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ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE
PENA SUSPENSA
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
CRITÉRIO DE RAZOABILIDADE
Sumário
I. O assistente tem legitimidade para recorrer de uma pena suspensa na sua execução quando peticiona que tal suspensão seja subordinada ao pagamento de uma indemnização a si próprio.
II. O artº 51º, nº 2 do Código. Penal estabelece um critério de razoabilidade na determinação dos deveres a que pode ser subordinada a suspensão da execução da pena.
III. O montante da indemnização a suportar pelo arguido como condição da suspensão da execução da pena não pode ser tão oneroso que, na prática, se traduza num adiamento da execução, nem tão ligeiro que não cumpra a sua função de reforço do conteúdo reeducativo da pena de substituição.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. No processo comum singular que, com o nº 658/08.2TAEVR, corre termos no 2º Juízo Criminal de Évora, o arguido JM, com os demais sinais dos autos, foi julgado pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p.p. pelos artºs 205º, nºs 1 e 4, al. b) e 202º, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova. Julgada procedente a “excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir”, no que aos danos de natureza patrimonial diz respeito, o arguido foi absolvido da instância cível; de outro lado, foi julgado improcedente, por não provado, o mesmo pedido cível, no restante e, consequentemente, condenada a demandante (e assistente) nas custas respectivas.
Inconformada com tal decisão, recorreu a assistente P., SA, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):
«A) O facto 6.º dos Factos Provados foi incorrectamente julgado pelo tribunal a quo, porque a resposta não é compatível com os documentos juntos aos autos. Isto é, o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova (art.º 410º, n.º 2, al.ª c), do CPP), porque entrou em contradição entre a decisão proferida e a prova produzida (facto 6.º dos factos considerados provados);
B) Face ao exposto, deve o Tribunal ad quem reapreciar a prova e, em conformidade, julgar inequivocamente que a resposta deveria ter sido outra, considerando que o Arguido acordou o pagamento com a Recorrente (o que, aliás, confessou em juízo), mas não fez chegar tais documentos assinados à Recorrente (o que deveria ter sido considerado na medida da pena);
C) O artigo 71.º do Código do Processo Penal consagra o princípio da adesão da acção cível à acção penal, pelo que o direito à indemnização por perdas e danos decorrentes do ilícito criminal deve ser exercido no próprio processo penal, nele se enxertando o pedido de indemnização civil;
D) Contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, a Recorrente não é possuidora de título executivo, já que os documentos juntos aos autos não obedecem aos requisitos do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código do Processo Civil (que assim foi violado);
E) No entanto, não se encontrando a situação dos presentes autos nas excepções do princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil (artigos 71.º e 72.º do Código do Processo Penal), tem a Recorrente a possibilidade de recorrer a todos os mecanismos que a Lei permite com vista à cobrança do crédito, nomeadamente, deduzir pedido de indemnização civil, pelo que a Recorrente tem interesse em agir, o que significa que o tribunal a quo deveria ter apreciado o pedido de indemnização civil formulado nos autos, tendo, assim, sido violado o artigo 26.º do Código do Processo Civil;
F) Assim, considerando os factos provados, pelos quais o Arguido foi condenado, é evidente que a conduta ilícita – apropriação de € 33.463,23 – é causa directa e necessária dos danos e prejuízos causados à Recorrente, pelo que tal conduta preenche os requisitos que constituem o Arguido na obrigação de indemnizar (nos termos previstos nos artigos 483.º, 563.º, n.º 1, 564.º, n.ºs 1 e 2, e 566.º, todos do Código Civil). Não tendo o tribunal a quo condenado o Arguido no pagamento da quantia subtraída, violou as normas referidas;
G) A pena de prisão – suspensa na execução – não irá realizar de forma adequada as finalidades da punição, já que sem condições (nomeadamente condicionada ao pagamento da indemnização) não é suficientemente dissuasora de reiterações criminosas, nem fará com que o Arguido interiorize a gravidade da sua conduta (prevenção especial);
H) O Arguido deveria ter sido condenado numa pena de prisão, suspensa na execução pelo mesmo período, sob condição de proceder ao pagamento à Recorrente do valor de € 24.800,12 (quantia ainda em dívida) e respectivos juros
I) Caso o Arguido não seja condenado a pagar a quantia à Recorrente, como condição de não cumprir pena de prisão efectiva, as consequências do acto criminoso não existem, sendo o Arguido compensado pelos factos ilícitos (o que é violador dos fins das penas).
São pois termos em que se espera que o Tribunal ad quem, revogue a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que condene o Arguido numa pena de prisão, suspensa nos efeitos condicionada ao pagamento da quantia de € 24.800,12 (quantia ainda em dívida) e respectivos juros, bem como na procedência do pedido de indemnização civil, com quanto exposto vai, porque apenas assim se cumprirá a Lei, realizando-se o Direito e fazendo-se a desejada JUSTIÇA!».
