PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Sumário


Os procedimentos cautelares constituem meios de composição provisória de direitos ou interesses, baseados em fumus boni juris e summaria cognitio a fim de obstar ao periculum in mora e tudo segundo um nexo de instrumentalidade hipotética.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

“A” e cônjuge, “B”, em procedimento cautelar comum instaurado vs. “C”, casada com “D”, e “E”, requereram seja ordenada "a entrega imediata do estabelecimento comercial" que identificam.
Fundaram-se, em essência, na alegação de que:
- requerentes e requeridos acordaram, por escrito, em como aqueles cederam a es-tes a exploração do estabelecimento comercial de restaurante e snack-bar, designado "...", sito no rés do chão, com logradouro, do prédio urbano, na Rua ..., nº ..., em ..., com o art. ... da matriz predial urbana da freguesia de ...;
- o contrato foi feito pelo prazo de um ano, com início em 1 de Julho de 2002, sendo o termo do contrato fixado para o dia 30 de Junho de 2003;
- acordaram requerentes e requeridos que estes últimos pagariam aos primeiros a quantia mensal de 448,92 €;
- foi facultada aos requeridos a utilização dos móveis, utensílios e equipamentos existentes no estabelecimento, a ser restituídos no fim do contrato;
- ficaram a cargo dos requeridos os pagamentos inerentes ao funcionamento do es-tabelecimento;
- os requeridos não observaram as condições constantes do contrato;
- e, entre outros factos, que serão alegados na acção a interpor – designadamente, a realização de obras sem a necessária autorização, a alteração dos móveis e substituição de utensílios e equipamento eléctrico, que serão objecto de pedido de indemnização na dita acção:
- os requeridos deixaram de liquidar a prestação mensal de Junho de 2003, o que seria motivo para rescisão do contrato e consequente devolução do estabelecimento;
- o que até aqui era um estabelecimento de restaurante e snack-bar, deixou de ser-vir refeições, passando a funcionar como café–pastelaria;
- pretendendo evitar a continuação e o agravamento dos prejuízos, nomeadamente a perda de clientela, danificação e extravio de utensílios, bem como a continuação da exploração sem o pagamento da correspondente prestação monetária, vêm os requeren-tes, solicitar, como providência para assegurar a efectividade dos seus direitos, que seja ordenada a imediata devolução do estabelecimento comercial;
- atendendo à demora da acção principal, que é incompatível com o justo receio e dos prejuízos que possam advir aos requerentes, pretendem estes passar, de imediato, a explorar o estabelecimento, atraindo de novo clientela, e salvaguardar os móveis e utensí-lios;
- a perda de clientela dificilmente é quantificável, mas é certo que os requeridos passaram a explorar o estabelecimento comercial apenas como pastelaria, tendo inclusive mudado o nome para "...";
- não são conhecidos bens ou rendimentos aos requeridos que lhes permitam su-portar os danos provocados no estabelecimento comercial;
- o contrato de cessão de exploração já caducou;
- os requeridos não manifestam a menor vontade em entregar o estabelecimento comercial aos requerentes, pois não falam com estes, não atendem o telefone e o estabe-lecimento é neste momento explorado por terceiros às ordens dos requeridos;
- a audição dos requeridos, além de fazer perigar mais o justo receio dos requeren-tes, não deixará de prejudicar o fim útil pretendido com a providência.

Apreciando o assim requerido, o tribunal a quo, em despacho liminar, decidiu:
"Indefiro liminarmente o procedimento cautelar instaurado, por manifesta impro-cedência do pedido aí formulado.".

Inconformes, os requerentes apresentaram-se a recorrer, propugnando que "deverá ser o despacho revogado e substituído por outro recebendo a providência cautelar não especificada", em vista do que concluiu a sua alegação da seguinte forma:
"Em conclusão, o despacho recorrido não apreciou as invocadas lesões, nem o re-ceio de futuras lesões, ainda que de igual natureza. A saber;
• O não pagamento das prestações mensais;
• Realização de obras não autorizadas,
• Substituição de utensílios e equipamentos;
• Mudança do fim a que se destina o locado;
• Perda de clientela;
• Caducidade do contrato de cessão de exploração.
O conhecimento de tais lesões é essencial à decisão.".

