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COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
ACIDENTE DE TRABALHO
SIMULAÇÃO
Sumário
1.–A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e, também, o pedido formulado pelo demandante, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do art. 5º, nº 3 do CPC.
2.–A resolução dos litígios emergentes de acidentes de trabalho há muito que está atribuída a uma jurisdição especializada – a jurisdição do Trabalho - que aborda esta competência num quadro processual próprio – o processo dos acidentes de trabalho - que integra disciplina processual específica para a realização deste ramo do Direito, articulando a dimensão pericial da determinação das consequências do acidente, com a realização dos interesses de natureza pública que estão subjacentes à reparação da perda da capacidade de ganho.
3.–Se a causa de pedir na acção é a simulação pela R. da verificação de um acidente de trabalho (ocorrido durante a sua prestação e no local de trabalho), que determinou a entidade patronal à sua participação à A., e levou esta, no âmbito do contrato de seguro contratado, a suportar as inerentes despesas, cujo reembolso peticiona da R., é o tribunal cível que tem competência, em razão da matéria, para conhecer da acção.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
RELATÓRIO:
Em 12.10.2015, ... - Companhia de Seguros, SA intentou, na Instância Local Cível de Lisboa, a presente acção declarativa com processo comum, contra Paula ... ... ..., pedindo que se condene a R. a pagar à A. a quantia de €1.055,98, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
A fundamentar o peticionado, alega, em síntese:
A A., que exerce a actividade de seguradora, celebrou com a Lisboa Gás GDL, SA, um contrato de seguro ramo acidentes de trabalho, em regime de co-seguro, pelo qual aceitou a transferência de responsabilidade pela reparação do dano emergente de acidentes de trabalho, sendo a A. a seguradora líder, com uma responsabilidade de 65% e a obrigação de receber as participações de sinistro e proceder à sua regularização.
No dia 28.3.2008, a segurada participou à A. acidente de trabalho do qual teria sido vítima a R., ocorrido em 26.3.2008, pelas 11h, nas instalações da segurada, onde prestava trabalho, no exercício das suas funções de escriturária, tendo sido participado que o acidente teria ocorrido quando a R. saía do edifício, fechando-se as portas automáticas sobre o seu corpo, do que resultaram contusões e lesões internas no braço esquerdo.
Em função dessa participação, a A. prestou assistência à R., tendo pago de consultas, despesas médicas e exames auxiliares de diagnóstico, a quantia de € 272,00, e pela ITA e ITP’s um total de €760,86.
No entanto veio a saber que a R. nunca ficou entalada nas portas automáticas, nem sofreu qualquer outra lesão no local de trabalho, tendo simulado o acidente com o único objectivo de fazer a A. suportar indevidamente o custo dos tratamentos de que necessitava para reparação de uma lesão que havia anteriormente sofrido no âmbito da sua vida pessoal.
Esta actuação culminou com o seu despedimento, tendo o processo crime sido declarado extinto por se ter entendido que a entidade empregadora tinha exercido o direito de queixa decorrido o respectivo prazo legal.
Citada, a R. contestou, por excepção,invocando, para além do mais, a incompetência absoluta do tribunal cível para apreciar a acção, pedindo a sua absolvição da instância.
A A. pronunciou-se sobre a excepção invocada pela R., propugnando pela sua improcedência.
Foi proferido despacho que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, absolveu a R. da instância.
Não se conformando com o teor deste despacho, apelou a A., formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1–Ao abrigo de um contrato de seguro de acidentes de trabalho que celebrou com a Lisboa Gás GDL, S.A. nos termos da Lei 110/97 de 13/9, então em vigor, a recorrente reparou as consequências de um evento participado como acidente de trabalho que teria vitimado a ora recorrida, pagando esta as indemnizações devidas por lei;
2–Porém veio mais tarde a recorrente a constatar nunca ter ocorrido o evento participado, que a recorrida simulara com o intuito de fazer a recorrente suportar os custos de lesão anterior que havia sofrido no âmbito da sua vida pessoal.
