REMISSÃO ABDICATIVA
RECIBO DE QUITAÇÃO
Sumário


(i) A remissão abdicativa (artigo 863.º, do Código Civil) pressupõe duas declarações: (a) uma do credor, declarando renunciar ao direito de exigir a prestação; (b) outra do devedor, declarando aceitar aquela renúncia.
(ii) Porém, esta aceitação pode ser tácita, face ao que estatuem os artigos 217.º, 219.º e 234.º, do Código Civil.
(iii) Configura um contrato de remissão abdicativa, o documento escrito, intitulado “Recibo de Quitação”, em que o Autor, para além de declarar ter recebido da Ré todas as retribuições e direitos vencidos até ao termo do contrato de trabalho, “mais declara nada ter a receber, a qualquer título” da mesma Ré.
Sumário do relator

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
D… intentou, no Tribunal do Trabalho de Faro, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra M…, S.A. (com sede na Rua João Mendonça, 505, 4464-503 Senhora da Hora), pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 11.409,00, sendo € 6.909,00 a título de indemnização por despedimento ilícito e € 4.500,00 por danos não patrimoniais.

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Alegou para o efeito, e em síntese, que foi admitido ao serviço da Ré em 26 de Novembro de 2002, através de um contrato de trabalho a termo, e que o contrato de trabalho cessou em 21 de Julho de 2009, por iniciativa da Ré e com invocação de justa causa de despedimento na sequência do respectivo processo disciplinar.
Porém, os factos em que a Ré fundamentou o despedimento não correspondem à verdade, sendo, por isso, o mesmo ilícito, com as consequências daí inerentes.
Além disso, o comportamento da Ré ao proceder ao despedimento causou-lhe perturbações do foro psicológico e uma situação depressiva, que justificam a tutela do direito e, por consequência, uma indemnização pelos danos causados.
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Contestou a Ré, por excepção e por impugnação:
(i) Por excepção peremptória, alegando que após a cessação do contrato de trabalho o Autor assinou um documento onde declarou nada mais ter as receber da Ré a qualquer título, e, daí, que não tenha mais qualquer crédito sobre a mesma Ré;
(ii) Por impugnação, afirmando a justa causa de despedimento do Autor, face aos factos por ele praticados.
Pugna, por isso, que seja julgada procedente a excepção de remissão abdicativa e/ou a acção julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido.
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Respondeu o Autor, a sustentar a improcedência da excepção deduzida pela Ré, uma vez que não declarou que renunciava ao direito de pedir que fosse declarada a ilicitude do despedimento.
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Em sede de despacho saneador, o Exmo. Juiz julgou procedente a excepção peremptória de remissão abdicativa invocada pela Ré e, em consequência, absolveu esta dos pedidos formulados pelo Autor.
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Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso para esta Relação, tendo nas respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
1 – A declaração considerada remissão abdicativa não pode valer como renúncia a quaisquer outras importâncias devidas pela entidade patronal, muito menos renúncia ao direito de intentar junto do tribunal do trabalho uma acção declarativa com o objectivo de impugnar um despedimento que considera ilícito.
2 – A renúncia não é admitida como forma de extinção das obrigações.
3 – Uma declaração unilateral não pode ser considerada remissão.
4 – Para que a declaração do A. consubstanciasse um contrato de remissão abdicativa, teria de existir, por parte do mesmo, a vontade declarada de renuncia ao direito de intentar a acção de impugnação do despedimento e aos créditos daí advenientes».
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Contra-alegou a recorrida, a sustentar a improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
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Neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, que não foi objecto de resposta, no sentido da improcedência do recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto do recurso
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, como resulta do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
Assim, tendo em conta as conclusões do recorrente a única questão a decidir consiste em saber se a declaração por ele assinada, e que consta de fls. 55 dos autos, configura uma remissão abdicativa e, nessa conformidade, se o seu eventual crédito se encontra extinto.
