Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
DIREITO DE CORRECÇÃO
Sumário
1. Perante o quadro legislativo vigente não é defensável que os estabelecimentos de assistência que acolham menores em risco tenham um direito ao recurso a castigos físicos, como método educativo ou de disciplina das crianças ou jovens a que dão abrigo.
2. A actuação voluntária consistente em impor a outrem que permaneça de pé durante as refeições como castigo, mesmo que não deixe marcas ou consequências visíveis no corpo do ofendido, integra actualmente o cometimento do crime tipificado no art.º 143.º do Código Penal
Texto Integral
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, o arguido JF foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada e continuada, de três crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelos art.º 30.º, n.º 2 e 143.º, n.º 1, do Código Penal, pelos quais foi condenado nas penas de:
-- 100 dias de multa, à razão diária de 5,00 €, quanto ao cometido na pessoa de PP;
-- 120 dias de multa, à razão diária de 5,00 €, quanto ao cometido na pessoa de DR; e
-- 130 dias de multa, à razão diária de 5,00 €, quanto ao cometido na pessoa de PG.
Em cúmulo jurídico, pena unitária de 260 dias de multa à razão diária de 5,00 €, o que perfaz a multa de 1.300,00 €.
#
Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1 - Permanecer de pé durante o período de uma refeição ou tomar a refeição de pé dificilmente se enquadra, pelas razões supra aduzidas, na expressão "ofensa ao corpo ou à saúde" constante do art. 143° do Código Penal.
2 - Os outros castigos aplicados pelo recorrente ao P, ao D e ao PG, como a douta decisão recorrida reconhece, tiveram sempre o propósito exclusivo de corrigir e educar e, em qualquer caso, apenas para censurar comportamentos desviantes ou reprováveis dos ofendidos, sem intenção de ofender, ferir ou magoar.
3 - Não se tendo provado qualquer excesso do recorrente na aplicação dos castigos, nem a inoportunidade dos mesmos, nem sequer a sua desproporção relativamente às faltas cometidas, e não perdendo de vista o meio sócio económico de que são oriundos a maioria dos rapazes que são acolhidos na Casa do Gaiato, não subsiste, sem recurso a indesejáveis posições extremistas, qualquer razão convincente para justificar a condenação do recorrente.
4 - A douta decisão recorrida violou, pelo menos, o art. 143º do Código Penal.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso com revogação da decisão recorrida e absolvição do recorrente.
#
O Ex.mo Procurador Adjunto do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1- Dispõe o art. 412º, nº1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2- As conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão, sendo que o Tribunal superior, tal qual 1ª instância só pode conhecer das questões submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
3- No caso dos autos, resulta que o recurso se cinge à matéria de direito e, tem a ver com a razoabilidade dos castigos infligidos aos menores PP, DR e PG, ou seja, em determinar se houve, nas circunstâncias concretas dos autos excesso do arguido JP na aplicação dos castigos aos referidos menores.
4- Quanto aos castigos físicos, como sanção para comportamentos desadequados, na sociedade moderna mostram-se cada vez mais em desuso, sendo certo que,
5- aceitando que existam situações em que o castigo seja admissível, impõe-se que este só seja admitido em condições excepcionais e, só quando a actuação do educando seja lesiva de bens jurídico-penais (neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque), pelo que,
6- o castigo é inadmissível, designadamente em casos de “ chumbar nos testes”, de “fugas da Casa do Gaiato” ou de “simplesmente ter retirado comida sem autorização”, motivos dados como provados ( conforme factos provados com os nºs 6, 8 e 28, referentes aos castigos físicos, “chapadas, reguadas nas mãos com um tubo ou uma cana, infligidos respectivamente aos menores PP e PG).
7- O castigo só deve ser exercido depois de prévia advertência do educando, de modo a que ele conheça qual o castigo em que incorre se praticar determinado acto censurável, e, neste caso,
8- deverá o castigo ser sempre de natureza não física e, aplicável só quando exista uma reiteração do comportamento do educando e,
9- só então se poderá eventualmente aceitar que se recorra e, excepcionalmente à ofensa à integridade física simples, sendo que,
10- não resulta em nenhuma das situações dadas como provadas na sentença, que tal tenha ocorrido como é o caso do menor DR (facto dado como provado com o nº 22).
11- O arguido e ora recorrente ao obrigar PP e PG a tomarem as refeições em pé, no refeitório, enquanto todos os outros colegas se encontravam sentados a tomarem as refeições constitui uma humilhação, revestindo também uma “violência física” obrigar outrem a estar em pé, quando o não pretenda.
12- Assim, os castigos infligidos aos menores PP, DR e PG mostram-se desadequados e excessivos, sendo certo que o recorrente sempre poderia e deveria ter optado por outro tipo de castigos, que não físicos e vexatórios, pelo que,
13- o comportamento do recorrente não é integrador da causa de justificação a que se alude no art.s 31.º, n.ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, mostrando-se, assim, punível, tendo também o recorrente actuado com dolo necessário e, já que previu as ofensas como consequência necessária da sua conduta, ou seja quis aplicar os castigos em apreço e aceitou todas as suas consequências necessárias e indispensáveis.
