto, e como o referem Catarina Tavares Loureiro, Joana Torres Ereio, «invocam o princípio do tratamento unitário das situações de domínio total, consagrado no artigo 491º do CSC, bem como o princípio da igualdade, “que seria violado caso se regulassem de forma diferente os casos de domínio total superveniente, consoante a localização da sede da sociedade-mãe se situasse dentro ou fora do território nacional”. Segundo estes Autores, a interpretação restritiva de todo o artigo 481º/2, nos termos da qual a exigência da localização da sede em Portugal estaria limitada à sociedade dominada, sendo indiferente a nacionalidade da sociedade dominante, «resultará da tarefa de fixar à lei o “sentido que salvaguarde a unidade e a coerência do sistema jurídico no seu conjunto, se adeqúe a ele e se conforme com os princípios nucleares que o moldam e orientam e, do mesmo passo, assegure o tratamento equilibrado e ajustado das situações a que se dirige, promovendo uma apropriada composição dos interesses envolvidos”. Em defesa deste ponto de vista, argumentam que esta solução é a que se ajusta ao critério do artigo 3.º do CSC e que este sentido não é contrariado de nenhum modo pela letra da lei, nela cabendo perfeitamente, que “se harmoniza com a globalidade do sistema”, tendo ainda a “virtualidade de proporcionar a realização ponderada dos interesses em causa”».
Concluindo-se, em função destas sustentadas críticas, que o pressuposto de aplicação espacial contido no nº 2 do artigo 481º do CSC, sem que indique, para tal, quaisquer motivos, discrimina as relações de coligação internas, favorecendo as sociedades estrangeiras que actuam em Portugal, e desprotegendo, em contrapartida, as filiais portuguesas, não será difícil encontrar nessa norma uma ofensa aos princípios da igualdade de tratamento, da livre concorrência, da não discriminação em função da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento.
Basta atentar na al f) do art 81º da CRP ao estabelecer que «incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral»[15].
Não admira, por isso, que se verificam esforços de alguma doutrina no sentido de minimizar as consequências acima referidas do nº 2 do art 481º através de interpretações extensivas de algumas das alíneas desse nº 2.
De facto, o preceito em causa estabelece quatro excepções em que as normas do Titulo VI se aplicam quer a sociedades com sede em Portugal, quer a sociedades com sede no estrangeiro, estando em causa na al a), a proibição de aquisição de participações; na al b), deveres de publicação e declaração de participações; na al c) responsabilidade da sociedade dominante; e na al d), o domínio total inicial.
Para Engrácia Antunes os desvios contidos nestas alíneas «em pouco ou nada vêm corrigir o desacerto fundamental entre a autolimitação e a ratio das normas, bem assim como estão longe de eliminar o carácter discriminatório dos respectivos resultados». Refere, entre o mais, relativamente a esses “desvios” [16]:
Da al a) decorre que a sociedade dependente portuguesa não poderá adquirir qualquer acção ou quota no capital da sua dominante estrangeira – arts 486º, 487º - daí concluindo que «o resultado da excepção prevista na lei é, paradoxalmente , não o de atenuar a discriminação das sociedades nacionais em face das estrangeiras, mas justamente alargar ainda mais o privilégio das últimas».
Na al b) estatui-se que as sociedades estrangeiras e portuguesas que detenham unilateral ou reciprocamente participações nos respectivos capitais sociais estão obrigadas a declarar a existência e montante de tais participações. Refere: «Em boa verdade, aqui nem sequer se poderá falar de uma excepção à autolimitação do âmbito espacial das normas sobre sociedades coligadas. Com efeito, os deveres a que o preceito se refere dizem respeito aos deveres gerais de publicação e declaração das participações sociais no âmbito da apresentação das contas sociais - arts 65º e ss … - não podendo ser confundidas com o dever de comunicações de participações imposto pelo art 484º»
Põe assim de lado, Engrácia Antunes, o entendimento de quem, como Ana Filipa Morais Antunes[17], pretendendo que se deve desvalorizar a diversidade terminológica («publicação e declaração», por um lado, e «comunicação», por outro), sustenta que «parece resultar desta norma, por força de uma interpretação extensiva, que a sociedade dominante, com sede no estrangeiro, também estará obrigada a comunicar, bem com a publicitar a aquisição da situação de domínio (correspondente a 90% de capital social da sociedade dominada, com sede em Portugal)».