Responderam o Digno Magistrado do MºPº e o arguido, ambos pugnando pela improcedência do recurso, mas apenas o primeiro extraindo da sua resposta as respectivas conclusões (de seguida igualmente transcritas):
«1ª- O acórdão recorrido não incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, designadamente não incorreu no vício a que alude o artº 410º, nº2-c) do CPP, de erro notório na apreciação da prova.
2ª- O acórdão recorrido não se mostra ferido de erro de julgamento no tocante à matéria de direito, por ter decretado a suspensão da execução da pena sem subordinação ao pagamento de um quantum indemnizatório a favor da assistente.
Julgando o recurso improcedente, V. Exas, farão a costumada Justiça!!»
A assistente respondeu às respostas (!), de forma anómala (porquanto se trata de peça sem qualquer enquadramento legal); e a secção de processos entendeu por bem abrir vista ao Magistrado do MºPº mas, aparentemente, não viu necessidade de abrir conclusão ao Juiz, que é quem tem (ao menos por ora) a direcção do processo.
II. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, restrito à questão criminal e, nessa parte, pugnando pela procedência do recurso. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve respostas.
Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP [1] - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber:
a) enferma a decisão recorrida de erro notório na apreciação da prova?
b) o pedido cível deduzido pela demandante deveria ter sido conhecido em toda a sua plenitude, por ter aquela interesse em agir?
c) a suspensão da execução da pena de prisão deve ser subordinada ao pagamento à assistente da quantia em que ficou lesada?
O tribunal recorrido considerou provada a seguinte factualidade:
1- No dia 01.03.2002, o arguido assinou um contrato de trabalho a termo certo, com a sociedade P. S.A., através do qual passou a desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de operador de posto de abastecimento.
2- Até 20.09.2006, o arguido prestou esse trabalho no posto de abastecimento de combustíveis localizado em Évora, junto do Mercado Abastecedor, explorado sobre a denominação "AVIA".
3- Entre outras tarefas, cabia-lhe proceder à venda de combustíveis e produtos similares, receber o preço dos bens vendidos e serviços prestados, verificar as contas e passar recibos e bilhetes.
4- De acordo com as ordens e instruções da entidade empregadora, o arguido devia registar os pagamentos das vendas no sistema informático instalado no posto e no dia ou dias seguintes, depositar os valores recebidos na conta que aquela entidade detinha no "Millenium", com o n.º 214550615, bem como informar esta sociedade, através da entrega de um modelo estabelecido, dos montantes recebidos e lançados na folha de caixa e do seu depósito bancário.
5- Durante o mês de Maio de 2006, o arguido, na esperança de que os serviços administrativos da sociedade em causa não detectassem as divergências de valores, foi-se apoderando, sucessivamente, de parte das quantias pecuniárias que recebeu dos seus clientes do posto de abastecimento, não procedendo ao respectivo depósito na conta bancária da sua entidade empregadora, embora as tenha lançado na folha de caixa, num total de € 33.799,54 (trinta e três mil setecentos e noventa e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos).
6- Depois de ter percebido que a sua actuação fora descoberta, o arguido assinou uma declaração, fazendo cessar o contrato de trabalho, e uma confissão e assunção de dívida, bem como um acordo em que se compromete a pagar, em certo calendário, com termo em 01 de Outubro de 2008, o referido valor e juros no montante de € 3,741,10 (três mil setecentos e quarenta e um euros e dez cêntimos).
7- O arguido apenas pagou € 8.999,42 (oito mil novecentos e noventa e nove euros e quarenta e dois cêntimos).
8- Sabia que, na qualidade de funcionário operador de um posto de abastecimento de combustíveis, recebia quantias monetárias correspondentes ao preço dos bens e serviços vendidos e prestados pela sua entidade empregadora, em cuja conta bancária as devia depositar, nos dias imediatamente seguintes, apoderando-se de parte delas em seu benefício, sem razão que o justificasse, e causando um prejuízo à mesma entidade, igual aos montantes apropriados.
9- Agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
10- O arguido confessou a sua apurada conduta, mostrando-se arrependido.
11- À data dos factos, o arguido passava por graves dificuldades financeiras, com despesas acrescidas pela morte do seu pai, às quais tentou fazer face recorrendo a um empréstimo bancário.
12- Actualmente, o arguido trabalha como vigilante, auferindo salário mensal de cerca de € 600,00 (seiscentos euros); tem um irmão de 15 anos a seu cargo; não tem filhos; paga € 60,00 (sessenta euros) de renda de casa: concluiu o 8.0 ano de escolaridade; não possui antecedentes criminais.
13- A demandante assegurou nos autos o pagamento da taxa de justiça devida pela sua constituição como assistente.