14- Assim, bem andou a M.mª juíz ao condenar o arguido JP, como autor material pela prática de três crimes de ofensa à integridade física (art.º 143.º, n.º1, do Código Penal), na pena unitária de duzentos e sessenta (260) dias de multa, à taxa diária de cinco (€ 5,00) euros, o que perfaz uma pena de multa de € 1.300,00 (mil e trezentos euros).
Termos em que deverá a douta decisão ser mantida na íntegra, negando-se provimento ao recurso
#
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. Entre Julho de 2001 e Junho de 2009, JP foi o director da “Casa do Gaiato de ---”, organismo pertencente à denominada Obra da Ruaou Obra do P.° Américo, sita...., instituição particular de solidariedade social destinada ao acolhimento de crianças e jovens do sexo masculino, local onde ocorreram todos os factos que a seguir se descrevem.
2. BJ (nascido em 18.12.1989) foi acolhido na Casa do Gaiato de --- desde o início de 2004 até cerca do dia 8 de Junho do mesmo ano.
3. Na casa do Gaiato existiam os “Chefes”, grupo de alunos mais velhos entre os quais se contam JM (“Maneta”), FO (“Cocas”) e NO (“Sapateiro”), com funções de responsabilidade e correcção relativamente aos mais novos, o que era do conhecimento do arguido JP, e por este incentivado.
4. PP (nascido a 5.03.1989) residiu na Casa do Gaiato de .... até aos seus 18 anos.
5. Em data não concretamente apurada mas situada entre Janeiro e 30 de Maio de 2004, o arguido J impôs ao P, como castigo instituído na Casa, que ficasse no refeitório de pé, durante todo o tempo da refeição.
6. Num dia à noite dentro daquele período, o arguido J deu duas chapadas ao P, dentro do seu escritório, por este ter trazido da Escola Luísa Todi, onde frequentava o 5º ano de escolaridade, um recado do professor que informava que este, por se ter portado mal, havia sido expulso da aula.
7. Em data não concretamente apurada e durante o período de permanência do menor P na casa do Gaiato, o arguido J bateu-lhe, dando-lhe chapadas, no refeitório, em frente aos outros rapazes, visando castigá-lo.
8. Aqueles castigos aconteciam quando o menor P se “portava mal”, retirando comida da cozinha sem autorização, ou quando chumbava num teste.
9. O arguido J dava instruções no sentido de que o então menor P e outros rapazes trabalhassem nas manhãs de Sábado, até à hora de almoço, fazendo limpezas e tratando das vacas.
10. Como castigo por ter usado o telemóvel no refeitório e por considerar que os irmãos não eram uma boa influência, o arguido J impediu o P de contactar telefonicamente com os seus irmãos que se encontram a residir em outras instituições, retirando-lhe o telemóvel que restituiu uma semana depois.
11. Quando os irmãos o vão ver à Casa do Gaiato de ..., o arguido J restringe o modo de realização das visitas, impedindo-os de dar um passeio no exterior.
12. Em 30/05/2004, o P apresentava nódoas negras nas costas e um arranhão no pescoço.
13. Apresentava-se, nessa data, magro e emocionalmente instável.
14. Os comportamentos descritos provocaram dor e sofrimento físico e psíquico no menor P.
15. O arguido J agiu livre e voluntariamente, com intenção de castigar P pelos erros que cometia, sabendo que com isso atingia o corpo e a saúde do P.
16. O arguido recorre a estes castigos, utilizando-os como método educativo-correctivo.
17. Agiu sempre de livre vontade e consciente de que, assim actuando, violava a lei.
18. Em diversas ocasiões não concretamente apuradas o menor P foi batido pelos “chefes”, como o “Ricardinho” e o “Cocas”.
19. DR (melhor id. a fls. 572), nascido a 03-03-1994, esteve quatro anos na Casa do Gaiato de ...— entre 2001 e 21 de Novembro de 2004.
20. Nesse período de tempo foi agredido, com um pau e com as mãos, pelos alunos mais velhos da instituição.
21. Numa ocasião e no refeitório, a pedido do arguido JP, DR levou chapadas do “Sapateiro” como castigo por estar a falar na missa com um colega.
22. Naquele período, pelo menos uma vez, o Padre J chamou DR ao escritório e bateu-lhe nas pernas com uma cana grossa, sem que o mesmo tivesse percebido a razão, dizendo “estás a portar-te muito mal”.
23. Em consequência, DR ficou com equimoses nas pernas e na zona da anca esquerda.
24. Noutra ocasião, aquando do regresso da venda dos jornais, o arguido J deu duas chapadas a DR como castigo relacionado com a não entrega de dinheiro da venda.
25. O arguido J agiu livre e voluntariamente, querendo corrigir o menor, sabendo que necessariamente o vexava e magoava fisicamente, fazendo-o com intuito correctivo.
*
26. JG (nascido em 18/10/1989) residiu na Casa do Gaiato de ... desde 23.02.2001 até 10.07.2004.
27. Neste lapso de tempo e durante cerca de dois meses, em diversas ocasiões e como castigo, designadamente em virtude de fugas da Casa do Gaiato, o arguido J ordenou ao JG que tomasse as suas refeições de pé, permitindo que se sentasse, quando iam algumas visitas à Casa do Gaiato.
28. Como castigo em virtude de ser encontrado a fumar, ter fugido ou faltar à escola, o arguido J deu reguadas nas mãos de JG com um tubo ou uma cana.