Na al c), prossegue Engrácia Antunes, «também não estamos perante qualquer excepção à autolimitação espacial prevista na corpo do artigo», acrescentando, «para além de inútil, repare-se que a dita “excepção” está longe de eliminar os resultados discriminatórios decorrentes do sistema do art 481º/2: é que o regime de responsabilidade previsto nos art 83º e 84º oferece aos credores sociais das sociedades devedoras uma protecção bem menor do que a oferecida pelo regime especial de responsabilidade intersocietária previsto no art 501º. Pelo que os credores das sociedades dependentes portuguesas continuarão a beneficiar de regimes de protecção diversos, consoante a natureza da sociedade dominante: se esta for portuguesa, poderão valer-se do regime especial consagrado pela lei, em derrogação dos cânones jurídico-societários clássicos do art 501º e agredir directamente o património dessa sociedade para satisfazer quaisquer créditos em mora; porém, se aquela for estrangeira, não lhes restará senão contentar-se com a tutela que lhes dispensam os mecanismos comuns do direito das sociedades que lhes assegura uma possibilidade de agredir directamente aquele património apenas em casos muito contados».
È, no entanto, no âmbito da al d) deste nº 2 do art 481º, que a doutrina mais tem tentado inverter a acima referida restrição espacial, no que se refere, não apenas às situações de domínio total inicial, mas também às de domínio total superveniente.
Catarina Tavares Loureiro, Joana Torres Ereio, no estudo já referido, comentam esse esforço, referindo: «A alínea d), aditada apenas na reforma legislativa de 2006, e que excepcionou da regra geral de limitação do âmbito espacial de aplicação do regime das sociedades coligadas “a constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal”, tem vindo a ser alvo de diferentes interpretações, lançando-se a dúvida sobre o verdadeiro alcance da alteração por si visada. Visará a sua redacção permitir, apenas e simplesmente, a constituição de sociedades anónimas unipessoais por sociedades com sede no estrangeiro? Ou estará em causa, além disso, permitir a aplicação do regime dos grupos constituídos por domínio total aos casos em que a sociedade totalmente dominante não tenha sede em Portugal? Facilmente se compreenderá, pois, a relevância de descortinar o sentido desta alínea, e, em particular, de aferir se a mesma abre a porta à aplicação do regime das relações de grupo aos casos de domínio total inicial de uma sociedade com sede em Portugal por uma sociedade com sede no estrangeiro ou se, pelo contrário, visa apenas permitir a constituição de sociedades anónimas unipessoais por sociedades com sede no estrangeiro»
E dão notícia, essas autoras, da posição de Ana Perestrelo de Oliveira, que entende que a alínea d) do artigo 481º/2, do CSC deve ser objecto de interpretação extensiva, no sentido de abranger não só a constituição, mas também o próprio regime das relações de grupo constituídas por domínio total inicial, entendendo ainda que as situações de domínio total superveniente deverão também considerar-se incluídas nesta norma.
As autoras em referência entendem, porém, que «a excepção consagrada no artigo 481º/2, alínea d), do CSC parece confinar-se à possibilidade de constituição de uma sociedade anónima por outra sociedade com sede no estrangeiro, possibilidade até então vedada pela lei portuguesa (cfr. artigos 273.º e 488.º do CSC)».
Não é, no entanto esse, o entendimento de Menezes Cordeiro [18], cujo pensamento é semelhante ao acima referido de Ana Perestrelo Oliveira, ao referir:
«A respeito da constituição da sociedade anonima unipessoal - a al d) introduzida pelo DL 76-A/2006 de 29/3 admite a constituição de sociedade anónima unipessoal por sociedade cuja sede se não situe em Portugal originando uma relação de grupo por domínio total inicial – art 488º/1 e 3- que termina nos casos previsto nos 489º/4 (aplicável ex vi do 488º/3). À relação de grupo assim constituída aplica-se consequentemente o regime estabelecido no art 501º a 504º ex vi do art 491º. A introdução desta alínea determinou pois, a revogação tácita do nº 4 do art 489º. Em contrapartida continua a não existir uma relação de domínio total relevante para efeitos do CSC quando uma sociedade com sede em Portugal domina integralmente sociedade com sede no estrangeiro. Do mesmo modo o legislador não previu a aplicabilidade do regime do CSC às relações de domínio total superveniente: impõe-se, todavia, interpretar extensivamente o art 481º/al d) de modo a evitar esta radical e infundada diferença de regime: as relações entre a sociedade totalmente dominante com sede no estrangeiro e a sociedade totalmente dominada com sede em Portugal reger-se-ão pois pelas normas do CSC, quer se trate de domínio inicial quer superveniente».
