DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
MEIO PROCESSUAL
EXCESSO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário


1 -A lei concebe um divórcio por mútuo consentimento judicial em que haja acordo dos cônjuges quanto à dissolução do casamento, mas não quanto às consequências do divórcio – entenda-se, quanto às questões referidas no artº 1775º, nº 1, do C.Civil, caso em que cumprirá ao tribunal fixar essas consequências.
2 – Não havendo acordo quanto ao destino da casa de morada de família terá o tribunal que seguir a tramitação processual própria da resolução da questão da atribuição da casa de morada de família no contexto de uma acção de divórcio litigioso (leia-se agora, «divórcio sem consentimento de um dos cônjuges») – o que implica, como estabelece o artº 1413º, nº 4, do CPC, a dedução do pedido por apenso à acção de divórcio e a sua tramitação nos termos dos demais números dessa disposição legal (e ainda das disposições aplicáveis do regime geral dos processos de jurisdição voluntária – cfr. epígrafe do Capítulo em que se insere esse preceito).
3 – Tendo decidido na sentença de divórcio a atribuição da casa demorada de família, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, o que integra a nulidade (parcial) prevista no art. 668º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil.

Texto Integral


ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Na presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, interposta, ao abrigo do artº 1779º, nº 1, do C.Civil (na redacção dada pela Lei nº 61/2008, de 31/10), na comarca de Setúbal, por J… contra A…, vem o A. interpor recurso de apelação da sentença final proferida em 1ª instância.

Na petição inicial alegou o A. a separação de facto de A. e R. por mais de um ano, sem que houvesse a intenção do A. de restabelecer a vida em comum, o que passou a constituir fundamento de divórcio com a Lei nº 61/2008 (na redacção dada à al. a) do artº 1781º do C.Civil). Realizada tentativa de conciliação, obteve-se acordo para o divórcio por mútuo consentimento, mas não quanto a prestações alimentares, relação de bens e atribuição da casa de morada de família (que é propriedade exclusiva do A. e habitada pela R.), pelo que foi ordenada a notificação das partes para apresentarem alegações e produzirem prova quanto à fixação das consequências do divórcio, nos termos do artº 1778º-A, nº 4, ex vi do artº 1779º, nº 2, do C.Civil.

Por subsequente requerimento de fls. 36-37, alegou a R., designadamente, não ter condições económicas para suportar uma renda de casa e não ter para onde ir viver, pelo que manifestou a sua pretensão de ficar a residir na casa de morada de família. Por requerimento de fls. 40-42, exprimiu o A., além do mais, a sua oposição a um eventual pedido de arrendamento da casa de morada de família a favor da R., alegando que necessita da mesma para si.

A fls. 49 foi junto um requerimento da R., em que pede para si a atribuição da casa de morada de família.

Designada audiência, foi nesta obtido acordo quanto às questões dos alimentos (deles prescindindo reciprocamente) e da relação de bens, mas não quanto à questão da casa de morada de família.

De seguida, foi lavrada sentença em que se decretou o divórcio entre A. e R., homologou em definitivo os acordos obtidos nos autos e, quanto à questão da casa de morada de família, se decidiu julgar procedente o pedido da R., atribuindo-lhe a utilização da mesma, com a condição de «suportar, no período em que a habitar, o pagamento do respectivo IMI, além de todos os consumos domésticos (electricidade, água e gás)» (tal como se inscreveu na al. b) da parte dispositiva da sentença).

Na sua fundamentação, o Tribunal considerou que resulta da matéria de facto provada que «a necessidade ou premência da necessidade da casa de morada de família por parte da R. é consideravelmente superior à do A.» e que, como contrapartida pela atribuição da casa à R., «na falta de outros elementos de facto para a sua fixação (que não foram alegados pelas partes), deverá a R. suportar as despesas com os consumos domésticos e o pagamento do IMI que incida sobre a referida habitação».