29. O arguido J agiu livre e voluntariamente, querendo corrigir o JG, sabendo que necessariamente o vexava e atingia a sua dignidade, ao obrigá-lo a tomar as suas refeições de pé, mais uma vez fazendo-o com intuito correctivo.
30. O arguido FS, durante o tempo em que JG viveu na Casa do Gaiato, bateu-lhe por duas vezes.
31. Numa delas bateu-lhe com um cano na zona lombar, por não estar a trabalhar do modo pretendido pelo arguido.
32. Noutra delas, cuja data em concreto não se apurou, JG, então com uma idade entre os 12 e os 14 anos, estava no pomar a abrir canteiros e não estando a fazer o trabalho devidamente, o arguido FS acercou-se dele e deu-lhe um violento pontapé no rabo.
33. Todos os comportamentos descritos provocaram dores e sofrimento físicos e psíquicos no menor JG
34. O arguido F agiu livre e voluntariamente, sabendo que atingia o seu corpo, provocando-lhe dor e sofrimento, bem sabendo que tal conduta lhe é proibida por lei.
35. O arguido F quis atingir o corpo do JG, demonstrando-se insensível à dor que acabara de provocar no menor, bem sabendo que o seu comportamento era contrário à ordem jurídica.
36. JG era uma criança rebelde.
37. É lema da instituição Casa do Gaiato que todos os rapazes participem das tarefas necessárias ao seu funcionamento, o que inclui alguns trabalhos no campo e na horta.
38. Os rapazes da Casa de Gaiato também tinham actividades lúdicas e espaços de lazer para verem televisão e jogar à bola.
Mais se provou relativamente ao arguido JP:
39. O arguido tem o bacharelato em engenharia, e o curso de teologia.
40. Vive na casa do Gaiato em.....
41. Não tem rendimentos, sustenta-se com a alimentação fornecida na Casa do Gaiato, e apenas possui dinheiro de bolso para café.
42. É tido como pessoa calma, controlado, e interessado pelos alunos que frequentam a Casa do Gaiato.
43. O arguido não tem antecedentes criminais.
Mais se provou relativamente ao arguido FS:
44. O arguido estudou até ao 6º ano de escolaridade.
45. Aufere mensalmente o salário de €500,00, por mês.
46. Vive com a mulher, que é empregada doméstica, e dois filhos com cinco e um ano de idade.
47. Vive em casa própria, pagando ao Banco pela amortização de empréstimo para sua aquisição a quantia de €175,00 mensais.
48. O arguido não tem antecedentes criminais.
#
-- Factos não provados:
Não se provaram os demais factos elencados na acusação, designadamente, que:
1. Durante o período em que BJ residiu na casa do Gaiato, os “Chefes”, grupo de alunos mais velhos entre os quais se contam JM (“Maneta”). FO (“Cocas”) e NO (“Sapateiro”) bateram-lhe por diversas vezes, que não se conseguiram contabilizar nem localizar temporalmente [mas que ocorreram entre 01-01-2004 e 08-06-2004] com chinelos e paus de vassoura partidos.
2. Sistematicamente davam-lhe pontapés e chapadas na cabeça.
3. Obrigavam-no, depois de jantar, a fazer 153 flexões.
4. Em ocasião que não foi possível, em concreto, apurar, mas que ocorreu no lapso temporal em que o B residiu na Casa do Gaiato, obrigaram-no a ficar um dia inteiro sem comer e de pé com os braços abertos.
5. Todos os actos descritos provocaram dor e sofrimento físico e psíquico no menor B.
6. “Maneta”. “Sapateiro” e “Cocas”, os “Chefes”, faziam-no com o conhecimento e a mando do arguido J, que os utiliza como “instrumento educativo” dos mais novos.
7. O arguido J nada fez, ao invés, instruiu e incentivou os “Chefes” a atacar o B, por entender que este se portou mal.
8. Agiu, deste modo, de forma livre e consciente, querendo pôr em perigo o corpo do B.
9. Ao permitir que este fosse privado de alimento durante um dia atacou a sua saúde, o seu são desenvolvimento e a sua dignidade, contribuindo, ainda, para a sua pública humilhação, e agiu livremente, bem sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas pela ordem jurídica.
10. Em datas que não foi possível precisar, mas que se reportam ao período compreendido entre Janeiro e 30 de Maio de 2004, um grupo de alunos mais velhos da referida casa, entre os quais RG, por três ou quatro vezes, colocaram-se em circunferência, ficando o PP no centro, e pontapearam-no e soquearam-no.
11. Tais alunos, os “Chefes”, entre os quais o ‘Garcia”, actuam a mando do arguido J, que os utiliza como meio de “educar” os mais novos.
12. Na ocasião em que o PP ficou de pé durante o jantar, o arguido J lhe tenha imposto também como castigo que ficasse sem jantar, bem sabendo que, ao privar o menor de uma refeição, colocava em perigo o seu normal desenvolvimento e crescimento, afectando a sua saúde e, em simultâneo, humilhando-o e vexando-o.
13. As nódoas negras nas costas e um arranhão apresentados pelo P fossem consequência da actuação do arguido JP.
14. Os trabalhos impostos ao menor pelo arguido JP excediam a medida do razoável, constituindo uma sobrecarga para um menor de 14 anos, ao mesmo tempo que cerceia o seu tempo livre e de brincadeira.
