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CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
MOTOCICLO
PERDA DE INSTRUMENTO DO CRIME
Sumário
I. A perda dos instrumenta e dos producta sceleris colhe o seu fundamento nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade daqueles (que não na perigosidade do agente do facto ilícito praticado ou na culpa deste ou de terceiro).
II. Para que a perda dos instrumentos e produtos do crime possa ser decretada exige-se – a par do cometimento de um facto ilícito-típico e da perigosidade do objecto – que se apresente proporcionada à gravidade daquele facto e à perigosidade do objecto.
III. Daí que a condenação do arguido pela prática de um crime de condução de motociclo sem a legal habilitação não justifique, por si só, a declaração de perda do motociclo a favor do Estado.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I- Realizado o julgamento, em processo sumário, no 2ºJuízo de Competência Especializada Criminal da Comarca de …, foi proferida sentença que
a) Condenou o arguido A, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.e p. no art.º 3º, n.º 2 do D.L. n.º2/98, de 3JAN, na pena de oitenta dias de multa, à taxa diária de duzentos escudos, o que totaliza dezasseis mil escudos;
b) Nos termos do artº 80º, n.º 2 do Cód. Penal, ordenou o desconto de um dia à pena de multa, devido ao período de detenção sofrida pelo arguido à ordem daquele processo;
c) Declarou perdido a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artº 109º, n.º 1 do Cód. Penal, o motociclo com a matrícula 34-95-EX;
d) Nos termos do artº 17º, n.º 1 da Lei n.º 57/98, de 18AGO, determinou a não transcrição da condenação nos certificados a que aludem os artºs 11º e 12º do mesmo diploma legal.
Inconformado, interpôs recurso o arguido, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
A- Deve a decisão «sub judice», no tocante ao tipo legal de crime, ser correctamente enquadrada.
B- Deve, também, a medida concreta da pena ser alterada face ao tipo legal de crime cometido.
C- Mais deve ser alterada a condenação da perda do ciclomotor a favor do Estado por medida que possibilite e imponha a obrigação de o recorrente adquirir habilitação legal para conduzir.
Contramotivou o Ex.º Magistrado do M.P. junto do tribunal a quo, pugnando pela procedência do recurso, mas apenas no que tange à questão da perda do veículo a favor do Estado, confirmando-se, em tudo o mais, a sentença recorrida, posição que viria a ser sufragada pelo Ex.º Procurador-Geral-Adjunto, nesta Relação.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência de julgamento, cumpre decidir.
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II- Para responder às questões pelo recorrente suscitadas nas conclusões por ele extraídas da motivação do recurso (e, consabidamente, são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum), há que passar em revista a factualidadedada como provada e que é a seguinte:
No dia … …. …, cerca das … horas, o arguido conduziu o motociclo com a matrícula …-…-EX, propriedade sua, pela Avenida …, em …;
O motociclo referido tinha cilindrada não superior a 50 centímetros cúbicos;
O arguido não era titular de licença de condução ou documento equivalente que o habilitasse para a condução de motociclos com cilindrada não superior a 50 centímetros cúbicos;
O arguido actuou de forma voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei;
O arguido não tem antecedentes criminais; frequenta o 10° ano de escolaridade, não exercendo qualquer actividade remunerada; vive com sua mãe;
O arguido comprou o motociclo dos autos com dinheiro oferecido por um seu avô;
O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos acima referidos.
Não tendo sido requerida a documentação dos actos de audiência (o que vale como renúncia ao recurso, em matéria de facto), este tribunal conhece apenas de direito, sem prejuízo, porém, do conhecimento (oficioso, aliás, de harmonia com o Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 19OUT95, publicado no DR, 1ª-A Série, de 28DEZ95), dos vícios referidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artº 410º do CPP. É o que estatui o artº 428º, com referência ao disposto no n.º2 do artº 389º, ambos do CPP.
Refira-se, a este propósito, que a sentença recorrida enferma de contradição na sua fundamentação.
Com efeito deu o tribunal a quo como provado que o “motociclo” pelo arguido conduzido tem a “matrícula …-…-EX”. Tal facto é, porém, inconciliável com estoutro, igualmente dado como provado: “O motociclo referido tinha cilindrada não superior a 50 centímetros cúbicos”.
É inquestionável que, face ao seu número de matrícula, o motociclo tinha mais de 50 centímetros cúbicos de cilindrada; o mesmo é dizer que, não sendo superior a cinquenta centímetros cúbicos a cilindrada do seu motor de propulsão, o número de matrícula do motociclo seria constituído - não por duas - mas por três letras.