Nas alegações do respectivo recurso desta decisão interposto pelo A., formulou este as seguintes conclusões:

«1° A douta sentença recorrida, ao decidir a atribuição da casa de morada à R., enferma de nulidade, nos termos do disposto no art. 668°, n° 1, al. d), do CPC, pelo seguinte:
a) Tomou essa decisão, sem que as partes tenham sido previamente ouvidas em tentativa de conciliação e não deu ao A. a possibilidade de contestar o pedido de atribuição da casa de morada de família à R.;
b) Entendeu que a R. tinha mais necessidade da casa de morada de família, atendendo, entre outros factores, à situação económica da mesma, bastando-se para tal, num documento comprovativo do valor da pensão por velhice recebida, documento este que nunca foi notificado ao A., para efeitos de contraditório, não podendo o A. contestá-lo (sendo que o mesmo não espelhava a situação actual da R., que recebe também um complemento de reforma, o que coloca os seus rendimentos mensais acima dos do A.);
c) Fixou, como contrapartida pela utilização da casa de morada de família, que a A. suportasse todas as despesas com os consumos domésticos e o pagamento do IMI incidente sobre a referida habitação, suportando ainda a sua decisão na falta de alegação de outros factos pelas partes.
2° Nos termos do art. 1779°, n° 2, do Cód. Civil, obtido o acordo dos cônjuges, para o divórcio por mútuo consentimento, durante a tentativa de conciliação, o processo seguirá os termos do divórcio por mútuo consentimento, com as necessárias adaptações, o qual tem a sua regulação no art. 1778°-A do mesmo diploma.
3° Sobre as consequências do divórcio relativas às questões referidas no n° 1 do art. 1775° do Cód. Civil, o juiz, na falta de acordo, fixa-as como se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (art. 1778°-A, n° 3, do Cód. Civil), o que, no que respeita à atribuição da casa de morada de família, impõe o recurso ao processo de jurisdição voluntária previsto no art. 1413° do CPC, correndo o mesmo por apenso ao processo de divórcio (art. 1413°, n° 4) e seguindo a tramitação constante do referido artigo.
4° Tal entendimento é hoje pacífico na doutrina, citando-se, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 20-10-2005 (Proc. n° 05B2152), os acórdãos do TRL de 16-07-2009 (Proc. n° 1087/03.0TMLSB-7), de 23-04-2009 (Proc. n° 348-A/2000.L1-8) e os acórdãos do TRP de 15-12-2003 (Proc. n° 0354092) e de 21-12-2006 (Proc. n°0636411).
5° Acresce que na situação descrita em c), vem o tribunal conhecer de questões, integradoras da causa de pedir (a situação económica e financeira da R. que releva como necessidade do cônjuge, fundamentando a atribuição da casa de família), de que não podia tomar conhecimento, porquanto não foi feita qualquer prova quanto às despesas domésticas da R., nem quanto ao IMI (do pagamento do qual o A. até está isento), sendo que, pese embora a sentença ora em crise refira que faltam outros elementos alegados pelas partes, também estes não foram por elas alegados e, além disso, nos termos do art. 1413°, n°3, do CPC, pode o juiz proceder às diligências que considere necessárias, o que aliás já resultava do n° 2 do art. 1409° do mesmo diploma, visto estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, verificando-se aqui a violação do art. 659°, n° 3, do CPC.
6° O tribunal pronunciou-se de um modo que não se poderia ter pronunciado, pois teria primeiro de ouvir as partes, incorrendo assim em violação do princípio do contraditório e da proibição das decisões surpresa (art. 3°, n° 3, do CPC).
7° Quanto ao princípio do contraditório e da igualdade das partes, tem entendido o Tribunal Constitucional que, embora não estando autonomamente consagrados na Constituição, possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de Direito e constituírem emanações directas do princípio da igualdade (Acórdãos nos 397/89, de 14 de Novembro, 62/91, de 19 de Abril, e 284/91, de 24 de Outubro).
8° A sentença da qual se recorre atribui o direito à utilização da casa de morada de família à R., devendo a mesma suportar os consumos domésticos e pagar o respectivo IMI, a título de contrapartida pela sua utilização.