15. O arguido J sabia que o seu comportamento era o adequado a produzir desequilíbrio emocional, medo, tristeza e abandono do menor, quando o impediu de contactar livremente com os seus irmãos.
16. O arguido JP tenha agredido DR em mais ocasiões no interior do refeitório, quando estava a comer, e quando estava a trabalhar, através de bofetadas no rosto ou com um pau nas pernas.
17. O arguido J ameaçou DR para não dizer nada à família pois senão “ainda lhe dava mais”.
18. O menor DR era alvo de violência, designadamente, porque tendo por incumbência vender jornais da “Casa do Gaiato” eram-lhe estipulados objectivos no caso de não conseguir atingir essas vendas e realizar tal quantia de dinheiro os rapazes mais velhos da instituição agrediam-no a mando e/ou com conhecimento do arguido JP.
19. Em consequência do pontapé desferido por FS, JG ficou com uma ferida nessa zona que começou a sangrar, prosseguindo, contudo, com a rega das árvores, como lhe fora ordenado.
20. O arguido J tinha conhecimento dos factos praticados pelo arguido FS, sendo permissivo em relação à actuação do mesmo.
21. Os trabalhos que o arguido J impôs ao JP fossem manifestamente excessivos, tendo em conta a sua idade, e consubstanciassem, ao mesmo tempo, a privação do tempo normal de recreio dos menores, bem sabendo o arguido J bem sabia que actuando deste modo, violava a lei.
#
Fundamentação da convicção:
A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida e apreciada em audiência de discussão e julgamento, analisada conjugada e criticamente à luz de regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
Nas suas declarações o arguido JP negou genericamente os factos imputados, reconhecendo apenas que por vezes alguns rapazes ficavam de pé no refeitório (algumas a comer de pé, outras vezes a aguardar o fim da refeição), a fim de se destacar perante os outros rapazes que ali estavam um comportamento grave e ofensivo. No entanto nunca ficavam sem jantar, acabando por comer no fim. Negou que tivesse mandado castigar os rapazes, pois se houver necessidade é o próprio quem castiga. Em seu entender as queixas dos alunos são fábulas, que explicam do seguinte modo: o PP era um rapaz pacífico com um ou outro mau comportamento, “os irmãos é que eram o problema”, tendo chegado a desligar o telefone aos irmãos porque estes foram incorrectos. Quanto ao DR que descreveu como sendo um miúdo amoroso, houve um dia em que ele fugiu na sequência da visita da família, explicando que a mãe tinha interesse em ficar com ele, para obter uma casa maior da Câmara. O JG tinha muita genica, e é possível que tivesse tomado as refeições de pé ou tivesse ficado de pé durante a refeição. É da sua essência inventar. O B vitimizou-se, queria uma vida livre e sentia-se preso na casa do Gaiato, inventou fábulas para se justificar perante a mãe.
Disse ainda que, efectivamente existiam “chefes”, como o FO “cocas”, o NO “o sapateiro”, o JM “o maneta”, os quais tinham mais responsabilidades como manter a casa arrumada, fazer com que os mais novos se deitassem a horas. Todavia nunca lhes deu qualquer instrução nem soube que batessem a outros
O arguido FS não quis prestar declarações, mas depois de produzida toda a prova pediu para o fazer, dizendo que “não estava autorizado a tocar com um dedo nos rapazes” e negando os factos de que foi acusado.
Assumiu importância o depoimento prestado por DR, com 16 anos de idade, que, contou que esteve na Casa do Gaiato de 2001 a 2004, não tendo gostado de lá estar, pois, era “mal-tratado”. Disse que pelo menos uma vez o Padre J lhe bateu nas pernas com uma cana grossa, no escritório, sem que o mesmo tivesse percebido a razão. O padre dizia apenas “estás a portar-te mal”. Nesta altura ficou com marcas que mostrou à mãe e ao tio. Dos “chefes”, só o sapateiro é que lhe bateu uma vez a mando do padre J que disse ao Sapateiro “trata do assunto”, em virtude de ter sido apanhado a falar na missa com outro colega, ao que o sapateiro lhe deu umas chapadas no refeitório sem que o Padre J dissesse nada. Contou que uma vez, depois de vir da venda dos jornais, o Padre J lhe deu duas chapadas. De forma vaga disse não saber porquê, mas a instâncias de um dos ilustres defensores, acabou por reconhecer que poderia ter sido por ter ficado com o dinheiro da venda do jornal.
Quanto a eventuais agressões ou castigos a outros rapazes, disse que o padre já bateu no G, assim como o Cocas e o Sapateiro, e numa das vezes foi por ele ter fugido da Casa do Gaiato. Descreveu os castigos praticados na Casa do Gaiato: lavar a loiça, servir à mesa, varrer a cozinha, limpeza de quartos, e ficar de pé no refeitório, o que chegou a acontecer com o próprio, sendo que nestas vezes não jantavam. Inquirido referiu que não gostava de ajudar nas tarefas da Casa do Gaiato, nem de estudar, tendo tido maus resultados.
