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CONTRATO DE MÚTUO
LETRA DE CÂMBIO
OBRIGAÇÃO CARTULAR
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário
1 - A expressão “salvo disposição legal em contrário” contida no art. artº 1143º do C. Civil chama à colação o Dec. Lei nº 32.765, de 29 de Abril de 1943, de cujo artigo único se extrai que os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular ainda que a outra parte não seja comerciante. 2 - O Dec. Lei nº 32.765, de 29 de Abril de 1943, mantém-se em vigor, dado que foi revogado por qualquer legislação posterior, incluindo o Código Civil aprovado pelo Dec. Lei nº 47.344 de 25 de Novembro. 3 – Estando prescrita a obrigação cartular pode a execução prosseguir constituindo título executivo o documento particular que titula o contrato de mútuo.
Texto Integral
Acordam no tribunal da Relação de Évora: J… veio, por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu o BANCO…, S.A., deduzir oposição impugnando documentos juntos com o requerimento inicial, invocar a prescrição nos termos do artº 70º, ex vi do artº 77º da Lei Uniforme Sobre letras e Livranças, o preenchimento abusivo da livrança, a falta de título executivo, a sua ilegitimidade por os bens nomeados à penhora não serem de sua pertença exclusiva, mas sim igualmente da sua ex-esposa, requerendo, outrossim, a suspensão da execução ao abrigo do nº 2 do artº 818º do C.P.Civil, alegando a não genuinidade da assinatura aposta na livrança.
O exequente contestou concluindo pela improcedência da oposição.
O oponente impugnou documentos juntos com a contestação ao mesmo tempo que respondeu à mesma concluindo como no requerimento de oposição.
Pelo despacho de fls. 73-76 indeferiu-se a requerida suspensão da execução, o que foi objecto de recurso por parte do oponente, porém não recebido pelas razões aduzidas no despacho de fls. 120.
Preliminarmente ao despacho saneador decidiu-se não admitir a resposta do oponente à contestação e, no saneador, conhecendo-se da matéria de excepção julgou-se improcedente a arguição da ilegitimidade mas procedente a de prescrição, determinando-se, consequentemente, a extinção da execução.
Inconformado, interpôs o exequente o presente recurso em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
1. O Mmº Juiz “ a quo” refere que o banco recorrente intentou a presente execução em 23 de Dezembro de 2003, tendo apresentado como título executivo uma livrança, com data de vencimento de 22 de Março de 2004, tendo o executado sido citado em 25 de Março de 2009, encontrando-se aquele título cambiário prescrito.
2. Todavia, perfilhando a tese de que, apesar de prescrito o título de crédito, este poderá ter força executiva como documento particular de reconhecimento de dívida, nos termos do disposto no artº 46º, al. c) do Código de Processo Civil, desde que, no âmbito das relações imediatas, a relação causal seja alegada pelo exequente no requerimento executivo – como é o caso dos presentes autos – o tribunal a quo considerou que a livrança, enquanto documento particular assinado pelo devedor, constitui título executivo.
3. Porém, entendeu o Mº Juiz que tendo em conta o valor da quantia mutuada - Eur. 62.349,74 (sessenta e dois mil trezentos e quarenta e nove euros e setenta e quatro cêntimos) – o contrato de mútuo é nulo, por vício de forma, uma vez que, nos termos do artº 1143º do Código Civil, os contratos de mútuo de valor superior a Eur. 20.000,00 (vinte mil euros), só é válido se celebrado por escritura pública.
4. Nestes termos, considerou a sentença em crise que uma vez que o negócio jurídico subjacente à livrança tem natureza formal, não é suficiente “ a sua invocação como causa de pedir na execução, corroborada pelo documento exibido, já que a observância de forma especial é condição essencial da sua validade. Não podendo, assim, a livrança em questão, servir, também por esta via, de título executivo, posto que a invalidade formal do negócio atinge a exequibilidade da pretensão incorporada no título”. 5. Em consequência do exposto, considerou verificada a excepção peremptória de prescrição da obrigação cambiária e a falta de título executivo e, em consequência, julgou procedente a oposição determinando a extinção da execução.
6. Salvo o devido respeito, a douta decisão recorrida deve ser revogada pois nela se fez incorrecta interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito.
7. Toda a execução tem por base um título executivo, através do qual se determina o seu fim e limites (artº 45º, nº 1 do Código de Processo Civil).