9° Sucede que tais obrigações em nada consubstanciam urna contrapartida pela utilização do bem do A., porquanto, relativamente aos consumos domésticos, os mesmo são ocasionados pela R., que é a única que usufrui dos serviços domésticos e logicamente quem os deve suportar, não sendo o A. beneficiado em nada por essa situação; no que se refere ao pagamento do IMI, também não é o A. o beneficiário de tal imposto e, não se tendo alegado nem provado nada quanto ao IMI, não se pôde constatar o facto de que o A. está isento do pagamento do mesmo.
10° Verifica-se assim que, na prática, o Tribunal a quo atribui à R. o direito à utilização da casa de morada de família, bem próprio do A., livre do pagamento de qualquer renda, o que é uma violação clara do disposto no art. 1793° do Cód. Civil, que expressamente refere que o tribunal pode dar de arrendamento a casa de morada de família.
11° Como refere Leite de Campos, em Lições de Direito da Família e Sucessões, pág. 305, “A casa de morada de família é, para uma grande parte das famílias portuguesas, o único bem com algum significado económico que possuem. Portanto a sua atribuição depois do divórcio tem uma particular importância. É, normalmente, objecto de acesa disputa entre os cônjuges, antes do divórcio e depois deste. Parece, assim, chocante que ela possa ser atribuída mesmo ao cônjuge que dela não é proprietário, como permite o art. 1793°. Trata-se de um caso de expropriação forçada do uso da casa, que se deve considerar inconstitucional.”
12° Neste caso, a interpretação do art. 1793°, n° 1, do Cód. Civil, feita pelo tribunal a quo, que entende constituir, o pagamento das despesas com serviços domésticos e o pagamento do IMI, a contrapartida renda, devida pela utilização da casa de morada de família, é inconstitucional, por violar o art. 62° da CRP, ao restringir, de forma não permitida pelo ordenamento jurídico português, o direito à propriedade privada.
13° Já o acórdão do TRP, de 16-12-1991, publicado na CJ, 1991, 5°-210, decidiu que tendo o tribunal atribuído a casa de morada de família a um dos cônjuges, ao abrigo do art. 1793° do Cód. Civil, terá imperativamente que fixar uma renda.
14° Não se concorda igualmente com a decisão de atribuição da casa de morada de família à R., atento o confronto entre a factualidade dada como provada e os critérios, legais e jurisprudenciais, para tal atribuição.
15° A diferença entre as pensões do A. e da R. (sem complemento) é de 89,50 euros, o que não é substancial, acrescendo que a R. possui em contas bancárias mais dinheiro que o A., devido à herança recebida, pelo que, dos elementos de prova constantes dos autos, não se pode aferir ser a necessidade da casa de morada de família por parte da R. consideravelmente superior à do A..
16° Aliás, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 15-12-1998, publicado na CJ/STJ, 1998, 3°-164, que a casa de morada de família própria de um dos ex-cônjuges, só pode ser atribuída em arrendamento ao outro, a seu pedido, caso o dono da mesma não fique em situação económica de não lhe permitir encontrar habitação.
17° Em face do exposto, verifica-se que a douta sentença violou os arts. 1793°, 1779°, n° 2, e 1778°-A, n° 3, todos do Código Civil, os arts. 3°, n° 3, 659°, n° 3, e 1413°, todos do Cód. Proc. Civil, e os arts. 2°, 13° e 62° da Constituição.
18° Tais normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, atento o requerimento para atribuição de morada de família apresentado pela R., por forma a que tal pedido corresse por apenso ao processo de divórcio, sendo as partes ouvidas a tal respeito em tentativa de conciliação e caso esta se frustrasse, ser dada ao requerido, o A., a possibilidade de contestar o pedido e respectivas provas.
19° De qualquer modo, sempre a atribuição da casa de morada de família, teria de ter como contrapartida uma renda, como compensação pela privação de uso que o proprietário, A., sofreria no seu direito de propriedade sobre o imóvel, seu bem próprio, não se podendo considerar renda o pagamento de serviços e impostos decorrentes da própria utilização do imóvel pelo arrendatário, sendo este o único que dos mesmos usufrui, pois que tais pagamentos não se traduzem em qualquer incremento patrimonial na esfera jurídica do A..
Deste modo deve a douta sentença recorrida ser declarada nula, na parte que respeita à atribuição da morada de família à R. ou, caso não proceda a arguição das nulidades, alterar-se a douta sentença, fixando-se uma efectiva renda, a pagar pela R. ao A., como contrapartida do arrendamento.»

