ESCUTA TELEFÓNICA
PROIBIÇÃO DE PROVA
Sumário

I – Nos modernos sistemas de transmissão, o registo dos dados pessoais relativos ao tráfego telefónico e à facturação é realizado pelo correspondente operador do serviço no final da fase dinâmica do fluxo ou do diálogo comunicativo (cf. no caso português, os artigos 6° e 7° da Lei n° 41/2004, de 18 de Agosto).
II – Tal registo destina-se em primeira linha à cobrança junto do cliente, mas pode servir aos investigadores para apurar elementos memorizados em bancos de dados sobre os autores da comunicação, o momento em que foi realizada, o lugar, o volume e a duração do tráfego telefónico, sendo que, em tais casos, as comunicações já estão realizadas e o registo dos dados comprova apenas a existência histórica do fluxo ou do diálogo, isto é, da anterior fase dinâmica.
III – Não se fazendo uso de técnicas invasivas para apreender o conteúdo comunicativo no próprio momento em que se exprime ou produz, dir-se-ia não haver razões para submeter a colheita desses elementos às formalidades das operações de escuta, previstas nos artigos 187° e segs. do CPP, ao menos enquanto uma tal documentação se possa fazer corresponder a uma normal agenda onde alguém registasse os contactos dos amigos e conhecidos.
IV – No que toca à identificação da comunicação e do seu destinatário, momento em que foi efectuada e correspondente duração, há por isso quem os submeta, não ao sigilo das telecomunicações, cujo regime, nessa perspectiva, se lhes não adequa, mas a uma relação de confidencialidade estabelecida numa base contratual entre o utente e a operadora de telecomunicações, isso mesmo derivando do artigo 17°, n° 2, da Lei n° 91/97, de l de Agosto, alterada pela n.° 29/2002, de 6 de Dezembro (Lei de Bases de Telecomunicações), ao prescrever que “com os limites impostos pela sua natureza e pelo fim a que se destinam, é garantida a inviolabilidade e o sigilo dos serviços de telecomunicações de uso público, nos termos da lei”.
V – Acontece que, actualmente, os dados de tráfego aparecem legalmente equiparados aos dados de conteúdo para efeito de garantia da inviolabilidade das comunicações, dizendo, com efeito, o artigo 4°, n° 1, da Lei n° 41/2004, de 18 de Agosto, que “as empresas., que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público”, sendo “proibida a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outros meios de intercepção ou vigilância de comunicações e dos respectivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, com excepção dos casos previstos na lei” (n° 2), ainda que o disposto neste artigo 4°, não impeça “as gravações legalmente autorizadas de comunicações e dos respectivos dados de tráfego, quando realizadas no âmbito de práticas comerciais licitas, para o efeito de prova de uma transacção comercial nem de qualquer outra comunicação feita no âmbito de uma relação contratual desde que o titular dos dados tenha sido disso informado e dado o seu consentimento”.
VI – Perante uma tal equiparação, e tendo presente o regime da intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas vertido no artigo 187° do CPP, tem de estar em causa, desde logo, a prática de um dos crimes referidos no preceito, exigindo-se, ademais, que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
VII – A acentuar a reserva de jurisdição, o artigo 269°, n° 1, alínea c), do CPP, estabelece a competência exclusiva do juiz de instrução para ordenar ou autorizar intercepções, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187° e 190º, pelo que nem o MP nem qualquer órgão de policia criminal está legitimado para realizar qualquer forma de escuta, intercepção ou registo, nem mesmo em caso de necessidade ou urgência, sendo ainda que, atenta a sua natureza invasiva, às escutas só se pode recorrer quando se mostrarem essenciais para a descoberta da verdade ou para a prova (princípio da “subsidariedade” no qual estão implícitos os princípios da adequação e idoneidade).
VIII – Os elementos de prova solicitados à operadora telefónica – dados de tráfego - contendem, pois, na perspectiva legal, com bens jurídicos pessoais que atingem a esfera da privacidade, normalmente de mais de uma pessoa, viabilizando o acesso tanto à esfera jurídica do autor como do destinatário da comunicação, relevando, consequentemente, o princípio da proibição de produção de tal prova, ao abrigo do disposto no artigo 126°, n° 3, do CPP, tornando-a ilícita se não for obtida pela via desse artigo 269°, n° 1, alínea c).