8. Pois para que se possa demandar a realização coactiva de uma prestação, o respectivo dever de prestar tem, desde logo, de constar de um título que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, uma vez que lhe atribui um grau de certeza que o sistema considera de suficiente para a admissibilidade da acção executiva – Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva”, p.26.
9. Não é suficiente alegar a sua mera existência, é pois preciso exibir o título.
10. A exequibilidade extrínseca da pretensão é concedida pela sua inclusão num título executivo, num documento que formaliza, por via legal “ a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida”, pelo que o título executivo á assim condição necessária e suficiente de qualquer execução, uma vez que sem título não existe acção executiva.
11. O artº 46º do Código de Processo Civil enumera, nas suas diversas alíneas as várias espécies de títulos executivos, estando a sua enumeração legal submetida a uma regra de tipicidade – nullus titulus sine lege – não admitindo qualquer excepção criada ex vontade, pelo que as partes jamais poderão conferir força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda não podem recusar um título legalmente qualificado como título executivo.
12. São títulos executivos “os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou prestação de facto” conferindo. Assim, exequibilidade aos documentos particulares assinados pelos devedores.
13. Ao contrario do referido na sentença em crise (cfr. fls 2 e ss. dos autos) o título executivo dado à execução é o Contrato de Concessão de Crédito em Conta Corrente com Caução – Curto Prazo, celebrado entre o banco recorrente e entre outros (já declarados insolventes) o aqui apelado J…, destinado ao fundo de maneio da sociedade V… & Filhos Lda.
14. Nos termos do disposto no artº 46º, al. c) do Código de Processo Civil, tal contrato constitui um documento particular assinado pelo apelado, constitutivo de uma obrigação por parte daquele, de restituição da quantia financiada/mutuada nos termos acordados, a qual é aritmeticamente determinável.
15. Pois, o apelado assumiu a obrigação do pagamento da quantia mutuada, ainda que diluída num período temporal, mediante a aposição da sua assinatura no local destinado à assinatura do mutuário, o que traduz o reconhecimento de uma dívida, por parte do subscritor e, em consequência, constitui uma obrigação assumida expressa e pessoalmente pelo devedor no contrato que titula a execução.
16. O apelado não obstante ter sido interpelado para o pagamento da quantia em dívida, não procedeu à sua liquidação e, em consequência, incumpriu definitivamente as condições de reembolso e o respectivo contrato.
17.Impõe-se determinar qual o regime legal aplicável ao contrato em causa.
18. O artº 1142º do Código Civil estatui que “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”. 19. O mútuo bancário distingue-se de quaisquer outros, não apenas por ser celebrado por um banqueiro, como mutuante, agindo no exercício da sua profissão, mas também no que concerne à forma, às taxas de juro e a prazos.
20. O Código Civil de Seabra determinava, no seu artigo 1534º, que o mútuo de quantia superior a determinado valor só podia ser provado por documento assinado pelo próprio mutuário e reconhecido como autêntico e que o mútuo de quantia superior a uma outra ainda mais elevada só podia ser provado por escritura pública.
21. O actual artº 1143º do Código Civil veio manter, nas suas linhas básicas, um regime semelhante (para a validade do contrato de mútuo exige-se documento assinado pelo mutuário para os mútuos de valor superior a € 2.000,00 (dois mil euros) e escritura pública para os de valor superior a € 20.000,00 (vinte mil euros).
22. Sucede que entre a publicação do Código de Seabra (1867) e o actual Código (1966), foram publicados em 1888 o Código Comercial, actualmente em vigor, e em 1943 foi publicado o Decreto-Lei nº 32765.
23. Com efeito, a partir de 1888, passaram a vigorar dois regimes distintos da prova e da forma dos mútuos: i) o geral, da lei civil, aplicável aos mútuos entre particulares ou entre um comerciante e um particular, através do qual, atendendo ao valor do mútuo deve ou não obedecer a certa forma (artigo 1143 do Código Civil); e ii) o especial unicamente aplicável ao mútuo mercantil entre comerciantes, por meio do qual se admite a liberdade de meios de prova e de forma (artº 396º do Código Comercial).
24. Com o objectivo de afastar a aplicabilidade das exigências de ordem formal constantes do Código Civil relativas ao mútuo, o Código Comercial veio estabelecer que o empréstimo (ou mútuo mercantil) entre comerciantes admite qualquer meio de prova, seja qual for o seu valor.