3–Uma vez induzida erroneamente pela ora recorrida no cumprimento de uma obrigação que afinal não era sua, o que causou o seu empobrecimento na proporção do enriquecimento daquela, constituiu-se a recorrida na obrigação de restituir à recorrente aquilo com que injustamente se locupletou, nos termos dos Artº 473º, 476º nº 1, 477º e 479. C.Civ. o que motivou a presente demanda;
4–Contudo, por douta sentença de que se recorre, o tribunal “a quo” declarou-se absolutamente incompetente em razão da matéria e absolveu a ré recorrida da instância, por considerar que a apreciação da questão a decidir nos autos é da competência dos Tribunais do Trabalho;
5– Nos termos conjugados dos Artºs 40º nº 1, 80º nºs 1 e 2, 130º nº 1 da Lei 62/2013 de 26/8, do Artº 211º C.R.P. e 65º C.P.C., a instância cível tem competência residual para julgar as causas não atribuídas a outros juízos;
6–A alínea c) do Artº 126º da Lei 62/2013 de 26/8, única eventualmente aplicável ao litígio em apreço, estabelece que “compete aos juízos de trabalho conhecer, em matéria cível: (...) c) “das questões emergentes de acidente de trabalho e doenças profissionais”, não é contudo sobre esta matéria que versam os autos,
7– O que está em causa é a simulação pela Recorrida de um evento que nunca ocorreu e o consequente enriquecimento ilegítimo a expensas da recorrente, questão da competência dos juízos com competência residual;
8–Acresce que a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, pela forma como a autora configura o pedido e a causa de pedir;
9–Ora a autora recorrente vem pedir o reembolso das quantias com que a recorrida se locupletou indevidamente;
10– Pelo que o pedido que formula deriva do instituto do enriquecimento sem causa, sendo a causa de pedir, embora relacionada com uma primitiva relação de trabalho, de carácter civil;
11–Assim e nos termos conjugados dos supra citados preceitos legais, é o tribunal recorrido competente para apreciar e julgar a presente acção, devendo a douta sentença recorrida ser revogada e a acção prosseguir os seus termos até final conforme peticionado, assim se fazendo JUSTIÇA!
A R. contra-alegou propugnando pela manutenção da decisão recorrida.
QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC), a única questão a decidir é se o Tribunal Cível é ou não competente, em razão da matéria, para tramitar e conhecer da presente acção. Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A matéria de facto relevante é a já supra referida no relatório, sendo o seguinte o teor do despacho recorrido, no que ora importa: “…Da incompetência em razão da matéria. Uma primeira nota sobre a influência do processo crime referido nos articulados, em que a A. foi demandante e a Ré arguida do crime de burla, sobre os mesmos factos fundamento desta acção, para dizer que a ter sido ali proferida decisão de mérito, por via do princípio do artigo 623º C.P. Civil, a decisão de condenação proferida em processo penal, com trânsito, sobre os factos que preencham o tipo penal, e em simultâneo integrem os requisitos da indemnização por responsabilidade civil por facto ilícito, constituiriam caso julgado quanto à sua verificação nas lides entre o ofendido e o arguido naquele, ainda que de natureza civil, como é o caso deste processo, circunstancialismo em que se não tivesse sido ali conhecido o pedido civil, por remessa para instância como esta, nos dispensaríamos de novo juízo probatório sobre os mesmos factos. Só que como se relatou, a lide criminal em que a A. invoca ter tido conhecimento da burla de que foi vítima, extinguiu-se antes de ser proferida decisão de mérito, e por isso nenhuma consequência se retirará daquele processo, quanto à questão agora aqui em análise. Posto isto, não sufragamos a posição da Autora, de que a não ocorrência de acidente de trabalho não integre a causa de pedir, que seja questão acessória, antes como vem delineado é a primeira das questões a decidir, para só depois se conhecer do direito de ressarcimento pela A., seja por aplicação do regime da indemnização ou, a não proceder este, pelo da restituição, neste processo e na lide criminal fundados em burla com base na não ocorrência referida. E é nesta perspectiva que haverá de conhecer-se da competência sindicada, sendo que se dúvidas não subsistem (Art. 126º.1 c) da Lei nº 62/2013 de 26.08 (LOSJ)), que é da competência da jurisdição laboral o conhecimento das questões emergentes