FIEL DEPOSITÁRIO
ORDEM LEGÍTIMA
DESOBEDIÊNCIA
Sumário

I – Apesar de regularmente notificado para, na qualidade de depositário de bem penhorado, um veículo automóvel, proceder à sua apresentação e entrega no escritório do de execução, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal pela prática de um crime de desobediência, não se verifica tal crime se o depositário:
.- Não violou o dever de guarda e de não utilização do veículo e não se opôs à sua entrega;
.- Tem domicílio em Ponte de Lima e o escritório do solicitador é em Braga;
.- Aquando da notificação, invocou como impossibilidade de remoção do veículo, a falta de documentos, de seguro e de inaptidão para a condução;
II – Nessas circunstâncias, caberia ao notificante esclarecer o depositário dos meios a que, in extremis, teria que recorrer, dando-lhe, pelo menos, a possibilidade de discutir a excessiva oneração do transporte ou a legitimidade da ordem.
III – É que, o solicitador de execução apenas pedira ao Tribunal a remoção do executado do cargo de depositário, invocando, apenas, dificuldades de contacto telefónico com o mesmo, mas concluindo, inconsequentemente, que ele não tinha cumprido com as obrigações que lhe estão impostas, designadamente a de mostrar o bem, o que não correspondia à verdade.
IV – Em tal situação, a ordem só formalmente foi legítima, pelo que, dando-se como não provado que sobre o depositário recaísse a obrigação de proceder à apresentação do veículo penhorado em Braga, deve o mesmo ser absolvido.

Texto Integral

TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Braga – 1º Juízo Criminal – Pº 2686/07.6TABRG-D

ARGUIDO/RECORRENTE
José

RECORRIDO
O Ministério Público

OBJECTO DO RECURSO
Foi o arguido acusado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, al. b) do Código Penal, vindo a ser condenado na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, num total de 500,00 € (quinhentos euros).
Desta decisão vem interposto o presente recurso, onde o recorrente invoca razões para não ter transferido a viatura para Braga, sendo certo que sempre esteve disposto a proceder à entrega da mesma.

MATÉRIA DE FACTO
São os seguintes, ipsis verbis, os factos tidos como provados pelo Tribunal recorrido:
No dia 13 de Novembro de 2006 e no seguimento de decisão proferida no âmbito do processo execução de sentença nº 945/07.9TTBRG-A, do 1º Juízo do Tribunal de Trabalho de Braga, em que figurava, como exequente, Paulo e, como executado, José, foi penhorado a este último o veículo com a matricula IR, de passageiros, cor preto), do qual foi o arguido nomeado fiel depositário.
Tal penhora foi objecto de registo na Conservatória do Registo Comercial e Automóveis.
No dia 19-09-2007, foi o arguido pessoal e regularmente notificado para, na qualidade de depositário do bem penhorado, e no prazo de dez dias, proceder á apresentação e entrega do veículo penhorado no escritório do senhor solicitador de execução sob pena de, o não fazendo, incorrer em responsabilidade criminal, nomeadamente, na prática de um crime de desobediência.
Todavia, não obstante estar bem ciente de que o citado veículo se encontrava penhorado à ordem dos mencionados autos e dos deveres que ao cargo de depositário eram inerentes, bem como da obrigação que sobre si impendia de, no prazo que lhe foi fixado, proceder à entrega/apresentação do veículo penhorado, o certo é que o arguido não o fez nem justificou a sua omissão.
Bem sabia o arguido que o veículo em causa se encontrava penhorado bem como os deveres e obrigações que sobre si impendiam na qualidade de depositário do mesmo e da especial obrigação que sobre si incidia de, no prazo que lhe fora fixado, proceder à entrega do mesmo ao senhor solicitador de execução, bem como das sanções penais em que a sua omissão o fazia incorrer e, não obstante, agiu da forma descrita, não dando cumprimento à ordem de entrega de documentação do veículo em causa.
O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei.
O arguido é comerciante.
Não tem antecedentes criminais.

MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES
Uma vez refeitas e corrigidas, são as seguintes as conclusões do recurso:
.- Quando em 19 de Setembro de 2007 o funcionário do senhor solicitador de execução, foi proceder à notificação pessoal do arguido para no prazo de dez dias, proceder à apresentação e entrega do veículo penhorado o arguido advertiu o mesmo que não podia entregar o referido veículo, uma vez que, apesar de ter carta de condução não conduzia, e por outro lado, que o veículo não tinha documentos nem seguro automóvel válido.
.- Entretanto, a GNR deslocara-se à residência do arguido, para verificar os quilómetros que o veículo tinha e para proceder à apreensão dos documentos, alertando-o também para o facto de não poder circular com o veículo.
.- Portanto, sempre se dirá que o arguido justificou os motivos pelos quais não iria poder proceder à entrega do veículo.
.- Ora, perante tal situação o senhor solicitador deveria ter tomado outro tipo de medidas, pois tomou conhecimento que o depositário não tinha os documentos do veículo em seu poder.
.- Importa acrescentar, que o arguido sempre se mostrou disponível, nunca pretendendo fugir aos deveres aos quais se encontrava obrigado enquanto depositário, até porque, consta do depoimento do arguido isso mesmo, referindo este que quem quisesse o podia ir buscar, logo, o arguido nunca se negou a entregar o referido veículo.
.- Nem tão pouco era sua intenção não cumprir a ordem que lhe foi emanada.
.- Apenas não o entregou porque não tinha condições para o fazer conforme-lhe foi exigido.
.- Nem é de todo compreensível que o arguido tenha sido notificado para proceder à entrega do veículo nestas circunstâncias.
.- E que após o próprio arguido ter exposto as razões para não proceder à entrega o mesmo continuasse obrigado a fazê-lo.
.- É totalmente descabido que o arguido ou neste caso outra pessoa a pedido do arguido, uma vez que, o mesmo não conduzia, levasse o veículo desde Ponte de Lima, local onde reside o arguido e onde se encontrava o veículo até ao escritório do senhor solicitador de execução que se situa em Braga, sem o veículo ter seguro e sem os respectivos documentos, que como já foi referido supra se encontravam apreendidos pela GNR no âmbito do referido processo de execução.
.- Aliás, se o fizesse incorreria noutro crime visto que foi alertado que enquanto fiel depositário não podia circular com o veículo.
.- Por outro lado ainda, como é fácil de perceber seria de todo um risco conduzir o referido veículo cerca de 40Km, até Braga, sem ter seguro e os documentos do mesmo.
.- Cumpre referir, e ao contrário do que foi alegado que o arguido não podia transportar o veículo através de um reboque, porque mesmo assim, o veículo para ser transportado pelo reboque tem que ter os respectivos documentos.
.- Por outro lado, é fácil alegar que o arguido podia ter procedido à entrega do veículo transportando-o no reboque, sem no entanto saber se o arguido dispunha de meios financeiros para suportar tal despesa.

RESPOSTA
No Tribunal recorrido, o Digno Procurador -Adjunto defende o julgado.

PARECER
Nesta instância, o Ilustre Procurador Geral-Adjunto corrobora a as razões da improcedência.

PODERES DE COGNIÇÃO
Sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no artº 410º, o objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, do qual serão as citações sem referência expressa.

