ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL
LITISCONSÓRCIO
Sumário


I. Na ação cível enxertada no processo penal é admissível a intervenção principal provocada de terceiro, nos casos de litisconsórcio ativo, necessário ou voluntário, e nos casos de litisconsórcio necessário o tribunal de julgamento deve convidar o demandante a providenciar pelo suprimento da exceção dilatória por aplicação subsidiária das disposições aplicáveis do C.P.Civil, ex vi do art. 4º do C.P.Penal, sendo o despacho a que se refere ao art. 311º do CPP meio adequado para o fazer.

II. Quando o n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil diz que o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, "em conjunto", ao cônjuge e aos filhos e outros descendentes, aquela expressão tem um sentido substantivo e não adjectivo, não consagrando uma hipótese legal de litisconsórcio necessário ativo.

Texto Integral


Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. – Nestes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Olhão, o lesado, B, deduziu pedido cível contra o arguido, a Cª de Seguros e, subsidiariamente, o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a sua condenação a pagar-lhe o valor de 1 351 125,00€ a título de indemnização por danos não patrimoniais próprios e, também, os respeitantes a sofrimento da vítima, seu pai, antes de falecer em consequência do acidente de viação que integra o objeto do processo.

2. – Por despacho de 04.10.2011, posteriormente aclarado e completado pelo despacho de fls 12 a 14 dos presentes autos em separado, proferido em 7.11.2011, a senhora juiz a quo não admitiu aquele pedido cível.

3. – É deste despacho que vem interposto pelo lesado o presente recurso, de cuja motivação extrai as seguintes conclusões:

«DAS CONCLUSÕES:

I – A presente decisão afigura-se materialmente inconstitucional visto que faz uma errónea interpretação do conceito de ILEGITIMIDADE para efeitos de dedução de pedido de indemnização em processo penal. Na verdade,

II – No processo penal vigora o princípio da suficiência e o princípio da adesão (artigos 7.º e 71.º do CPP), de tal modo que, tendo alguém cometido um crime, e não tendo havido renúncia expressa à perseguição criminal, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, do CPP, não ficam os herdeiros impedidos de fazer todos os direitos, próprios ou do “de cujus”, em sede criminal, mormente para efeitos de INDEMNIZAÇÃO CIVIL, quer por danos patrimoniais, quer por danos NÃO PATRIMONIAIS.

III – O arguido vem acusado de ter morto, em lamentável acidente estradal, o progenitor do recorrente e peticionante do respectivo pedido de indemnização civil.

IV – Os danos não patrimoniais, reivindicados pelo demandante – e aqui “recorrente” – B – decompõem-se em várias dimensões.

V – Ao mobilizar o disposto no artigo 26.º, do CPC, com base na titularidade da relação substantivas, ex vi artigos 496.º e 2091.º, do Código Civil, a M.ma Juiz a quo desconsiderou as regras específicas do processo penal e a necessidade de “naturalização” dos conceitos implicada em tal mudança de processo.

VI – Da conjugação dos artigos 71.º, 74.º, n.º 1, e 75.º, do CPP, verifica-se que, em processo penal, as normas relativas ao pedido de indemnização civil são imperativas, de tal modo que pode ser decretada a ilegitimidade de uma parte civil desacompanhada sem prova de o Tribunal e o MP terem procedido ao cumprimento do disposto no artigo 75.º, do CPP, sob pena de denegação de tutela jurisdicional efectiva e justiça.

VII – A situação é tanto mais gravosa que com este despacho liminar, se encontra violar direito expresso, já que o vício é SANÁVEL e deveria e podia ter suscitado a intervenção do irmão ausente.

VIII - Não tendo sido feita prova, nos autos, de haver sido cumprido o disposto no artigo 75.º, do CPP, tal significa que não estando todos os beneficiários legitimados para formular o pedido de indemnização civil, nem mesmo assim tal poderia levar a um qualquer indeferimento liminar.

IX – O demandante – B – possui, até pela lei processual civil, nos termos do artigo 325.º, do CPC, a prerrogativa da efectuar o incidente processual da INTERVENÇÃO PROVOCADA que, ex vi artigo 4.º, do CPP, desde já formula, relativamente ao seu irmão, devendo o mesmo ser notificado.

X – A não admissão de pedido de indemnização civil, tempestivamente formulado no processo penal, sem comprovação de terem sido, pelo Tribunal, informados todos os titulares do respectivo direito, no caso de homicídio, impede o Tribunal de retirar tutela efectiva ao demandante civil.