È tempo de tomar posição.
O que se faz, optando por perfilhar o entendimento, a que não se fez ainda referência, de Ana Filipa Morais Antunes no estudo acima referido (nota 19) e que se limita, ao que parece, às relações de grupo.
Entende esta autora, depois de salientar que foi preocupação do legislador «garantir e proporcionar condições objectivas para a formação e para a expansão ou desenvolvimento de grupos de sociedades, por se entender que esta é uma via adequada para o progresso empresarial de tipo societário» e depois de evidenciar que «em face da ratio legis, não se compreende a restrição do âmbito de aplicação aparentemente estabelecida pelo legislador», pois «os interesses dos sócios minoritários, trabalhadores e credores sociais não diferem consoante esteja em causa um processo de agrupamento e de consolidação empresarial encabeçado por uma sociedade estrangeira ou por uma sociedade portuguesa, nem consoante esteja em causa uma sociedade dependente com sede em Portugal ou noutro país», que não é necessário que a sociedade que visa estabelecer uma relação de domínio total tenha a sua sede em Portugal – basta que uma das sociedades tenha conexão espacial com o território nacional, não sendo exigido, pelo menos, que a sociedade dominante tenha sede em Portugal.
Conclusão a que chega em função do que designa por uma interpretação correctiva: «O requisito, exigido pelo nº 2 do artigo 481° deve, pois, ser objecto de uma interpretação correctiva, em ordem a atingir um resultado interpretativo mais adequado à razão de ser do regime e das diversas normas que integram a regulamentação das sociedades coligadas».
Em abono do seu entendimento salienta que a alínea a) do n° 4 do artigo 489°, de que resulta que constitui fundamento para a cessação da relação de grupo a circunstância de a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal, ao contrário de servir de «argumento favorável à tese da necessidade de ambas as sociedades estarem sediadas em território nacional», é argumento no sentido de que «o legislador pretende que, pelo menos, uma das sociedades tenha conexão espacial com o território nacional, não exigindo uma dupla conexão espacial- nesse sentido (…) a circunstância de o legislador ter utilizado a conjunção ou (traduzindo uma alternativa: ou a sociedade dominante ou a sociedade dominada terão que ter a sede em território nacional) e não e (que exprimiria a exigência, cumulativa, de as duas sociedades terem a sua sede em território nacional).
E para concluir que, «para efeitos de aplicação do regime, não se exige, pelo menos, que a sociedade dominante tenha sede em Portugal», destaca «cumprir referir a alteração legislativa ao n° 1 do artigo 488° do CSC, operada pelo DL 280/87, de 8 de Julho, que se traduziu na desnecessidade da sociedade que pretenda estabelecer uma relação de domínio total ter a sua sede em Portugal».[19]
De um ponto de vista histórico a autora explica por que terá deixado de fazer sentido a delimitação espacial do nº 2 do art 481º (nota 29) ao referir: «O pressuposto da obrigatoriedade da sede das sociedades se localizar em Portugal estava reforçado, no projecto, pelo disposto na norma do artigo 479º (Domínio total inicial), em sede da secção I (Grupos constituídos por domínio total) do capítulo III (Sociedades em relação de grupo). Esta redacção viria a ser transposta para a versão definitiva do CSC, no artigo 488°/1, que seria, posteriormente, alterado pelo DL 280/87, de 8 de Julho, que introduziu a formulação hoje constante da norma do nº1 do artigo. Por outro lado, nos termos da alínea a) do nº 5 do artigo 480° do projecto (domínio total superveniente), a relação de grupo termina «a) Se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal». Idêntica previsão consta hoje da al a) do nº 4 do art 489º (domínio total superveniente)».