Por sua vez, LP, professor em Alcabideche e tendo contactado com PP, através do seu irmão CP, declarou não ter conhecimento directo de qualquer agressão na Casa do Gaiato. Nos contactos que teve com PP, em Maio de 2004, verificou que ele tinha nódoas negras e escoriações nas costas, mas não lhe perguntou a causa. Pareceu-lhe uma criança triste. O irmão é que lhe disse que “ele apanhava na Casa do Gaiato”. Meses mais tarde, por volta de Outubro de 2004, já depois de iniciado o presente processo, voltou a falar com o P, pedindo-lhe “nomes”, ao que ele respondeu que o G lhe batia com frequência e que o “Mário” já o tinha tentado violar. Aqui contou que foi sujeito à humilhação da “rodinha”, que consistia em colocar um rapaz no meio de uma roda formada por rapazes mais velhos que o vão agredindo. Instado disse que nunca o PP aludiu ao Padre Director da Casa do Gaiato, nem se queixou dele, quem o fez foi o irmão.
AM, tio de JG, referiu que o sobrinho se queixava que “os superiores lhe batiam”, daí ter fugido da Casa do Gaiato há cerca de 3 anos. A testemunha não nomeou os “superiores” e nada mais concretizou. Expressamente instado nesse sentido referiu que o sobrinho nunca relacionou o padre J com estes factos nem se queixou dele.
As testemunhas FO, também conhecido por “Cocas”, ex-aluno da Casa do Gaiato, JM, com a alcunha de “maneta”, confirmaram as respectivas alcunhas e o facto de serem considerados “chefes” na Casa do Gaiato. Disse o primeiro que as suas incumbências era verificar se os restantes se portavam mal e caso tal se verificasse comunicar ao Padre J. Os castigos aplicados eram: levantar a mesa, lavar a loiça, ficar uma semana sem jogar na play station. Por vezes ficavam de pé no refeitório mas no final sentavam-se e comiam. Negou que alguma vez tivesse batido em alguém e o Padre J também não. Não sabe da existência da “rodinha nem nunca viu flexões. O Padre J nunca lhe pediu para bater em ninguém. Nunca viu o padre J a agredir ou a “castigar” o PM, o DR ou o JG. Não se recorda do BJ.
Já JM, embora negando a existência da “rodinha”, as flexões, ou que alguém ficasse de braços abertos no refeitório, declarou também que “uma palmada no rabo era normal” e que de vez em quando o padre dava uma palmada no rabo no refeitório, o que chegou a acontecer com o G, por este se ter portado mal, por exemplo por ter andado à pancada. Segundo a testemunha o G era mais traquina, portava-se mal na escola. Nunca viu ninguém de braços abertos o dia todo no refeitório. Quanto aos demais ofendidos, disse que não se recordava do PM ter levado uma palmada, embora adiante no seu depoimento tenha referido não ter a certeza se lhe chegou a dar uma palmada, e que não se recordava do D nem do BJ. Nunca viu o arguido F a bater em alguém.
Idêntica postura assumiu NO, ex-aluno da Casa do Gaiato onde permaneceu desde 1994 a 2004, tendo sido um dos “chefes”, cuja função, nas suas palavras, era “orientar os mais novos” e informar o Padre quando se portavam mal. Disse que nunca viu ninguém de pé no refeitório a comer ou a aguardar o termo da refeição como castigo, a não ser enquanto eram advertidos pelo Padre. Não se recordava do BJ, do PP ou do DR. Recordava-se do G, que era mais rebelde, mas nunca viu ninguém a bater-lhe. Quanto ao funcionamento da casa explicou que todos colaboram nas actividades da casa.
RG, também ex-aluno do casa do Gaiato de ..., confirmou a existência de “chefes” no colégio (tal acontecia com o “Cocas” e o NO), o próprio também o foi. Nunca os viu bater nos mais novos. Como castigos referiu o “comer de pé”, lavar a loiça e levantá-la. Nunca viu o padre a bater nos alunos ou a incentivar os chefes a fazê-lo. Negou que ficassem sem refeição como castigo. O trabalho na horta era feito das 08h/09H da manhã até ao meio dia de Sábado. Os rapazes ajudavam na lida do colégio pois havia poucos empregados. Instado disse não se recordar do PP ou do DR.
AG, mãe de JG, não tendo conhecimento directo dos factos pois nunca foi à casa do Gaiato em ---, referiu que o filho fugiu por duas vezes da casa do Gaiato. Vinha com cicatrizes, magro, e com fome. Ele dizia que comia de pé, e que tinha sido batido por um “senhor” cujo nome não recorda. Contou que o Padre lhe batia e o punha de castigo, um desses castigos era comer de pé e levantar a mesa. Também lhe contou que o Padre lhe tinha batido com o cabo de uma vassoura.