NESTES TERMOS, E SEM PREJUÍZO DO DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER RECEBIDO, JULGADO PROCEDENTE E, POR VIA DISSO, SER PROFERIDO DOUTO ACÓRDÃO QUE REVOGUE O RECORRIDO, ADMITINDO-SE, NOS TERMOS PETECIONADOS, O PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO.»

4. – Nenhum dos sujeitos processuais afetados pelo recurso apresentou resposta.

5. – Nesta Relação, o senhor magistrado do MP limitou-se a apor o seu visto, pelo que não teve lugar a notificação a que se reporta o art. 411º nº 2 do CPP.

6. – Transcrição ipsis verbis do despacho recorrido, tal como foi integralmente reproduzido no despacho de aclaração de 7.11.2011:

«B vem desacompanhado do seu irmão J deduzir pedido de indemnização cível contra o arguido, contra a Companhia de Seguros para a qual o arguido havia transferido a sua responsabilidade civil ou na circunstância de inexistir a referida relação contratual, contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação dos demandados (que o caso do Fundo é subsidiária) no pagamento de uma indemnização no valor de 135 000,00, tendo tal pedido por base a existência de responsabilidade civil extra-contratual.

O referido pedido é formulado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da morte de JM, pai do demandante e de J.

Os danos não patrimoniais respeitam ao sofrimento da vítima nos momentos anteriores ao seu decesso, bem como os sofridos pelo demandante em consequência da referida morte e os danos patrimoniais para ressarcimento do dano conexo com a destruição de objectos pessoais pertença do malogrado JM.

Questão a decidir:

Importa nestes autos saber se B pode estar nestes autos desacompanhada do seu irmão

Cumpre apreciar e decidir:

Sobre esta temática importa atentar ao que diz o artigo 26.º, nº1 e 2 do Código de Processo Civil “

O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, exprimindo-se tal interesse pela utilidade derivada da procedência da acção que lhe advenha”

Por sua vez, o artigo 496.º do Código Civil dispõe que “ 1 – Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito;

2 – Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes, na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3 – O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior”

Ainda a este propósito estatui o artigo 28.º do Código de Processo Civil que “ 1 – Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.

2 – É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.”

Por último, nos termos do disposto do artigo 2091.º do Código Civil, a regra geral é que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos ou contra todos os herdeiros, havendo litisconsórcio necessário legal.

Deste modo, o facto da acção de indemnização ter sido proposta só por um dos herdeiros implica necessariamente uma situação de ilegitimidade activa, por preterição do litisconsórcio necessário activo [1 Neste sentido Alberto dos Reis, in Processos Especiais, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra 1982- Reimpressão, pág. 314 e os seguintes Acórdãos; RP de 10/3/1984, BMJ 337,412, RC de 14-7-1992, CJ 92, IV,64 STJ de 9/2/1993,CJ,93,I, 143, RP de 23/2/1995, CJ,95,I, 227 e RL de 4/7/1996, BMJ 459,592].

É certo que tal ilegitimidade é sanável e, em tese, susceptível de convite ao aperfeiçoamento nos termos do disposto nos artigos 265.º, nº2 e 508.º, nº1, al. a) e 2, do Código de Processo Civil.

No entanto, esse convite a fazer intervir um terceiro levaria, logicamente, a protelar o andamento do processo, sendo que essa situação é intolerável, já que o arguido tem interesse na pronta definição da sua situação jurídica. Com efeito, todo o “rito” processual do chamamento levaria ao atraso por vários meses da apreciação da componente criminal.

Assim, as partes cíveis devem recorrer aos meios comuns.

Nestes termos, atento o supra exposto, conclui-se necessariamente pela verificação de uma situação de ilegitimidade activa, o que conduz à rejeição liminar do pedido de indemnização civil»

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.

a) Nos seus traços mais gerais, a questão suscitada na motivação de recurso é a de saber se deve ser revogado o despacho recorrido que não admitiu o pedido cível deduzido pelo ora recorrente, em que este pede a condenação do arguido e outros a pagar-lhe indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte de seu pai (vítima do crime de homicídio negligente em julgamento), incluindo os danos respeitantes ao sofrimento da vítima nos momentos anteriores ao seu decesso.

A identificação da questão jurídica a resolver implica, porém, uma melhor delimitação do objeto do recurso a partir dos termos concretos do despacho recorrido.

