ISENÇÃO DE CUSTAS
Sumário

1. A isenção de custas dos Hospitais só nos casos pontualmente assinalados pelo legislador poderá ter lugar (por exemplo quando estejamos perante a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde e se verificarem os pressupostos descritos no Dec. Lei n.º 194/92, de 08.09 – art.º 11.º);
2. A nova feição – mais empresarial – recentemente dada aos Hospitais transformados em sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos vem acentuar com maior relevância a orientação que já antes se vinha dando no sentido de que os estes Hospitais não se incluíam no elenco das entidades enumeradas no art.º 2.º e art.º 29.º do C. C. Judiciais.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


"A" e mulher "B", operários, residentes no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., intentaram no 3.º Juízo Cível do T.J. da comarca de Barcelos - processo n.º 4052/03.3TBBCL - a presente acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra o Hospital "C", de ... e Hospital "D", em ..., pedindo que os réus sejam condenados a pagar a cada um dos demandados a quantia de € 75.000,00, com actualização à data da sentença.

Contestaram os réus pedindo a improcedência da acção.
O Hospital Distrital "D" também invocou a excepção de incompetência material do Tribunal Judicial da comarca de Barcelos, argumentando que é competente para julgamento o Tribunal Administrativo de Círculo.

Notificado para proceder ao pagamento, em dez dias, por autoliquidação, da taxa de justiça inicial de € 712,00 e da multa de € 890,00, o Hospital "C" veio requerer que, sendo o Hospital "C", uma pessoa colectiva de direito público tutelada pelo Ministério da Saúde, seja reconhecida e declarada a isenção de custas e taxas de justiça do Hospital "C" e, caso assim se não entenda, que seja reduzida a € 712,00 a multa aplicada.

O Ex.mo Juiz, entendendo que o actual Código das Custas Judiciais não é aplicável “in casu” e que a isenção de custas em relação ao Hospital réu se não verifica à luz do anterior C.C.J. – é agora uma sociedade anónima, pessoa absolutamente distinta do Estado – embora ordenando a rectificação pedida da liquidação da multa, indeferiu a pretensão deste Hospital.