Texto Integral

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães

Numa investigação por tráfico de estupefacientes, o Ministério Público de Viana do Castelo solicitou à operadora de telecomunicações "A", SA, a indicação do PIN (personal identification number) e o PUK (personal unbloking number) relativos a um cartão que a mesma tinha emitido, para poder efectuar a listagem das chamadas, mas na resposta invocou-se a circunstância de se tratar de dados de tráfego, o que imporia a autorização do juiz de instrução. Insistiu o MP, referindo os artigos 519º, nº 2, do CPC, e 360º, nº s 1 e 2, do CP, acabando a "A" por deduzir incidente de escusa da prestação da informação relativa ao PIN e PUK ou de telefone referente ao cartão 967....
Recorre agora a "A" do despacho que, na sequência disso, a condenou na multa de 6 euros por recusa ilegítima de colaboração na descoberta da verdade, ao abrigo do disposto nos artigos 519º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, 4º do Código de Processo Penal, e 102º, alínea b), do Código das Custas Judiciais. O Tribunal entendeu que, “encarados isoladamente, os números de PIN e PUK pouco revelam que possa contender com a reserva da intimidade da vida privada do utilizador do respectivo cartão telefónico”. Mas mesmo que encarados tais elementos como verdadeiros dados de base, “competirá ao MP a sua concreta solicitação às operadoras telefónicas”.
Em desenvolvido parecer, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto conclui que o recurso merece provimento.

Colhidos os “vistos” legais, cumpre apreciar e decidir.