Vejamos.

b) O despacho recorrido começou por considerar que o lesado ora recorrente não podia deduzir pedido cível por parte dos danos não patrimoniais cuja indemnização pretende, verificando-se, nessa medida, preterição de litisconsórcio necessário ativo, conforme jurisprudência que cita.

Apesar de referir expressamente que tal ilegitimidade é sanável e, em tese, suscetível de convite ao aperfeiçoamento nos termos do disposto nos artigos 265.º, nº2 e 508.º, nº1, al. a) e 2, do Código de Processo Civil, conclui, no entanto, que esse convite a fazer intervir um terceiro levaria, logicamente, a protelar o andamento do processo, sendo que essa situação é intolerável, já que o arguido tem interesse na pronta definição da sua situação jurídica.

Com efeito, todo o “rito” processual do chamamento levaria ao atraso por vários meses da apreciação da componente criminal. Assim, as partes cíveis devem recorrer aos meios comuns.

c) Dos concretos termos e fundamentação do despacho recorrido resulta, pois, que o tribunal a quo não admitiu o pedido cível por considerar que a necessária intervenção do terceiro (o irmão do arguido) iria atrasar intoleravelmente o processo, concluindo que as partes cíveis devem recorrer aos meios comuns, o que nos remete de imediato para o disposto no nº3 art. 82º do CPP, segundo o qual o tribunal pode remeter as partes para os meios civis, quando as questões suscitadas pelo pedido cível inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

Assim, apesar de o tribunal a quo não citar o art. 82º do nº3 do CPP na sua decisão, a principal questão que o presente recurso suscita é, afinal, a de saber se deve considerar-se, com o tribunal recorrido, que a dedução de incidente para fazer intervir nos autos o irmão do lesado e ora recorrente, retardará intoleravelmente o presente processo penal.

2. Decidindo.

2.1. – Admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada.

Antes de mais, impõe-se reconhecer alguma ambiguidade no despacho da senhora juiz a quo, pois dos termos da decisão e da sumária fundamentação da mesma, poderia antes concluir-se pela inadmissibilidade legal do incidente processual de intervenção principal provocada em processo penal.

Na verdade, apesar de o tribunal a quo não ter apreciado especificamente a questão, a jurisprudência divide-se a respeito da admissibilidade da intervenção principal provocada de terceiros no pedido cível enxertado em processo penal, pelo que, antes de prosseguirmos, importa deixar claro que entendemos ser admissível em processo penal o incidente de intervenção principal provocada, nos termos do arts 74º do CPP e 325 e sgs do CPCivil, aplicável ex vi do art. 4º do CPP, com os fundamentos geralmente invocados a tal respeito[1]:

- O Código de Processo Penal, consagra a regra geral da admissibilidade da intervenção de terceiros no nº 3 do seu art. 74º, limitando-se o nº 2 do art. 73º a deixar claro ser igualmente admissível a intervenção espontânea;

- Não é decisiva a invocação do retardamento do processo para sustentar a inadmissibilidade da intervenção provocada, pois o art. 73º expressamente admite a intervenção espontânea, como aludido, relativamente à qual a questão se colocaria nos mesmos termos;

- A inadmissibilidade da intervenção principal provocada, quer do lado ativo, quer passivo, acabaria por significar o reenvio ex lege das partes para os tribunais civis, pois impediria o suprimento de situações de litisconsórcio necessário ativo ou passivo, com a consequência inaceitável de haver lugar a absolvição da instância por preterição daquele litisconsórcio ou, como no caso presente, à sua rejeição liminar.

Para além do mais, essa solução sempre violaria o princípio da prevalência do fundo sobre a forma claramente afirmado para o processo civil no preâmbulo do Dec-lei 329-A/95 de 12 de dezembro e, mais concretamente, inviabilizaria a aplicação em processo penal do princípio geral ali afirmado, de que “…incumbe ao Juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação, praticando os actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa a definição das partes, convidando-as a suscitar os incidentes de intervenção de terceiros adequados…"
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Embora na generalidade da jurisprudência citada, a questão da admissibilidade da intervenção principal provocada se coloque no lado passivo, a propósito do chamamento de responsável civil, os argumentos invocados valem igualmente nas situações, como a presente, de intervenção principal provocada dirigida a litisconsorte ativo, quer se trate de litisconsórcio necessário, quer voluntário (arts. 27º e 28º do CPC).