Não houve contra-alegações.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664º, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC).

Do teor das alegações do apelante extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir (por ordem de precedência):
1) nulidade da sentença por excesso de pronúncia (artº 668º, nº 1, al. d), do CPC), ao decidir a questão da atribuição da casa de morada de família, na medida em que a apreciação dessa questão não poderia ter lugar na sentença recorrida, mas apenas em incidente processual próprio (do artº 1413º do CPC), com tramitação adequada à prolação fundada de decisão sobre essa matéria;
2) nulidade da sentença por constituir decisão-surpresa (artº 3º, nº 3, do CPC), na medida em que essa sentença, enquanto se pronunciou sobre a atribuição da casa de morada de família, não foi precedida da tramitação processual adequada a que as partes fossem devidamente ouvidas sobre essa matéria, designadamente quanto à real situação económica das partes, em violação do princípio do contraditório;
3) impropriedade da atribuição à R. do direito à utilização da casa de morada de família sem a correspondente fixação de uma renda, fundada numa interpretação do artº 1793º do C.Civil contrária ao artº 62° da Constituição, na medida em que constitui restrição inadmissível ao direito à propriedade privada;
4) aferição da justeza do critério adoptado pelo tribunal recorrido para a atribuição da casa de morada de família à R., face à situação económica das partes.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. O A. e a R. contraíram casamento civil no dia 17 de Janeiro de 1976, sob o regime imperativo de separação de bens.
2. O A. saiu da casa de morada de família, sita na Rua…, no ano de 2005, nunca mais aí tendo voltado a residir.
3. Desde pelo menos Abril de 2007 que o A. vive em comum com outra mulher, habitando ambos a casa desta.
4. O A. é pensionista, recebendo uma pensão de reforma de € 332,83 por mês.
5. A R. também é pensionista, tendo como único rendimento uma pensão de reforma de € 243,33 mensais.
6. O imóvel que constitui a casa de morada de família é bem próprio do A..
7. Este sempre administrou os dinheiros da R., incluindo os provenientes da herança dos pais desta e da sua pensão de reforma.
8. Movimentando as contas onde esse dinheiro se encontrava depositado.
9. A R., desde o casamento com o A. e até hoje, sempre viveu na casa de morada de família.
10. Tendo sido aí que foi criado o filho do casal, já maior de idade.
11. A R. não possui outra casa para onde possa ir viver.»

B) DE DIREITO:
Importa, desde já, delimitar o objecto do presente recurso de apelação. Se bem atentarmos, não impugna o A. a sentença recorrida enquanto nela se decreta o divórcio de A. e R. (al. c) da parte dispositiva da sentença) e se homologam os acordos entre os ex-cônjuges obtidos no processo (al. a) da parte dispositiva da sentença): apenas se impugna o segmento sobrante, relativo à atribuição da casa de morada de família, que constitui a al. b) da parte dispositiva da sentença, com o teor supra transcrito. É exclusivamente sobre este último ponto que versa o presente recurso – e só estará em causa, como consequência decisória deste, a possibilidade de anulação ou alteração (as duas pretensões recursórias, em termos de subsidiariedade, formuladas pelo recorrente) desse segmento da sentença recorrida.