E quanto à factualidade não apurada, assim se decidiu no tribunal recorrido:
«Com relevo para a decisão a proferir, ficou por apurar que a conduta do arguido tenha causado ofensas à consideração da demandante e à relação desta com os seus trabalhadores».
Desta forma fundamentou a Mª juíza a quo a sua convicção:
«O Tribunal fundamentou a sua decisão, quanto à matéria de facto, na apreciação crítica de toda a prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento.
Desde logo considerou o Tribunal a confissão efectuada pelo arguido, que admitiu os factos vertidos na acusação, de forma integral. Acresce a prova documental junta ao processo, relativa aos acordos assinados pelo arguido, bem como à assunção de dívida da sua parte.
As declarações do arguido, quer pelo seu teor, quer pela postura que assumiu no Tribunal, mostraram-se, ainda, credíveis quanto à motivação com que agiu, ao seu arrependimento pelo sucedido, bem como à sua actual situação social e económica.
No que tange ao pedido de indemnização civil, na parte que permanece em apreciação, facilmente se constata dos autos o pagamento da taxa de justiça por parte da demandante (fls. 169).
Relativamente a alegadas ofensas à consideração da demandante e ao relacionamento com os seus funcionários, alegadamente causadas pela conduta do arguido, nenhuma prova se fez. Na verdade, a demandante não alegou as concretas ofensas a que se referia, limitando-se a concluir pelas mesmas».
III. Decidindo:
Como questão prévia impõe-se a abordagem da (i)legitimidade da assistente para recorrer (obviamente, no que à condenação criminal diz respeito).
Nos termos do disposto no artº 69º, nº 1, al. c) do CPP, compete aos assistentes “interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito (…) “; e, por força do artº 401º, nº 1, al. b) do mesmo diploma legal, o arguido e o assistente têm legitimidade para recorrer “de decisões contra eles proferidas”.
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu “Assento” 8/99, DR I-Série-A de 10/8/99, fixou jurisprudência no sentido de que “o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.
Assim vistas as coisas, resta dizer que, in casu, é óbvio o interesse próprio da assistente na modificação da concreta pena aplicada: aquilo que o assistente pretende não é um agravamento da concreta pena de prisão; tão pouco que a mesma seja efectiva na sua execução. Diversamente, aquilo que pretende é que a suspensão da execução seja subordinada ao pagamento, a si própria, da indemnização a que se julga com direito. E porque assim é, uma pena assim determinada (isto é, com a suspensão condicionada ao pagamento da indemnização) melhor assegurará, naturalmente, o seu interesse em ver-se ressarcida dos prejuízos alegadamente sofridos, porquanto tal condição sempre funcionará como incentivo adicional a que o arguido pague a indemnização em cujo pagamento venha a ser condenado.
Consequentemente, é de concluir pela legitimidade do assistente para recorrer da sentença proferida em 1ª instância, no segmento relativo à condenação criminal – neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. RP de 30/5/2007 (rel. José Piedade), RG de 16/11/2009 (rel. Fernando Monterroso), da RE de 18/5/2010 (rel. Maria José Nogueira) e da RC de 12/12/2007 (rel. Alberto Mira), como as decisões sumárias (proferidas em sede de reclamação) dos Exmºs Vice-Presidente da Relação de Lisboa (em 4/5/2010) e Presidente da Relação de Guimarães (em 29/9/2009), todos in www.dgsi.pt.
Posto isto:
a) Enferma a decisão recorrida de erro notório na apreciação da prova?
Entende a assistente que a matéria de facto contido no ponto 6 da factualidade assente em 1ª instância deve ser alterada, porquanto a mesma “não é compatível com os documentos juntos aos autos. Isto é, o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova (artº 410º, nº 2, al. c) do CPP) porque entrou em contradição entre a decisão proferida e a prova produzida”.
No ponto 6 da matéria de facto consignou-se que “depois de ter percebido que a sua actuação fora descoberta, o arguido assinou uma declaração, fazendo cessar o contrato de trabalho, e uma confissão e assunção de dívida, bem como um acordo em que se compromete a pagar, em certo calendário, com termo em 01 de Outubro de 2008, o referido valor e juros no montante de € 3,741,10 (três mil setecentos e quarenta e um euros e dez cêntimos) ”. E fundamentou a sua convicção, neste aspecto, considerando a confissão do arguido “que admitiu os factos vertidos na acusação, de forma integral. Acresce a prova documental junta ao processo, relativa aos acordos assinados pelo arguido, bem como à assunção de dívida da sua parte”.
O erro notório na apreciação da prova é o “que se verifica quando da leitura, por qualquer pessoa medianamente instruída, do texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, for detectável qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida” – Ac. STJ 2/2/2011 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt.