É o que resulta do preceituado no n.º 1 do artº 1º do Decreto Regulamentar n.º 13/98, de 15JUN, que reza assim: “O número de matrícula dos motociclos com cilindrada não superior a 50 centímetros cúbicos e dos ciclomotores é constituído por um grupo de três letras, correspondentes à câmara municipal onde aquela matrícula é efectuada, a começar em 1, e seguidas por dois grupos de dois algarismos, correspondentes ao número de ordem do registo, conforme consta dos modelos I e II em anexo ao presente diploma.”
Acontece, porém, que é irrelevante para a decisão que a cilindrada do motociclo pelo arguido conduzido seja superior ou não superior a 50 cm3.
É que, mesmo nesta última hipótese, o veículo não deixaria de ser considerado motociclo, uma vez que, nos termos do n.º 2 do artº 107º do Cód. da Estrada, a cilindrada do motor de propulsão não é o único critério definitório de motociclo, sendo incontroverso que, como se referiu, a matrícula que lhe foi atribuída pelas competentes autoridades registrais administrativas, após prévia inspecção, é próprio de um motociclo.
Por outro lado, não sendo o arguido titular de licença de condução ou documento equivalente que o habilitasse para a condução de motociclos com cilindrada não superior a cinquenta centímetros cúbicos (facto igualmente dado como provado), também não estava legalmente habilitado a conduzir motociclos munidos de motor de propulsão com cilindrada superior a cinquenta centímetros cúbicos, como flui da conjugação do disposto nos artºs 123º, n.º 3 e 124º, n.º 2, ambos do Cód. da Estrada.
Ora, a condução de motociclo - sejam quais forem as suas características - é subsumível na previsão do normativo do n.º 2 do artº 3º do DL n.º 2/98, de 3JAN.
Feita esta observação, debrucemo-nos sobre a primeira das questões pelo recorrente suscitadas.
Para sustentar a sua tese - segundo a qual o facto por ele praticado constitui o crime p. e p. pelo n.º 1 do artº 3º do DL 2/98, de 3JAN (e não pelo n.º2 do mesmo normativo), argumenta o arguido/recorrente que o veículo por ele conduzido é, não um motociclo, mas um ciclomotor, pois que a sua cilindrada não é superior a 50 centímetros cúbicos.
Como resulta das considerações supra-referidas, a tese, aliás douta, pelo arguido defendida, arranca de uma leitura redutora das normas dos n.ºs 1 e 2 do cit. artº107º, pois que se limita a apelar à cilindrada do veículo, fazendo tábua rasa da velocidade do mesmo, critério definitório de motociclo, consagrado, em alternativa à cilindrada, no 2º segmento do n.º1 do artº 107º e elemento - cumulativamente exigido pelo n.º2 do mesmo artº (a par da cilindrada não superior a 50 cm3) - para que um veículo possa ser considerado ciclomotor.
Improcede, pois, a primeira das questões pelo recorrente suscitadas.
E - louvando-a no enquadramento jurídico-penal da sua conduta que considera correcto, ou seja, no n.º 1 do artº 3º do DL n.º 2/98, mas que, pelas razões que acabam de ser expostas, não pode ser acolhido - improcede igualmente a pretensão do arguido de ver alterada a pena que lhe foi imposta, pena essa que, de resto, se mostra graduada de harmonia com os critérios gerais a que obedece a determinação concreta da pena, estabelecidos no artº 71º, n.º 1 do CP, concretizados pelo n.º 2 do mesmo artº.
O mesmo não poderá dizer-se da questão da perda do motociclo a favor do Estado, cuja declaração o tribunal recorrido louvou na seguinte fundamentação: «O motociclo dos autos foi instrumento essencial da prática do crime dos autos; para além disso, o arguido, que é o proprietário do motociclo, não é titular de licença de condução ou documento equivalente que o habilite para a condução de veículos dessa categoria. É, pois, grande o risco de o motociclo ser novamente utilizado pelo arguido para a prática de crimes de condução sem habilitação legal caso permaneça na sua titularidade. Logo, nos termos do artº 109º, n.º 1 do Código Penal, deverá o motociclo ser declarado perdido a favor do Estado”.
Sob a epígrafe «Perda de instrumentos e produtos», estatui o artº109º, n.º1 do Cód. Penal revisto pelo D.L.n.º48/98, de 15MAR: «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos».
Sendo o motociclo, à data do facto, propriedade do arguido, não há que chamar à colação o normativo do art.º 110º do C.P., que prevê a perda a favor do Estado de objectos pertencentes a terceiro.
O primeiro dos pressupostos da declaração de perda dos objectos, exigidos pelo cit. artº 109º, é que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito-típico (os instrumenta sceleris), ou que por este tenham sido produzidos (os producta sceleris).