Desta decisão interpôs recurso o demandado Hospital "C", que alegou e concluiu do modo seguinte:
1. À acção foi atribuído o valor de € 150.000,00, ao qual corresponde uma taxa de justiça inicial de € 712,00 ou 8 UC`s.
2. Nos termos do art. 6° do DL 324/2003, de 27/12/03, que alterou o Código das Custas Judiciais e ainda aditou os artigos 150-A, 486-A, 512-B e 690-B do CPC, só existirá a obrigação de pagamento da taxa de justiça quando tal for exigível e com a apresentação do respectivo articulado.
3. O Hospital "C" goza de isenção de pagamento de taxa de justiça inicial e, consequentemente de multa.
4. É demandado o Hospital "C", que é pessoa colectiva de direito público, NIF 600 ..., tutelada pelo Ministério da Saúde.
5. Pelo Dec. Lei n. 293/2002, de 11/12/2002, o Hospital "C", foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com a designação “Hospital "C", S.A”., com o NIPC P ....
6. Nos termos do artigo 2°, n° 2 do referido DL 293/2002, o Hospital está integrado no Serviço Nacional de Saúde, sem fins lucrativos, portanto, e o seu artigo 3° estabelece que o Hospital sucede em todos os direitos e obrigações do Hospital "C".
7. A gestão patrimonial e financeira é tutelada pelo Ministério das Finanças e de Saúde (art. 11.º do DL 293/2002).
8. Ao ser citado para esta acção, em Dezembro de 2003, ainda não se encontrava publicado, muito menos em vigor, o actual Código de Custas Judiciais, aprovado pelo Dec. Lei 324/2003, de 27/12/03, pois só entrou em vigor em 1/01/2004.
9. E o artigo 14.º do mesmo DL 324/2003 estabelece que as disposições do novo CCJ só se aplicam aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, pelo que, nos termos do art. 2° do anterior CCJ parece resultar, aliás, como era entendimento, que o Hospital estava e está isento de custas..
10. Aliás, a isenção subjectiva abrange o Estado em sentido amplo, incluindo os seus serviços ou organismos, ainda que personalizados, assim como as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.
11. Na verdade, como tal deverá ser considerado todo um conjunto de entidades públicas que desenvolvem, com personalidade jurídica própria e autonomia administrativa e financeira, uma actividade administrativa destinada à realização dos fins do Estado (Diogo Freitas do Amaral - curso de Dto Adm. - vol. 1 - Coimbra 1999 - 347 a 357 e 416 do C. Adm.).
12. Nos termos do art. 1°, n° 1 do CCJ na sua redacção anterior, a que corresponde o n° 2 do actual art. 1 ° do CCJ aprovado pelo referido DL 324/2003, as custas compreendem a taxa de justiça e os encargos.
13. Assim, o CCJ anterior é aplicável aos autos, pois que estes já se encontravam pendentes em 1/1/2004 (data da entrada em vigor do DL 324/2003 - art. 14°) e o n° 2 do mesmo art. 14 só se aplicará nos casos em que a taxa for devida, o que parece não ser o caso, e mesmo no domínio do CCJ anterior o regime para o não pagamento é o previsto no art. 28° e 30°.
14. Aliás, salvo melhor opinião, mesmo no domínio do novo CCJ o Hospital estará isento de pagamento da taxa de justiça, pois, sendo o Hospital demandado na qualidade de Réu, por razões que têm a ver somente com a prestação de cuidados de saúde, logo integrados no Serviço Nacional de Saúde, e tendo presente o disposto no art. 2°, conjugado com o n° 1, alínea a) e n° 2 parte final - ("nos restantes casos, aos processos em que aquelas entidades litiguem na qualidade de Réu ..."), todos do artigo 29 do CCJ na redacção do DL 324/2003, parece haver dispensa de pagamento prévio de taxa de justiça, que serão apuradas na conta a final (art. 30).
15. Na verdade, são tarefas fundamentais do Estado, nos termos dos arts. 9.º e 64° da Constituição da República, garantir o direito à prestação de saúde e o dever de a defender e promover, designadamente através do serviço nacional de saúde, universal e geral.
16. Parece, assim, salvo melhor opinião, que mesmo agora, na qualidade de demandado/Réu, o Hospital contestante estará dispensado do pagamento de taxas de justiça.
17. Assim, a douta decisão recorrida violou as disposições legais citadas, pelo que deverá ser revogada no sentido de ser reconhecida e declarada a isenção de pagamento da taxa de justiça por parte do Hospital, e, como consequência, anulada a liquidação da multa notificada.

Não foram apresentadas contra-alegações e Ex.mo Juiz manteve a decisão recorrida.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Passemos agora à análise das censuras feitas à decisão recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.).

A questão posta no recurso é a de saber se os Hospitais recentemente transformados em sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos estão isentos de custas.


I. Assentando-se que o Hospital recorrente anuiu à tese defendida na decisão recorrida de que é o C.C.J. vigente anteriormente ao actual (actualizado pelo Dec. Lei n.º 324/2003, de 27/12) o diploma legal aplicável ao caso “sub judice”, que também nos parece acertadamente decidida, a questão posta no recurso é a de saber se o “Hospital "C", S. A.” está isento de custas à luz daquele diploma legal.

