DIVÓRCIO LITIGIOSO
SEPARAÇÃO DE FACTO
Sumário


I – O conceito de separação de facto é integrado por três vertentes:
A objectiva – inexistência entre os cônjuges de comunhão de leito, mesa e habitação;
A subjectiva – o propósito de um ou de ambos os cônjuges não restabelecer a vida matrimonial comum;
A temporal – Que a situação objectiva e subjectiva perdure por mais de três anos ininterruptos.

II – A propositura da acção de divórcio com fundamento na separação de facto revela, de forma inequívoca, a intenção de não restabelecer a vida matrimonial comum.

Texto Integral

PROCESSO Nº 1924/05
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” intentou contra “B” a presente acção com processo ordinário pedindo que seja decretado o divórcio, com culpa exclusiva do R. e, assim, dissolvido o casamento entre ambos celebrado em 6/09/1952.
Frustrada a tentativa de conciliação face à ausência da A., contestou o R. nos termos de fls. 31/32 concluindo pela improcedência da acção.
Foi proferido o despacho saneador e seleccionados os factos assentes e controvertidos com a organização da base instrutória, que não foi objecto de reclamação.
Realizada a audiência de julgamento, o tribunal respondeu à matéria de facto pela forma constante da acta a fls. 61, também sem reclamação.
Foi, em seguida, proferida a sentença a fls. 64 e segs. que julgando a acção procedente decretou o divórcio entre A. e R. e declarou a A. cônjuge culpada do divórcio.
Inconformado, apelou o R. alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - A A. intentou a presente acção com um duplo fundamento: violação por parte do R. do dever conjugal de coabitação e separação de facto por mais de três anos consecutivos.
2 - O R. apelante opõe-se ao pedido de divórcio da A.
3 - A A. não logrou provar qualquer violação dos deveres conjugais por parte do R., designadamente o de coabitação.
4 - Não obstante na sentença recorrida decretou-se o divórcio com base na separação de facto por mais de três anos consecutivos.
5 - Porém, entende o apelante que a A. não provou factos suficientes para que fosse decretado o divórcio.
6 - Apenas ficou provado que o R., pouco tempo depois de Outubro de 1999 continuou a viver no lar conjugal, em …, enquanto a A. continuou a residir no ….
7 - Não basta provar a separação física dos cônjuges para que fique preenchido o conceito de “separação de facto”.
8 - Na realidade nenhuma prova foi feita quanto à total ausência de relacionamento entre os cônjuges.
9 - Os cônjuges telefonariam um ao outro? Mantinham uma economia comum? Estavam em total ruptura conjugal?
10 - Esses factos não foram objectivamente provados.
11 - A conclusão constante da alínea e) da sentença recorrida “autora e réu encontram-se separados de facto desde essa altura” não passa salvo melhor opinião de uma mera conclusão e não de um facto ...
12 - Acresce que se concluiu na sentença recorrida e aqui bem, que foi a A. o “único cônjuge culpado”.
13 - Se assim é, ao decretar-se o divórcio com base na conduta violadora da A. está-se a legitimar o abuso de direito.
14 - Entende o R. que a douta sentença recorrida fez incorrecta interpretação dos artºs 1781º e 1782º do C. Civil e ao arrepio do artº 334º valida o exercício de “abuso de direito” por parte da A.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como é sabido, são as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o âmbito do recurso pelo que apenas abrange as questões nelas contidas (artºs 684 nº 3 e 690 nº 1 do C.P.C.).
Do que delas decorre verifica-se que a única questão a decidir é saber se, em face da factualidade provada existe fundamento para decretamento do divórcio com fundamento na separação de facto por três anos consecutivos.
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São os seguintes os factos que foram tidos por provados na 1ª instância:
1 - A. e R. contraíram entre si casamento no dia 6 de Setembro de 1952, sem convenção antenupcial.
2 - A. e R. emigraram para o … em 1970, onde fixaram residência.
3 - A. e R. residiram no … durante cerca de 22 anos, após o que vieram viver para …, continuando, porém, até Outubro de 1999 a deslocar-se com regularidade ao …
4 - Em finais de Outubro de 1999, a A. e o R. foram de visita ao …, de onde o R. regressou pouco tempo depois, ficando a A. a residir desde então no …
5 - A. e R. encontram-se separados de facto desde essa altura.

Estes os factos.

Antes de mais importa fazer uma rectificação no que se refere ao ponto 5 dos factos provados, acusado de conclusivo pelo apelante, pois, conforme resulta do quesito, declarado provado, em que assentou aquela resposta, o que se perguntava era, na sequência do perguntado no quesito 3º, se A e R. se encontravam separados desde a altura em que o R. regressou a Portugal, não contendo a mesma a expressão “de facto”.
Assim, rectifica-se o referido ponto de facto que passará a ter a seguinte redacção:
5 - A. e R. encontram-se separados desde essa altura.”