1. Como primeira questão suscita o A. a questão da eventual nulidade da sentença por excesso de pronúncia (artº 668º, nº 1, al. d), do CPC), com o fundamento de que o tribunal recorrido, ao decidir nessa sentença sobre a questão da atribuição da casa de morada de família, se teria pronunciado sobre matéria «de que não podia tomar conhecimento», porquanto a decisão sobre essa questão deveria ter lugar no âmbito do incidente processual previsto no artº 1413º do CPC, e que corre por apenso ao processo de divórcio, com a tramitação estabelecida nesse preceito (e a demais aplicável aos processos de jurisdição voluntária, cuja regulamentação remete ainda para o regime processual dos incidentes da instância – cfr. artº 1409º do CPC).

Cabe, pois, apurar qual o enquadramento processual da pretensão de atribuição da casa de morada de família no âmbito do processo de divórcio – e só depois de determinada a exacta configuração dos trâmites processuais desse pedido poderemos aferir da possibilidade de o mesmo poder ser objecto da própria sentença de divórcio. Uma resposta positiva (coincidente com a opção seguida pelo tribunal a quo) excluirá a verificação de nulidade de sentença arguida ao abrigo do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC (e implicará a apreciação das subsequentes questões suscitadas no recurso); uma resposta negativa levará à conclusão de que a sentença conheceu de matéria que não podia ser seu objecto e imporá a procedência da arguida nulidade de sentença (ficando prejudicada a apreciação das demais questões do recurso).

Na apreciação da questão em apreço, comece-se por salientar que a sua análise exige um melhor conhecimento da nova arquitectura legal do regime do divórcio, trazida pela mencionada Lei nº 61/2008 (limitado à sua relevância para a resolução do presente caso) – e que, como é reconhecido na doutrina, suscita muitas dúvidas e perplexidades (cfr., RITA LOBO XAVIER, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Almedina, Coimbra, 2009, passim).

O novo regime veio consagrar uma nova modalidade de divórcio, a par do divórcio por mútuo consentimento: o «divórcio sem consentimento de um dos cônjuges» (cfr. artº 1773º, nº 1, do C.Civil), que exclui do sistema o anterior «divórcio litigioso» (não obstante se manter essa designação na epígrafe da Subsecção III do Capítulo XII do Título II do Livro IV do C.Civil, que, no entanto, foi eliminada do CPC pelo artº 4º, nº 1, da Lei nº 61/2008, e substituída pela designação «divórcio sem consentimento do outro cônjuge»).

Este novo divórcio sem consentimento de um dos cônjuges pode ser objecto de convolação («conversão», no dizer do legislador) em divórcio por mútuo consentimento: «Se a tentativa de conciliação não resultar, o juiz procurará obter o acordo dos cônjuges para o divórcio por mútuo consentimento; obtido o acordo ou tendo os cônjuges, em qualquer altura do processo, optado por essa modalidade do divórcio, seguir-se-ão os termos do processo de divórcio por mútuo consentimento, com as necessárias adaptações» (artº 1779º, nº 2, do C.Civil). Ou seja, o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (aquilo que RITA LOBO XAVIER denomina de «divórcio contencioso judicial») convola-se em «divórcio por mútuo consentimento judicial» (assim designado por essa autora, em oposição àquilo que classifica como «divórcio por mútuo consentimento administrativo», tramitado nas conservatórias do registo civil).

Há aqui uma remissão para o regime do divórcio por mútuo consentimento, em que, por sua vez, passou a haver a possibilidade de ocorrer acordo dos cônjuges apenas quanto ao divórcio, mas não quanto às consequências do divórcio, em que o processo prosseguirá sem o acordo dos cônjuges nas respectivas questões (as que se referem no artº 1775º, nº 1, o que inclui, pelo menos, os acordos respeitantes a alimentos, exercício de responsabilidades parentais e destino da casa de morada de família) e para que o tribunal possa decidir quanto a essas consequências do divórcio.