Para que o mesmo releve como fundamento do recurso, impõe o nº 2 do artº 410º do CPP que tal vício “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
Desta limitação resulta que fica “desde logo vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida” - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 339 (no mesmo sentido, isto é, entendendo-se que o erro tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a outros quaisquer elementos, ainda que constantes do processo, vai a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores - cfr., por todos, os Acs. STJ de 2/2/2011 e de 23/9/2010 [2] (rel. Maia Costa e Souto Moura respectivamente, www.dgsi.pt).
De forma particularmente clara se expressou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo”.
Assim delimitado este vício, não vemos como encontrá-lo na sentença recorrida.
O facto contido no ponto 6 da factualidade assente em 1ª instância não é contrário à lógica ou regras da experiência da vida, como nos parece evidente e dispensa maiores explicações.
Aliás e em bom rigor, nem sequer é contraditório com a motivação subsequente.
O que se passa é coisa diversa.
Aquilo que a recorrente questiona, verdadeiramente, é o acerto da decisão do tribunal a quo ao dar como provada a matéria de facto contida no ponto 6 da factualidade assente em 1ª instância, no segmento relativo à assinatura dos documentos.
Diz o Digno Magistrado do MºPº na 1ª instância que ao assim proceder, a recorrente olvida o princípio da livre apreciação da prova inserto no artº 127º do CPP.
É verdade que em matéria de apreciação da prova manda o artº 127º do CPP que, salvas as excepções previstas na lei, aquela seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Este sistema de livre apreciação da prova aí consagrado (por contraposição ao sistema de prova legal) manifesta-se sob dois prismas:
- de um lado, o juiz há-de decidir de acordo com a sua íntima convicção, formada do dinâmico confronto das provas arroladas pela acusação e pela defesa e daquelas que, ele próprio e oficiosamente, entender por bem produzir e conhecer;
- de outro, tal convicção há-de ser formada com base em regras técnicas e de experiência (e bom senso) comum sem, contudo, qualquer sujeição a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados.
Como esclarecidamente se afirma no Ac. Trib. Const. nº 464/97, de 1/7/97, www.tribunalconstitucional.pt., “este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta”.
E porque assim é, não custa aceitar que os mesmos elementos de prova, exibidos em audiência, mereçam apreciações diversas por banda dos julgadores, por um lado, e do arguido (ou do Ministério Público ou do assistente) por outro.
Isso, porém, não acarreta qualquer vício para a sentença assim proferida nem, necessariamente, se traduz em erro de julgamento (na apreciação da prova).
A livre convicção do julgador, posto que justificada, ponderada e, por isso, não arbitrária, aliada às regras da experiência, é o modo como, no nosso sistema processual penal, deve ser apreciada a prova.
É na conjugação destes dois factores (livre apreciação do julgador e regras da experiência) que a prova há-de ser apreciada (a não ser, naturalmente, que se trate de prova tarifada ou vinculada).
Naturalmente, liberdade (de apreciação) não se confunde com arbitrariedade.
O juiz não pode ignorar os depoimentos produzidos em audiência ou a prova documental existente e decidir como lhe aprouver, de forma imotivada.
Porém, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, ed. 1974, 204, a decisão do juiz há-de ser sempre e necessariamente uma “convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais”.
Perante uma determinada situação em concreto, produzidos em audiência depoimentos de sentido contrário, é natural que sejam lícitas e possíveis várias soluções, na decisão da matéria de facto.
Se aquela que é assumida pelo juiz é uma das soluções admissíveis, à luz das regras da experiência comum (e se, para além disso, tal solução se mostrar suficientemente motivada e esclarecida, como é manifestamente o caso dos autos), então estamos perante decisão inatacável no plano fáctico, pois que produzida em estrita obediência ao estatuído no artº 127º do Cod. Proc. Penal [3].
Sobre esta matéria, assim se decidiu no Ac. STJ de 9/7/2003, www.dgsi.pt:
“Outra questão (...) reside em saber se as Relações, por sua própria iniciativa, e apoiando-se na extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova aos tribunais de recurso, podem com base no mesmo princípio, alterar a matéria de facto dada como provada pelos tribunais de 1ª instância.
(...) Tem-se por certo que sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, não se configura como seja possível formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam. Sobrepor um juízo distanciado desta proximidade a um juízo colhido directamente e ao vivo seria um risco sério que poderia comprometer a pureza do princípio e abalar as regras de um julgamento sereno e fundamentado”.
No mesmo sentido vai, aliás, a lição de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º vol., 1974, p. 233/234: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.
Em suma: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável. O recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.
Só assim não será quando as provas produzidas imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido. E isto sucederá quando o tribunal decide ao arrepio e contra a prova produzida (v.g., se dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e, ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição se constata que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto ou, pronunciando-se, disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida) ou quando o tribunal valora a prova produzida contra as regras da experiência, as tais que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, II, 30, se traduzem em “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.
E, ressalvado sempre o devido respeito, foi isso que sucedeu no caso em apreço.