A sentença recorrida decretou o divórcio entre a A. e o R. com fundamento na separação de facto por mais de três anos porquanto “vem provado que desde finais de Outubro de 1999 a A. e o R. foram de visita ao …, de onde o R. regressou pouco tempo depois, ficando a A. residir desde então no …, estando a A. e R. separados de facto, isto é, sem qualquer contacto entre si que possa traduzir a existência de comunhão de vida desde essa altura” acrescentando ainda que “o propósito de pôr termo à sociedade conjugal por parte da A., a sua manifestação de vontade nesse sentido está expresso no pedido formulado na presente acção”.
Conforme resulta do disposto no artº 1781 al. a) do C. Civil, a separação de facto por três anos consecutivos, constitui fundamento do divórcio litigioso.
Entende-se que há separação de facto, para este efeito quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer (artº 1782 nº 1 do C.C.).
Como explica Pereira Coelho, “Esta causa de divórcio é integrada por dois elementos, um objectivo e outro subjectivo. O elemento objectivo é a divisão do habitat, a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes. Este elemento é muitas vezes equívoco, pois o dever de coabitação, reveste-se de grande plasticidade. Tudo depende das circunstâncias e há uma grande variedade de situações. Pode haver residências separadas - o artº 1673 permite-o - e todavia haver uma comunhão de vida (v.g. o caso dos emigrantes). Outras vezes, respeitos humanos ou o interesse dos filhos levam os cônjuges a manter uma aparência de vida em comum que não corresponde à realidade. Ao elemento objectivo que é matéria da separação de facto, há-de, pois, acrescer um elemento subjectivo, que anima essa matéria e lhe dá forma e sentido; consiste ele numa disposição interior - o “propósito” como diz o artigo da parte de ambos os cônjuges ou de um deles de não restabelecer a comunhão da vida matrimonial (...)” (Reforma do Código Civil 1981, 36 e 37)
Também a este respeito ensina o Prof. Antunes Varela “A forma como na lei (artº 1782 nº 1) se define a separação de facto, tradutora da ruptura da vida em comum, mostra com efeito que ela pode resultar de uma actuação bilateral concertada entre ambos os cônjuges, como de um procedimento bilateral não acordado entre eles, como da atitude isolada de um só deles. Apesar de não ser essencial o acordo dos cônjuges quanto à separação, é evidente que esta separação compreende um elemento subjectivo (a intenção de ambos os cônjuges, ou de um deles de romper definitivamente com a vida em comum) ao lado de um elemento objectivo (não existência entre os cônjuges da comunhão de leito, mesa e habitação” (Direito da Família, ed. 1987, págs. 479 e segs.)
São assim elementos da separação de facto: a) elemento objectivo: falta de comunhão de vida entre os cônjuges; b) elemento subjectivo: haver da parte de ambos ou apenas de um deles um propósito de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial; c ) a separação por três anos consecutivos.
Relativamente ao elemento subjectivo, importa ainda esclarecer que, como vem sendo entendimento da jurisprudência, a propositura da acção com fundamento na separação de facto, revela de forma inequívoca a intenção ou o propósito de não restabelecer a comunhão de vida entre os cônjuges (cfr. Acs. do STJ de 5/07/01, CJ/STJ T.II, pág. 166; de 3/04/2003 e de 25/11/2003, acessíveis via Internet in www.dgsi.pt)
Voltando ao caso dos autos e não obstante reconhecer-se que não é exuberante a factualidade alegada, não pode deixar de se concluir que foram alegados e provados factos suficientes para a integração dos referidos elementos.
Com efeito, vindo provado que desde finais de Outubro de 1999, A. e R. vivem em casas separadas em países distantes, ela no … e ele na casa que foi morada de família em …, encontrando-se separados desde essa altura, isto é, sem qualquer contacto entre si, é manifesto que não têm qualquer comunhão de vida o que, acompanhado pelo propósito da A. de não a restabelecer, inequivocamente revelado com a propositura da presente acção, mostra-se caracterizada a separação de facto por mais de três anos consecutivos.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação do apelante no que a esta questão se refere.
Pretende ainda o apelante que ao considerar-se na sentença recorrida que a A foi o único cônjuge culpado e ao decretar-se o divórcio com base na conduta violadora da A. está a legitimar-se o “abuso de direito”.
Não tem qualquer fundamento tal alegação.
Com efeito, conforme resulta do nº 2 do artº 1785, a separação de facto como causa de divórcio pode ser invocada por qualquer dos cônjuges, mesmo pelo culpado da separação.
E como flui do nº 2 do artº 1782 na acção de divórcio com fundamento na separação de facto, o juiz deve declarar a culpa dos cônjuges, quando a haja, nos termos do artº 1787º.
In casu, a A foi declarada “cônjuge única culpada do divórcio” por lhe ser imputável a separação do casal que ocasionou a ruptura de vida em comum.
Como referem Pereira Coelho/Guilherme Oliveira, a separação de facto tipificada na alínea a) do artº 1781 qualifica-se como causa de divórcio objectiva e não culposa, em contraponto às violações de deveres conjugais compreendidas na cláusula geral do artº 1779, que constituem causas subjectivas ou culposas, o que significa que a eventual culpa do requerente do divórcio no tocante à separação de facto, pode relevar para efeitos da declaração a que se refere o artº 1787, mas não lhe retira o direito de pedir o divórcio (Curso de Direito de Família, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 669)
Não se vislumbra, pois, qualquer abuso de direito legitimado pela sentença recorrida pelo que improcedem, in totum, as conclusões da alegação do apelante.

DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora 23/02/2006