Note-se que essa falta de acordo dos cônjuges quanto às consequências do divórcio não converte o processo de divórcio num de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (continua a ser processo de divórcio por mútuo consentimento, por haver acordo dos cônjuges quanto à dissolução do casamento), mas sem prejuízo de o tribunal dever proceder como se estivesse perante um divórcio sem consentimento do outro cônjuge. Parece confuso, mas é o legislador que o diz no artº 1778º-A do C.Civil, integrado na Subsecção II, com a epígrafe «Divórcio por mútuo consentimento»: «O juiz fixa as consequências do divórcio nas questões referidas no n.º 1 do artigo 1775.º sobre que os cônjuges não tenham apresentado acordo, como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges» (nº 3). Ou seja: a lei cria uma figura híbrida, que é o «divórcio por mútuo consentimento judicial» que segue o regime do divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

Segundo o nº 4 do mencionado artº 1778º-A, o juiz, a fim de fixar as consequências do divórcio, «pode determinar a prática de actos e a produção de prova eventualmente necessária» – mas, atento o segmento final do citado nº 3, sem prejuízo do reenvio para o regime normativo do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges. Como diz RITA LOBO XAVIER, «suscita alguma perplexidade a ordem de tarefas cometidas ao Tribunal no caso do divórcio por mútuo consentimento» (ob. cit., p. 19). E, embora sustente que as consequências do divórcio deveriam ser apreciadas «de forma “global e integrada”», o certo é que essa autora reconhece que, com o regime actualmente resultante, «a solução de “processo único” será sempre inviável» (idem, pp. 19 e 22).

Se, por um lado, o nº 4 do artº 1778º-A implica que «o juiz deverá determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, de acordo com o princípio da adequação formal previsto no artº 265º-A do CPC» (idem, p. 21), não se pode deixar de considerar que a aplicação (remissiva) do regime do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges conduz a que «cada uma das consequências do divórcio enunciadas continua a ser tratada com autonomia relativamente à acção de divórcio» (ibidem). E a autora dá como exemplo, precisamente, a questão da atribuição da casa de morada de família, em relação ao qual «o artigo 1413º, nº 4, do CPC prevê que o pedido seja deduzido por apenso à acção de divórcio» (ob. cit., p. 22). Admite, assim, RITA LOBO XAVIER que o processo de divórcio por mútuo consentimento judicial, em muitas situações, «se multiplicará nas numerosas peças processuais e audiências de julgamento mais próprias de um divórcio “sem o consentimento de um dos cônjuges”», embora reconhecendo que não faria sentido fazer depender «a fixação da residência dos filhos e o regime provisório de visitas» da recepção de «um relatório pericial sobre o valor locativo do imóvel onde foi fixada a casa de morada da família» (ibidem).

Posto isto, vejamos que ilações poderemos extrair destas considerações doutrinárias para o presente caso.

Parece não haver dúvidas que a lei concebe um divórcio por mútuo consentimento judicial em que haja acordo dos cônjuges quanto à dissolução do casamento, mas não quanto às consequências do divórcio – entenda-se, quanto às questões referidas no artº 1775º, nº 1, do C.Civil, caso em que cumprirá ao tribunal fixar essas consequências. E, por maioria de razão, pode haver acordo quanto ao divórcio e algumas dessas questões, mas não quanto a todas – como poderá ser a questão da atribuição da casa de morada de família.

É esta a situação do presente processo: houve acordo das partes quanto ao divórcio propriamente dito, pelo que se converteu o processo de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges em processo de divórcio por mútuo consentimento judicial; em seguida, foi obtido acordo quanto à relação de bens e quanto a alimentos (já não havendo responsabilidades parentais a considerar), pelo que só ficou a restar a questão relativa à casa de morada de família. E esta teria de ser dirimida pelo tribunal «como se se tratasse de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges» (artº 1778º-A, nº 3).