O tribunal recorrido deu como assente que o arguido assinou uma declaração, fazendo cessar o contrato de trabalho, e uma confissão e assunção de dívida, bem como um acordo em que se comprometeu a pagar, em certo calendário, o montante de € 33.799,54 e juros no montante de € 3,741,10. E fundamentou a sua convicção, neste aspecto, considerando a confissão do arguido e a prova documental junta ao processo, “relativa aos acordos assinados pelo arguido, bem como à assunção de dívida da sua parte”.
Mas, como a recorrente insistentemente fez notar, os documentos referidos pela Mª juíza a quo como estando assinados pelo arguido, na verdade não o estão (à excepção de uma declaração, datada de 20 de Setembro de 2006, na qual o arguido declara pretender fazer cessar o seu contrato de trabalho celebrado com a assistente, com efeitos imediatos – fls. 39 - e de uma outra, sem data, que consta de fls. 46, onde o arguido se declara devedor da recorrente “de diversas quantias, as quais não se encontram na presente data totalmente determinadas, mas cujo valor não é inferior a € 22.000”).
O arguido até poderá ter admitido, em audiência, a dívida (de € 33.799,54 mais juros) e o acordo de pagamento subsequente. Porém, com base no seu depoimento e na prova documental junta aos autos, os únicos documentos que o tribunal a quo poderia ter considerado como assinados pelo arguido são as supra referidas declarações de fls. 39 e 46.
Na realidade, como se constata da simples observação dos documentos de fls. 41/43 e 44/45, o acordo [no qual o arguido reconhece ter-se apropriado ilegitimamente do montante de € 33.799,54 e se compromete a pagá-lo e, por seu turno, a assistente (ora recorrente) se compromete a não o accionar judicialmente, caso sejam integralmente cumpridas todas as condições constantes desse acordo] bem como a “declaração de confissão e assunção de dívida” não se mostram assinados por quem quer que seja e, nomeadamente, pelo arguido.
E porque assim é, não podia o tribunal a quo ter dado como provado, no ponto 6 da matéria assente, que tais documentos estavam assinados. Podia, naturalmente (e com base na confissão do arguido), ter considerado provado que este reconheceu, perante a assistente dever-lhe determinada quantia e juros e, bem assim, que com ela acordou o seu pagamento, em determinadas condições. Mas não mais do que isso.
Impõe-se, pois, a alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, por forma a que o ponto 6 da mesma passe a ter a seguinte redacção:
«6- Depois de ter percebido que a sua actuação fora descoberta, o arguido assinou uma declaração, fazendo cessar o contrato de trabalho, bem como uma declaração na qual se reconhece devedor da sociedade P de diversas quantias, ainda não determinadas, mas em valor não inferior a 22.000 euros; de outro lado, reconheceu perante a assistente ser seu devedor da quantia de € 33.799,54 e juros respectivos e com ela se comprometeu a pagar, em certo calendário, com termo em 01 de Outubro de 2008, o referido valor e juros no montante de € 3,741,10 (três mil setecentos e quarenta e um euros e dez cêntimos)».
E nesta parte procede, pois, a pretensão da assistente.
b) O pedido cível deduzido pela demandante deveria ter sido conhecido em toda a sua plenitude, por ter aquela interesse em agir?
A Mª juíza a quo decidiu, na sentença, julgar verificada a “excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir por parte da demandante, no que tange à quantia de € 33.436,23, acrescida dos respectivos juros, o que, neste tocante, determinará a absolvição do demandado da instância”.
E desta forma justificou tal decisão:
«P., S.A. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento pelo mesmo da quantia de € 33.640,23 (trinta e três mil seiscentos e quarenta euros e vinte e três cêntimos), a título de danos patrimoniais, relativos aos montantes de que o arguido, alegadamente se apropriou; os montantes de taxas e custas pagas pela demandante; e de uma quantia a determinar pelo Tribunal, relativa aos danos de natureza não patrimonial, em face das ofensas à consideração e à relação laboral estabelecida entre a demandante e os seus trabalhadores.
No caso dos autos, considerando o teor do requerimento de pedido de indemnização civil formulado, e no que concerne aos danos de natureza patrimonial, verifica-se que, parte do mesmo corresponde aos montantes de que o arguido alegadamente se apropriou e a cuja devolução ainda não procedeu, acrescidos dos respectivos juros.
Tal como decorre dos autos e do próprio pedido de indemnização civil, foi extrajudicialmente celebrado acordo de pagamento em prestações, entre o arguido e a demandante. O arguido/demandado assinou, ainda, uma declaração de confissão e assunção de divida.
Em caso de incumprimento do referido acordo, a demandante pode executar o arguido, recorrendo, de imediato ao processo de natureza executiva.
Concluindo-se, assim, pela existência de um título executivo que permite à demandante a efectivação da sua pretensão, há que questionar o seu interesse em agir, ao lançar mão de um novo procedimento declarativo.