Nas hipóteses de litisconsórcio necessário (como perspetivado pelo tribunal recorrido para o caso presente), sempre cabia ao tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento, para efeitos do disposto nos arts. 265º nº2 e 508º nºs 1 a) e 2, do CPCivil, tal como o despacho recorrido refere, afastando a sua aplicação no caso concreto não por entendê-la inadmissível, mas antes por reenviar as partes para os meios civis.

O convite ao aperfeiçoamento tem efetivamente lugar em processo penal, sendo o momento do despacho a que se refere ao art. 311º do CPP adequado para o fazer, pelas razões expendidas no Ac RP de 20.12.2006 (relator Joaquim Gomes), para que se remete, cujo sumário é do seguinte teor: -“ Na falta de um dos pressupostos processuais com referência ao pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, o juiz deve, no momento indicado no artº 311º do CPP98, convidar o requerente desse pedido a suprir a falta”.

É assim decididamente nos casos de litisconsórcio necessário, que corresponderia à situação dos autos tal como perspetivada pelo tribunal recorrido (vd infra, o decidido quanto a este entendimento jurídico da questão), pois a posição contrária levaria à preterição do princípio da adesão fora dos casos legalmente previstos.

Naquelas hipóteses, tal como nos casos de litisconsórcio voluntário permite-se que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime seja decidida no processo penal com a máxima amplitude subjetiva possível, cabendo ao tribunal assegurar em concreto, através do mecanismo do art. 82º nº3, qual o interesse que deve prevalecer quando não for possível prosseguir com a concordância prática representada pela regra da adesão.

Concluímos, pois, que na ação cível enxertada no processo penal é admissível a intervenção principal provocada de terceiro, nos casos de litisconsórcio ativo, necessário ou voluntário e que nos casos de litisconsórcio necessário o tribunal de julgamento deve convidar o demandante a providenciar pelo suprimento da exceção dilatória por aplicação subsidiária das disposições aplicáveis do do C.P.Civil, ex vi do art. 4º do C.P.Penal.

2.2. Prosseguindo agora com a apreciação do reenvio decidido pelo tribunal a quo com fundamento no retardamento intolerável do processo penal, importa ter em conta algumas considerações sobre o quadro mais geral das relações entre a ação civil e a ação penal derivadas de um mesmo ilícito.

2.2.1. - No que respeita às relações entre a ação civil e a ação penal derivadas de um mesmo ilícito, o CPP de 1987, tal como se verificava com o CPP de 1929, adota o chamado modelo ou sistema de interdependência, na modalidade de obrigatoriedade regra de fazer aderir a ação civil à ação penal, falando-se neste caso em processo de adesão da ação civil à ação penal.

O art. 71º do CPP consagra o princípio-regra da obrigatoriedade da adesão da ação civil ao processo penal, como referido, que, desde logo, permite a melhor realização de finalidades intrinsecamente processuais, como sejam a prevenção de decisões contraditórias e a economia processual, para além de interesses de natureza penal substantiva, nomeadamente ao nível da determinação da pena, na medida em que o apuramento da real extensão das consequências do facto pode influenciar a respetiva medida.

Porém, F. Dias chama a atenção para que “A sua maior vantagem, que o torna um instrumento indispensável em qualquer Estado-de-direito social dos nossos dias, reside em permitir uma realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização” Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal” 1º volume, Coimbra Editora, 1974, p. 562.

Daí que os casos em que o art. 72º admite a dedução do pedido de indemnização civil em separado correspondam, em regra, a situações em que tal opção será do interesse do lesado, traduzindo uma faculdade e não a um dever. Isto é, partindo do princípio-regra da obrigatoriedade de adesão da ação civil à ação penal, a lei portuguesa confere ao lesado a alternativa ou opção de deduzir o pedido de indemnização perante a jurisdição cível
.
Não é, assim, porém, quanto à exceção a que se reporta a al. e) do nº1 do art. 72º, ou seja, a não pronúncia da sentença penal sobre o pedido civil, nos termos do art. 82º nº3. Neste caso, não só se afasta a regra de obrigatoriedade de adesão, como não se concede ao lesado a faculdade de optar entre a ação civil e o processo de adesão, sendo-lhe imposto o recurso aos tribunais civis por decisão judicial.

Na verdade, de acordo com o nº3 do art. 82º do CPP, pode o tribunal – oficiosamente ou a requerimento – decidir interromper a tramitação do pedido de indemnização civil no processo penal, levando a que o lesado tenha que instaurar a respetiva ação nos tribunais civis para ver apreciado e decidido o seu pedido, quer se trate de caso abrangido pela obrigatoriedade de adesão, quer estejamos perante uma das hipóteses em que o lesado podia ter optado pela jurisdição civil.