Está isento de custas o Estado, incluindo os seus serviços ou organismos, ainda que personalizados – art.º 2.º, n.º1, al. a), do C. C. Judiciais.
As pessoas colectivas de direito público, criadas ou tuteladas pelo Estado e cujo aparecimento se justifica tão somente porque se torna obrigatória a realização de interesses públicos sem equacionar o recurso a empresas privadas, surgem no mundo da Administração providas de autoridade própria, necessária para levar por diante fins de interesse público.
Uma pessoa colectiva de direito público assim definida compreende o próprio Estado.
Consideramos, pois, pessoas colectivas de direito público, além do Estado, aquelas que, sendo criadas por acto do poder público, existem para a prossecução necessária de interesses públicos e exercem em nome próprio poderes de autoridade. Prof. Marcello Caetano; Direito Administrativo; Vol. I; pág. 184.
Neste enquadramento, contudo, torna-se necessário fazer a distinção dos aspectos em que o termo Estado pode ser tomado, demarcando-se-lhes o seu conteúdo de modo a prevenir confusões:
- Na acepção lata, o Estado é uma comunidade que em determinado território prossegue com independência e através de órgãos constituídos por sua vontade, a realização de ideais e interesses próprios, constituindo uma pessoa colectiva de direito internacional.
Na acepção restrita, o Estado é apenas a pessoa colectiva de direito público interno que no seio da comunidade referida na primeira acepção e para efeitos internos tem o Governo por órgão.
Pode dizer-se que neste sentido o Estado é o que resta da organização político-administrativa depois de criadas ou reconhecidas por lei as pessoas colectivas de direito público cuja existência o legislador repute necessária à boa gestão dos interesses gerais. Prof. Marcello Caetano; Ob. Cit.; Vol. I; pág. 186.

São múltiplos e variados os interesses públicos que o moderno Estado cumpre realizar; e para facilitar esta sua função o poder público cria e organiza assinaladas entidades jurídicas, com o propósito de melhor atingir esta sua incumbência e circunscrita a certas e determinadas tarefas especificas, conectadas com prementes interesses de ordem pública, a este fenómeno de descentralização administrativa se chamando também devolução de poderes.
A par das atribuições estaduais que o Estado guarda para a administração directa sob a gestão imediata dos seus órgãos e através dos serviços integrados na sua pessoa, há outros cujo desempenho, por virtude de um expediente técnico-jurídico, a lei incumbe a pessoas colectivas de direito público distintas do Estado mas que a este ficam ligadas, de modo que se pode falar numa administração indirecta pelo mesmo Estado. Prof. Marcello Caetano; Ob. Cit.; Vol. I; pág. 187.



O “Hospital "C", S..A.”, é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, pessoa colectiva de direito público tutelado pelo Ministério da Saúde, posta ao serviço do cidadão comum desta região para lhe prestar os indispensáveis cuidados de saúde e aos quais tem indubitável direito.
Ora, se é assim, não precisamos de aprofundar muito mais as nossas reflexões para concluirmos que este Hospital, não estando enquadrado no domínio da gestão governativa do Estado, não se inclui em qualquer uma das acepções em que pode ser reputado o Estado.

II. Poder-se-á incluir o Hospital "C" S.A.”na categoria conceptual de pessoa colectiva de utilidade pública administrativa que o disposto na al. f) do n.º 1 do artigo 2.º do C. C. Judiciais em exame também isenta de custas?
Vejamos.
Consideram-se pessoas colectivas de utilidade pública administrativa as associações beneficientes ou humanitárias e os institutos de assistência ou educação, tais como hospitais, hospícios, asilos, casas pias, creches, lactários, albergues, dispensários, sanatórios, bibliotecas e estabelecimentos análogos, fundados por particulares, desde que, umas e outras aproveitem em especial aos habitantes de determinada circunscrição e não sejam administrados pelo Estado ou por um corpo administrativo. Artigo 416.º do C. Administrativo
Esta expressão abrange, portanto, associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados e fundações de interesse social (e nesse fim não económico ou interesse social está a essência da utilidade pública) cujos fins coincidam com atribuições da Administração Pública (utilidade pública administrativa). Nesta coincidência ou concorrência se acha o fundamento da qualificação da utilidade pública como administrativa, podendo portanto haver numerosíssimas pessoas colectivas de utilidade pública meramente civil, isto é, não administrativa.Prof. Marcello Caetano; Ob. Cit.; Vol. I; pág. 399.
As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa equivalem a pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública - quando a utilidade pública visada seja predominantemente local, competindo a respectiva administração a particulares e não a entes públicos - de fim altruístico e predominantemente local. Prof. Manuel de Andrade; Teoria Geral da Relação Jurídica; 1966, pág.90.
Agora a categoria das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa dissolve-se na figura actual da pessoa colectiva de utilidade pública (cfr. artigos 1.º, n.º 2, 4.º, n.º 1, 14.º do Dec. Lei n.º 460/77) e uma importante espécie de pessoas colectivas de utilidade pública são as instituições de solidariedade geral (cfr. artigo 8.º do respectivo estatuto 119/93, de 25.02). Prof. João de Castro Mendes; Teoria geral do direito civil; pág. 432.
São pessoas colectivas de utilidade pública que não sejam instituições particulares de solidariedade social e prossigam qualquer dos fins previstos no art.º 416.º do C. Administrativo, como é o caso das associações humanitárias cujo objecto seja o socorro de feridos, náufragos ou doentes, a extinção de incêndios ou qualquer outra forma de protecção desinteressada de vidas humanas ou bens Prof. Diogo Freitas do Amaral; Curso de D. Administrativo, I, pág. 552/557., cujo regime jurídico assenta na iniciativa privada e se caracteriza por uma maior vigilância e intervenção da autoridade pública, relativamente a certas entidades privadas às quais pelos seus instituidores ou associados hajam sido dadas determinadas finalidades reputadas de interesse público. Prof. Marcello Caetano; Ob. Cit.; Vol. I; pág. 397.