Isto significa que o tribunal teria de seguir a tramitação processual própria da resolução da questão da atribuição da casa de morada de família no contexto de uma acção de divórcio litigioso (leia-se agora, como se disse supra, «divórcio sem consentimento de um dos cônjuges») – o que implicava, como estabelece o artº 1413º, nº 4, do CPC, a dedução do pedido por apenso à acção de divórcio e a sua tramitação nos termos dos demais números dessa disposição legal (e ainda das disposições aplicáveis do regime geral dos processos de jurisdição voluntária – cfr. epígrafe do Capítulo em que se insere esse preceito). Trata-se de consequência que, como vimos supra, já RITA LOBO XAVIER prefigurava e que se inscreve na nova filosofia do processo de divórcio por mútuo consentimento judicial como um processo plural (ou não-unitário). Aliás, já antes se entendia jurisprudencialmente que a dependência do incidente de atribuição da casa de morada de família processado por apenso relativamente à acção de divórcio determinava que se deveria sobrestar na decisão do incidente até ser proferida a decisão de divórcio (cfr. Ac. RP de 26/2/1998, CJ, t. I, in www.colectaneadejurisprudencia.com; e, na mesma linha e mais recentemente, Ac. RL de 11/2/2010, CJ, t. I, idem).

De tudo isto se infere que o requerimento da R. de atribuição da casa de morada de família (a fls. 49) não poderia ter sido tramitado no seio da acção de divórcio. Antes deveria ter sido autuado por apenso e nesse apenso deveria o tribunal ter proferido os despachos (e eventual decisão final) que entendesse por convenientes segundo o regime do artº 1413º do CPC e demais disposições aplicáveis do regime geral dos processos de jurisdição voluntária (e ainda fazendo uso dos poderes oficiosos conferidos pelo artº 1778º-A, nº 4, do C.Civil). E isso seguramente tendo em conta as exigências legais impostas a esse requerimento inicial do incidente de atribuição da casa de morada de família (de cujo cumprimento não nos cabe aqui curar) e os vários princípios gerais do processo civil, como os da adequação formal (de que fala RITA LOBO XAVIER, como vimos supra – cfr. artº 265º-A do CPC), do contraditório (que se articula com a proibição de decisões-surpresa – cfr. artº 3º, em particular nº 3, do CPC) ou da igualdade das partes (cfr. artº 3º-A do CPC).

Isto significa que o tribunal teria de seguir a tramitação processual própria da resolução da questão da atribuição da casa de morada de família no contexto de uma acção de divórcio litigioso (leia-se agora, como se disse supra, «divórcio sem consentimento de um dos cônjuges») – o que implicava, como estabelece o artº 1413º, nº 4, do CPC, a dedução do pedido por apenso à acção de divórcio e a sua tramitação nos termos dos demais números dessa disposição legal (e ainda das disposições aplicáveis do regime geral dos processos de jurisdição voluntária – cfr. epígrafe do Capítulo em que se insere esse preceito).

Sendo assim, impõe-se reconhecer a nulidade da sentença recorrida, ao abrigo do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC, mas apenas quanto ao segmento em que nela se decidiu atribuir à R. a casa de morada de família (e que corresponde à al. b) da parte dispositiva da sentença) – pelo que essa sentença mantém a sua plena validade quanto aos segmentos (que, aliás, não foram objecto de impugnação) relativos ao decretamento do divórcio de A. e R. (al. c) da parte dispositiva da sentença) e à homologação dos acordos entre os ex-cônjuges obtidos no processo (al. a) da parte dispositiva da sentença).

Como se explicitou supra, declarada a nulidade do segmento impugnado da sentença recorrida, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso (aliás, suscitadas a título subsidiário, relativamente à pretensão de declaração de nulidade do segmento impugnado da decisão recorrida), não nos cabendo pronunciar sobre as mesmas.

Note-se que apenas ficou assente que a questão da atribuição da casa de morada de família não podia ter sido tramitada no seio da acção de divórcio e que a mesma deveria antes ter sido dirimida em apenso da acção de divórcio, nos termos processuais do artº 1413º do CPC, do que se extraiu a devida consequência (nulidade parcial da sentença). Perante isso, nada mais cabe a este Tribunal apreciar.