De sublinhar que a revisão do Cód. Penal operada pelo cit. D.L. n.º 48/95 substituiu os termos «crime» e «crimes» constantes do texto do n.º 1 do artº 107º da versão originária, correspondente ao n.º1 do actual artº 109º, por «facto ilícito típico» e «factos ilícitos típicos», precisamente para vincar que a culpa do agente não constitui pressuposto da perda, funcionando, pois, o instituto tanto relativamente aos imputáveis como relativamente aos inimputáveis.
Não basta, porém, a prática de um facto ílícito-típico para decretar a perda dos instrumentos e produtos.
O cit. artº 109º, n.º1 exige mais: que os objectos do facto ilícito-típico, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, sejam perigosos. Só esses e não todos os objectos que constituam instrumentos ou produtos do facto ilícito-típico devem ser declarados perdidos a favor do Estado.
No dizer do Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Parte Geral-II, § 988) perigosos devem considerar-se «aqueles instrumentos ou produtos que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa»
Respondendo à questão de saber sob que ponto de vista deve ser avaliada a perigosidade, conclui F. Dias(Op. Cit., §§ 989/990) que «em primeira linha (...) deve ser a perigosidade do objecto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém - o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar, etc. - que justifica, em perspectiva politico-criminal, a perda», perigosidade essa que «não deve ser avaliada em abstracto, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (...) Esta conexão entre a perigosidade do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por implicar uma referência ao próprio agente (ponto de vista subjectivo)».
A perda dos instrumenta e dos producta sceleriscolhe, pois, o seu fundamento nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade daqueles - que não naperigosidade do agente do facto ilícito-típico praticado (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (o que obsta a que possa ser entendida como pena acessória). E porque tem como pressupostos de aplicação a prática de um facto ilícito-típico (com idêntico conteúdo ao do facto ilícito-típico enquanto pressuposto de aplicação das medidasde segurança não privativas de liberdade) e a perigosidade (pese embora, repete-se, referida ao objecto, que não ao agente do ilícito-típico) - visando, assim, obstar ao risco de cometimento de novos factos ilícitos-típicos, através do mesmo instrumento ou do produto do ilícito-típico perpetrado - a perda dos instrumentos (e dos produtos) configura-se como uma providência de natureza similar à das medidas de segurança, entendimento este que, de resto, resultava já do pensamento legislativo e do texto legal, no domínio da versão originária do C.P.
Flui da natureza jurídica assinalada ao instituto (bem como, aliás, resulta da ausência de qualquer ligação desta com a culpa do agente pelo ilícito-típico praticado) que a perda de instrumentos e produtos não pode ser decretada independentemente da gravidade do facto ilícito-típico perpetrado. Ao invés, só o deve ser se se apresentar proporcionada à gravidade daquele facto e à perigosidade doobjecto.
A referida proporcionalidade constitui, assim, a par do cometimento de um facto ilícito-típico e da perigosidade do objecto, outro dos requisitos da aplicação da providência em causa (sobre a questão, cfr. F. Dias, op. cit., §§ 981 e ss; Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 8ª ed., pgs. 474/477).
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Regressando ao caso dos autos, há que concluir pela não verificação de todos os pressupostos de que depende o decretamento da perda do motociclo em questão.
Efectivamente, pese embora o arguido tenha sido condenado pela prática de um crime (condução de veículo automóvel sem a legal habilitação, p. e p. pelo artº 3º, n.º2 do cit. D.L. n.º2/98), o motociclo pelo arguido conduzido não é um objecto perigoso, quer atenta a sua natureza intrínseca (em si mesmo considerado, o motociclo está vocacionado para o transporte de pessoas e/ou para a prática de determinados desportos, que não para a prática de factos ilícitos) quer perante as concretas circunstâncias do caso quer, finalmente, em face da personalidade e condições de vida do arguido (delinquente primário, tendo dezasseis anos de idade; frequenta o 10º ano de escolaridade; vive com a mãe e, como se esclarece na sentença recorrida, em sede de fundamentação de direito, encontra-se socialmente inserido).
A par da inexistência do sério risco de utilização do motociclo para o cometimento de novos crimes ou de meros ilícitos-típicos, também o aludido princípio da proporcionalidade desaprova o decretamento da perda do motociclo (caso idêntico foi decidido, no mesmo sentido, pelo acórdão desta Relação, de 6NOV01- Proc. n.º 1381/01, de que foi também relator o do presente acórdão).
III- Face ao exposto, na parcial procedência do recurso
a) revoga-se a sentença recorrida, no que concerne ao decretamento da perda do motociclo em questão e, consequentemente, determina-se a entrega do mesmo e respectivos documentos ao arguido;
b) Confirma-se, em tudo o mais, a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em duas UCs a taxa de justiça.
Honorários nos termos do ponto 6 da tabela anexa à Portaria nº 150/2002, de 19FEV.
Évora, 14 de Maio de 2002
Manuel Nabais
Sérgio Poças
Orlando Afonso
Ferreira Neto