Por outro lado, numa interpretação que tenha em conta as circunstâncias em que a lei é aplicada actualista da lei, não pode deixar de ter em consideração que a limitação consagrada no art 481º/2 CSC não faz sentido de um ponto de vista de direito comparado, na medida em que muitos outros ordenamentos que regulam as coligações de sociedades não contêm qualquer limitação territorial equivalente à do CSC.
Acresce, de um ponto de vista sistemático, que no art 21º do Código dos Valores Mobiliários se qualificam as relações de grupo independentemente de as respectivas sedes se encontrarem em Portugal ou no estrangeiro, e além desta, outras normas têm considerado indiferente o lugar da sede das sociedades coligadas (vg, o art 13º/3 do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL 298/92, de 31 de Dezembro, o artigo 3º/1 do Regime de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora, aprovado pelo DL 94-B/98, de 17 de Abril, e o artigo 8.º do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela L 18/2003, de 11 de Junho).
A interpretação correctiva «ocorre quando, tomada à letra, a norma jurídica abrange outras hipóteses que o espirito da lei não comporta. O interprete verifica que as circunstâncias determinantes da formulação da lei se alteraram e, por isso, corrige o texto da lei para realizar a sua intenção prática, considerando que o legislador não teria querido a norma se tivesse previsto esse resultado»[20].
Entende-se assim impor-se a interpretação correctiva do nº 2 do art 481º, de modo a que se conclua que não é necessário que a sociedade que visa estabelecer uma relação de domínio total tenha a sua sede em Portugal.
Com o que deixa de obstar à pretendida aplicação do mecanismo do art 490º a circunstância de a 1ª R., “A ......., SA” ter sede em Espanha, ao contrário do que foi entendido na sentença recorrida, com o que a apelação, ainda que por razões não inteiramente coincidentes com as propostas pelas apelantes, deve proceder.
V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, devendo, em consequência, os autos prosseguirem os seus demais termos.
Custas na 1ª instância e nesta pelos apelados.
Lisboa, 11 de Maio de 2017
Maria Teresa Albuquerque
Jorge Vilaça
Vaz Gomes
_____________________________________________
[1] - Está-se aqui a seguir o artigo de Catarina Tavares Loureiro, Joana Torres Ereio, «A relação de domínio ou de grupo como pressuposto de facto para a aplicação das normas do Código das Sociedades Comerciais: o âmbito espacial em particular”, em Actualidad Jurídica, Uría Menéndez, Madrid, nº 30 (2011), p.46-61
[2] - A respeito da relevância da sede estatutária em relação à sede principal e efectiva, refere Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades», 1993, p 236/238: «« …o legislador designou como lex societatis a lei do Estado onde se encontra situada a sua sede real e efectiva (art 3º/1 1ª parte), ou seja a lei do pais onde se encontram localizados os órgãos de administração e direcção social, independentemente de ser diverso o local da sede indicada nos respectivos estatutos sociais. Isto não significa, porém, que a sede estatutária seja de todo irrelevante: é que, vindo desse modo estender o âmbito da aplicabilidade da lei societária portuguesa, o legislador veio estatuir o princípio da inoponibilidade da lei do pais da sede efectiva por parte das sociedades cuja sede estatutária se situe em Portugal (art 3º/1 2ª parte) (…); «além disso, sempre que uma sociedade haja designado o território português como local da sua sede nos respectivos estatutos (ainda quando a sua administração efectiva se situe alhures) aquela jamais poderá invocar a sujeição a lei estrangeira». 481º/2 se afasta do «regime jurídico-conflitual comum fixado no art 3º/1 CSC».
[3]- Que é, nas palavras de Catarina Tavares Loureiro, Joana Torres Ereio, estudo acima referido, «em primeira linha, tutelar os interesses das sociedades participadas, dominadas , totalmente dominadas e subordinadas, e de forma correlativa, os interesses dos seus sócios minoritários e credores (de forma a compensa-los pelos riscos a que estão sujeitos por força da coligação intersocietária)»
[4] - Ainda nas palavras de Catarina Tavares Loureiro, Joana Torres Ereio, estudo acima referido, «nas relações de grupo, em particular, as sociedades cujas sociedades-mães tenham sede no estrangeiro não podem contar com a garantia adicional do património da respectiva sociedade-mãe (como sucede quando esta tem sede em Portugal), uma vez que o regime de responsabilidade contido nos artigos aplicáveis às relações de grupo se aplica apenas às sociedades dominantes com sede em Portugal»
[5] - «Que têm um tratamento diferenciado dependendo da sede da respectiva sociedade-mãe»
[6]- Nas palavras de Catarina Tavares Loureiro, Joana Torres Ereio, estudo acima referido, «na sua formulação actual, é fácil para uma sociedade com sede em Portugal contornar o sistema e evitar a aplicação das regras relativas às sociedades coligadas (em particular, do regime de responsabilidade das sociedades totalmente dominantes), bastando aos investidores constituir, acima das sociedades portuguesas, uma sociedade com sede no estrangeiro».