O Código do Processo Civil não contempla o interesse em agir como excepção dilatória. Porém, doutrinal e jurisprudencialmente, o conceito tem sido objecto de tal tratamento, embora classificando-a como inominada. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, pag 253; e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 172) sustenta que o interesse em agir constitui um pressuposto processual. Também nesse sentido, Ac STJ de 30/10/84, proc. nº 071941; 10/12/85, in BMJ 352, p. 29, e 08/03/2001, proc. n° 00A3277.
O interesse processual - ou interesse em agir - pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva, através de um determinado meio processual. Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o Objecto e a prova na Acção Declarativa, p 97.
Divergindo da legitimidade para a acção, este pressuposto tem em comum com aquele, o facto de ser aferido, objectivamente, pela posição alegada pelo Autor, demonstrando a necessidade de recurso a juízo como forma de defender o seu direito.
Tal como refere o Prof. Manuel de Andrade, o interesse em agir, consiste no direito do demandante estar carecido de tutela judicial.
Pode, por isso, dar-se o caso do autor, embora se apresentando como parte legítima, não ter necessidade de recorrer à tutela do tribunal para a satisfação do seu direito.
Além da necessidade da tutela judicial, importa que a acção instaurada seja o meio processual idóneo ú tutela do direito violado.
Assim, o interesse em agir mais não é do que uma inter-relação da necessidade e da adequação - para a solução do conflito deve ser indispensável a actuação jurisdicional e o caminho escolhido deve ser apto a corrigir a lesão efectuada ao autor, tal como ele a configurou na petição inicial.
No caso dos autos, estamos perante o pedido de declaração da obrigação do demandado em pagar à demandante determinadas quantias que foram objecto de acordo escrito e extrajudicial de pagamento em prestações, com expresso reconhecimento da dívida.
Ora, não se vislumbra a necessidade da demandante recorrer à tutela deste tribunal, da forma em que o fez.
Tal como já se afirmou, a demandante é já possuidora de título executivo, mostrando-se totalmente inútil um novo procedimento judicial de natureza declarativa.
A demandante não tem qualquer benefício em ver declarado pelo tribunal um direito que já possui e já foi reconhecido, pelo que, falece o seu interesse em agir na presente acção».
Salvo o devido respeito, não tem razão a Mª juíza a quo.
É, no mínimo, questionável a posição sustentada na decisão recorrida quanto à natureza de excepção dilatória da falta de interesse em agir, face ao estatuído no artº 449º, nº 1, al. c) do CPC.
Porém, no caso, até é irrelevante a abordagem dessa questão.
É que, como claramente decorre do artº 46º, nº 1, al. c) do CPC, à execução apenas podem servir de base “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
E, como já deixámos expresso na abordagem da questão anterior, os documentos invocados pela Mª juíza a quo como pretensamente assinados pelo arguido (o acordo extra-judicial de pagamento em prestações da quantia em dívida e uma declaração de confissão e assunção de divida), na verdade não o estão.
Com interesse nesta questão, o único documento assinado pelo arguido é a declaração de fls. 46, na qual o arguido se reconhece devedor “de diversas quantias, as quais não se encontram na presente data totalmente determinadas, mas cujo valor não é inferior a € 22.000”. A quantia da qual o arguido se reconhece devedor (não se sabe bem quando, porquanto a dita declaração não se encontra datada) não é, assim, determinada nem determinável por simples cálculo aritmético. E porque assim é, nem sequer este documento pode servir de base a uma execução.
Em suma: a demandante cível não dispunha verdadeiramente de qualquer título executivo. Justificava-se, pois e em absoluto, o recurso a Juízo (e, em obediência ao princípio da adesão obrigatória – artº 71º do CPP – a dedução do pedido cível formulado nestes autos).
A decisão da Mª juíza a quo não pode, pois, subsistir.
E fornecem os autos os elementos necessários ao conhecimento do pedido cível?
É um facto que, na sequência da decretada absolvição da instância cível do demandado, a Mª juíza se absteve de consignar, entre os factos provados e não provados, os descritos no pedido cível.
Porém:
Nos termos do artº 483º, nº 1 do Cod. Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da análise de tal preceito legal resulta necessária a verificação cumulativa de cinco pressupostos para que se possa falar de responsabilidade civil por factos ilícitos:
a). A existência de um facto voluntário, significando tal conceito um facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade;
b) que o facto seja ilícito, podendo tal ilicitude, nos termos do disposto no artº 483º, nº 1 do Cod. Civil, assumir duas variantes:
b.1.) violação de um direito de outrem;
b.2.) violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) a verificação de um nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, é necessária a verificação de culpa;
d). a verificação de danos;
e). a verificação de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Face à matéria de facto apurada em 1ª instância (com a alteração supra decidida), é inquestionável que, no caso dos autos, se mostram presentes todos os referidos pressupostos: mediante a prática de um facto ilícito (que constitui, mesmo, infracção penal) e culposo (rectos, doloso), o arguido JM privou a demandante da quantia de € 33.799,54 que lhe deveria ter entregue, no mês de Maio de 2006, provocando-lhe assim o prejuízo correspondente.