Assim, deixou de ter qualquer relevância apurar se a tramitação empreendida pelo tribunal a quo se conformou aos mencionados princípios da adequação formal, do contraditório, da proibição de decisões-surpresa ou da igualdade das partes. E também extravasa o objecto do presente recurso a formulação de qualquer juízo sobre o procedimento que o tribunal a quo deverá agora adoptar sobre a questão da atribuição da casa de morada de família (atribuir ainda relevância ao requerimento de fls. 49 e determinar a sua autuação por apenso para início do incidente nos termos do artº 1413º do CPC?; aguardar a iniciativa processual de qualquer das partes, desde que conforme ao preceituado no artº 1413º do CPC?) – e, muito menos, sobre a concreta tramitação processual a seguir: isso é matéria que cabe nos poderes decisórios do tribunal recorrido.

De igual modo, não nos cabe formular qualquer juízo sobre as condições e critérios adoptados pelo tribunal a quo na sua decisão substantiva sobre o destino da casa de morada de família. Isso é matéria que terá cabimento num outro (eventual) recurso: o da futura decisão final do incidente da atribuição da casa de morada de família que venha a correr termos entre os aqui ex-cônjuges.

Porém, não podemos deixar de fazer uma observação: o artº 1793º do C.Civil é a sede substantiva do direito adjectivado no artº 1413º do CPC (quando a casa de morada de família seja bem comum dos cônjuges ou próprio de um deles, como sucede no presente caso, em que a casa é propriedade do A.) e naquele preceito apenas se contempla a constituição de uma relação de arrendamento entre os ex-cônjuges, a qual fica sujeita às regras do arrendamento para habitação (nº 2); é elemento essencial do contrato de arrendamento a existência de uma retribuição a favor do proprietário, i.e. de uma renda ou prestação pecuniária periódica (cfr. artos 1022º, 1038º, al. a), e 1075º do C.Civil), sendo que o tribunal «definirá as condições do contrato e, designadamente, o montante da renda a pagar ao ex-cônjuge senhorio» (PEREIRA COELHO, «Divórcio e Separação Judicial de Pessoas e Bens na Reforma do Código Civil», in Reforma do Código Civil, Ordem dos Advogados, Lisboa, 1981, pp. 25-53, em especial p. 51); para a definição dessa renda poderá até ser adequada a realização de perícia (a que se refere RITA LOBO XAVIER, como vimos supra) para apuramento do valor locativo da casa de morada da família, ainda que sem prejuízo de a renda poder ser fixada em montante diferente do valor de mercado, em atenção à situação patrimonial do ex-cônjuge beneficiado com o arrendamento e ao objectivo do instituto (assim, PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 721-722; e tb., por todos, Ac. RL de 16/7/2009, Proc. 1087/03.0TMLSB-7, in www.dgsi.pt); no caso presente, é manifesto que o tribunal a quo não fixou uma renda, apenas pondo a cargo do ex-cônjuge arrendatário um conjunto de despesas variáveis ou mesmo incertas, sem sequer a garantia de que beneficiem o ex-cônjuge senhorio – pelo que assistiria razão ao A. enquanto invocou a omissão de fixação de uma renda na decisão de atribuição à R. da casa de morada de família.

Em suma: pelas razões aduzidas, a presente apelação merece provimento, devendo ser declarada a nulidade parcial da sentença recorrida, por o tribunal a quo se ter pronunciado nela sobre questão de que não podia aí tomar conhecimento, o que se determina ao abrigo do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC e incide no segmento em que se decidiu atribuir à R. a casa de morada de família (e que corresponde à al. b) da parte dispositiva da sentença).

III – DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação, declarando a nulidade da sentença recorrida, quanto ao segmento em que se decidiu atribuir à R. a casa de morada de família (e que corresponde à al. b) da parte dispositiva da sentença), nos termos do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC.
Custas pela R. apelada (artº 446º do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (v. fls. 31-33).
Évora, 10.11.2010
(Mário António Mendes Serrano)
(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)
(Jaime Ferdinando de Castro Pestana)