de acidentes de trabalho, que a A. não põe em dúvida, mas que afasta em concreto com base na acessoriedade (…), então só poderemos entender tal como uma extensão da competência (art. 91º C.P. Civil) deste Tribunal, por a não ocorrência de acidente de trabalho ser questão incidental, adquirido porque não é questão do foro administrativa e ou criminal, que seja questão prejudicial, artigo 92º C.P. Civil). E, nesta perspectiva, a verificação da não ocorrência de acidente de trabalho, não a entendemos como vicissitude instrumental do conhecimento do pedido, não é um incidente na lide, mas o primeiro dos pedidos, de que dependem os outros, e nesta medida este Tribunal não é competente em razão da matéria, consoante o supracitado artigo 126º.1 c) da LOSJ, antes o Tribunal do Trabalho, fundamento (art. 99º.1 C.P. Civil) de absolvição da Ré da instância. Pelo exposto, declaro este Tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento do objecto dos autos, e em consequência absolvo a Ré da instância. …”.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Dispõe o art. 37º, nº 1 da LOSJ, aprovada pela L. 62/2013 de 26.08 (em vigor à data da propositura da acção [1]) que “na ordem interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território”.
E, relativamente à competência em razão da matéria, estipula o nº 1 do art. 40º do referido diploma legal que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, disposição legal que vem consagrada, também, no art. 64º do CPC [2].
Já o art. 65º do CPC estatui que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
Os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável [3], e, entre esses tribunais conta-se o tribunal de trabalho de acordo com o enunciado na LOSJ – arts. 80º, nº 2 e 81º, nº 2, al. e) [4]-, estando a sua competência, em matéria cível, taxativamente enunciada no art. 126º da referida Lei.
O tribunal recorrido entendeu ser competente o tribunal de trabalho para apreciar a presente acção, por força da previsão da al. c) do referido artigo.
Dispõe o art. 126º da LOSJ que “compete às secções [5] do trabalho conhecer, em matéria cível: …b) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.
A propósito da interpretação do preceito em causa, escreveu-se no recente Ac. do STJ de 8.06.2017, P. 5515/15.3T8OAZ-A.P1.S1 (António Leone Dantas), em www.dgsi.pt (para indagar da competência do tribunal de trabalho para julgar dos litígios emergentes de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no exercício das suas funções), que “…, a resolução dos litígios emergentes de acidentes de trabalho há muito que está atribuída a uma jurisdição especializada – a jurisdição do Trabalho - que aborda esta competência num quadro processual próprio – o processo dos acidentes de trabalho - que integra disciplina processual específica para a realização deste ramo do Direito, articulando a dimensão pericial da determinação das consequências do acidente, com a realização dos interesses de natureza pública que estão subjacentes à reparação da perda da capacidade de ganho. … Indagando-se das razões que podem justificar a atribuição da competência para conhecer dos litígios emergentes dos acidentes à jurisdição do trabalho sofridos por trabalhadores não subordinados, constata-se que ocorrem aqui todas a razões que justificam a integração dos acidentes de trabalho em geral nesta jurisdição especializada, embora nos acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria não estejam presentes todas as dimensões de interesse público que estão subjacentes à disciplina dos acidentes de trabalho. Na verdade, está em causa a aferição das consequências clínicas dos acidentes sofridos por estes trabalhadores no exercício das suas funções, que, em concreto e na sua dimensão material, enquanto acidentes, têm a mesma natureza dos acontecimentos que integram os acidentes de trabalho em geral, exigindo a mesma apreciação especializada. Está em causa ainda a aferição das consequências destes acidentes no quadro da Tabela Nacional de Incapacidades, assente numa perícia especializada, e que é também do parâmetro de referência dos acidentes de trabalho em geral. Para além disso, está em causa a definição dos responsáveis pela reparação das consequências destes acidentes, onde o parâmetro do seguro de acidente de trabalho e o envolvimento de seguradoras com base no mesmo, tem papel de relevo” (sublinhados nossos).