JMP, irmão de PP, declarou que numa das vezes que o foi visitar, o P tinha as costas negras e os abdominais arranhados. O irmão disse-lhe que o Padre lhe tinha dado uma chapada por ter chumbado no teste, o que aconteceu noutras ocasiões. O irmão contou que “os monitores” lhe tinham batido com cabos de vassoura, pontapés e socos. Houve uma vez em que pediu para almoçar com o irmão e o Padre não deixou, embora não fosse impedido de visitar o irmão quando queria. Este depoimento há-de ser conjugado com o depoimento prestado por PP, o qual declarou que no período em que esteve na casa do Gaiato o Padre de vez em quando batia-lhe no meio do refeitório. Disse que isto acontecia quando se “portavam mal”, o que exemplificou com “roubar comida, bolos”. Uma vez foi expulso da sala de aula e o Padre chamou ao escritório e deu-lhe duas chapadas. Ainda lhe bateu mais uma vez no escritório (por ter chumbado num teste) e no refeitório, com chapadas. Ao todo foram duas ou três vezes, segundo disse. Os chefes também batiam: uma vez o “Ricardinho” (que não o RG) deu-lhe com um pau de vassoura nas costas e no resto do corpo, o Padre não se encontrava presente. Porém, uma vez no refeitório o “Cocas” deu-lhe uma chapada e o Padre viu. Era costume trabalharem nas tarefas da casa aos Sábados até ao meio-dia, mas também viam televisão. Como castigo por estar a falar ao telemóvel no refeitório, o que não era permitido, o Padre tirou-lhe o telemóvel o qual restituiu passado uma semana. Negou que alguma vez estivesse no centro de uma roda a levar socos e pontapés. Numa ocasião o irmão esteve na instituição para o visitar mas o Padre não o deixou sair para estar com o irmão fora do colégio. Houve uma vez que o irmão ligou para lá e ouviu o Padre dizer que o próprio não estava, quando estava.
Não foi explícito quanto a ter ficado sem jantar na vez em que comeu de pé, vindo a perceber-se que nesse dia não jantou porque resolveu “ir lá para fora”, e não porque a ausência de jantar fizesse parte do castigo. Pareceu haver alguma confusão quanto a duas situações de chapadas no escritório, daí considerar-se apenas a situação que decorreu da expulsão da sala por ter sido mais claramente descrita, para além das bofetadas no refeitório.
Particular relevância assumiu o depoimento prestado por JG, visivelmente agastado com a situação e com o facto de ter de reproduzir o seu relato. Deu conta de que na casa do Gaiato existiam castigos como comer de pé quando havia fugas. O Padre bateu-lhe umas “poucas de vezes”. Em todas as ocasiões sabia porque é que estava a apanhar. As “asneiras” que justificavam os castigos eram as faltas na escola, o fumarem, as fugas, e chegar tarde ao refeitório. Referiu que num dos castigos esteve dois meses a comer de pé, sentando-se quando apareciam visitas. Em algumas destas vezes em que comeu de pé podem ter sido os monitores a dar essa instrução, mas recorda-se “nitidamente” que o Padre estava lá e viu-o a tomar as refeições de pé.
Adiante disse também que o Padre batia no gabinete dele e no refeitório, aqui em frente aos outros rapazes, com chapadas. Os chefes também batiam. Instado referiu que, pelo menos por duas vezes e como castigo, o padre lhe bateu no escritório. Mandava estender as mãos e dava com uma cana ou um tubo. Pelo menos uma vez apanhou do Padre no refeitório.
Declarou que o arguido F o agrediu por duas vezes. Uma vez foi ao pontapé na zona da coxa e do rabo, por não estar a fazer bem o trabalho na horta (dizendo que estavam a abrir uns canteiros ao pé das árvores). Na altura ficou com nódoas negras. Não referiu que tivesse ficado a sangrar mas disse que foi com força e que durante umas horas não se podia sentar.
Da outra vez apanhou com um cano na zona lombar.
Nas suas palavras, quando instado a pormenorizar as agressões ou castigos, o tribunal registou como sincero desabafo “quando era agredido só queria esquecer”.
Explicou que faziam trabalhos no campo (apanhar batata etc.), mas também brincavam (jogavam à bola e viam televisão).
Recorda-se que quando fugiu contou à mãe o que se tinha passado, mas não sabe o teor exacto da conversa.
DR, arrolado pelo arguido FS, acabou por dizer que comer de pé era um castigo, o próprio também o sofreu quando foi “roubar à cozinha”. Disse que nunca viu ninguém de pé duas vezes seguidas, nem viu o F a dar pontapés no G.
MM, pessoa que teve um afilhado na Casa do Gaiato, JD, médica na Casa da Gaiato, FL, professor no primeiro ciclo na Casa do Gaiato, JM, médico e amigo da Casa do Gaiato, que frequenta aos Domingos, abonaram ao carácter do arguido JF, dando conta do seu interesse pelos miúdos. Disseram que nunca ouviram falar de “maus tratos” na casa do Gaiato. FL declarou não se ter apercebido que os castigos, que aconteciam em caso de quebra da disciplina, ultrapassassem o limite da violência.
Em sede de reabertura da audiência e a pedido do arguido foi novamente ouvido FL que salientou a postura controlada e carinhosa do arguido, reiterando o interesse que o mesmo demonstrava pelos “moços” e pela obra. Disse também que os miúdos provinham de meios complicados, e que se houve estaladas elas aconteceram em última linha, o mesmo se passando com o castigo “comer de pé” de que ouviu falar.
Por sua vez JF, sacerdote católico e director da obra do Padre Américo, desde há muito ligado às Casas do Gaiato, declarou que nas casas do Gaiato há disciplina mas a correcção é fraterna. Exemplificou os castigos admissíveis deste modo: ir para a copa lavar pratos, servir à mesa, corte da mesada, proibição de sair. Disse que os castigos físicos têm-se vindo a erradicar (só se for uma situação pontual) e que comer de pé era um castigo usado há 15/20 anos. Tem o Padre J como pessoa carinhosa e equilibrada.