O art. 82º nº3 do CPP prevê dois tipos de situação em que se impõe ao lesado a instauração da ação nos tribunais civis para ver apreciado e decidido o seu pedido.

Por um lado, acolhe a ideia que a adesão do processo civil ao processo penal não pode sacrificar as exigências específicas do processo penal, nem os valores que lhe estão subjacentes, pelo que o reenvio para os tribunais civis visará evitar o retardamento excessivo do processo penal. Por outro lado, o reenvio terá lugar quando as questões suscitadas pelo pedido cível inviabilizem a sua decisão rigorosa no processo penal.

Isto é, conclui Rui Sá Gomes[2], este mecanismo funciona como uma “válvula de segurança”, evitando danos irreparáveis para as duas acções, civil e penal. Ou seja, a adesão … não pode significar o aniquilamento dos valores que cada um dos processos visa assegurar, impedindo-a sempre que ela conduza ao desvirtuamento de um dos processos em causa ou dos seus princípios e valores fundamentais.”

2.2.2.- Nos presentes autos está em causa o primeiro daqueles fundamentos – retardamento do processo penal – que o tribunal a quo entende verificar-se não com base numa apreciação casuística que a justificasse, mas por considerar que o incidente de intervenção principal provocada do irmão do lesado ora recorrente levaria, logicamente, a protelar o andamento do processo, sendo que essa situação é intolerável, pois, todo o “rito” processual do chamamento levaria ao atraso por vários meses da apreciação da componente criminal.

Sem razão, porém.

Desde logo, porque o retardamento é inerente à dedução de qualquer incidente de intervenção de terceiros, pelo que aquele fundamento apenas poderia justificar opção legal no sentido da sua inadmissibilidade mas não o retardamento intolerável a que se refere o art. 82º nº3 do CPP, precisamente porque este se reporta a um circunstancialismo casuisticamente apreciado que fundamente a derrogação prática da regra da adesão.

Por outro lado, em face dos elementos disponíveis, não pode dizer-se que o incidente de intervenção principal provocada do irmão do ora recorrente (ou de qualquer outra pessoa a quem seja reconhecido em conjunto o direito a indemnização por morte da vítima), potencie atraso processual significativo.

Em termos de normalidade processual, o processamento do incidente, que se encontra regulado nos arts 325º a 329º do CP Civil, não é de molde a fazer esperar particulares complicações e subsequentes demoras, tanto mais que o demandante revela interesse nele, o terceiro não terá interesse em deduzir qualquer oposição, pois é chamado como associado do autor, e os próprios demandados terão interesse em que o litígio seja discutido e decidido perante todos os interessados.

Por último, conforme se diz no Ac RC de 05.06.2002 (relator, Coelho Vieira), “…há ainda que ponderar que a remessa das partes para os Tribunais civis, para além de uma maior onerosidade, relativamente à “causa penal”, envolve bem maiores riscos de retardamento da decisão cível, do que um julgamento conjunto em homenagem ao princípio e regra da adesão …”.

Na verdade, o sacrifício imposto ao lesado com o reenvio para os meios comuns apenas se justifica quando a ameaça para finalidades essenciais do processo penal é de tal ordem séria e relevante que torna intolerável, isto é, praticamente inaceitável, o retardamento do processo penal, para além das hipóteses de inviabilização de uma decisão rigorosa da questão civil, que aqui não está em discussão (cfr art. 82º nº3 CPP).

Concluímos, pois, que não se demonstra o invocado retardamento do processo penal com que o tribunal a quo fundamenta o reenvio das partes civis para os meios comuns, pelo se impõe revogar o despacho recorrido.

2.2.3. – Sucede, porém, last but not the least, que o tribunal a quo não tem igualmente razão quando entende que a situação presente configura um caso de litisconsórcio necessário ativo.

Em primeiro lugar, contrariamente ao que parece entender o tribunal recorrido, será hoje praticamente pacífico que a supressão de bem vida não conta como um dano cuja reparação se transmita aos herdeiros da vítima. Como diz, por todos, Antunes Varela[3] “…no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, nãos aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no nº2 do art. 496º do C.Civil”.

Daí que se mostre desajustada a invocação do disposto no art. 2091 do C. Civil, que se reporta ao exercício de direitos relativos à herança, bem como a jurisprudência citada tal respeito, máxime o Ac STJ de 9.02.1993, CJ 93/I-143.