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III. Factos
Com relevância para a decisão a proferir, mostram-se provados os seguintes factos:
1. O A. foi admitido ao serviço da Ré, através de um contrato denominado “de trabalho a termo”, com início em 26 de Novembro de 2002, para prestar serviço à mesma Ré com a categoria de Operador de loja, e desempenhava as funções a ela inerentes auferindo ultimamente o vencimento base mensal de € 658,00 (seiscentos e cinquenta e oito euros);
2. No desempenho das suas funções, o Autor ocupava-se de forma polivalente todas as tarefas inerentes ao seu bom funcionamento, nomeadamente, entre outros, aqueles ligados com a recepção, marcação, armazenamento, embalagem, reposição e exposição de produtos, atendimento e acompanhamento de clientes. Também responsável por manter em boas condições de limpeza e conservação, quer o respectivo local de trabalho quer as paletes e utensílios que manuseia. Controlava as mercadorias vendidas e o recebimento do respectivo valor. Podia elaborar notas de encomenda ou desencadear, por qualquer forma, o processo de compra. Fazia e colaborava em inventários. Mantinha actualizados os elementos de informação referentes às tarefas que lhe eram cometidas. Desempenhava funções de apoio a oficiais de carnes, panificação, manutenção e outros. Podia utilizar e conduzir aparelhos de elevação e transporte;
3. Tarefas essas que o Autor sempre exerceu sob as ordens, direcção, orientação e fiscalização permanentes da Ré;
4. O contrato de trabalho cessou em 21 de Julho de 2009, por iniciativa da Ré, alegando esta justa causa, na sequência de um processo disciplinar instaurado em 27 de Maio de 2009;
5. Após a cessação do seu contrato de trabalho o Autor assinou o documento cuja cópia constitui fls. 55, com o seguinte conteúdo:
“ RECIBO DE QUITAÇÃO
D…, contribuinte nº .., no estado civil de Casado, com a Categoria Profissional de OPER.-ESP. E residente em RUA…, declara ter recebido da M…, SA, com sede na RUA…, todas as retribuições devidas e direitos vencidos até à data de 2009.07.22, dia em que cessaram todos os vínculos contratuais com a referida sociedade.
Mais declara nada ter a receber, a qualquer título, da M…, SA, servindo este de quitação geral.
LOULÉ, 22 de Julho de 2009” ;
6. Do referido documento consta ainda, manuscrito:
“Recebi do M… de Loulé a quantia de (1758,30 €)”.
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IV. Fundamentação
Como se deixou supra aludido, a única questão a decidir consiste em saber se o documento de fls. 55 dos autos, assinado pelo Autor/recorrente, configura uma remissão abdicativa e, assim, se os seus eventuais créditos se encontram extintos.
Vejamos, pois, tal questão.
É sabido que a remissão constitui uma das causas de extinção das obrigações, assumindo natureza contratual: como resulta do disposto no art. 863.º, n.º 1, do Código Civil, “[o] credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor”.
Diferentemente do que se verifica com o “cumprimento”, em que a obrigação se extingue pela realização da prestação, ou com a “consignação” e a “prestação”, em que o interesse do credor é satisfeito por forma distinta da realização da prestação, na “remissão”, tal como na “confusão” ou na “prescrição”, a obrigação não chega a ser cumprida: ela extingue-se por mera renúncia do credor.
Para que se forme o contrato é necessária a verificação de duas declarações negociais: uma proferida pelo credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia.
Porém, atente-se que o referido preceito legal não exige que o consentimento do devedor – a aceitação da proposta de remissão – seja manifestado por forma expressa, pelo que a aceitação pode ser tácita e válida como tal, nos termos dos artigos 217.º, 219.º e 234.º do Código Civil.
Ora, no caso, o Autor, para além de declarar ter recebido determinada quantia do devedor, declara também ter recebido da ora Ré/recorrida “todas as retribuições devidas e direitos vencidos até à data de 2009.07.22, dia em que cessaram todos os vínculos contratuais com a referida sociedade”.