25. O decreto-lei nº 32765, por sua vez, introduziu uma alteração significativa no regime da prova e de forma de certos mútuos (os mútuos de qualquer valor, feitos por estabelecimentos bancários autorizados, ainda que o mutuário não tivesse a qualidade de comerciante).
26. Dada a natureza especial do diploma supra e ainda por pertencer ao ramo do direito comercial (ou, mais propriamente ao direito bancário, o qual, por sua vez, tem também natureza especial quanto ao direito comercial propriamente dito), é entendimento uniforme que o mesmo não foi revogado pelo Decreto-Lei nº 47344 de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o Código Civil vigente, pelo que continua em vigor.
27. Por outro lado, a publicação do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro (alterado pelo Decreto –Lei nº 201/2002, de 26 de Setembro), que regulou em novo diploma unificado a actividade bancária, ao revogar especificamente variadíssimos diplomas legais sobre esta matéria, não procedeu à revogação daquele Decreto-Lei nº 32765, o que significa que também a essa luz não se pode considerar revogado este decreto-lei.
28. O artigo único do citado Decreto-Lei nº 32765, determina que os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante.
29. Pelo que deverá ser revogado o despacho/sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento da execução em relação ao executado/recorrido J….
O oponente contra-alegou pugnando pela confirmação da decisão.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Na douta sentença teve-se em conta que:
- a exequente apresenta como título executivo uma livrança cuja data de vencimento é de 22.03.04;
- alegou, por outro lado, a relação subjacente à livrança apresentada, como sendo um mútuo da quantia de € 62.349,74 emissão do título, juntando os respectivos documentos comprovativos.
Perante esta realidade entendeu-se que a obrigação cartular se encontrava prescrita e que, face aos documentos respeitantes ao alegado mútuo, e ao montante deste, não foi observada a forma legal prescrita no artº 1143º do C. Civil, razão por que sendo o mesmo nulo, não têm tais documentos a força executiva a que alude a alínea c) do artº 46º do C. P. Civil.
Como vimos o apelante insurge-se apenas quanto a este último entendimento, adiantando-se, desde já, que lhe assiste razão.
Com efeito ao contrario do que alega o apelado na conclusão 5ª da sua contra-alegação, não vem o exequente, na sua alegação “apresentar um novo título executivo, como sendo um alegado – contrato de concessão de crédito em conta corrente com caução”, na medida em que na petição inicial da execução (ver os três primeiros parágrafos) essa causa de pedir surge até exposta em primeiro lugar, sendo depois apoiada nos documentos de fls.204 a 225 do presente processado.
E porque assim é, cabe indagar se o contrato é nulo.
Dispõe o artº 1143º do C. Civil que, sem prejuízo do disposto em legislação especial, o contrato de mútuo de valor superior a € 25.000 só é valido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.
Os valores determinantes da observância da forma prescrita no preceito foram variando ao logo do tempo, o que não releva para o caso, na medida em que, no pressuposto da sua aplicação, nunca nenhumas dúvidas se suscitariam face ao montante aqui em causa.
Certo é porém que a ressalva do “disposto em lei especial” chama aqui necessariamente à colação o Dec. Lei nº 32.765, de 29 de Abril de 1943, de cujo artº único se extrai que os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular ainda que a outra parte não seja comerciante, sendo certo que tal diploma se não mostra revogado por qualquer legislação posterior, incluindo o Código Civil aprovado, como se sabe, pelo Dec. Lei nº 47.344 de 25 de Novembro.
E este o entendimento sufragado pela jurisprudência dominante, de que são exemplos os acórdãos desta Relação de 28 de Abril de 1994, in CJ, Ano XIX, tomo II, pag. 267-269 e da Relação do Porto de 24.04.2003, in www.dgsi.pt.
Assim, pese embora a prescrição da obrigação cartular, pode e deve a execução prosseguir a coberto dos documentos particulares que titulam o contrato de mútuo por os mesmos constituírem título executivo nos termos da referida al. c) do nº 1 do artº 46º do C. P. Civil.
Por todo o exposto e na procedência da apelação, revogam a decisão recorrida e ordenam o prosseguimento da execução.
Custas pelo oponente.
Évora, 26.04.2012
João Gonçalves Marques
Eduardo José Caetano Tenazinha
António Manuel Ribeiro Cardoso