Sustentou o tribunal de 1ª instância, em moldes genéricos [1] , a sua decisão.
Corridos estão os legais vistos.
*
A delimitação objectiva do recurso emerge, é consabido, do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fun-damen-tação expressa em alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio [2] .
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a respectiva reapreciação, não comportando, assim, ius novorum, i. é, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo [3] .
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à análise expressa de to-dos os argumentos produzidos em alegação, mas tão só - e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - de todas as "questões" susci-tadas, e que, por se reportarem aos elementos da causa, definidos em função dos sujeitos, das pretensões e fundamentos aduzidos, se configurem como relevantes para conheci-mento do respectivo objecto, exceptuadas, naturalmente, as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras [4] .
No caso sob espécie, a matéria de facto interessante à decisão é, afinal, a que su-pra se fez já constar enunciada em relatório, ou seja, tal factualidade é suficientemente habilitante da questão efectivamente a decidir, qual seja, se, em função da estruturação que conferiu à sua pretensão cautelar, há fundamento para os requerentes verem – como sustentam – continuado o seu prosseguimento, no pressuposto de terem alegado matéria de facto bastante para tal, ou se há – como decidiu a 1ª instância – motivos bastantes para o liminar indeferimento da providência requerida, por falta de requisitos, expressos no petitório, para a sua concludência.
Constituem os procedimentos cautelares, muito em síntese, meios de composição provisória de direitos ou interesses em situação de litígio, com fundamento na tutela da aparência de um direito afirmado com credível plausibilidade quanto à sua existência ("fumus boni juris") e averiguado mediante prova sumária ou de simples justificação ("summaria cognitio"), no reconhecimento de que a natural demora na respectiva defini-ção, em via de acção, possa causar dano grave e de difícil reparação ao titular de direito que esteja a ser lesado ou ameaçado de lesão ("periculum in mora"), tudo isto segundo um nexo de "instrumentalidade hipotética", i. é, a providência a tomar deverá consistir em defesa, acautelatória ou antecipatória, do direito objecto da acção e dos respectivos efeitos jurídico-práticos [5] .
Ou seja, a composição provisória e instrumental conatural ao procedimento caute-lar tem a ver com a natureza e objecto da providência solicitada, em função do direito e do risco de lesão concretamente equacionado, destinando-se a garantir a eficácia e a uti-lidade, no plano jurídico e do ponto de vista dos efeitos práticos, da tutela definitiva.
No caso sob espécie, foi considerado liminarmente, pelo tribunal a quo, que os termos de organização do petitório pelos requerentes não poderiam conduzir, ainda que submetidos a esforço probatório de mera justificação, à verificação do requisito de fun-dado receio de lesão grave e dificilmente reparável.
Ora, os requerentes alegaram, nomeadamente, factualidade tendente à afirmação, ainda que a título meramente cautelar, de não lhes ter sido restituído o estabelecimento, cuja exploração convencionalmente cederam, findo o prazo no mesmo acordado, nem mostrando os requeridos vontade de entregar o mesmo estabelecimento; de terem, os mesmos requeridos, deixado de satisfazer contrapartidas monetárias devidas pela cessão; de que, por virtude de obras não autorizadas (em violação do estipulado) e de redenomi-nação e alteração do tipo de serviços prestados no mesmo estabelecimento – passando de restaurante e snack-bar a café-pastelaria, com novo nome unilateralmente atribuído - por parte dos requeridos, não só os bens e equipamentos abrangidos na cessão estarão sujeitos a processo de deterioração, como ocorrerá perda de clientela; e que aos requeri-dos não são conhecidos bens ou rendimentos que lhes permitam suportar os danos pro-vocados no estabelecimento.
Neste contexto, se os requerentes referem lesões já consumadas – relativamente às quais, por natureza, a tutela cautelar não se legitima – menos verdade não é que configu-ram uma situação, que, revestindo, nalguns aspectos, características de continuada ou duradoura - designadamente, após uma não entrega voluntária do estabelecimento, uma vez esgotado o prazo acordado - seria geradora de efeitos lesivos dos seus interesses em reassumir a exploração do estabelecimento findo tal prazo e restituí-lo às conformações com que haviam cedido a respectiva exploração, com aproveitamento dos bens e equi-pamentos igualmente cedidos e evitar a perda de clientela.
Assim, e em rigor, os ora agravantes acabam por invocar, não só meros efeitos de lesões já consumadas, por violação do projecto negocial, mas receio de novas lesões, de resto só compagináveis em termos de uma recusa de restituição do estabelecimento por parte de pessoas alegadamente sem solvabilidade, e de eventual agravamento da situação de deterioração do nível de clientela, afinal um dos elementos do estabelecimento, em resultado de permanência de exploração num tipo de actividade diferente da que presi-diu às estipulações negociais.
Pelo exposto, e a nível liminar de estruturação do requerimento da providência – e contrariamente ao entendido pelo tribunal a quo – os requerentes alegaram em termos de caracterizar suficientemente justo receio de lesão grave e dificilmente reparável, no con-texto do caso concreto, referenciado à exploração de um estabelecimento comercial, e, portanto, de forma a justificar o prosseguimento dos autos em vista da eventual definição de uma tutela cautelar de carácter regulatório para prevenir, acautelar e evitar a produção de dano relevante, se feita prova de justificação dos factos assim invocados.

Nesta conformidade, acorda-se, nesta Relação, em conceder provimento ao agravo, em consequência se revogando o despacho em causa, que deverá ser substituído por outro, determinando o prosseguimento dos autos, nos demais termos de lei.

Sem custas.
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Évora, 27 de Novembro 2003




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[1] Cfr. fls. 28.
[2] Cfr. art. 684º, nº 3, e 690º Cód. Proc. Civ.. Cfr., também, Col. Jur. STJ, I, 3, pp. 81 e pp. 84; e IV, 2, pp. 86.
[3] Cfr., v. g., Col. Jur. STJ, I, 2, pp. 62; Col. Jur., XX, 5, pp. 98.
[4] Cfr. art. 713º, nº 2, 660º, nº 2, e 664º Cód. Proc. Civ.; cfr., ainda, Rod. Bastos, Notas ao CPCiv., III, pp. 247; e STJ, 11.1.2000, BMJ, 493, pp. 385.
[5] Cfr. art. 381º, nº 1, 384º, nº 1, e 387º, nº 1, Cód. Proc. Civ..