É no pagamento dessa quantia, acrescida de juros de mora à taxa legal (nem outra, aliás, peticiona a demandante), contados desde o dia 1/6/2006 (pontos 4 e 5 da matéria de facto e artº 805º, nº 2, al. b) do Código Civil) que o arguido/demandado deve ser condenado.
A tal quantia acrescem as quantias suportadas pela demandante, na qualidade de assistente – artº 377º, nº 3 do CPP.
Obviamente, na liquidação do montante global levar-se-á sempre em conta a quantia entretanto já paga – cfr. ponto 7 da matéria de facto assente – levando-se em consideração, nesta matéria, o disposto no artº 785º, nºs 1 e 2 do Cod. Civil.
O assim decidido implica procedência apenas parcial do pedido cível formulado pela demandante (continua a não ser atendido o seu pedido de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial que alegou mas não demonstrou e, de outro lado, os juros concedidos não alcançam os peticionados [4]).
Assim sendo, a final se decidirá que as custas cíveis deverão ser suportadas por demandante e demandado na proporção de 1/10 para aquela e 9/10 para este.
c) A suspensão da execução da pena de prisão deve ser subordinada ao pagamento à assistente da quantia em que ficou lesada?
O arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p.p. pelos artºs 205º, nºs 1 e 4 e 202º, al. b) do Cod. Penal, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.
Entende a assistente que tal suspensão deveria ter sido condicionada ao pagamento, a seu favor, “de € 24.800,12 (quantia ainda em dívida) e respectivos juros”, porquanto sem tal condição a pena aplicada “não é suficientemente dissuasora de reiterações criminosas, nem fará com que o arguido interiorize a gravidade da sua conduta (prevenção especial) ”.
Nos termos do disposto no artº 51º, nº 1, al. a) do Cod. Penal, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado “e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente (…) pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea”.
Como bem se afirma no Ac. RP de 19/2/2003 (rel. Isabel Pais Martins), www.dgsi.pt, “o dever enunciado tem, em primeira linha, uma finalidade reparadora (reparar o mal do crime) mas, por via dela, fortalece a finalidade da pena enquanto visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. (…) O pagamento da indemnização, na medida em que representa um esforço ou implica até um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas também como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se, assim, como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade”.
Porém, o artº 51º, nº 2 do Cod. Penal estabelece que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.
Trata-se, como melhor se explica no Ac. STJ de 19/5/2005 (Proc. 770/05 – 5ª) do chamado princípio da razoabilidade, que «tem sido entendido pela jurisprudência como querendo significar que a imposição de deveres condicionadores da suspensão da pena deve ter na devida conta as ‘forças’ dos destinatários (ou seja, as suas condições pessoais e patrimoniais e o nível de rendimentos de que dispõe) de modo a não frustrar à partida o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo se cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidades financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para que possa desenvolver diligências que lhe permitam obter os recursos indispensáveis à satisfação da condenação».
Ou, como se diz no Ac. STJ de 11/2/2004, (rel. Henriques Gaspar), www.dgsi.pt: “1. A decisão de suspensão de execução da pena de prisão, quando sujeita a condições, deveres ou regras de conduta, nos termos permitidos pelo artigo 50°, 2, do Código Penal, tem de pressupor e conter um razoável equilíbrio entre a natureza das imposições à pessoa condenada, e a eficácia e integridade da medida de substituição. 2. A imposição de condições de muito difícil ou não suportável cumprimento não satisfaz, nem as injunções para a reintegração dos valores afectados e para a condução de vida de acordo com tais valores, nem conformação da vontade da pessoa condenada na aceitação e no respeito das sujeições que devem acompanhar e potenciar o reencaminhamento para o reencontro com os valores do direito; é, por isso, que o artigo 51°, n° 2, do Código Penal determina que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir». 3. A natureza excessiva ou dificilmente praticável do dever imposto determinará, em si, necessariamente, uma posição interior de anomia, rejeição ou desinteresse, contraditória com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão da execução. 4. Por isso, os deveres ou condições a estabelecer na suspensão da execução da pena devem ser adequados, pessoal e materialmente possíveis, num plano de reordenação para os valores do direito que previna, no essencial, a reincidência, ou que possa contribuir para a reparação das consequências do crime” [5].