Há assim uma declaração do Autor de que recebeu as retribuições devidas daquela.
Mas há também uma outra declaração logo a seguir do mesmo Autor: “Mais declara nada ter a receber, a qualquer título, da M…, SA, servindo este de quitação geral”.
Ora, pergunta-se: poderá esta segunda declaração ser entendida como uma remissão abdicativa?
A resposta, adiantando já a conclusão, terá que ser forçosamente afirmativa.
Expliquemos porquê.
Refira-se, desde já, que no caso se tem por inequívoca a aceitação (tácita) do devedor (aqui Ré/recorrida) da (eventual) remissão, tendo em conta, até, a posição processual por ele assumida nos autos.
Como é sabido, na interpretação da declaração não poderá deixar de atender-se ao que estatui o art. 236.º do CC, ou seja, que [a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”.
Acolhe este preceito a denominada doutrina objectivista da “teoria da impressão do destinatário”: a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; mas, de acordo com o n.º 2, do mesmo preceito legal, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é esta que prevalece, ainda que haja divergência entre ela e a declarada, resultante da aplicação da teoria do destinatário.
Como sublinham Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. I, 3.ª Edição, pág. 223), [a] normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.
Ou, no dizer de Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª Edição, págs. 447-448), “[r]eleva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do destinatário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer”.
Pois bem: no caso afigura-se-nos evidente que o sentido da segunda declaração do Autor foi inequívoco quanto à renúncia a todos os créditos – conhecidos ou não – que pudessem emergir da relação de trabalho ou da sua cessação.
O Autor declara “nada ter a receber, a qualquer título”, da ora recorrida, servindo o documento de “quitação geral”.
Atente-se que tendo o contrato cessado em 21 de Julho de 2009, por iniciativa da Ré, a declaração em causa é emitida pelo Autor no dia seguinte – 22 de Julho de 2009 –, já após tal cessação e, portanto, quando já não tinha quaisquer constrangimentos derivados da subordinação à Ré que existiriam na pendência da relação de trabalho e em que se verificaria a indisponibilidade dos créditos (cfr. artigos 270.º e 271.º, do Código do Trabalho).
Ou seja, uma vez que a indisponibilidade dos créditos provenientes do contrato de trabalho se verifica apenas durante a vigência do mesmo, à data da celebração do acordo não existia qualquer impedimento legal à renúncia de créditos emergentes desse contrato.
De resto, dentro do princípio da liberdade contratual (cfr. artigo 405.º, do Código Civil), não se vislumbra qualquer obstáculo à celebração do acordo em causa.
E o Autor nem sequer alegou qualquer vício na formação da vontade de emitir tal declaração/remissão.
Daí que os (eventuais) créditos do Autor emergentes da relação de trabalho, rectius, por cessação do contrato de trabalho, se consideram extintos por remissão abdicativa nos termos do n.º 1 do artigo 863.º, do Código Civil.
Refira-se que esta tem sido a posição uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, que em casos muito semelhantes ao presente tem declarado a extinção de créditos por remissão abdicativa, como podem ver-se, entre outros, os acórdãos de 24-11-2004 (Proc. 04S2846), de 25-05-2005 (Proc. 05S480), de 11-10-2005 (Proc. 05S1763), de 31-10-2007 (Proc. 07S1442) e de 10-12-2009 (Proc. 884/07.1TTSTB.S1), todos disponíveis sob a respectiva indicação em www.dgsi.pt.
Uma vez aqui chegados, só nos resta concluir pela improcedência das conclusões das alegações de recurso e, por consequência, pela confirmação da decisão recorrida.
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Vencido no recurso, deverá o recorrente suportar o pagamento das custas respectivas (cfr. artigo 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Isto, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto por D… e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Évora, 24 de Março de 2011
(João Luís Nunes)
(Acácio André Proença)
(Joaquim Manuel Correia Pinto)