De forma concatenada com os depoimentos, foi ponderado o fax remetido pelo Hospital Fernando Fonseca junto a fls. 547 a 549, relativo a DR, contendo uma observação feita a DR em Novembro de 2004, onde se detectaram diversas equimoses nos membros inferiores, aí constando que o mesmo declarou então ser batido pelo Padre. Considerando os diversos estádios das equimoses entende-se que não é possível afirmar que todas tenham decorrido da actuação do Padre, até porque o próprio D só aludiu a uma situação em que levou com a cana nas pernas.
Analisando criticamente vemos que os relatos de DR, PM, e JG, afiguraram-se credíveis quanto aos “castigos por si sofridos” e demais práticas vivenciadas na Casa do Gaiato. Não se trataram de depoimentos sectários ou em que se evidenciasse uma efabulação da sua parte. Pelo contrário, trataram-se de depoimentos coerentes entre si quanto à caracterização dos castigos e com os relatos de quem os ouviu dizer desse modo, como sucedeu com AG e JP, que também depuseram de forma sincera. Foi visível uma natural revolta da testemunha JG relativamente aos arguidos, mas outra coisa não seria de esperar nas circunstâncias. A reforçar a credibilidade destes depoimentos está o facto de os próprios também reconheceram que por vezes se portavam mal. PP e JG exemplificaram os comportamentos que originam os castigos do modo que se encontra provado. Tratam-se de testemunhas que nada têm a ganhar com o desfecho da causa pois que inclusive não deduziram pedido cível.
Embora NO, FO e outros acima referidos, antigos “chefes” na Casa do Gaiato tenham negado a existência de castigos físicos, inclusive NO referiu que nunca viu ninguém de pé no refeitório a comer ou a aguardar a refeição, quando tal facto foi reconhecido pelo arguido J e demais “chefes”, pareceu ao tribunal que depuseram de forma parcial, querendo até justificar a sua actuação enquanto “chefes”, importando não esquecer que RG, JM, NO e FO haviam sido constituídos arguidos nos autos, tendo o inquérito relativamente aos mesmos sido arquivado por falta de queixa. É sabido que os ambientes masculinos e fechados potenciam as relações de ascendência dos mais velhos relativamente aos mais novos e com isso os excessos na manifestação de autoridade.
De toda a prova produzida resultou também que os “castigos” relatados eram aplicados com um intuito educativo e correctivo e não com uma mera intenção directa de agredir os alunos.
O facto de algumas testemunhas, as arroladas pela defesa do arguido JP, nunca terem ouvido falar de “maus tratos” na Casa do Gaiato não infirma a factualidade apurada, desde logo pela subjectividade do conceito (algumas das práticas descritas pelas testemunhas podem até ser legítimos castigos para os mesmos), e também porque o facto de não terem presenciado ou percepcionado castigos violentos não permite concluir que os factos apurados não se tenham passado.
Os factos respeitantes à situação pessoal dos arguidos constituem o resultado das declarações produzidas pelos mesmos neste particular e das testemunhas que abonaram ao seu carácter.
Quanto aos antecedentes criminais, a sua prova baseou-se nos certificados de registo criminal dos arguidos, juntos aos autos a fls. 1237 e 1238.
A razão de ser da matéria de facto não provada resulta da falta de prova nesse sentido, que foi evidente em relação ao BJ, que tão pouco foi ouvido por não ter sido localizado.
Também não se provou a sobrecarga de trabalhos, pois resultou provado que todos participavam das tarefas e actividades na Casa do Gaiato que não tem empregados, sem que as tais tarefas colocassem em causa o tempo de brincadeira e lazer que genericamente todos reconheceram existir.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a questão posta ao desembargo desta Relação é a de saber se as condutas imputadas ao arguido e descritas na matéria de facto assente como provada (bofetadas na cara, vergastadas nas pernas com uma cana, reguadas nas mãos com um tubo ou uma cana e a imposição de tomar refeições de pé, aplicadas com intuito correctivo pelo director aos rapazes que se portavam mal de uma instituição de assistência e acolhimento a menores) constituem realmente crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal.
O art.º 69.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa determina que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
Por seu lado, o art.º 19.°, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança – assinada em Nova Iorque em 26-1-1990 e aprovada e ratificada por Portugal –, estabelece que os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.
Vive-se uma época em que o simples castigo corporal exercido sobre os filhos é posto em causa quer no domínio do Direito quer no campo da Psicologia (cfr., no primeiro dos aspectos, Filipe Silva Monteiro, “O Direito de Castigo ou o Direito de os Pais Baterem nos Filhos”, Braga, 2002 e, no segundo, John Rosemond, “Bater ou Não Bater”, Lisboa, 2002).
A doutrina e jurisprudência produzida sobre a área dos maus tratos é uma matéria em constante e rápida evolução, que não sedimenta com facilidade, constantemente obrigadas a seguir novos caminhos, resultado de tomadas de consciência colectivas, de compromissos internacionais e de constantes alterações legislativas e, sobretudo, da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola, a fábrica e a instituição de solidariedade social não mais podiam constituir feudos sagrados.
Efectivamente, após as alterações introduzidas ao Código Civil pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25-11, deixou de ter consagração legal o poder de educar e corrigir os filhos através de agressões físicas.
É, pois, discutível a natureza do direito ao castigo dos pais quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando.