Nos modernos sistemas de transmissão, o registo dos dados pessoais relativos ao tráfego telefónico e à facturação é realizado pelo correspondente operador do serviço no final da fase dinâmica do fluxo ou do diálogo comunicativo (cf., no caso português, os artigos 6º e 7º da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto). Tal registo destina-se em primeira linha à cobrança junto do cliente, mas pode servir aos investigadores para apurar elementos memorizados em bancos de dados sobre os autores da comunicação, o momento em que foi realizada, o lugar, o volume e a duração do tráfego telefónico. Em tais casos, as comunicações já estão realizadas, o registo dos dados comprova apenas a existência histórica do fluxo ou do diálogo, isto é, da anterior fase dinâmica.
Não se fazendo uso de técnicas invasivas para apreender o conteúdo comunicativo no próprio momento em que se exprime ou produz, dir-se-ia não haver razões para submeter a colheita desses elementos às formalidades das operações de escuta, previstas nos artigos 187º e segs. do CPP, ao menos enquanto uma tal documentação se possa fazer corresponder a uma normal agenda onde alguém registasse os contactos dos amigos e conhecidos. ( Na Itália, sobre a disciplina dos dados exteriores de uma comunicação, veja-se Carmelo Idda, “I ‘dati esteriori’ delle conversazioni telefoniche e loro pretesa reconducibilità al concetto di comunicazione”, in Giurisprudenza Italiana 2001, p. 1702. Igualmente com interesse é o estudo de Cristina Máximo dos Santos, “As novas tecnologias da informação e o sigilo das comunicações”, RMP nº 99, 2004, p. 89.)
No que toca à identificação da comunicação e do seu destinatário, momento em que foi efectuada e correspondente duração, há por isso quem os submeta, não ao sigilo das telecomunicações, cujo regime, nessa perspectiva, se lhes não adequa, mas a uma relação de confidencialidade estabelecida numa base contratual entre o utente e a operadora de telecomunicações. Isso mesmo derivaria do artigo 17º, nº 2, da Lei nº 91/97, de 1 de Agosto, alterada pela Lei n.º 29/2002, de 6 de Dezembro (Lei de Bases de Telecomunicações), ao prescrever que “com os limites impostos pela sua natureza e pelo fim a que se destinam, é garantida a inviolabilidade e o sigilo dos serviços de telecomunicações de uso público, nos termos da lei”. O mesmo resultaria, aliás, antes de revogado, do artigo 5º da Lei nº 69/98, de 28 de Outubro (Lei de Protecção de Dados Pessoais no Sector das Telecomunicações), onde se dispunha expressamente sobre a confidencialidade e o sigilo das comunicações, garantida pelos prestadores de serviços e os operadores de rede.
Acontece que, como já se notava no acórdão desta Relação de 10 de Janeiro de 2005, CJ 2005, tomo I, pág. 294, actualmente, os dados de tráfego aparecem legalmente equiparados aos dados de conteúdo para efeito de garantia da inviolabilidade das comunicações. Diz, com efeito, o artigo 4º, nº 1, da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, que “as empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público”, sendo “proibida a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outros meios de intercepção ou vigilância de comunicações e dos respectivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, com excepção dos casos previstos na lei” (nº 2), ainda que o disposto neste artigo 4º, não impeça “as gravações legalmente autorizadas de comunicações e dos respectivos dados de tráfego, quando realizadas no âmbito de práticas comerciais lícitas, para o efeito de prova de uma transacção comercial nem de qualquer outra comunicação feita no âmbito de uma relação contratual, desde que o titular dos dados tenha sido disso informado e dado o seu consentimento”.
Perante uma tal equiparação, e tendo presente o regime da intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas vertido nos artigo 187º do CPP, tem de estar em causa, desde logo, a prática de um dos crimes referidos no preceito, exigindo-se, ademais, que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou p0ara a prova. A intercepção e gravação de conversações e comunicações não são admitidas para qualquer crime mas apenas para crimes cuja gravidade justifica uma tão acentuada limitação da liberdade individual, os crimes ditos do catálogo. O nº 1 do artigo 187º exprime, por sua vez, restrições concretas, como na alínea a), permitindo as escutas apenas quanto a crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos; ou como na alínea e), ao exigir razões para crer que a diligência se revele de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. O que será aferido, sempre e só, por despacho motivado do juiz (artigos 187º, nº 1).
Aliás, a acentuar a reserva de jurisdição, o artigo 269º, nº 1, alínea c), do CPP, estabelece a competência exclusiva do juiz de instrução para ordenar ou autorizar intercepções, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187º e 190º. Nem o MP nem qualquer órgão de polícia criminal está legitimado para realizar qualquer forma de escuta, intercepção ou registo, nem mesmo em caso de necessidade ou urgência. Atenta a sua natureza invasiva, às escutas só se pode recorrer quando se mostrarem essenciais para a descoberta da verdade ou para a prova (princípio da subsidariedade, no qual estão implícitos os princípios da adequação e idoneidade).
Os elementos de prova solicitados à "A" contendem, pois, na perspectiva legal, com bens jurídicos pessoais que atingem a esfera da privacidade, normalmente de mais de uma pessoa, viabilizando o acesso tanto à esfera jurídica do autor como do destinatário da comunicação, relevando, consequentemente, o princípio da proibição de produção de tal prova, ao abrigo do disposto no artigo 126º, nº 3, do CPP, tornando-a ilícita se não for obtida pela via desse artigo 269º, nº 1, alínea c).
Com estes pressupostos, é pois de seguir a orientação do acórdão desta Relação de 10 de Janeiro de 2005, a que atrás fizemos referência. ( Além do acórdão da Relação de Guimarães de 10 de Janeiro de 2005 CJ 2005, tomo I, p. 294, pode ver-se igualmente o acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Dezembro de 2003 CJ 2003, tomo V, p. 148, que também entendeu que a listagem das chamadas telefónicas efectuadas, a solicitação do MP, sem consentimento do titular do aparelho utilizado, só é válida como meio de prova quando previamente autorizada pelo juiz de instrução, sob pena de nulidade; tal prova será ilícita se não for obtida ao abrigo do disposto no artigo 269º, nº 1, alínea c), uma vez que de registo de conversação efectivamente se trata. O acórdão do Tribunal Constitucional nº 241/2002 DR II série de 23 de Julho de 2002, relaciona, por sua vez, a facturação detalhada com a quebra do véu da intimidade da vida privada, mas o acórdão tem outras razões de interesse, por se referir com algum pormenor tanto às tecnologias da informação, como à confidencialidade e ao sigilo das telecomunicações.) Como aí se escreve, “essas informações, abrangidas pelo princípio da confidencialidade das comunicações, apenas poderão ser fornecidas nos termos e pelo modo em que a lei do processo penal permite a intercepção das comunicações, dependendo como tal da autorização do juiz de instrução”.
Não estando assim em causa uma simples relação de confidencialidade estabelecida numa base contratual entre o utente e a operadora de telecomunicações, também não era de exigir à "A" a “prestação da colaboração devida na descoberta da verdade” a que a mesma se escusou, o que veio a servir de fundamento à sua condenação em multa, que por isso mesmo não poderá subsistir.
Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso de "A", SA, revogando-se a decisão recorrida na parte em que a condenou em multa.
Não são devidas custas.
Guimarães,