Em segundo lugar, o art. 496º nº2 do C. Civil, ao atribuir em conjunto o direito aí reconhecido, não consagra uma hipótese de litisconsórcio necessário.

Conforme pode ler-se no Ac STJ de 15.04.1997 (Relator Lopes Pinto), «I - Quando o n. 2 do artigo 496 do Código Civil diz que o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, "em conjunto", ao cônjuge e aos filhos e outros descendentes, quer significar que o montante há-de ser repartido em igualdade entre os membros desse grupo. II - Quis-se afastar as regras sucessórias e estabelecer norma específica, dizendo que se procede a uma atribuição e a uma repartição conjunta. III - A expressão tem, assim, um sentido substantivo e não adjectivo, a ponto de nela se ver consagrado um litisconsórcio activo necessário.».

No mesmo sentido pronuncia-se o Ac STJ de 28.04.1999 (Relator, Santos Carvalho) num caso de pedido cível deduzido em processo penal. Conforme se diz no respetivo sumário, «II - Não há litisconsórcio necessário que obrigue ambos os pais a deduzirem um pedido conjunto de indemnização por danos não patrimoniais resultantes da morte e sofrimento da filha, vítima de acidente de viação: - o dano de cada um deve ser apreciado, independentemente do dos outros.».

Pelas razões e argumentos desenvolvidos naqueles acórdãos - para os quais se remete -, nada impede que seja apenas um dos beneficiários do direito aos danos não patrimoniais correspondentes à perda do direito à vida a peticionar a indemnização que lhe cabe, nomeadamente no que respeita à perda do direito à vida, seja em processo civil seja em ação enxertada em processo penal.

Não obstante as inegáveis vantagens em que o litígio seja discutido entre todos no mesmo processo, quer para os interessados, quer mesmo do ponto de vista da administração da justiça, a lei não o impõe, sem prejuízo de sempre poderem vir a intervir no processo por iniciativa do demandante ou de algum dos demandados, nos termos do art. 325º do CPC, pois estamos perante hipótese de litisconsórcio voluntário a que se refere o art. 27º do CPC - vd Ac STJ de 10.04.1997 supracitado.

Nada obsta, pois, a que o pedido cível seja deduzido por um só dos interessados, não só porque poderão vir a intervir os demais familiares com direito igual ao do demandante, como vimos, mas também porque se tal não suceder nada obsta a que o pedido cível prossiga até final unicamente com o demandante do lado ativo, podendo outros interessados que não participem no processo vir a intentar nova ação no futuro ou, simplesmente, a aceitar o decidido entre quem foi parte no processo.

2.2.4. – Concluímos, em síntese, que se impõe a revogação do despacho recorrido decidindo-se, em substituição, que o ora recorrente tem legitimidade para deduzir o pedido cível em causa, sem prejuízo de eventual incidente de terceiros que venha a ser deduzido, pelo meio processual próprio, no tribunal competente e com cumprimento das demais exigências técnicas a assegurar pelo mandatário das partes, pois é em nome delas que a lei estabelece os casos de representação obrigatória por advogado.

Não releva, pois, a declaração do recorrente de que desde já formula o incidente de provocada (conclusão IX), para a qual, em todo o caso, o presente tribunal de recurso não tem competência.

III. – Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o presente recurso, ainda que com fundamentos parcialmente diversos, revogando o despacho judicial recorrido e decidindo, em substituição, que o recorrente tem legitimidade para deduzir o pedido cível em causa e que a eventual dedução de incidente de intervenção principal provocada do irmão do demandante para intervir como seu associado não retarda intoleravelmente o processo penal, pelo que deve correr os seus termos no processo penal.

Sem custas.

Évora, 12-06-2012

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)

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[1] Vd, entre outros, Ac RL de 11.04.2000 (relator Pulido Garcia), Ac RP de 5.06.2002 (relator Coelho Vieira), Ac RP de 8.03.2006 (relator Pinto Monteiro), RC de 7.11.2007, (relator Jorge Raposo), Ac RG de 5.5.2008 (relator Anselmo Lopes) acessível em www.dgsi.pt

[2] Cfr As partes civis (sujeitos secundários ou intervenientes). O pedido de indemnização civil em processo penal. O sistema de adesão in Tereza Pizarro Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, ed. AAFDL-1992/p. 221

[3] Das Obrigações em geral Vol I, 3ª ed. Almedina-1980 pp. 503 e 508.