De qualquer forma, um direito de correcção como justificação do facto coloca-se hoje, entre nós, praticamente apenas relativamente a pais (art.º 1878.º e 1885.º do Código Civil) e a tutores (art.º 1935.º do mesmo código).
E em relação a eles, largamente dominante é hoje a doutrina em considerar que a justificação ocorre só dentro de três condições: (1) que o agente actue com finalidade educativa e não para dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou, ainda menos, pelo prazer de infligir sofrimento ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de “prevenção, geral ou especial, de intimidação”; (2) que o castigo seja criterioso e portanto proporcional: no sentido de que ele deve ser o mais leve possível e não no de que ele possa (que não pode) assumir um peso equiparado ao da falta cometida pelo educando, quando esta foi grave ou muito grave; (3) que ele seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou de todo o modo atentatória da dignidade do menor – Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, 2004, tomo I, pág. 468.
Roxin afirma que efectivamente hay que admitir dicha justificación: es cierto que la ley no dice expresamente que el derecho de edcación incluya el derecho a un castigo corporal moderado, y que seria pedagogicamente deseable que se renuncie al castigo corporal como médio de educación familiar; pêro seria desconocer la realidad de la vida suponer que en las condiciones sociales y psicológicas actualmente existentes todos los padres iban a poder arreglárselas prescindiendo completamente de acudir a las manos como método educativo. Si se quisiera movilizar aqui al Derecho penal por cada bofetada motivada por faltas graves, serían más las famílias destrozadas que las pacificadas (Derecho Penal – Parte General, T. I, 2ª ed. Editorial Civitas, 1997, pg. 752).
Esta doutrina conforma-se, pois, com a existência de um direito de correcção com recurso a castigos de natureza física exercida pelos pais em relação aos seus filhos, desde que desempenhado com moderação, adequação à falta e finalidade educativa (neste sentido, também, Jakobs, Derecho Penal – Parte General, Madrid, Marcial Pons, Ediciones Juridicas, 1997, pág. 562).
Roxin, na obra citada, a pág. 752, aceita possibilidades limitadas de transmissão desse direito, de qualquer forma, sempre de forma expressa.
Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estariam em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal (…). Já relativamente a crianças estranhas este poder estaria por regra excluído, se bem que em certos casos (baby-sitter, por exemplo) se possa aceitar a transmissibilidade do seu exercício dentro de determinados limites, (…) uma vez que o direito de correcção resulta da relação familiar entre pais e filhos, a transferência desse direito apenas poderá ocorrer relativamente a pessoas próximas da criança ou que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação, o que torna altamente discutível a autorização legal do exercício desse direito em relação, por exemplo, a estabelecimentos de assistência – Paula Ribeiro Faria, em anotação ao art.º 143.º no "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo I, pág. 214-215.
Concordamos.
O que, em relação a estabelecimentos de assistência social bem se compreende; doutro modo, se a ordem e a disciplina aí se pudesse impor à bofetada e à vergastada, de estabelecimentos de assistência social passariam a casas de horrores, dos tempos da revolução industrial, como as tão bem descritas por Charles Dickens.
É o caso do recorrente, enquanto director da Casa do Gaiato de ...
No contexto acabado de expor, analisemos as situações do tomar as refeições em pé como castigo:
Como é sabido, o bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.
Trata-se de um crime material e de dano. O tipo em análise abrange um determinado resultado que é a lesão no corpo ou na saúde de outrem.
Por ofensa no corpo deve entender-se toda a perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas, todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem-estar físico de forma não insignificante, mesmo que não provoque qualquer lesão corporal, dor ou sofrimento físico e independentemente da gravidade dos efeitos ou da sua extensão (cfr. Prof. Pinto da Costa, citado por Leal Henriques e Simas Santos, "Código Penal Anotado", 2.ª edição, 2.° vol. , pág. 134; Paula Ribeiro Faria, "Comentário Conimbricense ao Código Penal", Coimbra Editora, pág. 202 e segs).
Tendo em conta o conceito ético-social de ofensa à integridade física, adoptado pelo nosso Código Penal, o tipo legal desenhado no art.º 143.°, do Código Penal, fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente de provocar dor ou sofrimento ou lesão externa ou interna.
Na esteira da jurisprudência que tem feito vencimento e não se vislumbrando argumentos para a repudiarmos, entendemos, salvo o devido respeito, que a actuação voluntária consistente em impor a outrem que permaneça de pé durante as refeições como castigo, mesmo que não deixe marcas ou consequências visíveis no corpo do ofendido, integra actualmente o cometimento do crime tipificado no art.º 143° do Código Penal.
Esta imposição não tem coisa alguma a ver com a pelo recorrente mencionada situação de em alguns estabelecimentos de restauração o cliente tomar as refeições de pé, porque nesses casos há o consentimento do titular do interesse jurídico lesado (art.º 31.º, n.º 2 al.ª d), do Código Penal), o qual exclui a ilicitude do facto por se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes (art.º 38.º, n.º 1, do Código Penal).
De resto, é por demais sabido que o estar imóvel de pé durante mais ou menos longos períodos causa sofrimento físico.
Improcede, assim, o recurso interposto.
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em três UC (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5, do RCP e tabela III anexa).
#
Évora,10-04-2012
(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)
João Martinho de Sousa Cardoso (relator)
Ana Barata Brito (adjunta)