Nas palavras de Engrácia Antunes, «O Âmbito de Aplicação do Sistema das Sociedades Coligadas», em «Estudos em Homenagem à Professora Isabel de Magalhães Colaço», Vol II, 2002, p. 115. «Ora sediando directamente a sociedade-mãe no estrangeiro, ora constituindo uma sociedade com sede em país estrangeiro, dependente da sociedade-mãe do grupo ou de uma sociedade por esta dominada, que centralizasse a titularidade directa da carteira de participações do grupo em sociedades portuguesas (...) ora simplesmente criando «ad-hoc» sociedades com sede em território estrangeiro com a finalidade de «curto-circuitar» os mecanismos de imputação no seio de redes ou cascatas de participações intersocietárias cujo capital de comando é português.».
[7] - Obra referida, p 243
[8] - Obra referida, p 245
[9] - Neste ponto Engrácia Antunes adverte que «por comodidade de exposição, designamos no texto por “grupo nacionais” aqueles cuja sociedade mãe possui a sua sede efectiva em Portugal e por “grupos estrangeiros” aqueles cuja sociedade mãe tenha a respectiva sede em país estrangeiro»
[10] - Obra referida, p 248
[11]-«Estudos em Homenagem à Professora Isabel de Magalhães Colaço», Vol II, 2002, p. 116.
[12]- «Direito Europeu das Sociedades», Almedina, Coimbra, 2005, pág. 785
[13] - 2012, 2ª ed, p 1211
[14]- “A situação dos accionistas perante dívidas da sociedade anónima no Direito português”, in «Direito das Sociedades em Revista », Setembro 2010, Ano 2, Vol 4 p31 e ss
[15] - A respeito desta norma referem Jorge Miranda/Rui Medeiros, « Constituição Portuguesa Anotada», 2006, Tomo II, p 20: «(…) o princípio da concorrência é assumido como valor objectivo-positivo da organização económica, ou seja, como garantia institucional da ordem económica. A projecção no mercado das diferentes e autónomas iniciativas é tida como a forma mais adequada de racionalização económica, porquanto permitirá pela oferta diversificada e competitiva, o progresso económico social em benefício dos cidadãos. Sabendo-se, porem, que tal diversidade de oferta, longe de por si mesmo a de perpetuar, tende a restringir-se, mercê de processos múltiplos de concentração económica, é o poder público chamado a garantir a continuidade de uma racionalização económica do mercado. A valoração objectiva do princípio da concorrência traduz precisamente a mutação de perspectiva e de posicionamento do Estado em relação às regras de economia livre. De garante de direitos subjectivos, que pressupostamente assegurariam a livre concorrência, passa o Estado a defensor activo da concorrência para o que lhe compete ditar regras que assegurem o estado de concorrência».
[16] -«Grupos de Sociedades », p 249/250
[17] “O Instituto da aquisição tendente ao domínio total (art 490º CSC): um exemplo de uma “expropriação legal” dos direitos dos minoritários?” in «Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier», Vol II, Coimbra Editora 2007
[18] - «Código das Sociedades Comerciais Anotado»
[19]- Com efeito, a redacção anterior desta norma era a seguinte: «Uma sociedade com sede em Portugal pode constituir, mediante escritura pública com ela outorgada, uma sociedade anónima de cujas acções ela seja inicialmente a única titular». Tendo passado a ser a seguinte: «Uma sociedade pode constituir, mediante escritura com ela outorgada, uma sociedade anónima de cujas acções ela seja inicialmente a única titular».
[20] -Santos Justo, «Introdução ao Estudo do Direito», 3ª ed, p 362