À luz do que acabámos de expor, já se adivinha que, em nossa opinião, a suspensão da execução da pena deve, no caso, ficar condicionada ao pagamento de parte da indemnização devida ao lesado, porque só assim se alcançarão, em absoluto, as exigências de prevenção (geral e especial), fazendo-se sentir ao arguido a reformabilidade da sua conduta, incentivando-o a arrepiar caminho e a reparar, na medida do possível, o mal do crime e, de outro lado, dando sinal claro à comunidade de que comportamentos como o apurado nestes autos são censuráveis e sancionados de forma adequada.
Obviamente, face à situação económica do arguido, que trabalha como vigilante, auferindo salário mensal de cerca de € 600,00 (seiscentos euros), tem um irmão de 15 anos a seu cargo, não tem filhos e paga € 60,00 (sessenta euros) de renda de casa (ponto 12 da matéria de facto), condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento integral (dentro do prazo da suspensão – 14 meses) da quantia em cujo pagamento vai condenado, na procedência parcial do pedido cível, equivaleria, bem vistas as coisas, a adiar a execução da pena. E não é isso que se pretende.
Mas, também, a imposição de condição de pagamento de parte irrisória ou insignificante, poderá não só não alcançar o efeito pretendido como provocar o contrário (isto é, a sensação de que “o crime compensa”).
O montante a fixar há-de, assim, reflectir as possibilidades económicas do arguido mas, também, constituir para ele um esforço significativo, por forma a que a suspensão da execução da prisão seja sentida como uma verdadeira pena.
Esse montante, ponderado tudo quanto exposto fica, deve ser fixado em € 7.500, a ser pago no prazo da suspensão, isto é, no prazo de 14 meses.
E desta forma procederá, ainda que parcialmente, a pretensão da recorrente.
IV. Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a) alterar a matéria de facto fixada na 1ª instância, por forma a que o ponto 6 da mesma passe a ter a seguinte redacção: “Depois de ter percebido que a sua actuação fora descoberta, o arguido assinou uma declaração, fazendo cessar o contrato de trabalho, bem como uma declaração na qual se reconhece devedor da sociedade P de diversas quantias, ainda não determinadas, mas em valor não inferior a 22.000 euros; de outro lado, reconheceu perante a assistente ser seu devedor da quantia de € 33.799,54 e juros respectivos e com ela se comprometeu a pagar, em certo calendário, com termo em 01 de Outubro de 2008, o referido valor e juros no montante de € 3,741,10 (três mil setecentos e quarenta e um euros e dez cêntimos) ”;
b) na procedência parcial do pedido cível, condenar o demandado a pagar à demandante a quantia de € 33.799,54, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde o dia 1/6/2006 e até integral pagamento, bem como nas quantias suportadas pela demandante, na qualidade de assistente (artº 377º, nº 3 do CPP), levando-se em conta, na liquidação do montante global, a quantia de € 8.999,42, entretanto já paga;
c) subordinar a suspensão da execução da pena em que o arguido foi condenado ao pagamento à assistente, no prazo da suspensão, da quantia de 7.500 euros (que, liquidada, será deduzida ao montante fixado na alínea anterior);
d) condenar demandante e demandado nas custas do pedido cível, fixando as respectivas responsabilidades em 1/10 para aquela e 9/10 para este, no mais se mantendo a decisão recorrida.
Custas pela assistente – artº 515º, nº 1, al. b) do CPP. Taxa de justiça: 3 (três) UC’s.
Évora, 7 de Fevereiro de 2012 (processado e revisto pelo relator)
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Sénio Manuel dos Reis Alves
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João Martinho de Sousa Cardoso
[1] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).
[2] Do sumário deste último: “O erro notório na apreciação da prova, da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida”.
[3] Cfr., com interesse nesta matéria, o Ac. RC de 15/9/2010 (rel. Brízida Martins), www.dgsi.pt., assim sumariado: “Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.
[4] A demandante pede a condenação do demandado no pagamento da quantia de € 33.436,23, acrescida de juros vincendos à taxa legal desde a notificação do pedido, até integral pagamento. Porém, naquela quantia de € 33.436,23 estão incluídos juros calculados à taxa legal, desde a prática do ilícito até 31/1/2011 [33.799,54 de capital em dívida, acrescida de juros no montante de 3.741,10, deduzida da quantia de 8.999,42, entretanto paga, é igual a 28.541,22. Sobre esse montante – que já incluía juros – a demandante peticiona juros no montante de € 4.895,01, calculados entre 20/9/2006 e 31/1/2011, como expressamente refere no artº 27º do pedido cível; e sobre o montante global de € 33.436,23 (que, repetimos, já incluía juros), a demandante pede juros à taxa legal, contados desde a da ta da notificação do pedido cível].
[5] No mesmo sentido, cfr. Acs. RG de 19/4/2004 (rel. Ricardo Silva), da RC de 12/12/2007 (rel. Alberto Mira) ou desta Relação de Évora de 21/2/2006 (rel. Fernando Cardoso), todos in www.dgsi.pt.