O Hospital "C", transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos com a designação de “Hospital "C", S.A.” e integrado no Serviço Nacional de Saúde, rege-se, para além das disposições que integram o Dec. Lei n.º 293/2002, de 11/12, pelos seus Estatutos, pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado e pela lei reguladora das sociedades anónimas, bem como pelas normas especiais cuja aplicação decorra do seu objecto social e do seu regulamento - artigo 4.º deste diploma legal que procedeu à reforma do sector da saúde com vista a uma profunda reestruturação do Serviço Nacional de Saúde.
Teve-se em vista o desiderato final da modernização e renovação do actual Serviço Nacional de Saúde e, neste contexto, adoptar de forma inequívoca um genuíno modelo de gestão hospitalar de natureza empresarial, conferindo-lhe um novo estatuto, bem como um novo modelo de gestão e de um novo modelo de contratação e financiamento das prestações de saúde, pretendendo-se alterar tão-só o modelo de gestão, mantendo-se intacta a responsabilidade do Estado pela prestação dos cuidados de saúde, isto é, o que se pretende é a empresarialização da gestão dos serviços públicos e não a sua privatização. Preâmbulo do Dec. Lei n.º 293/2002, de 11/12.
Ora, se é assim, não poderemos deixar de concluir também que o “Hospital "C", S.A.” está muito distanciado de poder ser caracterizado como uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, cuja constituição e desenvolvimento, em termos genéricos, é já uma reminiscência do passado.

A isenção de custas dos Hospitais só nos casos pontualmente assinalados pelo legislador poderá ter lugar (por exemplo quando estejamos perante a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde e se verificarem os pressupostos descritos no Dec. Lei n.º 194/92, de 08.09 - art.º 11.º); e a nova feição - mais empresarial - recentemente dada ao Hospital demandado vem acentuar com maior relevância a orientação que já antes se vinha dando no sentido de que os Hospitais não se incluíam no elenco das entidades enumeradas no art.º 2.º do C. C. Judiciais.

III. Tendo na devida conta que é o Código das Custas Judiciais em vigor até 31.12.2003, isto é, antes da sua actualização e alteração enunciada no Dec.Lei n.º 324/2003, de 27/12, o diploma aplicável ao caso ora em exame, poderemos também dizer que a isenção que nele se descreve no artigo 29° não contempla o “Hospital "C", S.A.”
Na verdade, surgindo agora esta instituição de saúde como uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos cujo capital, realizado e subscrito pelo Estado social, é de € 9 980 000 e está sujeita ao regime jurídico do sector empresarial estatal e lei reguladora das sociedades anónimas, dúvidas não podemos ter de que a sua designação não faz parte daquele normativo legal.
Igualmente asseveramos que a não abrangência desta sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos na disciplina legal do art.º 29.º do C.C.Judiciais não contende com o princípio constitucional da garantia do direito à prestação de saúde e o correspectivo dever de a defender e promover estatuído nos artigos 9.º e 64° da Constituição da República.


Pelo exposto, negando-se provimento ao agravo, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo agravante.

Guimarães, 23 de Junho de 2004.