A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e, também, o pedido formulado pelo demandante, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do art. 5º, nº 3 do CPC [6].
Referia o Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 que “a competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.
Analisando a PI verifica-se que a A. fundamenta o seu pedido (de condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €1.055,98, pela prática de um acto ilícito, ou pela medida do enriquecimento sem causa daquela), no ressarcimento indevido de despesas e de períodos de incapacidade que fez à R., por força de um contrato de seguro celebrado com a entidade patronal desta e na sequência da participação de acidente de trabalho pela R. sofrido, mas que, alega, não ocorreu, tendo pela R. sido simulado.
Causa de pedir na acção é a simulação pela R. da verificação de um acidente de trabalho (ocorrido durante a sua prestação e no local de trabalho), que determinou a entidade patronal à sua participação à A., e levou esta, no âmbito do contrato de seguro contratado, a suportar as inerentes despesas.
É certo que, subjacente à actuação da R. (“de má fé, e dolosamente para obter um efeito contrário à lei”) está a não verificação do invocado acidente de trabalho, mas o direito da A. invocado na acção, tal como configurado por esta, não “emerge” desse acidente, mas, essencialmente, da alegada responsabilidade ilícita da R., e, em todo o caso, do seu enriquecimento sem causa à custa da A.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 14.05.2009, P. 09S0232 (Sousa Peixoto), em www.dgsi.pt, referido pela apelante [7], “… do teor literal daqueles normativos [8] decorre, a competência que aí é atribuída aos tribunais do trabalho diz respeito a questões que, directa ou indirectamente, emergem de acidentes de trabalho, o que significa que a existência do próprio acidente há-de integrar a causa de pedir das acções em que as mesmas sejam discutidas. E, como é fácil de ver, não é esse o caso dos autos, uma vez que a causa de pedir aduzida pela autora é precisamente a de que o acidente participado não pode ser considerado acidente de trabalho, para efeitos do contrato de seguro de acidentes de trabalho que mantinha com a ré. A recorrente/autora alega, e bem, que a definição da responsabilidade da recorrida/ré passa pelo escrutínio das circunstâncias de tempo, lugar e modo em que o acidente ocorreu, para saber se o mesmo ocorreu e se pode, ou não, ser qualificado como tal. Todavia, daí não resulta que o tribunal do trabalho seja o competente para julgar a presente acção, dado que, como já foi dito, a competência material afere-se pelos termos em que a acção foi configurada pelo autor, sendo que, no caso em apreço, essa configuração tem precisamente por base a inexistência do acidente de trabalho que foi participado pela ré, pois é esse o fundamento em que assenta a pretensão formulada pela autora, ora agravante”.
Aferindo-se a competência do tribunal pelos termos em que a A. configura o pedido e a causa de pedir, conclui-se, assim, ser o tribunal cível o competente para conhecer da presente acção, procedendo, em consequência, a apelação.
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, declarando-se o tribunal cível competente para conhecer da acção.
Custas pela apelada.
*
Lisboa, 2017.09.19
(Cristina Coelho)
(Luís Filipe Pires de Sousa)
(Carla Câmara)
[1]A competência fixa-se por referência ao momento da propositura da acção – art. 38º, nº 1 da LOSJ. [2]E estava consagrada no art. 66º do CPC61. [3]Têm a sua competência material restringida às questões que a lei expressa e taxativamente lhes atribui. [4]Actual alínea h), por força das alterações introduzidas pela Lei nº 40-A/2016, de 22.12. [5]Agora juízos – Lei nº 40º-A/2016, de 22.12. [6]Neste sentido cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 14.05.2009, P. 09S0232 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt. [7]Ponderável no caso pela similitude das situações em causa, e não obstante se reporte à LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, cujas estipulações nesta matéria são iguais. [8]Alíneas c) e d) do art.º 85.º da LOFTJ.