FUNDAMENTAÇÃO
A Mmª Juíza diz que não lhe mereceu credibilidade a declaração do arguido de que, aquando da notificação, percebeu que iriam buscar o carro, tanto mais que o notificante, funcionário do Exmº Solicitador de execução, lhe explicou que caso não apresentasse o veículo incorria na prática do crime de desobediência.
Acrescenta que, apesar de o arguido ter declarado o supra exposto, de forma contraditória, referiu que não entregava o carro porque não sabia conduzir e os documentos estavam com a GNR, o que pressupõe conhecimento, por parte do mesmo, da obrigação de entregar o veículo.
Vamos lá ver.
Parece ponto assente que o arguido não violou o dever de guarda e de não utilização do veículo, como parece indiscutível que sempre esteve ciente de que era sua obrigação fazer entrega do mesmo para os efeitos executivos.
O problema estará apenas no perfeito esclarecimento dos termos da notificação e, sobretudo isso, das condições de remoção do mesmo, sendo perfeitamente crível que o arguido tenha invocado os obstáculos que tinha para o efeito, a saber, a falta de documentos e de seguro.
Nessa situação, caberia ao notificante esclarecer o arguido (e não é claro que o tenha feito) dos meios a que, in extremis, teria que recorrer (se fosse o caso, pois a excessiva oneração é causa justificativa do recurso, pelo Tribunal, a outros meios).
Note-se, aliás, que, conforme se vê de fls. 8, o Exmº Solicitador de execução, apenas pelas dificuldades de contacto telefónico com o arguido, conclui logo, sem meias tintas, que ele não tem cumprido com as obrigações que lhe estão impostas, designadamente a de mostrar o bem, o que não correspondia à verdade.
Mesmo assim, querendo facilitar a prossecução da execução, o Exmº Solicitador não promoveu a remoção do veículo, mas sim a substituição do fiel depositário, com a alteração do local do depósito para um local da cidade de Braga, situação em que nem caberia ao depositário a remover o encargo da transferência do veículo.
Assim sendo, resultando que o arguido vinha a cumprir as suas obrigações, e não lhe cabendo sequer suportar a operação de remoção, a ordem de apresentação do veículo no escritório do Exmº Solicitador foi inconsequente.
Tudo isto vem mostrar que, escusadamente, se criou uma situação de uma ordem apenas formalmente legítima, andando a justiça material arredia do caso.
A seguir, repete-se, confrontamo-nos, pelo menos, com a incerteza dos termos da notificação e dos da reacção do arguido, sobretudo do esclarecimento cabal da obrigação de, face às circunstâncias concretas, mandar rebocar a viatura a expensas suas.
E assim, mesmo relativamente à “ordem desobedecida”, era, como é, de se dar o benefício da dúvida ao arguido.
A este propósito - e exclusivamente por isso -, a audição da instância ao arguido mostra-se insuficiente, mas percebe-se das suas declarações que lhe foi dito que devia apresentar o carro em Braga no prazo de 10 dias (ora se fala em 5, ora em 10), mas também é ponto assente que, perante tal demanda, o arguido invocou os já ditos obstáculos ao cumprimento dessa ordem, fazendo-o, aliás em modos e tom fortemente credíveis e a contrastar com a insegurança do depoimento do notificante, que apenas se refugia no aspecto formal do acto. Apenas refere que se deslocou a casa do arguido (o carro estava lá) para ele fazer a entrega voluntária no prazo de 5 dias, mas ele disse que não ia deslocar-se e quem quisesse que fosse lá retirá-lo.
Ora, como já se disse, além de o processo se ter escusadamente “encaminhado” para uma situação de desobediência, era lógico que o arguido invocasse os fundamentos que representava para justificar a não remoção, que não a entrega, pois sempre esteve disponível para ela.
E o notificante (que, mesmo assim, não é peremptório sobre o teor do diálogo no acto), ao não lavrar na certidão os motivos alegados pelo arguido, não cumpriu cabalmente o seu dever, tanto mais que poderia vir a facultar-lhe eventual impugnação da legitimidade da ordem.
Tem razão, pois, o arguido, quando diz que justificou os motivos pelos quais não iria poder proceder à entrega do veículo, bem como que o notificante, perante tal situação, deveria ter tomado outro tipo de medidas. E, afinal, a viatura, sem qualquer culpa do arguido, acabou por ficar vários meses onde estava!
Assim, dando-se como não provado que sobre o arguido recaísse a obrigação de proceder à apresentação (a entrega do veículo nunca foi recusada e muito menos dos documentos, como se diz na decisão) do veículo penhorado em Braga, bem como que agiu de forma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei, deve o mesmo ser absolvido.

ACÓRDÃO
Nos termos expostos, e sem necessidade de mais considerações, acorda-se em julgar o recurso procedente, absolvendo-se o arguido do crime imputado.
Sem custas.